Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
126/06.7TBTMC.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ MANUEL DE ARAÚJO BARROS
Descritores: ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
CEDÊNCIA VERBAL
Nº do Documento: RP20130710126/06.7TBTMC.P1
Data do Acordão: 07/10/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: A cedência meramente verbal de parcelas de prédios não é fundamento que o cessionário possa validamente invocar para recusar a restituição dos mesmos aos proprietários que os reivindicam, mesmo que, nessa cedência, o cedente se tenha apresentado como proprietário desses prédios e comungue na propriedade de um deles.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: 2ª SECÇÃO CÍVEL – Processo nº 126/06.7TBTMC.P1
Tribunal Judicial de Torre de Moncorvo

SUMÁRIO
(artigo 713º, nº 7, do Código de Processo Civil)
A cedência meramente verbal de parcelas de prédios não é fundamento que o cessionário possa validamente invocar para recusar a restituição dos mesmos aos proprietários que os reivindicam, mesmo que, nessa cedência, o cedente se tenha apresentado como proprietário desses prédios e comungue na propriedade de um deles

Acordam em conferência no Tribunal da Relação do Porto
I
RELATÓRIO
B…, sua mulher, C…, e D… intentaram contra FREGUESIA … acção declarativa de condenação, sob a forma sumária, pedindo que os primeiros autores sejam reconhecidos como proprietários do prédio identificado no artigo 1º e a segunda autora como proprietária do prédio identificado no artigo 6º da petição inicial e que a ré seja condenada a restituir-lhes parte desses prédios de que se apropriou, repondo-os na situação anterior à sua ocupação, aquando do alargamento do caminho que liga as localidades de … e ….
Estribaram a sua pretensão, em síntese, na presunção que resulta de em seu nome estarem registados, tendo a ré ofendido tal propriedade, ao alargar caminho público existente utilizando terreno dos ditos prédios.
Regularmente citada, apresentou-se a ré contestar, alegando em síntese que procedeu ao alargamento do aludido caminho, de 2,5 m para 5 m, com a autorização dos autores, tendo aliás o autor B… acompanhado as obras efectuadas no local, intitulando-se possuidor de ambos os prédios.
Saneado e instruído o processo, realizou-se audiência de julgamento, após o que foi proferida sentença que:
a) declarou que os autores B… e C… são donos e legítimos proprietários do prédio rústico, sito em …, freguesia de …, composto de terra de centeio e de pastagem, com a área de 16.000 m2, confrontando a Norte com E…, a Sul com F…, a Nascente com G…, a Poente com caminho público, descrito na Conservatória do Registo Predial de Torre de Moncorvo com o n.º 691/990901, freguesia de …, e inscrito na matriz sob o artigo 1590;
b) declarou que a autora D… é dona e legítima proprietária do prédio rústico, sito em …, freguesia de …, composto de terra de centeio e de pastagem, com a área de 22.200 m2, confrontando a Norte com caminho público, a Sul com ribeiro público, a Nascente com G…, a Poente com H…, descrito na Conservatória do Registo Predial de Torre de Moncorvo com o n.º 643/980723, freguesia de …, e inscrito na matriz sob o artigo 1584;
c) absolveu a ré do demais peticionado pelos autores.
Inconformados, vieram os autores interpor recurso, o qual foi admitido como sendo de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito meramente devolutivo. Juntaram as respectivas alegações.
A ré contra-alegou.
Foram colhidos os vistos legais.
II
FUNDAMENTAÇÃO
1.FACTOS
1. Encontra-se inscrita, pela Ap. 5, de 01.09.1999, a favor dos Autores B… e C…, a aquisição, por partilha judicial de herança, do prédio rústico, sito em …, composto de terra de centeio e de pastagem, com a área de 16.000 m2, confrontando a Norte com E…, a Sul com F…, a Nascente com G…, a Poente com caminho público, descrito na Conservatória do Registo Predial de Torre de Moncorvo com o n.º 691/990901, freguesia de …, e inscrito na matriz sob o artigo 1590.
2. Encontra-se inscrita, pela Ap. 2, de 23.07.1998, a favor da Autora D…, a aquisição, por compra, do prédio rústico, sito em …, composto de terra de centeio e de pastagem, com a área de 22.200 m2, confrontando a Norte com caminho público, a Sul com ribeiro público, a Nascente com G…, a Poente com H…, descrito na Conservatória do Registo Predial de Torre de Moncorvo com o n.º 643/980723, freguesia de …, e inscrito na matriz sob o artigo 1584.
3. A Ré procedeu, pelo menos, ao alargamento do caminho em terra batida, que liga as localidades de … e …, sito nos terrenos descritos nos pontos 1. e 2., ficando, pelo menos, com uma largura de cinco metros e com uma extensão de 150 metros, em cada prédio, utilizando, para o efeito, máquinas.
4. A Ré procedeu, pelo menos, à abertura de um caminho no terreno descrito no ponto 2., junto a um morro de fragas, em medida não inferior a 5 metros de largura e de 100 metros de extensão, utilizando, para o efeito, máquinas.
5. Por volta do ano de 2004, a Ré, usando máquinas, fazendo escavações e movimentações de terras, procedeu ao alargamento de um caminho de terra batida que atravessa os prédios descritos nos pontos 1. e 2., ligando as localidades de … e …, tendo nalgumas partes sido aberto um caminho desviado daquele.
6. O caminho de terra batida tem uma largura média de cerca de 5 metros.
7. O caminho de terra batida atravessa o prédio referido no ponto 1. numa extensão de 270 metros, ligando ao prédio referido no ponto 2., e atravessa-o numa extensão de 120,60 metros, e retoma ao prédio descrito no ponto 1., atravessando-o numa extensão de 184,80 metros.
8. Nos terrenos descritos nos pontos 1. e 2. há um caminho de terra batida, que liga as localidades de … e de …, desde há mais de 100 anos, cujo início da sua existência não é do conhecimento ou lembrança de qualquer pessoa viva, sempre foi utilizado livremente por todas as pessoas, designadamente pelos residentes nas povoações da … e da …, transitando por ele a pé, com animais soltos e com veículos de tracção animal, nomeadamente para irem de uma para outra dessas povoações e para irem agricultar os terrenos situados nas imediações do referido caminho.
9. O caminho de terra batida tinha uma largura de, pelo menos, 2 metros.
10. O Autor B…, verbalmente, consentiu e deu autorização à Ré para proceder aos trabalhos de feitura e alargamento do caminho nos terrenos descritos nos pontos 1. e 2.
11. O Autor B…, junto da Ré, intitulou-se proprietário do terreno descrito no ponto 2.
12. Alguns dos trabalhos de feitura e alargamento do caminho foram acompanhados no local pelo Autor B….
2. CONCLUSÕES DAS ALEGAÇÕES DE RECURSO
1ª - A presente acção é simplesmente uma acção de reivindicação, prevista no artigo 1311º do Código Civil, não pretendendo os AA. exigir a responsabilidade da R. por actos ilícitos.
2ª - Encontrando-se demonstrado o direito de propriedade dos AA. sobre os imóveis ocupados pela R. e não existindo, no caso, qualquer fundamento legal que permitisse à R. recusar a respectiva restituição, teria a acção de proceder.
3ª - Ao considerar que, por se encontrar provado o consentimento para a ocupação por parte de um dos AA., simples meeiro de apenas um dos prédios, se encontrava legitimada a conduta ofensiva da R., com a consequência prática de ficar desobrigada de restituir os imóveis, a sentença recorrida fez errada aplicação do direito aos factos.
4º - E ainda que assim fosse, a decisão de um dos autores não vincularia os restantes, pelo que nem poderia considerar-se que o lesado consentiu na lesão.
5º - O que a sentença recorrida decretou foi uma expropriação ilícita, ao arrepio do estipulado a esse propósito no Código Civil e no Código das Expropriações, violando inclusivamente o direito constitucional à propriedade privada.
6ª - Foram violadas por, falta de aplicação, as normas dos artigos 1310º e 1311º do Código Civil e do artigo 1º do Código das Expropriações, e, por errada aplicação, a norma do nº 2 do artigo 659º do Código Processo Civil.
***
3. DISCUSSÃO
Não podemos deixar de dar razão aos recorrentes.
E a senhora juiz a quo parece tê-la pressentido quando na sentença, a fls 282, in fine, afirma que “dúvidas não há de que a ré, com a sua conduta, ofendeu o direito de propriedade dos autores”. É pena que se tenha entretanto perdido em longa exposição sobre o que sejam caminhos públicos e atravessadouros que, como acaba por reconhecer a fls 286, “não tem qualquer influência na solução a dar à questão controvertida”.
Prossegue frisando que o acto lesivo da ré, face à autorização do autor B… e nos termos do nº 1 do artigo 340º do Código Civil, é um acto lícito. Mais podendo consubstanciar a actuação do mesmo, cedendo o terreno e vindo posteriormente a reivindicá-lo, nítido venire contra factum proprium, o exercício abusivo do seu direito, censurado pelo artigo 334º do mesmo código.
É a presente uma acção de reivindicação. Diz o nº 1 do artigo 1311º do Código Civil que «o proprietário pode exigir de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence». Esclarecendo-se explicitamente no nº 2 da mesma disposição que «havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei».
Decorre, assim, deste último preceito que, reconhecendo-se a propriedade, só não será ordenada a restituição se o possuidor ou detentor da coisa opuser ao proprietário um título legítimo para essa posse ou detenção. Como se anota no acórdão do STJ de 6.12.2011 (Gregório da Silva Jesus), in dgsi.pt, numa acção de reivindicação, “o possuidor ou detentor só poderá evitar a restituição peticionada naquela acção se conseguir provar uma de três coisas: a) que a coisa lhe pertence por qualquer dos títulos admitidos em direito; b) que tem sobre ela outro qualquer direito real que justifique a sua posse; c) que a detém por virtude de direito pessoal bastante”.
No presente caso, a ré defendeu-se invocando a propriedade das parcelas de terreno reivindicadas, por lhe terem sido cedidas pelo autor B…, que perante ela se apresentou como seu proprietário. Ora, como realçam os recorrentes, o autor B… nunca poderia vincular validamente as outras autoras, pois era tão só proprietário em comum de um deles e não era sequer proprietário do outro. O que nos remeteria para a disciplina da doação de bens alheios, regulada no artigo 956º do Código Civil. No que concerne ao prédio de que ele era proprietário em comunhão, por força do nº 2 do artigo 1408º do mesmo código.
Há, porém, um outro vício dessa doação que, acarretando consequências mais drásticas, prejudica a aplicação do referido preceito. Na verdade, a cedência verbal não é uma forma válida de transmissão de um direito real. Pois, como decorre do disposto nos artigos 220º do Código Civil e 22º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 116/2008, de 4 de Julho, a declaração negocial de transmissão do direito de propriedade de um imóvel é nula se não for formalizada por escritura ou documento particular autenticado.
Lembre-se que a nulidade «é invocável a todo o tempo e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal» e que «tem efeito retroactivo (…) devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado» - artigos 286º e 289º, nº 1, do Código Civil.
Assim, se a ré filia a apropriação que fez das parcelas em aquisição da sua propriedade por doação verbal do autor, porque esta não consubstancia forma legítima de aquisição, sendo nula e obrigando à restituição do que foi prestado, e não tendo sido alegado nenhum outro título que legitime a detenção das mesmas, deverá ser condenada a restituí-las aos seus proprietários.
Os institutos do abuso do direito e do consentimento do lesado apenas poderão quiçá relevar em termos obrigacionais. Quer por via de acção, responsabilizando o autor B… pelos prejuízos que causou à ré, por não respeitar o acordo verbal de cedência das parcelas. Neste particular, se devendo atender aos preceitos dos nºs 2 a 4 do artigo 956º do Código Civil, relativos à responsabilidade perante o donatário de boa fé do doador de bens alheios. Quer para excepcionar a licitude da conduta da ré, caso esta venha a ser interpelada para pagar aos proprietários das parcelas eventual dano decorrente da apropriação das mesmas.
III
DISPOSITIVO
Acorda-se em, revogando a sentença recorrida, julgar a acção totalmente procedente, condenando a ré a reconhecer a propriedade dos autores sobre os prédios que estes identificam na sua petição, restituindo as parcelas dos mesmos de que se apropriou e repondo-os na situação anterior a essa ocupação, aquando do alargamento do caminho que liga as localidades de … e ….
Custas pela recorrida - artigo 446º do Código de Processo Civil.

Notifique.

Porto, 10 de Julho de 2013
José Manuel Ferreira de Araújo Barros
Judite Lima de Oliveira Pires
Teresa Santos