Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
871/08.2PRPRT.P1
Nº Convencional: JTRP00043555
Relator: VASCO FREITAS
Descritores: CONSUMO DE ESTUPEFACIENTES
Nº do Documento: RP20100217871/08.2PRPRT.P1
Data do Acordão: 02/17/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO - LIVRO 620 - FLS 01.
Área Temática: .
Sumário: Deduzida acusação contra o arguido pela detenção de 12 embalagens com heroína, com o peso liquido de 1,71g, que destinava ao seu consumo, sem que, do exame efectuado pelo LPC constem os componentes do produto nem a percentagem do princípio activo, vedado fica ao Tribunal conhecer o grau de pureza da substância estupefaciente identificada no produto como, daí, vedado lhe fica o recurso aos valores indicativos constantes do Mapa Anexo à Portaria 94/96.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso Penal nº 871/08.PRPRT.P1

Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
I- RELATÓRIO
No .º Juízo Criminal do Porto, nos autos de processo comum, sobre a acusação deduzida pelo digno MºPº contra o arguido B………., foi proferido pelo Mº Juiz o seguinte despacho:
“Registe e Autue como processo comum
O tribunal é competente.
Questão previa.
Nos presentes autos vem o(a) arguido(a) B………., vem acusado da autoria material de um crime p. e p. pelo n°2, do art. 40, da Lei 15/93 de 22 de Janeiro.
Fez-se constar da acusação que:
"No dia 14 de Agosto de 2008, e no circunstancialismo descrito de fls. 58 e 59 que aqui se supõem integradas e reproduzidas, foi apreendido ao arguido diversas embalagens de produto que o mesmo transportava consigo quando se fazia transportar num táxi.
Tais produtos, em sede de exame laboratorial revelou ser Heroína e Cocaína - substâncias incluídas na Tabela I-A e 1-8 do D. L. 15193, de 22 de Janeiro - como peso líquido global respectivamente de 1, 171g, e 0,219 gramas.
Quantidades que alega ser superior à necessária para o consumo médio individual, durante 10 dias.
O arguido agiu livre e conscientemente, sabendo que a detenção e consumo daquela quantidade de estupefaciente — heroína - era superior à necessária para um consumo médio durante 10 dias, cujas características conhecia, não era permitida por lei.
Desta forma ficou incurso, como o autor material e na forma consumada, na prática de um crime de consumo de estupefacientes, da previsão dos artigos 14°, n° 1, e 26° do Código Penal, e artigo 40°, n° 2, do D. L. 15193, de 22 de Janeiro.”
Como resulta do disposto no artigo 311°., n.° 1, do CPP, "recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer"; e se "o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha nomeadamente no sentido- a) de rejeitara acusação, se a considerar manifestamente infundada" ( n.º 2), entendendo-se como tal a acusação cujos factos descritos não constituam crime (n.º 3, al. d)).
Vejamos.
A conduta do arguido como se encontra descrita, integra em nosso entender a previsão da Lei n° 30/2000, de 29111, em vigor desde 01/07/01. Dispõe o artigo 2°, n° 1 deste citado diploma que "O consumo, a aquisição e a detenção para consumo próprio de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas referidas no artigo anterior (as tabelas 1 a IV do Dec-Lei n° 15/93, de 22/1) constituem contra-ordenação". Mas, pelo n° 2 do mesmo art. 2, "para efeitos da presente lei, a aquisição e a detenção para consumo próprio das substâncias referidas no número anterior não poderão exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias".
E assim entendemos, uma vez que não podemos recorrer ao mapa anexo à portada 94/96 de 26/03.
Explicitando, como ponto de partida, e dilucidar o que se entende por "quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias" (cf. n° 2 do art. 2 da Lei n° 30/2000, norma que pune o consumo como contra-ordenação), coloca a questão de saber se o tribunal pode socorrer-se dos valores indicativos constantes do mapa anexo à Portada n° 94/96, visto que a mesma, como consta do respectivo preâmbulo, apenas se reporta aos arts. 26 n° 3 e 40 n° 2 do DL n° 15/93 de 2211.
Recorde-se que, os factos aqui em apreciação (relativos à detenção pelo arguido de heroína, cocaína para consumo próprio) terão tido eventualmente lugar em 14.08.08, em plena vigência da Lei n° 30/2000
Como dizíamos, tem-se discutido se as considerações feitas no citado Ac. do TC n° 534/98, relativas ao recurso aos valores indicativos da "dose média individual diária" constantes do mapa anexo à Portaria n° 94/96 para integrar o conceito de "consumo médio individual" durante determinados dias (usados nos arts. 26° n° 3 e 40° n° 2 - este último no que respeita ao cultivo - ambos do DL n° 15/93) poderão também aqui ser aplicadas, tendo em vista o disposto no art. 2 n° 2 da Lei n° 30/2000.
Como valores indicativos, propenderíamos para os aceitar, sob pena de se poder considerado violado o princípio da legalidade, consagrado no n° 1, do art. 29, da CRP, também aplicável ao direito de mera ordenação social (art. 3°, do Regime do ilícito de mera ordenação social: cf. DL n° 433/82 de 27/10 e respectivas alterações). Assim sendo, os ditos valores indicativos (estatísticos) contidos no mapa anexo à Portaria n° 94/96, não são de aplicação automática.
Mas a isto acresce outro problema, que é o do art. 10, n° 1 da Portaria n° 94/96, bem como mapa anexo, se referir também à percentagem do princípio activo e, na sua maior parte (como sucede no caso destes autos), os exames aos produtos apreendidos, efectuados pelo LPC, não o quantificam (isto é, não indicam a percentagem do princípio activo), antes indicando o peso liquido do produto que contém o estupefaciente examinado, sem identificarem os respectivos componentes (o que leva a desconhecer-se o grau de pureza da substância estupefaciente identificada no produto examinado). Ora, como é sabido os produtos apreendidos têm produtos de corte, não são puros, pelo que, nesses casos não é observado o disposto no art. 10 n° 1 da dita Portaria n° 94/96.
De facto, os valores constantes da portaria continuam sem aplicação, porque os exames do LPC limitam-se a identificar o peso líquido mas sem o depurarem pelo que não há quantificação do princípio activo. E não poderemos deixar de assinalar que uma coisa, é o teor estupefaciente da substância composta analisada, outra, o peso global desse composto. A pesagem do produto apreendido não interessa para nada, excepto se estiver no estado puro.
Conforme resulta do teor do exame pericial, levado a cabo pelo Laboratório de Polícia Científica e junto aos autos, não foi determinada qual a percentagem do princípio activo contido na substância apreendida, o que inviabiliza, sem mais, o recurso exclusivo à tabela constante da citada Portaria.
Assim, a jurisprudência estabeleceu e definiu quantidades médias para consumo individual durante um dia, conforme, entre outros o fez no Ac. do STJ de 15/57 1996, proc. n° 48306 da 3 secção, fixando tal quantidade em 1,5 gramas para a cocaína e heroína e em 2 gramas para o haxixe, (cfr. entre outros, os Ac. do STJ de 10/7/1991, in BMJ 409, 392, Ac do STJ de 5/2/1991, in BMJ 404, 151, Ac, da RL de 9/1/1990, in BMJ, 393, 648, Ac STJ de 30/1/1990, in BMJ, 393, 319) [1]
Critério este que é tão válido como o anterior, o qual perfilhamos.
Ora, na situação dos autos detendo o arguido 1,171g de heroína e 0,219g de cocaína, detinha quantidade de produto estupefaciente inferior, segundo o nosso critério, às quantidades médias necessárias para consumo individual durante 10 dias, pelo que a conduta não integra a prática do crime p. no n°2, do art. 40°, do DL 15193, de 22 de Janeiro.
Face ao exposto, não recebo a acusação deduzida contra B………., ao brigo do disposto no art. 311º, n° 2, al. a) e n° 3, ais. c) do CPP, por manifestamente infundada, por os factos não constituírem crime.
Sem custas por o M.P. delas estar isento.
Notifique.
Após transito extraia certidão para instrução de processo por contra-ordenação, contra o arguido, sendo os produtos estupefacientes apreendidos colocados à ordem da certidão a extraída, a remeter à autoridade competente
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Não se conformando com o dito despacho, o MºPº interpôs recurso dessa decisão, formulando as seguintes conclusões:
“1ª- Pese embora refira/aceite, inicial e expressamente, o/a Mmo/a Juiz a quo, que os valores constantes do mapa anexo à Portaria n°. 94/96, de 26 de Março, são valores indicativos da "dose média individual diária" (DMID) para integrar o conceito de "consumo médio individual", todavia, a final, sequer alude a tais valores, por referência à concreta quantidade de produto/s estupefaciente/s detida pelo/a arguido/a.
2ª. - Ainda que se aceitem as objecções realçadas no/a douto/a despacho/decisão recorrido/a, por não constar do relatório do exame pericial ao/s produto/s apreendido/s, a quantificação/percentagem do/s respectivo/s princípio/s activo/s, porquanto tal indicação seria importante à face dos citados art. 10° e mapa anexo à Portaria 94/96, de 26 de Março, as mesmas, de per si, não legitimam a conclusão, tout court, da impossibilidade de utilização/aplicação do/a mapa/tabela em referência e a respectiva substituição pelo critério jurisprudencial, como o fez o/a Mmo/a Juiz a quo.
3ª. - Limita-se o/a Mmo/a Juiz a quo a aduzir "Como é sabido os produtos apreendidos têm produtos de corte, não são puros," (sic), referindo-se todavia aos produtos apreendidos, em geral, porquanto desconhecia e não podia então conhecer, qual o grau de pureza do/s produto/s estupefaciente/s apreendidos ao/à arguido/a e em questão, o que, se não invalida, ao menos prejudica seriamente a conclusão retirada, atenta a impossibilidade de avaliação da "qualidade" do/s concreto/s produto/s detido/s pelo/a arguido/a.
4ª. - Face ao supra referido limite, constante do n°. 2, do art°. 2°, da 30/2000, de 29 de Novembro, e não podendo lançar-se mão do mapa anexo à Portaria 94/96, de 26 de Março, como defende o/a Mmo/a Juiz a quo, o critério a utilizar, deve ser então o casuístico, tendo-se em conta o tipo de estupefaciente/s em causa, o grau de adição do consumidor/arguido e o próprio modo como aquele/s é/são consumido/s, factores de primordial importância e relevância para a delimitação entre o crime e a contra--ordenação por consumo de estupefacientes, que o/a Mmo/a Juiz a quo não ponderou, tendo-se limitado a aplicar, genérica e acriticamente, o invocado critério jurisprudencial.
5ª. - Ao determinar, através da Portaria 94/96, de 29 de Novembro e atento o prescrito na al. c), do n°. 1, do art°. 71º, do DL 15/93, de 22 de Janeiro, os limites máximos de princípio activo da substância ou preparação em causa, para o consumo médio individual, rompeu o legislador, inequivocamente, com o critério para o efeito anteriormente estabelecido no DL 430/83, de 13 de Dezembro, não sendo por isso admissível transpôr, sem mais, para o actual regime, como fez o/a Mmo/a Juiz a quo, as quantidades jurisprudencialmente fixadas tendo em atenção aquele anterior critério.
6ª - Apesar das doutas considerações aduzidas e das citações jurisprudenciais, certo é que, a final, determina o/a Mm/a Juiz a quo, a dose média individual diária, com base, exclusivamente, no alegado critério jurisprudencial, sustentado em observações empíricas, à semelhança do que acontecia no DL 430/83, de 13 de Dezembro, não fazendo apelo a quaisquer estudos, mormente de natureza clínica e/ou interdisciplinar e, logo, menos falíveis, como os que estão na base do mapa da Portaria 94/96, de 26 de Março, sendo contudo facto que as quantidades constantes deste, constituem incontomável referência na abordagem desta problemática, devendo ser-lhes atribuído valor científico, a reflectir nos termos do art°. 163°, do CPP, o que o/a Mmo/a juiz claramente não fez.
7ª. - O/A douto/a despacho/decisão recorrido/a viola, por errada interpretação e aplicação, o disposto nos art.'s 40°, n°. 2, do DL 15/93, de 22 de Janeiro e 2°, n°. 2, da Lei 30/2000, de 29 de Novembro, bem como, a jurisprudência fixada no douto Acórdão do STJ, uniformizados de jurisprudência, n°. 8/2008, de 25 de Junho.
NESTES TERMOS
e nos demais que V. EXCIAS. doutamente suprirão, deve o/a douto/a despacho/decisão recorrido/a ser revogado/a, concedendo-se provimento ao presente recurso.
Assim decidindo, farão os Venerandos Desembargadores,
JUSTIÇA.”
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Na 1ª instância, o arguido respondeu ao recurso interposto pelo MºPº, pugnando pela manutenção do decidido.
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Nesta Relação, o Sr. Procurador-Geral Adjunto limitou-se a apor o seu visto, pelo que não houve lugar ao disposto no art. 417 nº 2 do CPP.
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Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência.
Cumpre decidir.
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Com interesse para a apreciação do recurso em apreço transcreve-se a acusação do MºPº sobre a qual recaiu o despacho judicial ora sindicado:
“Em Processo Comum e perante Tribunal Singular, o Ministério Público deduz acusação contra:
- B………., solteiro, pescador, nascido a 19/04/1974, nas ………., Vila do Conde, filho de C………. e de D………., e residente na Rua ………., n.° …, .° Esq., Vila do Conde,
Porquanto,
No dia 14 de Agosto de 2008, pelas 21.50 horas, na Rua ………., nesta cidade e comarca, o arguido foi abordado por um elemento da P.S.P. após ali chegar num táxi, trazendo consigo as seguintes substâncias que lhe foram apreendidas (cfr. auto de apreensão de fls. 5):
- 12 Embalagens com heroína, com peso líquido de 1,171g – cfr. exame do L.P.C. de fls. 56 – substância abrangida pela Tabela I-A, anexa ao D.L. 15/93, de 22/01, quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias e que ele destinava ao seu consumo; e
- 1 Embalagem com cocaína, com peso líquido de 0,219g – cfr. exame do L.P.C. de fls. 56 – substância abrangida pela Tabela 1-13, anexa ao D.L. 15/93, de 22/01.
O arguido agiu livre e conscientemente, sabendo que a detenção e consumo daquela quantidade de produtos estupefacientes – heroína – era superior à necessária para um consumo médio durante 10 dias, cujas características conhecia, não é permitida por lei.
Desta forma, o arguido B………. encontra-se incurso na prática, como autor material, de um crime de consumo de estupefacientes, p. e p. pelo art. 40, n.° 2, do D.L. 15/93, de 22 de Janeiro, por referência à Tabela 1-A, anexa a tal diploma, conjugado com o art. 2, n.° 2, da Lei 30/2000, de 29/11.
Prova: a dos autos, designadamente,
- Testemunhal:
- E………., agente da P.S.P., id. a fls. 26; - Pericial:
- Exame de fls. 56; e
- Documental: fls. 53.
Cumpra o disposto no art. 283, n.° 5, do C. P. P..”
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II- FUNDAMENTAÇÃO
O objecto e âmbito do recurso, demarcados pelo teor das suas conclusões (art. 412 nº 1 do CPP), incidem sobre a questão de se apurar se houve erro na subsunção dos factos ao direito, isto é, se na decisão sob recurso houve erro na qualificação jurídica dos factos dados como provados (uma vez que o recorrente invoca que os factos apurados integram o crime previsto no artº 40º nº 2 do DL nº 15/93 de 22/1).
Alega o recorrente que o tribunal a quo fez uma errada qualificação jurídica dos factos dados como provados na decisão sob recurso, na medida em que os factos imputados ao arguido integram o “crime previsto no art. 40º nº 2 do Dec-Lei nº 15/93 de 22/1.
Para tanto, invoca, em resumo, que tendo a heroína, o peso líquido de 1,171gr. e a cocaína peso líquido 0,219gr , apreendidas ao arguido, excede a primeira a quantidade necessária para o consumo médio individual durante 10 dias (cfr. Port. nº 94/96, de 26/3), pelo que deve ser excluída da subsunção do artº 2º, nº 1 da Lei nº 30/2000, de 29 de Novembro] a sua conduta.
Acrescenta “a Mmo/a Juiz a quo, incorrecta aplicação da Lei, ao decidir, como decidiu, rejeitar a douta acusação deduzida e ao não submeter o/a arguido/a a julgamento, pela prática do crime de consumo de estupefacientes que lhe é nesta imputado e violou, nessa medida, por errada interpretação e aplicação, o disposto nos art.s 40°, n°. 2, do DL 15/93, de 22 de Janeiro e 2°, n°. 2, da Lei 30/2000, de 29 de Novembro, bem como, a jurisprudência fixada no douto Acórdão do STJ, uniformizados de jurisprudência, ri. 8/2008, de 25 de Junho”
O Tribunal “a quo” entendendo que os valores indicativos do mapa anexo à Portaria n° 94/96 seriam de aceitar como indicativos, não sendo porém de aplicação automática e que dado que no caso em apreço, os exames aos produtos apreendidos, efectuados pelo LPC, não quantificam percentagem do princípio activo mas apenas o peso liquido do produto que contém o estupefaciente examinado, o que inviabiliza, sem mais, o recurso exclusivo à tabela constante da citada Portaria.
Haverá então que se utilizar o critério jurisprudencial para aferição e definição das quantidades médias para consumo individual durante um dia e que seriam de 1,5 gramas para a cocaína e heroína e em 2 gramas para o haxixe, o que atenta a quantidade apreendida na posse do arguido leva a concluir que a sua conduta não integra a prática do crime p. no n°2, do art. 40°, do DL 15193, de 22 de Janeiro.
Pois bem com relevância para o caso, ter-se-a em atenção os seguintes preceitos legais:
O art. 21 nº1 do DL nº 15/93 de 22/1 estipula que incorre na prática do crime de tráfico de estupefaciente:
Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no art. 40º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III .......”
Por sua vez, o art. 26 nº 1 do mesmo diploma legal definindo a noção de traficante-consumidor estabelece que:
Quando, pela prática de algum dos factos referidos no art. 21, o agente tiver por finalidade exclusiva conseguir plantas, substâncias ou preparações para uso pessoal, a pena é de prisão até 3 anos ou multa, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III ou de prisão até 1 ano ou multa até 120 dias, no caso de substâncias ou preparações compreendidas na tabela IV.
O nº 3 do mesmo artigo 26 acrescenta:
Não é aplicável o disposto no nº 1 quando o agente detiver plantas, substâncias ou preparações em quantidade que exceda a necessária para o consumo médio individual durante o período de cinco dias.
Por sua vez o artº 40º na sua redacção inicial referia que:
“1. Quem consumir ou, para o seu consumo, cultivar adquirir ou detiver plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa
2. Se a quantidade de plantas, substâncias ou preparações cultivada, detida ou adquirida pelo agente exceder a necessária para o consumo médio individual durante o período de 3 dias, a pena é de prisão até 1 ano ou de multa até 120 dias
3.....”
Da leitura dos artºs 26º nº 3 e 40º transcritos reflecte-se a importância da noção de consumo médio individual e subjacente à incriminação e subsequente punição.
Ora dispõe o art. 71 (Diagnóstico e quantificação de substâncias) nº 1-c) e nº 3 do mesmo diploma legal:
1. Os Ministros da Justiça e da Saúde, ouvido o Conselho Superior de Medicina Legal, determinam, mediante portaria:
(…)
c) Os limites quantitativos mínimos de princípio activo para cada dose média individual diária das substâncias ou preparações constantes das tabelas I a IV, de consumo mais frequente.
(…)
3. O valor probatório dos exames periciais e dos limites referidos no número 1 é apreciado nos termos do artigo 163 do Código de Processo Penal.
A heroína está incluída na tabela I-A e a cocaína está incluída na tabela I-B, ambas anexas ao referido diploma legal.
Acresce que por sua vez foi publicada a Portaria nº 94/96 de 26/3 (ainda em vigor), que define os procedimentos de diagnóstico e dos exames periciais necessários à caracterização do estado de toxicodependência.
E assim o art. 9º da Portaria nº 93/96, de 26 de Março, veio estabelecer que «os limites quantitativos máximos para cada dose média individual diária das plantas, substâncias ou preparações constantes das tabelas I e IV, anexas ao DL nº 15/93, de 22 de Janeiro, de consumo mais frequente, são os referidos no mapa anexo à presente portaria, da qual faz parte integrante».
Por sua vez, o art. 10 nº 1 da mesma Portaria dispõe:
Na realização do exame laboratorial referido nos nºs 1 e 2 do art. 62 do DL nº 15/93, de 22 de Janeiro, o perito identifica e quantifica a planta, substância ou preparação examinada, bem como o respectivo princípio activo ou substância de referência.
O mapa anexo a essa Portaria estipula como limite quantitativo máximo, para cada dose diária de heroína 0,1 gramas e para cada dose diária de cocaína (cloridrato) 0,2 gramas; tratando-se de cocaína (éster metílico de benzoilecgonina) o limite máximo para cada dose diária é de 0,03 gramas.
No Tribunal Constitucional, designadamente no acórdão nº 534/98, proferido no proc. nº 545/98 da 3ª Secção, datado de 7/8/98, relatado por Maria dos Prazeres Pizarro Beleza.[2] foi discutida a questão da aplicação, para efeitos do disposto no nº 3 do artigo 26 do DL nº 15/93 cit., dos valores constantes do mapa anexo à Portaria nº 94/96 de 26/3 (face ao disposto no seu art. 71 nº 1 do DL nº 15/93), tendo decidido-se então nesse acórdão “interpretar a norma constante da alínea c) do nº1 do artigo 71 do DL nº 15/93 no sentido de que, ao remeter para a portaria nela referida, a definição dos limites quantitativos máximos do principio activo para cada dose média individual diária das substâncias ou preparações constantes da tabela I a IV, de consumo mais frequente, anexas ao mesmo diploma, o faz com o valor de prova pericial”.
No Acórdão em questão esclarece-se relativamente aos limites fixados na Portaria nº 94/96 que tendo os mesmos “meramente um valor de meio de prova, a apreciar nos termos da prova pericial, não constituem verdadeiramente, dentro do espírito e da letra do art. 71 do DL nº 15/93, uma delimitação negativa da norma penal que prevê o tipo de crime privilegiado” (refere-se ao art. 26 do DL nº 15/93), assim, devendo entender-se que faz “a remissão para valores indicativos, cujo afastamento pelo tribunal é possível, embora acompanhada da devida fundamentação”, concluindo, desse modo, que não é violado “o princípio da legalidade da lei penal incriminadora, consagrado no nº 1 do art. 29 (…) da CRP”.
Entretanto, foi publicada a Lei nº 30/2000 de 29/11, que define o regime jurídico aplicável ao consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, bem como a protecção sanitária e social das pessoas que consomem tais substâncias sem prescrição médica.
Estabelece o nº 1 do art. 2 da citada Lei nº 30/2000: que o consumo, a aquisição e a detenção para consumo próprio de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV anexas ao DL nº 15/93 de 22/1, constituem contra-ordenação.
Por sua vez o nº 2 do mesmo art. 2º:
Para efeitos da presente lei, a aquisição e a detenção para consumo próprio das substâncias referidas no número anterior não poderão exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.
Por seu turno, consignou-se no art. 28º da citada Lei nº 30/2000 que:
São revogados o artigo 40, excepto quanto ao cultivo, e o artigo 41 do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, bem como as demais disposições que se mostrem incompatíveis com o presente regime.
A expressa revogação das normas indicadas no art. 28 da cit. Lei nº 30/2000 (entre elas, a do crime p. e p. no art. 40 do DL nº 15/93, excepto quanto ao cultivo) entrou em vigor em 1/7/2001 (art. 29 da citada Lei nº 30/2000 de 29/11).
Como diz Faria Costa «a evolução da própria compreensão social do problema do consumo de drogas», aliada aos «compromissos internacionais a que o Estado português permanecia e permanece vinculado parecem impor que aquela conduta continue a ser considerada juridicamente desvaliosa e, por isso, sancionada», daí a opção do legislador português «pela despenalização, deixando claro não ser o direito penal clássico o ramo do direito adequado à intervenção necessária mas antes um outro ramo do chamado “direito penal global”: vale por dizer, operava, neste sentido, uma degradação do campo do ilícito».
Foi o que o legislador alcançou com opção de, através da Lei nº 30/2000, de 29 de Novembro, o consumo de droga ter sido convertido de crime para contra-ordenação (cf. art. 2 nº 1).
Face à configuração da contra-ordenação prevista no nº 1 do art. 2 da Lei nº 30/2000, em contraponto com o teor do seu nº 2, por causa da revogação do art. 40 do DL nº 15/93 (excepto quanto ao cultivo), passou a colocar-se a questão de saber como qualificar a conduta do agente “que é encontrado com uma quantidade de droga superior à necessária para o consumo médio individual durante dez dias, demonstrando-se, todavia, que o agente não tem qualquer intenção de traficar”.
Particularmente, quanto à definição da “quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias” (cf. nº 2 do art. 2 da Lei nº 30/2000, norma que pune o consumo como contra-ordenação), coloca-se a questão de saber se o tribunal pode socorrer-se dos valores indicativos constantes do mapa anexo à Portaria nº 94/96, visto que a mesma, como consta do respectivo preâmbulo, apenas se reporta aos arts. 26 nº 3 e 40 nº 2 do DL nº 15/93 de 22/1.
Recorde-se que, os factos aqui em apreciação (relativos à detenção pelo arguido de heroína e cocaína para consumo próprio) foram cometidos em 14/08/2008, em plena vigência da Lei nº 30/2000 (portanto, não se coloca a questão da “sucessão de leis no tempo”)
Como dizíamos, tem-se discutido se as considerações feitas no citado Ac. do TC nº 534/98, relativas ao recurso aos valores indicativos da “dose média individual diária” constantes do mapa anexo à Portaria nº 94/96 para integrar o conceito de “consumo médio individual” durante determinados dias (usados nos arts. 26º nº 3 e 40º nº 2 - este último no que respeita ao cultivo - ambos do DL nº 15/93) poderão também aqui ser aplicadas, tendo em vista o disposto no art. 2 nº 2 da Lei nº 30/2000.
Propendemos para responder afirmativamente sob pena de se poder considerado violado o dito princípio da legalidade, consagrado no nº 1 do art. 29 da CRP, em princípio também aplicável ao direito de mera ordenação social (art. 3 do regime do ilícito de mera ordenação social: cf. DL nº 433/82 de 27/10 e respectivas alterações).
Já no entanto quanto à questão de como qualificar a conduta do agente que é encontrado com uma quantidade de droga superior à necessária para o consumo médio individual durante dez dias, quando o agente não tem qualquer intenção de traficar, está hoje ultrapassada uma vez que o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 8/2008 de 25/06708 in DR nº 146 de 05/08/08 que veio a responder afirmativamente a tal questão nos seguintes termos:
“Não obstante a derrogação operada pelo artigo 28º da Lei nº 30/2000, de 29 de Novembro, o artigo 40º, nº 2, do DL nº 15/93, de 22/1, manteve-se em vigor não só “quanto ao cultivo” como relativamente à aquisição ou detenção, para consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.”
Daqui advém a nosso ver que já não se poderá seguir o referido na fundamentação do Acórdão Constitucional citado em que se considerava que os limites fixados na portaria nº 94/96, tivessem valor meramente indiciário e como referia Eduardo Maia Costa em comentário a essa decisão do Tribunal Constitucional, e permitir “que, nos termos do artigo 163 do Código Processo Penal, o arguido (e obviamente o Ministério Público) impugnem esses dados, que até agora têm sido aplicados automaticamente, sem admissibilidade de contestação”.
Assim sendo, e duma primeira análise, atenta a quantidade de heroína que o arguido detinha na sua posse e para seu consumo, seria forçoso chegar-se à conclusão que a sua conduta indiciaria a prática do crime de consumo de estupefaciente p. e p. no artº 40º nº 2 do Dec-Lei nº 15/93, nos termos constantes da acusação deduzida pelo MºPº.
Porém, no caso em apreço acresce outro problema que é o do art. 10 nº 1 da Portaria nº 94/96, bem como mapa anexo, se referir também à percentagem do princípio activo e, na sua maior parte (como sucede no caso destes autos), os exames aos produtos apreendidos, efectuados pelo LPC, não o quantificam (isto é, não indicam a percentagem do princípio activo), antes indicando o peso liquido do produto que contém o estupefaciente examinado, sem identificarem os respectivos componentes (o que leva a desconhecer-se o grau de pureza da substância estupefaciente identificada no produto examinado).
Como diz João Conde Correia[3] nos casos em que os produtos aprendidos têm produtos de corte, não sendo como tal puros, e em que em que não é observado o disposto no art. 10 nº 1 da dita Portaria nº 94/96, (como é o caso dos autos), “os valores constantes da portaria continuam sem aplicação, porque os exames do LPC limitam-se a identificar o princípio activo e a pesar o produto sem o depurarem (…). Não há quantificação do princípio activo.”
É que refere: “Uma coisa é o teor estupefaciente da substância composta analisada, outra o peso global desse composto. A pesagem do produto apreendido não interessa para nada, excepto se estiver no estado puro”.
Ora, no caso dos autos, face ao teor do exame do LPC de fls. 56, não tendo sido quantificada a percentagem do princípio activo, nem tão pouco identificados os componentes das substâncias presentes (apenas sabemos que foram identificadas a presença de heroína e cocaína) nos produtos apreendidos, submetidos ao dito exame laboratorial, é evidente que não nos podemos socorrer dos valores indicativos constantes do mapa anexo à Portaria nº 94/96 (uma vez que os referidos no dito mapa anexo indicam a quantificação do princípio activo da substância em questão, enquanto o exame do LPC nada diz a esse respeito).
Coisa diferente seria se o LPC tivesse efectuado o exame a que se refere o art. 10 nº 1 da Portaria nº 94/96 e o resultado fosse superior ao indicado no respectivo mapa anexo, situação esta que atenta o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência citado levaria a subsumir a conduta do arguido no crime de consumo de estupefaciente p. e p. pelo artº 40º nº 2 do Dec-Lei nº 15/93.
Assim sendo e uma vez que segunda a acusação a heroína que o arguido tinha na sua posse destinava-se ao seu consumo, (não se afastando esta das quantidades médias para consumo estabelecidos pela jurisprudência, conforme acórdãos citados na decisão recorrida) e tendo o mesmo agido com o dito propósito de destinar essa droga ao seu consumo, tanto basta a nosso ver para qualificar a conduta do arguido como contra-ordenação de consumo p. e p. no art. 2 nº 1 e 2 da Lei nº 30/2000.
Com efeito, perante os factos apurados, ocorridos em 9/3/2005, não se pode concluir que o arguido detinha para consumo, estupefacientes em quantidade superior às 10 doses diárias, aludidas no art. 2 nº 2 da citada Lei nº 30/2000.
Assim, visto que o recorrente parte de uma premissa errada (a de que ao caso concreto seria de aplicar a dita Portaria nº 94/96, o que, como demonstramos acima, não pode ser dessa forma interpretado), o seu raciocínio está viciado, razão pela qual, a conduta do arguido não poderá levar a concluir que detinha produtos estupefacientes em quantidade superior às 10 doses diárias.
Por isso, bem andou o tribunal a quo quando integrou a conduta do arguido na (prática de uma) contra-ordenação p. e p. no art. 2 da Lei nº 30/2000, de 29/11 e, em consequência, mandou extrair certidão para a Comissão de Dissuasão da Toxicodependência (nos termos do art. 5 da mesma lei).
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III- DECISÃO
Em face do exposto, acordam os Juízes desta Relação em negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
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Sem custas por delas estar isento o MºPº.
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(Processado em computador e revisto pelo signatário – art. 94 nº 2 do CPP)

Porto 17 de Fevereiro de 2010
Vasco Rui Gonçalves Pinhão Martins de Freitas
Luís Augusto Teixeira

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[1] Veja-se ainda a sentença proferida no Proc. 653193 do 2° juizo criminal de Lisboa, publicada em "Droga – Decisões de 1ª Instância, 1994, Comentários, pág, 39 e ss." e comentada por A. Henriques Gaspar, e cujo sumário aqui transcrevemos "provou-se que o arguido detinha para o seu consumo pessoal 10,122 gr de haxixe, o que não excedeu o necessário para o consumo médio individual do arguido durante o período de 5 dias. Incorre o arguido na prática de um crime punido no art. 40° nº1
[2] Ver acórdão do TC nº 534/98 na RMP, ano 19, Julho/Setembro 1998, nº 75, pp.173-178. No mesmo sentido ver ainda o Acórdão nº 559/01, consultado no site do Tribunal Constitucional (www.tribunalconstitucional.pt).
[3] João Conde Correia, “Validade dos exames periciais normalmente efectuados pelo Laboratório de Polícia Científica – Constitucionalidade, legalidade e interpretação dos quantitativos fixados na Portaria nº 94/96, de 12/6, in Decisões de Tribunais de Primeira Instância, 1998-1999, p. 96.