Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0651994
Nº Convencional: JTRP00039171
Relator: SOUSA LAMEIRA
Descritores: EXECUÇÃO
VEÍCULO AUTOMÓVEL
PENHORA
RESERVA DE PROPRIEDADE
Nº do Documento: RP200605150651994
Data do Acordão: 05/15/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 260 - FLS 153.
Área Temática: .
Sumário: Tendo sido penhorado um veículo sobre o qual incide uma reserva de propriedade a favor da exequente/recorrente, não pode a execução prosseguir sem que, previamente, o exequente renuncie à reserva de propriedade e inscreva no registo o respectivo cancelamento; caso o exequente assim não proceda deve a execução ficar suspensa.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I-RELATÓRIO
A) Nos Juízos Cíveis do Porto, inconformado com o despacho de Fls. 101 (37 dos presentes autos) proferido na Execução Comum que B………., SA move contra C………. e outro, no qual se entendeu notificar a exequente para certificar nos autos o cancelamento do registo da reserva de propriedade sobre o veículo penhorado nos autos, veio a Exequente interpor recurso de agravo, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

1- Vem o presente agravo interposto da decisão do Mmº Juiz a quo, que ordenou a notificação da exequente para certificar nos autos o cancelamento do registo da reserva de propriedade incidente sobre o veículo automóvel penhorado nos autos, pois que tal reserva constituiria um direito real de gozo, que não caducaria com a venda judicial. Entendeu ainda o Mmº Juiz a quo que a execução não poderia prosseguir sobre esse bem e, caso a Exequente não comprovasse tal cancelamento, seria ordenado o levantamento da penhora.
2- Não é por existir uma reserva de propriedade sobre o veículo penhorado nos autos em nome da agravante que é necessário que esta requeira o cancelamento da dita reserva. O prosseguimento da penhora não é afectado pelo registo daquela reserva, já que, aquando da venda do bem penhorado, o tribunal deverá, oficiosamente, ordenar o cancelamento de todos os registos que incidam sobre tal bem (cfr. artigo 824 do CC e artigo 888 do CPC).
3- Ao nomear à penhora o veículo, a exequente renunciou tacitamente à reserva de propriedade que sobre ele incidia. Só assim, aliás, podia ordenar-se a penhora, pois seria absurdo penhorar um veículo automóvel de que o exequente fosse proprietário. Por definição, na execução apenas é admissível a penhora de bens dos executados, e não do credor (cfr. 817 do CC e artigo 821 n.º 1 e 2 do CPC).
4- Na verdade, resulta da nomeação do veículo à penhora que o exequente considera o bem pertença do executado, e que renuncia ao domínio sobre o bem, sendo certo que a reserva de propriedade mais não constitui do que uma mera garantia.
5- Da interpretação conjugada dos artigos 824 do CC e 888 do CPC resulta que o tribunal deverá, sem caso de venda do bem penhorado, ordenar oficiosamente o cancelamento de todos os registos dos direitos reais que caducam e que incidem sobre tal bem (na redacção actual do artigo 888 do CPC é ao agente de execução que incumbe tal tarefa), e que;
6- O artigo 119 do CRP não prevê que o detentor da reserva de propriedade seja notificado para que requeira o cancelamento do seu registo.
7- Conjugando as normas supra equacionadas, verifica-se que a decisão recorrida violou o disposto nos artigos 888 do CPC, art. 5 n.º 1 al. b) e 29 do DL 54/75 de 12.2, artigos 7 e 119 do CR Predial e artigos 408, 409 n.º 1, 601 e 879 todos do CC.
8- Conclui-se assim, que deverá ser o Tribunal a quo, e não o exequente, a promover o cancelamento da reserva de propriedade registada a favor da exequente.
Conclui pedindo a procedência do recurso, revogando-se o despacho recorrido.

Nas ocorreram contra alegações.
O Sr. Juiz proferiu despacho de sustentação (fls. 46).

II – FACTUALIDADE PROVADA
Encontram-se provados os seguintes factos:
1- A presente execução é uma execução ordinária, em que é exequente B………., SA e executado C………. e outro.
2- Nesta execução foi penhorado o veículo automóvel, matrícula ..-..-GB, sobre o qual existia, registada a favor da exequente, reserva de propriedade.
3- O registo desta penhora é definitivo.
4- É do seguinte teor (na parte que releva) o despacho recorrido:
“Resulta do teor da certidão registal de fls. 80 que a favor da aqui exequente se encontra registada reserva de propriedade relativamente ao veículo automóvel penhorado nos autos.
Constituindo tal reserva um direito real de gozo que, por isso, não caduca com a venda judicial do veículo sobre que incide e que torna patente que o bem continua na titularidade do reservante, notificar a exequente para certificar nos autos o cancelamento do registo de tal reserva sob pena de a execução não poder prosseguir sobre esse bem e ser ordenado o levantamento da penhora oportunamente efectivada”.

III – DA SUBSUNÇÃO - APRECIAÇÃO
Verificados que estão os pressupostos de actuação deste tribunal, corridos os vistos, cumpre decidir.
O objecto do recurso é definido pelas conclusões da alegação do recorrente, artigo 684 n.º 3 do Código de Processo Civil.

A) No presente recurso coloca-se apenas a seguinte questão:
Encontrando-se registada a favor da exequente reserva de propriedade relativamente ao veículo automóvel penhorado pode, ou não, a execução prosseguir para a fase da venda sem que a exequente comprove nos autos o cancelamento do registo de tal reserva de propriedade?.
Vejamos.
Analisemos os preceitos legais aplicáveis.
Dispõe o n.º 1 do art. 409º do C. Civil que “nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento”.
Acrescenta o n.º 2 do mesmo preceito que “Tratando-se de coisa imóvel, ou de coisa móvel sujeita a registo, só a cláusula constante do registo é oponível a terceiros”.
Estabelece o artigo 601 do CC que “pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor…”, dispondo também o n.º 1 do artigo 821 do CPC que “estão sujeitos à execução todos os bens do devedor…”.
Dispõe também o artigo 888 do CPC que “Após o pagamento do preço e do imposto devido pela transmissão, o agente de execução promove o cancelamento dos registos dos direitos reais que caducam nos termos do n.º 2 do artigo 824 CC e não sejam de cancelamento oficioso pela conservatória”.
E nos termos deste n.º 2 do artigo 824 CC “os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registos anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo”.
Nos termos do artigo 7 do Código de Registo Predial (ex vi art. 29 do DL n.º 54/75 de 12.2) “o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito”.
Perante os princípios jurídicos sumariamente enunciados e ponderando a factualidade supra descrita entendemos que o recurso não merece provimento.
Não desconhecendo que sobre a questão em apreço existem decisões divergentes, seguiremos de perto o Acórdão do STJ de 12 de Maio de 2005 que versou sobre uma situação igual à dos presentes autos, acórdão este que, aliás, se insere na corrente jurisprudencial largamente maioritária nos tribunais superiores. [Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Maio de 2005 Relator Conselheiro Araújo Barros, in www.dgsi.pt “Sumário: Efectuada a penhora de um veículo automóvel, na pressuposição de que não existia reserva de propriedade a favor da exequente, a acção executiva não pode prosseguir, designadamente para efeitos de se proceder à respectiva venda, sem que a exequente comprove a renúncia à reserva de propriedade e o consequente cancelamento do registo”]
Como se deixou referido há quem entenda que efectuado o registo definitivo da penhora, a execução deve prosseguir, sem que tenha de ficar suspensa até que o exequente obtenha o cancelamento da reserva de propriedade. [Veja-se a título meramente exemplificativo o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02-02-2006, Relator Conselheiro Bettencourt de Faria, disponível em www.dgsi.pt “Sumário: I - A nomeação à penhora pelo beneficiário da reserva de propriedade do bem que é objecto dessa reserva implica a renúncia à mesma.
II - Nada obsta a que se aplique à reserva de propriedade o regime de cancelamento das garantias reais do artº 824º do C. Civil.
III - Assim, efectuado o registo definitivo da penhora, a execução deve prosseguir, sem que tenha de ficar suspensa até que o exequente obtenha o cancelamento da reserva de propriedade]
Uma outra corrente, na qual se insere o Ac. do STJ supra mencionado, defende que “tendo sido ordenada e realizada a penhora de veículo automóvel sobre o qual existe reserva de propriedade, devidamente registada anteriormente, em nome da exequente, não pode seguir-se para a fase da venda, devendo a acção executiva ser suspensa em relação à referida penhora até que a exequente demonstre em juízo o cancelamento do registo da reserva de propriedade em causa”. [Ac. R. Lisboa de 19/10/04 Relatora Desembargadora Ana Grácio. Cfr. ainda e a título meramente exemplificativo os Ac. da Relação de Lisboa de 14.2.2004 e de 13.05.2003, todos disponíveis em www.dgsi.pt, bem como os inúmeros Acórdãos referenciados no citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Maio de 2005]
Aderimos a esta posição, pelo que tal como vem defendido na decisão recorrida, entendemos que a execução dos presentes autos não pode prosseguir sem que a exequente demonstre de forma válida a renúncia ao seu direito de reserva de propriedade e o cancelamento do registo da reserva de propriedade.
Não pretendendo discutir neste momento a natureza jurídica da reserva de propriedade [Sobre este ponto veja-se Mota Pinto, Direitos Reais, 1976, p. 67, Luís Lima Pinheiro, “A Cláusula de Reserva de Propriedade”, 1998; Ana Maria Peralta, A Posição Jurídica do Comprador na Compra e venda com reserva de propriedade, 1990] afigura-se-nos que tal direito deve ser visto como uma condição suspensiva do negócio, mantendo-se a propriedade na titularidade do vendedor até que o preço se encontre completamente liquidado. [Cfr. Pires de Lima e A. Varela, CC Anotado, Vol. I, p 376; Luís Lima Pinheiro, op. cit. p. 93]
Significa isto que o vendedor reserva para si a propriedade até que o comprador lhe pague integralmente o preço devido. [Não discutiremos nem analisaremos também nestes autos a questão de saber se a reserva de propriedade apenas pode ser estabelecida em favor do alienante ou se também o pode ser em favor do mutuante, como parece ser o caso.
È a favor da exequente que se encontra registada a reserva de propriedade e é com este facto e esta realidade que se decidirá]
Deste modo entendemos que nem sequer se devia ter penhorado um bem cuja propriedade pertence ao próprio exequente e não ao devedor.
Nem se diga, como o faz a Exequente/recorrente, que ao nomear à penhora aquele bem renunciou tacitamente à reserva de propriedade. Se assim fosse quando foi notificada tinha vindo reafirmar expressamente essa posição e procedido nos termos indicados e não tinha vindo interpor o presente recurso.
A renúncia tácita tem de derivar de actos inequívocos nesse sentido e tais actos não se verificam nos presentes autos.
Por isso não se verifica qualquer renúncia, seja tácita ou expressa.
E, aliás, quando é penhorado um bem cuja propriedade se encontra registada a favor de quem não é o executado, nunca o registo dessa penhora se devia efectuar em termos definitivos, atento o disposto no artigo 92 n.º 2 al. a) do CRP. [Por isso também nos presentes autos não pode nem deve ter lugar a aplicação do disposto no artigo 119 do CRP, uma vez que tal preceito pressupõe a provisoriedade do registo, o que não sucede na hipótese sub júdice]
Mas, estando a penhora efectuada e registada definitivamente, como é o caso, e encontrando-se igualmente registada a reserva de propriedade não é possível prosseguir com a execução (a recorrente refere “o prosseguimento da penhora” mas pretende certamente dizer da execução) para a fase da venda.
Ao contrário do que defende a Recorrente o tribunal não deve em caso de venda do bem penhorado, ordenar oficiosamente o cancelamento da reserva de propriedade uma vez que “a reserva de propriedade não constitui uma garantia real coberta pelas normas dos arts. 824º do C. Civil ou do art. 888º do C. Proc. Civil, que apenas abarcam os direitos reais de garantia e os demais direitos reais (como a reserva de propriedade) que não tenham registo anterior ao registo da penhora.
Ora, como a reserva de propriedade, direito real de gozo sobre o veículo automóvel penhorado, está inscrita no registo automóvel com anterioridade em relação ao acto de penhora, certo é que não podia caducar, por força do disposto no nº 2 do artigo 824º do CC, com o acto da venda do veículo”, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Maio de 2005, supra referido.
Deste modo, não podendo o tribunal ordenar o cancelamento da reserva de propriedade a favor da exequente/recorrente, caso a venda se viesse a realizar aquele que adquirisse o bem (veículo) teria sempre que suportar aquele ónus.
Em conclusão, entendemos que tendo sido penhorado (mal) um veículo sobre o qual incide uma reserva de propriedade a favor da exequente/recorrente, não pode a execução prosseguir sem que, previamente, o exequente/recorrente renuncie à reserva de propriedade e inscreva no registo o respectivo cancelamento.
Caso o exequente/recorrente não proceda desse modo deve a execução ficar suspensa tal como decidiu a decisão recorrida.

Em suma, impõe-se a improcedência das conclusões do Agravante e consequentemente do presente agravo uma vez que o despacho ora recorrido não fez qualquer errada aplicação da lei.

VI – Decisão
Por tudo o que se deixou exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso de agravo interposto pelo Recorrente e, em consequência confirma-se o despacho recorrido.
Custas pelo Recorrente.
Porto, 15 de Maio de 2006
José António Sousa Lameira
José Rafael dos Santos Arranja
Jorge Manuel Vilaça Nunes