Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0814991
Nº Convencional: JTRP00041649
Relator: JOAQUIM GOMES
Descritores: SEGREDO DE JUSTIÇA
Nº do Documento: RP200809240814991
Data do Acordão: 09/24/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 546 - FLS 28.
Área Temática: .
Sumário: I - Na decisão que determina a aplicação do segredo de justiça ao processo na fase de inquérito, nos termos do art. 86º, nº 3, do Código de Processo Penal, o Ministério Público, em vista à validação dessa decisão pelo juiz de instrução, tem de indicar as concretas razões que, em seu entender, justificam, no caso, a aplicação do segredo de justiça.
II - Aquela norma, interpretada no indicado sentido, não viola qualquer comando constitucional.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso n.º 4991/08-1
Relator: Joaquim Correia Gomes; Adjunto: Jorge França.

Acordam, em Conferência, na 1.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto.

I.- RELATÓRIO.

1.- Na Inquérito n.º …/08.9GDSTS dos Serviços do Ministério Público junto do Tribunal de Santo Tirso, ..º Juízo Criminal, em que são:

Recorrente: Ministério Público.

Recorrido/Arguido: B………. .

foi proferida decisão em 2008/Mai./19, a fls. 28/29 deste apenso que não julgou válido o despacho proferido pelo Ministério Público de sujeição dos autos a segredo de justiça.
2.- O Ministério Público interpôs recurso deste despacho em 2008/Mai./28, a fls. 2-26 deste apenso, em que suscita a desaplicação, por inconstitucionalidade, da norma do n.º 3, parte final, do art. 86.º, do C. P. Penal, ou assim, não se entendendo, validada aquela determinação, concluindo:
1.º – A Lei n.º 48/2007 de 29 de Agosto, com as alterações introduzidas na discussão na Assembleia da República, mudou radicalmente o paradigma anterior e constitucionalmente adequado no que se refere à conformação do segredo de justiça.
2.º – Designadamente quando passou a dispor que, por regra, o inquérito é público, salvo decisão irrecorrível do juiz de instrução que ordene o segredo externo do processo e que no caso excepcional da determinação da submissão do segredo de justiça pelo M.º P.º., esta fica sujeita à validação pelo juiz de instrução.
3.º – O segredo de justiça tutela(va) a integridade e a eficácia da investigação, do ponto de vista do CPP e do interesse público no exercício da acção penal que transporta, prescrevendo então (e agora) o n.º 1 do art. 355.º do CPP que «não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em julgamento»
4.º – A exclusão da publicidade do processo preliminar (o segredo de justiça), num processo de natureza acusatória, mas nessa fase sujeita ao princípio do inquisitório, protegia, pois, do ponto de vista da estrutura, dos conceitos e dos fins, a investigação.
5.º – E foi esse o sistema quando foi constitucionalizado expressamente o segredo de justiça, com a LC n.º 1/97, do segredo de justiça no n.º 3 do art. 20.º («3. A lei define e assegura a adequada protecção do segredo de justiça.»). Essa era a matriz do segredo de justiça ao tempo da sua constitucionalização.
6.º – A adopção pela Lei n.º 48/2007 de um regime que só, por excepção, admite salvaguardar a relevância primordial da exclusão da publicidade para a integridade da investigação e que faz depender essa excepção não só do responsável funcionalmente pelo inquérito, o Ministério Público, com grave prejuízo da sua função constitucional mas sim pelo juiz de instrução, desenquadrado das suas funções de garantia e protecção de direitos fundamentais a que está vinculado, na procura de equilíbrio entre valores em conflito e que, portanto deveria estar afastado dos resultados da investigação, da sua eficácia, viola a adequada protecção do segredo de justiça (n.º 3 do art. 20.º) e a função constitucional do Ministério Público (art. 219.º)
7.º – É, pois, a norma do n.º 3 do art. 86.º do CPP, inconstitucional por desrespeito do n.º 3 do art. 20.º da CRP, por não constituir adequada protecção do segredo de justiça, na medida em que faz depender a validade da sua determinação pelo Ministério Público da concordância do juiz de instrução, o que viola igualmente os art.ºs 219.º e 32.º, n.º 5 da CRP: o princípio do acusatório e o papel constitucional do Ministério Público.
8.º – Deve, assim, desaplicar-se a parte final da norma do n.º 3 do art. 86.º do CPP, quando sujeita a validação pelo juiz da determinação pelo Ministério Público da aplicação ao processo do segredo de justiça, quando os interesses da investigação ou os direitos dos sujeitos processuais o justifiquem, por inconstitucional.
9.º – Tratando-se de um inquérito por eventual crime de maus-tratos, em que o Ministério Público, em obediência a Directiva do Procurador-Geral da República, determinou a aplicação do segredo de justiça, não pode nem deve o Juiz de Instrução Criminal, sem mais, não validar essa determinação.
10.º – Com efeito não pode ignorar as indicações sobre politica criminal constantes das Leis Lei n.º 17/2006 de 23 de Maio e as funções que nesse âmbito atribui ao Ministério Público e ao Procurador-Geral da República e os objectivos, prioridades e orientações de política criminal para o biénio de 2007-2009 (Lei n.º 51/2007), entre os quais se situa a prioridade e eficácia na investigação dos crimes de maus tratos e da promoção da protecção das vítimas especialmente frágeis.
11.º – Assim, e a Directiva invocada pelo Ministério Público no despacho de aplicação do segredo de justiça, apresenta-se também, face às dificuldades criadas pela Lei n.º 48/2007, como um instrumento de concretização dos objectivos da politica criminal, estabelecidos para este biénio e não como um acto voluntarista, infundamentado e desproporcional, que a decisão recorrida pudesse ignorar, apesar do papel que desempenhara no falado despacho não validado.
12.º – A Directiva teve em conta as alterações introduzidas pela Lei n.º 48/207 em fase de investigação, que justificam, pelas implicações na forma como o Ministério Público deverá dirigir o inquérito e exercer a acção penal, a adopção de orientações adequadas a garantir uma actuação uniforme desta magistratura, tendo em conta o seu carácter unitário e hierarquizado, designadamente quanto ao segredo de justiça quando visam, como no caso, crimes cuja investigação eficaz é prioritária, não só pelo perigo de reincidência que significam, como pelas lesões das vítimas vulneráveis, cuja protecção foi tida igualmente como prioritária.
13.º – O Juiz de instrução criminal, ao validar ou não o segredo de justiça cuja aplicação foi determinada pelo Ministério Público, não pode deixar de ter presente que se trata exactamente de “validar” e não de “determinar” (o que já foi feito), o que postula atitudes e competências diferentes.
14.º – Ao Ministério Público compete, apreciando os parâmetros legais e tendo presente que está num domínio e numa fase de investigação cuja condução lhe pertence, determinar se a aplicação do segredo de justiça é necessária à investigação, à protecção da vítima ou do arguido, e não é excessivamente onerosa.
15.º – Ao juiz de instrução não compete, ao validar essa determinação substituir-se ao Ministério Público no juízo que a este cabe, mas com bom senso e parcimónia, verificar se do seu ponto de vista de juiz das liberdades, existem elementos concretos que permitam afirmar o carácter excessivamente gravoso, desproporcionado daquela determinação.
16.º – Ora, a decisão recorrida extravasa esse controlo, substituindo-se à apreciação do Ministério Público, no seu próprio campo, sem tomar em consideração a Directiva invocada por este, e os objectivos da política criminal.
17.º – Na verdade, a responsabilidade indeclinável do juiz de instrução tem a ver com o equilíbrio e a ponderação entre as exigências da investigação (aceitando, à partida, que essas exigências são como o Ministério Público as configura), por um lado, e o direitos de defesa do arguido, por outro lado; e não o juízo e ponderação a respeito dos interesses da investigação, por si só.
18.º – Nessa ponderação entre os interesses da investigação encabeçados pelo Ministério Público e os direitos de defesa do arguido, deve ter em conta se está perante situações reais de perigo de lesão grave destes direitos, como acontece no caso de aplicação de medida de coacção de prisão preventiva, ou se não o sendo, os direitos de defesa do arguido têm um peso menor, por não comprometidos por espera por fases ulteriores do processo, essas sim já dominadas pelo princípio do contraditório.
19.º – A decisão recorrida mostra-se insuficientemente fundamentada, pois funciona numa óptica reactiva de transferência de uma execução incomportável para o Ministério Público. Entrando num criticismo processual que lhe não cabe invadindo a função constitucional do Ministério Público.
20.º – Por todas estas razões deveria o M.º Juiz a quo ter validado a determinação do Ministério Público de aplicar ao presente inquérito o segredo de justiça.
3.- O despacho recorrido foi sustentado em 2008/Jul./21, a fls. 133-142, do apenso, referindo-se em síntese: “Não se pode partir de certas situações de crime catálogo e de considerações abstractas e genéricas, teóricas mesmo, para se sujeitar a segredo de justiça um Inquérito e, em específico o presente Inquérito, devendo proceder-se a uma análise casuística; efectuada tal análise no caso dos autos, nada nos permite concluir pela necessidade ou adequação do despacho do Ministério Público, não estando o JIC limitado no despacho a proferir nos termos do art.º 86.º, n.º 3, parte final do Código de Processo Penal, não integrando esta norma qualquer inconstitucionalidade, antes sopesando de forma harmoniosa interesses e direitos constitucionais, não havendo, ainda, qualquer, diligência de Inquérito em curso cujo êxito dependa da manutenção dos autos em situação de segredo de justiça.”
4.- Nesta Relação o Ministério Público emitiu parecer em 2008/Jul./29, a fls. 145-151, expressando a sua concordância com a substância da argumentação do recurso, aditando, no essencial, que o juiz de instrução sempre poderia inteirar-se convenientemente da matéria sob investigação para aferir da justificação ou não da vinculação destes autos ao segredo de justiça, não deixando de notar o pouco rigor legislativo da abrangência do conceito dos “interesses de investigação”, relembrando ainda o voto de vencido proferido no Ac. R. Porto de 2008/Mai./28.
5.- Colheram-se os vistos legais, nada obstando que se conheça do presente recurso.
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O objecto deste recurso relaciona-se com a inconstitucionalidade do art. 86.º, n.º 3, parte final, do Código Processo Penal e, caso assim não suceda, com a verificação dos pressupostos legais para a validação do decretamento do segredo de justiça.
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II.- FUNDAMENTAÇÃO.
1.- Circunstâncias a considerar.
1.ª) O despacho do Ministério Público, na parte que aqui releva:
“Atenta a determinação efectuada na Directiva de 09.01.2008, definida por sua Excelência o Conselheiro Procurador-Geral da República (remetida com o Ofício-Circular nº 5/2008, de 15/JAN/2008) no sentido de que “Sempre que esteja em causa investigação relativa aos crimes previstos no artigo 1º, alíneas j) a m) do Código de Processo Penal (…) O Ministério Público determinará, no início do inquérito, a sujeição deste a segredo de justiça…”, nos termos do disposto no artigo 86º, n.º 3, do Código de Processo Penal,
Dado que o crime em investigação nestes autos (cfr. art. 210.º, n.º 1 do C. Penal) é punível com pena de prisão de até 8 anos, tratando-se, pois – atenta ainda a natureza dos bens jurídicos protegidos pela incriminação – da “criminalidade violenta” a que alude o art. 1.º, alínea j) do C.P.P. e atendendo à especial natureza do ilícito em questão, bem como ao facto de a actividade delituosa poder ainda encontrar-se em curso e ainda – especialmente – a natureza das diligências em curso e aquelas cuja realização se tem por provável, a publicidade destes autos seria altamente lesiva para os interesse da investigação,
Determino a aplicação a estes autos do segredo de justiça – cfr. art. 86.º, n.º 3 do C.P.P.”
2.ª) A decisão recorrida, na parte que aqui releva:
“Não se vislumbra qualquer motivação factual concreta procedente para o despacho proferido pelo Ministério Público.
Não é pela simples circunstância de o objecto dos autos se reportar a um determinado tipo legal, ainda que o mesmo se integre no conceito de criminalidade violenta que se justifica a sujeição dos autos a segredo de justiça, já que com tal assunção por parte do Ministério Público, está a partir-se do abstracto e a não ponderar o concreto; não se pode, pelo menos não é procedente, determinar como critério para a sujeição de um Inquérito a segredo de justiça, o simples facto de se estar perante uma situação que integra um “crime de catálogo”; já por referência ao que em “concreto”, o Ministério Público alegou, subsequentemente - o interesse da investigação: nada nos autos nos permite concluir que o interesse da investigação exija a manutenção dos autos em segredo de justiça; a esse propósito, o Ministério Público fala em diligências que estão em curso; ora, o Inquérito encontra-se em juízo para efeito de realização de interrogatório judicial de arguidos detidos, nos termos e para os efeitos do art.º 141.º do Código de Processo Penal, não se vendo (nem o Ministério Público tendo concretizado) quais as diligências de investigação que estão em curso e que cujo êxito pode ser colocado em risco pela publicidade dos autos; da mesma forma, quanto às diligências de investigação que “provavelmente” (sic) se seguirão, estamos perante uma hipotética intenção por parte do Ministério Público, que nem sequer é capaz de concretizar, também, os termos a seguir pela investigação; por último e quanto à alegação de que a actividade delituosa poderia, ainda, estar em curso, mais uma vez, nada nos autos nos permite concluir nesse sentido, sendo que também aqui, o Ministério Público fala de uma hipótese e tão só, sendo que por referência aos arguidos, estando os mesmos detidos, não se vislumbra como tal possa ou esteja a ser viável.
Em conformidade com o exposto e nos termos do art.º 86.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, não julgo válido o despacho proferido pelo Ministério Público a fls. 29 de sujeição dos autos a segredo de justiça.
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2.- Os fundamentos do recurso.
Estipula-se no art. 81.º, n.º 1 do Código Processo Penal[1], que “O processo penal é, sob pena de nulidade, público, ressalvando as excepções previstas na lei”, acrescentando-se no seu n.º 3 que “Sempre que o Ministério Público entender que os interesses da investigação ou os direitos dos sujeitos processuais o justifiquem, pode determinar a aplicação ao processo, durante a fase de inquérito, do segredo de justiça, ficando sujeita essa decisão a validação pelo juiz de instrução no prazo máximo de setenta e duas horas”.
Este último segmento normativo surgiu com a revisão do Código de Processo Penal efectuada pela Lei n.º 48/2007, de 29/Ago., que veio sujeitar o decretamento do segredo de justiça no decurso do inquérito a despacho do Ministério Público e a subsequente validação judicial, por parte do respectivo juiz de instrução.
Trata-se, como é de constatar, de uma mudança radical no paradigma da publicidade do processo no decurso da fase preliminar a que corresponde o inquérito, que é a da investigação processual, a qual é integrada pelo conjunto de diligências que visam indagar da existência de um crime, determinação dos seus agentes e recolha da prova que sustente a sua responsabilização penal – cfr. art. 262.º.
Pese embora esta mudança, que rompeu com o carácter da quase plenitude do segredo de justiça, tanto interno, como externo, que vigorava essencialmente no decurso do inquérito, não encontramos qualquer exposição de motivos por parte do legislador que justifique esta sua opção, certamente válida, sob o ponto de vista da legitimidade democrática de quem legisla, mas discutível, quanto à opção de política processual-penal que foi tomada.
Tanto assim é que o Ministério Público, a quem cabe a direcção do inquérito [263.º], veio, através da PGR, constatar que o actual comando da plena liberdade de acesso ao inquérito, consagrada por esta revisão de 2007, criou sérias dificuldades e perturbantes disfunções operacionais na investigação de crimes relativos à criminalidade mais gravosa – vejam-se essas razões em www.pgr.pt/, no item relativo a actualidades e sob a epígrafe “Propostas de Alterações ao Código de Processo Penal”.
Para o efeito aventou que no citado segmento normativo passasse a constar a seguinte redacção: “Ficam sempre sujeitos a segredo de justiça os inquéritos que tenham por objecto os crimes previstos pelas alíneas i) a m) do art. 1º, pelo art. 1º da Lei nº 36/94, de 29 de Setembro, e pelo art. 1º da Lei 5/2002, de 11 de Janeiro, não podendo tal segredo ser levantado, em caso algum, antes do decurso do prazo previsto nos nºs 1 e 2 do art. 276º ou daquele que tiver sido fixado nos termos do nº 6 do art. 89º”
Mas se sabemos as razões de quem pretende reformar, desde já, esta revisão processual penal, teremos de descortinar os propósitos que influíram esta revisão e o corte epistemológico por si decretado.
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Convém recordar que na “Nota sobre a Revisão do Código Processo Penal”, da responsabilidade da respectiva Unidade Missão, uma das principais alterações preconizadas incidia sobre o segredo de justiça, o qual e passa-se a citar, devia ser “restringido, passando os sujeitos a aceder ao processo sempre que não haja prejuízo para a investigação ou para direitos fundamentais” – veja-se www.portugal.gov.pt/.
Justificavam-se, de uma forma genérica, essas alterações, na medida em que “algumas normas em vigor foram objecto de juízos de inconstitucionalidade; as fontes de Direito Internacional a que o Estado português está vinculado impõem certas alterações; determinados regimes suscitam problemas práticos de difícil resolução; outras normas ainda são obscuras ou de difícil interpretação; e, por fim, é desejável aumentar a celeridade processual”.
Mais à frente acrescentava-se que “as alterações procuram conciliar sempre a protecção da vítima e o desígnio de eficácia e celeridade com as garantias de defesa próprias do Estado de direito democrático”.
Tais considerações, no que concerne às alterações a conferir à regulamentação do segredo de justiça foram precisadas, do seguinte modo: “Consagra-se com maior amplitude o princípio da publicidade. Assim, no decurso do inquérito, o Ministério Público pode determinar a publicidade - “externa” - com a concordância do arguido, se a cessação do segredo não prejudicar a investigação e os direitos de sujeitos e vítimas. Durante a instrução, já só o arguido se pode opor à publicidade (artigo 86.º). Mas também o “segredo interno” é restringido. No âmbito do inquérito é facultado o acesso aos autos ao arguido, ao assistente e ao ofendido, ressalvadas as hipóteses de prejuízo para a investigação ou para os direitos dos participantes ou das vítimas. Findos os prazos do inquérito, o arguido, o assistente e o ofendido podem consultar todos os elementos do processo, a não ser que o juiz de instrução determine, no interesse da investigação, um adiamento pelo período máximo e improrrogável de três meses (artigo 89.º)” –também acessível em www.portugal.gov.pt/.
O texto proposto pela Unidade Missão para passar a constar como art. 86.º e que foi sujeito a discussão pública, na parte que para aqui importa, foi o seguinte:
“2 - O processo está sujeito a segredo de justiça até ao termo do prazo para requerer a abertura da instrução, excepto se o Ministério Público determinar a sua publicidade.
3 - O Ministério Público determina a publicidade do processo, em qualquer momento do inquérito, com a concordância do arguido, quando entender que a cessação do segredo não prejudica a investigação e os direitos dos participantes processuais ou das vítimas.
4 - O processo continua sujeito a segredo de justiça até ao trânsito em julgado da decisão instrutória, se o arguido declarar que se opõe à publicidade.
5 - Se a abertura da instrução for requerida pelo arguido, a declaração referida no número anterior deve ser efectuada no respectivo requerimento; se for requerida pelo assistente, deve ser efectuada no prazo de 10 dias a contar da notificação do despacho de abertura da instrução.
Na Proposta de Lei 109/X [DAR, II-A, de 2006/Dez./23, pp. 6-178], concatenando a mesma com o referido projecto de revisão, o n.º 4 passava a n.º 5 e surgia aquele com a seguinte redacção “no caso de o arguido requerer a publicidade mas o Ministério Público não a determinar, os autos são remetidos ao juiz, que decide, por despacho irrecorrível, depois de ouvir o ofendido, se o processo continua sujeito a segredo de justiça ou se torna público”.
Por sua vez, no n.º 2 do artigo 89.º, propunha-se que “se o Ministério Público se opuser à consulta ou à obtenção dos elementos previstos no número anterior, o requerimento é presente ao juiz, que decide por despacho irrecorrível”.
No subsequente debate parlamentar sobre a revisão do Código Processo Penal, sua Excelência o Sr. Ministro da Justiça, em 2007/Mar./13, justificava deste modo, a alteração legislativa que era pugnada:
“Uma palavra para o regime do segredo da justiça, que tutela não só a eficácia da investigação como a presunção da inocência do arguido, que é constitucionalmente protegida e que não pode ser uma figura de retórica, implicando o efectivo respeito pela honra e consideração do arguido.
Com esta revisão, o âmbito de aplicação do segredo é restringido, passando em regra a valer o princípio da publicidade. Arguido e Ministério Público podem estar na origem da abertura dos autos. Porém, em caso de divergência, a decisão sobre o regime aplicável é atribuída ao Juiz. Sob esta nova solução judicial, pretende-se atingir um ponto de equilíbrio entre os interesses da investigação e os interesses da defesa, restituindo ao segredo de justiça um papel mais ajustado ao caso concreto.
Mas esta revisão leva a sério e promove o respeito pelo segredo de justiça.
Deixa-se claro que o segredo de justiça quando exista tem de ser respeitado por todos: não só por quem tem contacto com o processo, mas por quem tenha conhecimento de elementos dele constantes.
A flexibilização do regime do segredo, permitindo a abertura do processo ao exterior antes do fim do inquérito, nos casos previstos, garantirá que o segredo só valha quando é realmente necessário.
Todos têm de compreender e respeitar os valores que este regime visa proteger – eficácia da investigação e tutela dos direitos das pessoas – e todos têm de se empenhar, igualmente, na sua protecção. A ninguém é lícito o desprezo pela Justiça, como abertamente se assume em diversos ordenamentos jurídicos.”
Só no decurso da discussão na especialidade, no âmbito do grupo de trabalho formado no âmbito da Comissão de Assuntos Direitos, Liberdades e Garantias, é que surgiu a redacção final agora vigente, mas sem que tenha havido qualquer tipo de explicação.
No entanto, entre a proposta legislativa de alteração ao regime do segredo de justiça, que mantinha este, como regra, para a fase de inquérito, sujeitando a sua publicidade à discricionariedade do Ministério Público, havendo apenas intervenção judicial no caso de divergência entre este e os demais participantes processuais, e a solução legislativa encontrada, que consagrou a regra da quase plenitude da publicidade do autos e a sujeição da pretensão do Ministério Público à validação judicial, vai uma mudança de quase 180º, sem que ninguém tenho dito quais foram essas razões, que à última da hora, justificaram esta última opção.
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A nossa tradição jurídica mais recente, consagrou sempre o segredo de justiça para a fase preliminar de investigação, como sucedeu com o art. 70 do Código Processo Penal de 1929 e o art. 86.º do Código Processo Penal de 1987.
Assim segundo o corpo daquele art. 70.º “O processo penal é secreto até ser notificado o despacho de pronúncia ou equivalente ou até haver despacho definitivo que mande arquivar o processo”, acrescentando no seu § 1 que “No decurso da instrução preparatória, o processo poderá ser mostrado ao assistente e ao arguido, ou aos respectivos advogados, quando não houver inconveniente para a descoberta da verdade”, indicando de seguida as peças processuais que a defesa podia ter acesso.
No Parecer da PGR de 1977/Jan./06 [BMJ 273/56], a natureza e a extensão do segredo de justiça até então implementado, eram assim caracterizados:
“A formalização, através do auto de notícia ou da participação, do conhecimento ou da suspeita de um facto criminoso, deve ser protegida pelo segredo de justiça, em nome das garantias de defesa concedidas ao arguido, do êxito das investigações e do interesse do público em se evitarem especulações infundadas”.
Com a reforma de 1987/88, através do citado art. 86.º, que reproduziu o art. 86.º do Projecto e que correspondia ao art. 84.º, do Anteprojecto, passou a dispor-se no seu n.º 1 que “O processo penal é, sob pena de nulidade, público a partir da decisão instrutória ou, se a instrução não tiver lugar, do momento em que já não pode ser requerida, vigorando até qualquer desses momentos o segredo de justiça”, acrescentando no seu n.º 4 que “Pode todavia, a autoridade judiciária que preside à fase processual respectiva dar ou ordenar ou permitir que seja dado conhecimento a determinadas pessoas do conteúdo de acto ou de documento em segredo de justiça, se tal se afigurar conveniente ao esclarecimento da verdade” ou, segundo o subsequente n.º 6 “na medida estritamente necessária para a dedução do pedido de indemnização civil”.
Para o efeito dizia-se que “O Código procura estabelecer um equilíbrio de posições numa matéria em que à necessidade de se acautelar, mediante o sigilo, o sucesso das investigações, sucede, tantas vezes sem solução de continuidade, a exigência imperativa da publicidade como meio de garantir a verificação pelos circundantes da fidedignidade dos actos a que assistem” – Maia Gonçalves, em “Código Processo Penal – Anotado” (1993), p. 184.
Tentando estabelecer esse equilíbrio, mormente quando estavam em caso os direitos de defesa, o Tribunal Constitucional tomou diversas decisões, que pelos vistos, inspiraram os propósitos da proposta da Unidade Missão para a Revisão de 2007.
Uma delas foi o Ac. n.º 121/97, de 1997/Fev./19 [DR II, n.º 100, de 1997/Abr./30][2] que julgou inconstitucionais “as normas conjugadas dos arts. 86º, nº 1, e 89º, nº 2, do Código de Processo Penal, na interpretação delas feita pela decisão recorrida, segundo a qual o juiz de instrução não pode autorizar, em caso algum e fora das situações tipificadas nesta última norma, o advogado do arguido a consultar o processo na fase de inquérito para poder impugnar a medida de coacção de prisão preventiva que foi aplicada ao arguido, por violação das disposições conjugadas dos arts. 20º, nº1, e 32º, nºs. 1 e 5, da Constituição”.
O acesso aos elementos probatórios do processo na pendência do inquérito, de modo a assegurar uma efectiva garantia de defesa, teve igualmente na base do Ac. n.º 416/2003, de 2003/Set./24, que decidiu “Julgar inconstitucional, por violação dos artigos 28.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, da CRP, a norma do n.º 4 do artigo 141.º do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que, no decurso do interrogatório de arguido detido, a “exposição dos factos que lhe são imputados” pode consistir na formulação de perguntas gerais e abstractas, sem concretização das circunstâncias de tempo, modo e lugar em que ocorreram os factos que integram a prática desses crimes, nem comunicação ao arguido dos elementos de prova que sustentam aquelas imputações e na ausência da apreciação em concreto da existência de inconveniente grave naquela concretização e na comunicação dos específicos elementos probatórios em causa”.
Este posicionamento do Tribunal Constitucional, seguia a jurisprudência, até aí então corrente, da desproporcionalidade concedida à manutenção do segredo de justiça, em detrimento da publicidade do processo, na estrita medida em que não assegurava um efectivo direito de defesa – veja-se a propósito Maria de Assunção Esteves, em “Estudos de Direito Constitucional”, (2001), designadamente “A jurisprudência do Tribunal Constitucional relativa ao segredo de justiça”, p. 145 e ss.
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Ao nível do direito comparado e pese embora a existência de uma formalização muito variada, diremos que todos os ordenamentos jurídicos europeus, mormente ao nível da União Europeia, com mais ou menos afinidades geográficas ou culturais com Portugal, muito embora consagrem a publicidade do processo como princípio ordenador da acessibilidade processual, mormente na fase de julgamento, estabelecem, concomitantemente, o segredo de justiça como regra da fase preliminar que corresponde à investigação processual, só quebrada para permitir uma efectiva possibilidade de defesa – veja-se a propósito “Procédures Pénales d’Europe”, sob a direcção de Mireille Delmas-Marty; “Procédure Penale” (2004), p. 440 e ss., de Gaston Stefani, Georges Levasseur; “Diritto Processuale Penale” (2005), p. 82 e ss., “Il Códice di Procedura Penale – Spiegato”, p. 708 e ss.
Assim em relação ao Reino Unido, importa essencialmente reter o “Police and Criminal Evidence Act 1984” (PACE), que sofreu recentemente alterações, as quais entraram em vigor em 2008/Fev./01 e que foram detalhadamente explicadas, bem como acompanhadas por uma “Explanatory Memorandum”, para além de um inevitável “Home Office Circular 2/2008” do Ministério do Interior, que dirige os serviços de polícia – sobre os “Pace and Codes of Pratice”, veja-se John Sprack, in “Criminal Procedure” (2006), p. 23 e ss.
No âmbito da fase preliminar de investigação, que é normalmente de índole policial, a consulta de um “dossier” (processo) pelo acusado tem sempre um carácter excepcional, salvo quando esteja em causa a sua detenção ou a aplicação de uma medida provisória de coacção, em que o acusado tem o direito de ser informado das imputações que contra si são formuladas e das provas que as sustentam (“by way of charge”, s. 28 PACE).
Também na fase intermediária de “transfer for trial” o acusado tem direito a uma cópia integral de todo o dossier, estando regulada a confidencialidade ou a publicidade dos actos processuais através do Criminal Procedure and Investigations Act 1996, capitulo 17.
Mesmo na fase de julgamento, aquilo que designamos por segredo externo do processo, pode ser assegurado para impedir comportamentos obstrucionistas à administração da justiça, tal como se regula no Contempt of Court Act 1981.
Em França, o Code Procedure Pénale, continua a preceituar no seu artigo 11.º que “Sauf dans le cas où la loi en dispose autrement et sans préjudice des droits de la défense, la procédure au cours de l'enquête et de l'instruction est secrète” acrescentando-se que “Toutefois, afin d'éviter la propagation d'informations parcellaires ou inexactes ou pour mettre fin à un trouble à l'ordre public, le procureur de la République peut, d'office et à la demande de la juridiction d'instruction ou des parties, rendre publics des éléments objectifs tirés de la procédure ne comportant aucune appréciation sur le bien-fondé des charges retenues contre les personnes mises en cause.”
No entanto, segundo o art. 11.º, 1 “Sur autorisation du procureur de la République ou du juge d'instruction selon les cas, peuvent être communiqués à des autorités ou organismes habilités à cette fin par arrêté du ministre de la justice, pris le cas échéant après avis du ou des ministres intéressés, des éléments des procédures judiciaires en cours permettant de réaliser des recherches ou enquêtes scientifiques ou techniques, destinées notamment à prévenir la commission d'accidents, ou de faciliter l'indemnisation des victimes ou la prise en charge de la réparation de leur préjudice. Les agents de ces autorités ou organismes sont alors tenus au secret professionnel en ce qui concerne ces informations, dans les conditions et sous les peines des articles 226-13 et 226-14 du code pénal.”
No seguimento da jurisprudência estabelecida pela Cour de Cassation, a exigência de publicidade imposta pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem, diz apenas respeito à fase de julgamento e não às fases preliminares de investigação (crim. 1990/Mai./15, Bull n.º 195).
Em Itália, o “Codice de Procedura Penale” também pouco difere, ao estabelecer, como regra, no seu art. 329.º, n.º 1 que “Gli atti di indagine compiuti dal pubblico ministero (358 s.) e dalla polizia giudiziaria (347-357) sono coperti dal segreto fino a quando l`imputato non ne possa avere conoscenza e, comunque, non oltre la chiusura delle indagini preliminari (114, 405-415, 554).”
Porém, acrescenta-se no seu n.º 2 que “Quando é necessario per la prosecuzione delle indagini, il pubblico ministero puó, in deroga a quanto previsto dall’art. 114, consentire, con decreto motivato, la pubblicazione di singoli atti o di parti di essi. In tal caso, gli atti pubblicati sono depositati presso la segreteria del pubblico ministero.”
Mais à frente e de acordo com o seu n.º 3 “Anche quando gli atti non sono pi coperti dal segreto a norma del comma 1, il pubblico ministero, in caso di necessitý per la prosecuzione delle indagini, pú disporre con decreto motivato:
a) l`obbligo del segreto per singoli atti, quando l`imputato lo consente o quando la conoscenza dell`atto puó ostacolare le indagini riguardanti altre persone;
b) il divieto di pubblicare (414) il contenuto di singoli atti o notizie specifiche relative a determinate operazioni.”
Em Espanha, a Ley de Enjuiciamento Criminal, quando estão em causa a realização de diligências de investigação criminal, que se designam por “sumario” [art. 299.º], estabelece no seu art. 301.º, que “Las diligencias del sumario serán secretas hasta que se abra el juicio oral, con las excepciones determinadas en la presente Ley”.
As excepções surgem quando estão em causa o exercício do direito de defesa [art. 118.º] ou quando, segundo o art. 302.º, “Las partes personadas podrán tomar conocimiento de las actuaciones e intervenir en todas las diligencias del procedimiento”, mas mesmo aqui “Sin embargo de lo dispuesto en el párrafo anterior, si el delito fuere público, podrá el Juez de instrucción, a propuesta del Ministerio fiscal, de cualquiera de las partes personadas o de oficio, declararlo, mediante auto, total o parcialmente secreto para todas las partes personadas, por tiempo no superior a un mes y debiendo alzarse necesariamente el secreto con diez días de antelación a la conclusión del sumario”.
Na Alemanha, para além do disposto no § 103, I, da Grundgesetez (Constituição da República), onde se estabelece o direito de audição perante os tribunais, o segredo de justiça interno, está acautelado no § 147[3] do Strafprozessordnung (Código Processo Penal Alemão), preceituando-se que antes da dedução da acusação, pode ser recusado o acesso aos autos se tal puser em causa a finalidade da investigação.
Aqui apenas o defensor pode ter acesso aos elementos factuais e probatórios (§ 147, 2), designadamente em todas os momentos que haja interrogatório do acusado ou que o defensor deste possa estar presente (§ 147, 3).
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Em suma, podemos constatar que muito embora a proposta de revisão se aproximasse do estabelecido pela jurisprudência do Tribunal Constitucional e no consagrado em vários ordenamentos jurídicos da União Europeia, o certo é que o legislador de 2007 alterou o paradigma de acessibilidade ao processo na fase preliminar, passando da regra do segredo de justiça para a da publicidade, sem que se soubesse ou se desse previamente à discussão qualquer sopro desta nova “mens legis”.
No entanto, mais recentemente e tendo já por base a Revisão de 2007, o Tribunal Constitucional, no seu Ac. n.º 428/2008, de 2008/Ago./12, decidiu “Julgar inconstitucional, por violação do artigo 20.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, a interpretação do artigo 89.º, n.º 6, do Código de Processo Penal, na redacção dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, segundo a qual é permitida e não pode ser recusada ao arguido, antes do encerramento do inquérito a que foi aplicado o segredo de justiça, a consulta irrestrita de todos os elementos do processo, neles incluindo dados relativos à reserva da vida privada de outras pessoas, abrangendo elementos bancários e fiscais sujeitos a segredo profissional, sem que tenha sido concluída a sua análise em termos de poder ser apreciado o seu relevo e utilização como prova, ou, pelo contrário, a sua destruição ou devolução, nos termos do n.º 7 do artigo 86.º do Código de Processo Penal”.
Esta desadequação, levou já a sustentar que “No contexto da nova regulação do segredo de justiça e do acesso aos autos, matéria sujeita a um intenso controlo judicial, o regime do art. 89.º, n.º 6 do C. P. P. é razoavelmente desnecessário e gera mais problemas do que aqueles que resolve, podendo facilmente ser convertido num instrumento de boicote à investigação criminal” – veja-se Frederico Costa Pinto, em “Publicidade e segredo na última revisão do Código Processo Penal”, em “Estudos Comemorativos dos 10 anos da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa (2007), p. 241 e ss.
Mas foi-se mais longe ao considerarem-se materialmente inconstitucionais as normas do art. 86.º, n.º 2, 3, 4 e 5, por violarem os art. 2.º, 20.º, n.º 1, 3, 32.º, n.º 5 e 7, 219.º, n.º 1 da C. Rep., na medida em que fixam a regra da publicidade externa do inquérito e ao conferirem ao juiz o poder de decidir oficiosamente, por despacho irrecorrível, a publicidade externa do inquérito contra a vontade do Ministério Público, bem como ao vedar o segredo externo da instrução a requerimento do arguido – neste sentido Paulo de Albuquerque, no seu “Comentário do Código Processo Penal” (2007), p. 240 e ss.
Também seria inconstitucional o art. 86.º, 6, al. a), na parte em que não exclui os actos do inquérito e da instrução.
Assim e de um modo geral sustentou-se que a regra da publicidade interna do inquérito é inconstitucional, porquanto e além do mais viola o conceito constitucional de instrução, a estrutura acusatória do processo e a função constitucional do Ministério Público, para além de que a regra da publicidade externa do inquérito viola a protecção constitucional devida ao segredo de justiça consagrado no art. 20.º, 3 da C. Rep. e a presunção de inocência estabelecida no art. 32.º, n.º 2 também da C. Rep.
Muito embora o recurso do Ministério Público alinhe com a generalidade desta argumentação, o certo é que o seu posicionamento de inconstitucionalidade, incide apenas na parte final do n.º 3, do art. 86.º, ao fazer depender a validade da determinação do segredo de justiça da concordância do juiz de instrução.
Muito embora se compreenda o alcance desta argumentação e o labor com que a mesma é feita, vejamos se assim foram infringidos os normativos constitucionais indicados nas motivações de recurso.
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Uma das primeiras violações apontadas é a do segredo de justiça, que tem a sua consagração no art. 20.º, n.º 3, da C. Rep, ao estabelecer que “A lei define e assegura a adequada protecção do segredo de justiça”.
Este comando constitucional surgiu com a revisão constitucional de 1997, mediante o aditamento deste segmento normativo – veja-se Jorge Miranda, Rui Medeiros, em “Constituição Portuguesa Anotada”, Tomo I, (2005) p. 204/5; Marcelo Rebelo de Sousa, José de Melo Alexandrino, em “Constituição da República Portuguesa Comentada”, (2000), p. 102; Joaquim Gomes Canotilho, Vital Moreira, em “Constituição da República Portuguesa Anotada”, vol. I, (2007), p. 414; Nuno Piçarra, em “O Inquérito Parlamentar e os seus Modelos Constitucionais” (2004), p. 689.
Esta autonomização, surge mais como uma garantia constitucional do que propriamente como um direito fundamental, tendo, no entanto, particular relevância no âmbito do processo penal.
Por outro lado, essa garantia constitucional, tanto pode ser perspectivada subjectivamente, como direito ao segredo de justiça, como objectivamente, de se assegurar efectivamente, de modo concreto e positivo, esse comando, agora não no âmbito de um modelo processual inquisitorial, mas acusatório, típico de um Estado de Direito Democrático.
Isto exige, por parte do legislador, um balanceamento das finalidades prosseguidas pelo segredo de justiça, estabelecendo uma concordância prática das mesmas, sem nunca estorvar nenhuma delas, podendo no entanto comprimir em dado momento uma em detrimento das outras, sem que essa compressão seja desproporcional, injustificada ou irrazoável.
Normalmente sustenta-se que o segredo de justiça é não só uma forma de assegurar a eficiência da investigação e de preservação dos meios de prova, como de garantir a efectividade do princípio constitucional da presunção de inocência [32.º, n.º 2, da C. Rep.] apontando-se ainda uma função de garantia para as pessoas que intervêm no processo e que desde o seu início podiam ficar expostas a retaliações – neste sentido veja-se Frederico Costa Pinto, em “Segredo de Justiça e acesso ao Processo”, constantes em “Jornadas de Processo Penal e Direitos Fundamentais”, p. 71; Maria João Antunes, em “O segredo de justiça e o direito de defesa do arguido sujeito a medida de coacção”, inserido em “Liber discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias” (2003), p. 1237 e ss.; André Lamas Leite, na RPCC 16 (2006), no estudo sobre “Segredo de justiça interno, inquérito, arguido e seus direitos de defesa”, p. 539 e ss.
Porém, também se aponta que o segredo de justiça visa igualmente assegurar outros direitos constitucionais, como o da segurança, que se encontra reconhecido no art. 27.º, n.º 1 da C. Rep., a que está subjacente o interesse na realização da justiça – veja-se a propósito Juan Carlos Orenes Ruiz, em “Libertat de Information e Proceso Penal. Los Limites” (2008), p. 230 e ss.
Por sua vez, o significado constitucional da estrutura acusatória do processo penal, que se encontra consagrado no art. 32.º, n.º 5, da C. Rep., deve ser entendido como um modelo processual, o qual tem subjacente a divisão do processo penal em fases diferenciadas, em que a fase preliminar de quem investiga é dirigida por uma entidade distinta daquela outra fase em que se julga – veja-se Jorge de Figueiredo Dias, Vol. I (1981), p. 136 e ss.
O princípio do acusatório, por sua vez, surge como uma das dimensões possíveis das garantias de defesa do processo penal, estabelecidas no art. 32.º, n.º 1, da C. Rep., mediante o qual nenhum individuo pode ser condenado sem que exista previamente uma acusação contra si, sendo esta que contribui em larga medida para definir o objecto do processo e traçar os limites dos poderes de cognição do tribunal – veja-se Luis Andrés Cucarella Galiana, em “La Correlación de la sentencia com la acusación y la defensa” (2003), p. 44 e ss.
Assim, o princípio do acusatório surge como uma das referências do direito de defesa do arguido, enquanto a estrutura acusatória do processo penal, representa antes o modelo processual constitucional consagrado, em detrimento do modelo inquisitorial.
Este último, caracterizado pela “inquisitio”, é dominado, entre outras coisas, pela quase plenitude do secretismo processual e pela ausência de contraditório – veja-se Gaston Stefani, Georges Levasseur, ob. cit., p. 53 e ss.
Passando agora para a função constitucional do Ministério Público, temos a mesma definida no art. 219.º, n.º 1 da C. Rep., respigando-se daí, na parte que interessa o seguinte trecho normativo: “Ao Ministério Público compete …exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática.”
O exercício da acção penal, exige não só um poder de direcção geral do conjunto de diligências que visam a investigação de um crime, a determinação dos seus agentes, da recolha de prova, como um poder concreto de direcção desta actividade.
A dualidade deste poder de direcção estende-se à decisão de acusar e à manutenção ou sustentação desta, o que deve ser sempre efectuado com carácter autónomo, de imparcialidade, mas também mediante critérios de estrita legalidade, sendo este um dos seus limites inultrapassáveis ao exercício da acção penal.
Assim o exercício da acção penal é da estrita competência funcional do Ministério Público, não cabendo aos tribunais dar quaisquer ordens de direcção geral ou concreta em relação aos inquéritos ou à acusação.
Mas também e como contraponto, não pode o Ministério Público instruir ou dirigir as funções jurisdicionais, designadamente quando estes asseguram a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos ou reprimem a violação da legalidade democrática, tal como está estabelecido no art. 202.º da C. Rep.
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Como já referimos a concretização constitucional do segredo de justiça, é deixada ao legislador, cabendo-lhe a este efectuar um “ad hoc balancing” das apontadas finalidades subjacentes a esta garantia constitucional.
São estes interesses conflituantes que devem ter uma concordância prática legalmente proporcional, que segundo a jurisprudência do Tribunal Constitucional deve-se aferir mediante três dimensões – cfr. Ac. n.º 634/93; 187/01.
Uma delas é a da adequação, em que a restrição de um direito ou garantia constitucional, designadamente de direitos, liberdades e garantias, apenas devem suceder quando se revelarem um meio adequado para a prossecução dos fins visados, através da salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos.
Outra é da exigibilidade, em que as medidas restritivas têm de ser exigidas para alcançar os fins em vista, por o legislador não dispor de outros meios menos restritivos para alcançar o mesmo desiderato.
Por ultimo, temos a da justa medida, em que não poderão adoptar-se medidas excessivas, desproporcionadas para alcançar os fins pretendidos.
Nesta concretização o legislador ordinário tem sempre uma margem de manobra, que o Tribunal Constitucional tem apelidado de “prerrogativa de avaliação” que é naturalmente limitada por este princípio da proporcionalidade – cfr. Ac. 159/07.
Assim e sem se discutir se a opção legislativa foi a mais correcta sob o ponto de vista de política processual penal, não vemos como a validação judicial pelo juiz de instrução, que tem aqui uma função de assegurar os direitos liberdades e garantias, colida com as exigências da preservação do segredo de justiça e a verificação das suas finalidades, que, como vimos, são multifacetadas.
É que este controlo jurisdicional, estabelecido no art. 86, n.º 3, parte final, do decretamento do segredo de justiça por parte do Ministério Público, não afecta o núcleo duro do próprio segredo de justiça, porquanto o legislador fixou “os interesses da investigação” ou “os direitos dos sujeitos processuais”, como a justificação legal para a exclusão da publicidade.
Tais finalidades, que estão subjacentes ao segredo de justiça, continuam a ser preservadas, podendo o Ministério Público decretá-las discricionariamente, tendo no entanto que sujeitá-las ao escrutínio de validação do juiz das liberdades e garantias, na medida em que estão também em causa estas dimensões no âmbito de tal garantia constitucional.
Por outro lado, esta validação judicial do segredo de justiça não afecta, como será bom de ver, a estrutura acusatória do processo penal, porquanto a fase de investigação processual a que corresponde o inquérito, continua a diferenciar-se do julgamento.
Também e por último, este mesmo controlo judicial do decretamento do segredo de justiça, não colide minimamente com a plenitude do exercício da acção penal por parte do Ministério Público, porquanto este continua a ter a direcção geral e concreta do inquérito.
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A questão agora em apreço, ultrapassada a apontada inconstitucionalidade, relaciona-se com a verificação ou não, no caso em apreço, dos pressupostos legais para a validação do decretamento do segredo de justiça.
Esta Relação, já se pronunciou sobre esta matéria, através dos Ac. de 2008/Mai./07, 2008/Mai./28, 2008/Jun./06 e 2008/Jun./11, todos eles acessíveis em www.dgsi.pt, aos quais aderimos na sua fundamentação e que pelas razões já anteriormente expostas, não vemos razões para divergir.
Assim, entendemos que a aplicação do segredo de justiça é uma excepção à regra da publicidade, afirmada no n.º 1 do art. 86º do CPP, que representa a compressão de outros interesses, como é o caso dos direitos de defesa do arguido.
Deste modo e em ordem a melhor garantir a protecção desses direitos, a lei exige a concordância do juiz de instrução sobre a aplicação do segredo de justiça, na fase do inquérito.
Aliás, no n.º 3 do art. 86º, os interesses da investigação, como fundamento da aplicação do segredo de justiça, estão ao mesmo nível dos direitos dos sujeitos processuais, pelo que não cabe apenas ao Ministério Público decidir o que convém à protecção destes direitos.
Em suma e inexistindo quaisquer crimes de catálogo em que se imponha a obrigatoriedade legal de sujeição do inquérito a segredo de justiça, o decretamento deste, por parte do Ministério Público, deve ser devidamente concretizado em função dos “interesses da investigação” ou “os direitos dos sujeitos processuais”, de modo à sua posterior validação pelo juiz de instrução.
No caso em apreço, a determinação do segredo de justiça por parte do Ministério Público, partiu essencialmente da Directiva de 2008/Jan./09 do Sr. Procurador-Geral da República, da natureza do crime indiciado, que é um crime de roubo, e do mesmo ser catalogado como sendo de criminalidade violenta, sem qualquer ponderação em concreto da necessidade de exclusão da publicidade do processo, pelo que o despacho recorrido bem andou em indeferir a requerida validação judicial.
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III.- DECISÃO.
Nos termos e fundamentos expostos, nega-se provimento ao presente recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.

Não é devida tributação.

Notifique.

Porto, 24 de Setembro de 2008
Joaquim Arménio Correia Gomes
Manuel Jorge França Moreira

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[1] Doravante são deste diploma os artigos a que se fizer referência sem indicação expressa da sua origem.
[2] Também acessível, assim como todos os outros aqui citados deste Tribunal, em www.tribunalconstitucional.pt.
[3] Tal normativo foi traduzido para inglês, do seguinte modo: Section 147. [Inspection of the Files]
(1) Defense counsel shall be entitled to inspect those files which are available to the court, those which would have to be submitted to the court if charges have been preferred, and to inspect officially impounded pieces of evidence.
(2) If the termination of the investigations has not yet been noted in the file, defense counsel may be refused inspection of the files or of individual documents in the files, as well as the inspection of officially impounded pieces of evidence, if this may endanger the purpose of the investigation.
(3) At no stage of the proceedings may defense counsel be refused inspection of records concerning the examination of the accused or concerning such judicial acts of investigation to which defense counsel has been or should have been admitted, nor may he be refused inspection of expert opinions.
(4) Upon application, defense counsel may be permitted to take the files, with the exception of pieces of evidence, to his office or to his private premises for inspection, unless there are significant reasons to the contrary. The decision shall not be contestable.
(5) Regarding permission to inspect the files, the public prosecution office shall decide during the preparatory proceedings; in other cases, the judge presiding over the court seized of the case shall be competent to decide.
(6) If the reason for refusing the inspection of the files has not already ceased to exist, the public prosecution office shall revoke the order no later than upon completion of the investigation. Defense counsel shall be notified as soon as the right to inspect the files exists again without restriction.
[4] Relatados, pela ordem indicada, pelos Des. Manuel Braz, Maria Elisa Marques, José Carreto e Luís Gominho.