Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0720398
Nº Convencional: JTRP00040109
Relator: ANABELA DIAS DA SILVA
Descritores: ARBITRAMENTO DE REPARAÇÃO PROVISÓRIA
PROVIDÊNCIA CAUTELAR
SUSPENSÃO
Nº do Documento: RP200703060720398
Data do Acordão: 03/06/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 398 - FLS 16.
Área Temática: .
Sumário: Deferida a providência cautelar de arbitramento de reparação provisória a vítima de acidente de viação, o facto de posteriormente a acção ter sido em 1.ª instância julgada improcedente, não permite que o cumprimento da renda mensal seja suspenso.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 398/07-2
Agravo
Tribunal Judicial de Penafiel - .º juízo - proc. …-A/2002
Recorrente – Fundo de Garantia Automóvel
Recorridos – B………. e outra
Relator – Anabela Dias da Silva
Adjuntos – Desemb. Lemos Jorge
Desemb. Antas de Barros

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I – Nos presentes autos de procedimento cautelar de arbitramento de reparação provisória que B………., por si e em representação da sua filha menor, C………., intentou contra D………., SA, E………. e Fundo de Garantia Automóvel, pedindo a condenação dos requeridos a pagar-lhes, sob a forma de renda mensal, a quantia de 650,00 €, até trânsito em julgado da sentença a proferir na acção de que este é um apenso.
Alegaram para tanto e em síntese as requerentes que em consequência de acidente de viação causado por culpa única e exclusiva da 2ª requerida, (alegadamente segurada da 1ª requerida, mas que por esta ter vindo invocar a inexistência do referido contrato de seguro, houve que demandar, também e subsidiariamente, o Fundo de Garantia Automóvel e a alegada responsável civil) faleceu F………., marido e pai das requerentes, o qual era, com o rendimento do seu trabalho, o único sustento da família. Em consequência da morte daquele, as requerente vivem uma situação dramática de grave carência económica, dependente do auxílio de familiares e amigos.
Tendo os requeridos deduzido oposição ao pedido formulado e produzida a prova apresentada, foi decidido em 10 de Dezembro de 2002, por despacho devidamente transitado em julgado, por ter sido confirmado por Acórdão desta Relação, absolver a requerida D………., SA, do pedido formulado e condenar solidariamente o Fundo de Garantia Automóvel e E………. a pagar, provisoriamente, às requerentes o montante de 650,00 € mensais a imputar na eventual indemnização a fixar na acção principal.
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Por requerimento de 11 de Outubro de 2006, veio o Fundo de Garantia Automóvel requerer o decretamento da suspensão do pagamento das rendas às requerentes até trânsito em julgado da decisão a proferir na acção de que este é um apenso.
Alega para tanto que a 7 de Junho de 2006 foi proferida, na acção principal, sentença que a julgou improcedente por não provada, absolvendo os réus, aqui requeridos, dos pedidos contra si formulados pela autora, aqui requerentes. Mais se decidiu condenar as aí autoras a restituírem ao Fundo de Garantia Automóvel as quantias recebidas a título de rendas mensais fixadas no presente procedimento cautelar.
Tal sentença por ter sido objecto de recurso ainda não transitou em julgado.
Considerando a desfavorável situação económica das requerentes, existindo fortes possibilidades de a acção principal vir a improceder, receia o requerido que as requerentes não possam vir a dar cumprimento ao estatuído na decisão (devolução das quantias prestadas) dada o seu elevado montante.
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As requerentes nada disseram nos autos sobre tal pedido do Fundo de Garantia Automóvel.
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Por fim proferiu-se despacho que indeferiu a requerida suspensão da prestação da renda mensal fixada, peticionada pelo Fundo de Garantia Automóvel, por considerar que a mesma é legalmente inadmissível, nos termos e ao abrigo do disposto no artº 389º nº1 al. c) “ex vi” do artº 392º nº1, ambos do C.P.Civil.
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Inconformado com o assim decidido, veio o Fundo de Garantia Automóvel intentar o presente recurso de agravo onde pede a revogação do respectivo despacho, e tendo junto aos autos as suas alegações, nelas formula as seguintes conclusões:
1ª - O presente recurso visa alterar a decisão judicial que indeferiu o pedido de decretamento da suspensão das rendas às requerentes porquanto o Tribunal recorrido entendeu que como a decisão de absolvição da requerente ainda não tinha transitado em julgado, ou seja, não se tornou assente e definitiva, podendo ser modificada e decidida em contrário, sendo que o legislador preceituou apenas a caducidade da providência após o trânsito em julgado da decisão na acção principal (cfr.artigo 389º nº1 al, c) do Código do Processo Civil). 2ª - Não sufragamos este entendimento. Cremos que poderá o julgador, contudo, proceder ao reajustamento da medida cautelar às novas circunstâncias, a solicitação do requerido para a alteração ou cessação da prestação já fixada, nos termos do nº 2 do artigo 401º ex vi artigo 404º do Código do Processo Civil.
3ª - Ora, a partir da prolação da sentença absolutória seja solicitada a alteração ou cessação da prestação provisória, desde que seja de supor a redução acentuada da probabilidade de confirmação do direito cautelarmente assegurado.
4ª - Um dos pressupostos da composição provisória das situações controvertidas em juízo é o de que, para o decretamento da providência cautelar, se exige apenas a prova de que a situação jurídica alegada é provável ou verosímil, pelo que é suficiente a aparência desse direito, ou seja, o decretamento da providência basta-se com um fumus boni juris.
5ª - Ora, porque por sentença datada de 7.06.2006, mas ainda não transitada em julgado foi proferida decisão na acção principal, na qual se julgou a acção improcedente, por não provada, absolvendo-se as RR dos pedidos contra si formulados.
6ª - Além disso, foram as requerentes condenadas a restituírem ao ora requerido (e a E………., também requerida), as quantias recebidas a título de rendas mensais fixas no âmbito do procedimento cautelar ora em apreciação (cfr. fls. 557 e 574 dos autos principais).
7ª - Mais do que um fumus boni juris estaremos, nesse caso, já perante um verdadeiro jus declarado, o qual não poderá deixar de ser considerado um mais, face ao direito invocado por summaria cognitio, como é próprio das providências cautelares.
8ª - Como na acção principal foi proferida decisão desfavorável ao requerente, ainda não transitada em julgado, este facto é, no entanto, revelador da falta de um dos requisitos substantivos: a verosimilhança acerca da existência do direito.
9ª - Ora, vistas as características de instrumentalidade e de dependência do procedimento cautelar face à acção principal (artº 383º C.P.Civil), se na acção principal já tiver sido proferida uma decisão desfavorável ao autor, parece-nos que desde logo falece um dos requisitos substantivos da providência: a verosimilhança acerca da existência do direito, que, ao abrigo das citadas disposições legais, pode ser suscitada.
10ª - Entendemos que deixou de haver a aparência do direito, ou seja a verosimilhança acerca da existência do direito, pelo que deveria ter sido levantada a providencia.
11ª - Assim, sendo, deveria o Tribunal recorrido ter proferido decisão no sentido da suspensão da providência cautelar de arbitramento de reparação provisória.
12ª - Ao não as interpretar da forma acima assinalada, o Tribunal a quo violou, entre outros, os artigos 383º, 384º, 401º e 404º todos do CPC.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Finalmente, o Mmº juiz “a quo” manteve a sua decisão.

II – Com interesse para a presente decisão, estão assentes nos autos os seguintes factos:
1. Por decisão devidamente transitada em julgado, proferida nos autos, em 10 de Dezembro de 2002, foram, o Fundo de Garantia Automóvel e E………., condenados, solidariamente, a pagar provisoriamente, às requerentes, B………. e C………., o montante de 650,00 € mensais, a imputar na eventual indemnização a fixar na acção principal
2. Resultou provado em sede de apreciação e decisão da providência cautelar requerida que, em consequência da morte de F………., marido e pai das autoras, estas se viram privadas dos rendimentos que este auferia do seu trabalho e que, com o mesmos, sustentava o agregado familiar, “vivendo, actualmente, uma situação de grande carência que põem em causa o sustento da requerente B………. e da filha menor de 4 anos, que têm vivido do auxílio de amigos e familiares” (cfr. decisão de fls. 106 a 116 dos presentes autos de providência cautelar, 10º facto provado e fundamentação da mesma).
3. Por sentença datada de 7.06.2006, mas ainda não transitada em julgado foi proferida decisão na acção principal, na qual se julgou a acção improcedente, por não provada, absolvendo-se os réus (D………., SA, E.......... e Fundo de Garantia Automóvel) dos pedidos contra si formulados. Além disso, foram as aí autoras (aqui requerentes) condenadas a restituírem ao ora requerido (e a E………., também requerida) as quantias recebidas a título de rendas mensais fixas no âmbito do procedimento cautelar ora em apreciação (cfr. fls. 557 a 574).
4. A decisão em causa foi objecto de recurso para este Tribunal da Relação, estando a aguardar a respectiva decisão. (cfr. fls. 587).
5. As requerentes litigam com benefício de apoio judiciário (cfr. fls. 23), pois são carecidas de meios financeiros que lhes permitam custear o processo.

III – Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
O âmbito do recurso é definido pelas conclusões do recorrente, cfr. artºs 684º nº 3 e 690º nº 1, ambos do C.P.Civil, pelo que é questão a apreciar nos autos:
- Saber se a decisão que fixou o pagamento de renda mensal no âmbito de procedimento cautelar de arbitramento de reparação provisória é passível de suspensão em consequência da prolação de sentença absolutória proferida na acção, mas ainda não transitada em julgado?
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O arbitramento de reparação provisória constitui um procedimento cautelar (nominado) e inovatório no actual direito processual civil e tem por objectivo, como decorre do preâmbulo do Dec. Lei nº 329-A/95, de 12/12, «... reparar provisoriamente o dano decorrente de morte ou lesão corporal como também aqueles em que a pretensão indemnizatória se funde em dano susceptível de por seriamente em causa o sustento ou habitação do lesado», estando o seu regime jurídico – requisitos e regras processuais – contido nos artºs 403º a 405º do C.P.Civil.
Dispõe o artº 403º do C.P.Civil que:
1. Como dependência da acção de indemnização fundada em morte ou lesão corporal, podem os lesados, bem como os titulares do direito a que se refere o nº 3 do artigo 495º do Código Civil, requerer o arbitramento de quantia certa, sob a forma de renda mensal, como reparação provisória do dano.
2. O juiz deferirá a providência requerida, desde que se verifique uma situação de necessidade em consequência dos danos sofridos e esteja indiciada a existência de obrigação de indemnizar a cargo do requerido.
3. A liquidação provisória, a imputar na liquidação definitiva do dano, será fixada equitativamente pelo tribunal.
4. O disposto nos números anteriores é também aplicável aos casos em que a pretensão indemnizatória se funde em dano susceptível de pôr seriamente em causa o sustento ou habitação do lesado.
Decorre assim de tal preceito legal, designadamente do seu nº 2, que o procedimento de arbitramento de reparação provisória tem como pressupostos específicos – 1.uma situação de necessidade; 2. que essa situação seja consequência dos danos sofridos, ou nexo de causalidade e 3. a indiciação de existência da obrigação de indemnizar a cargo do requerido.
Trata-se de uma providência antecipatória, ou seja, limita-se a antecipar no tempo os efeitos da provável decisão a proferir no processo principal.
Vendo a decisão recorrida, desde logo se conclui que na mesma apenas se considerou como requisitos de tal procedimento a existência de dois deles, já que nela se escreveu que: “impõe a lei, assim, que se alegue e comprove, sumária e indiciariamente, a necessidade económica, carência de meios, em consequência dos danos sofridos, e a existência de nexo de causalidade entre tais danos e tal necessidade, em que se encontra por causa do acidente ...”.
Mas, na verdade, e como escreve Cura Mariano in “A providência cautelar de arbitramento de reparação provisória”, pág. 57, “O primeiro requisito de utilização da providência de arbitramento de reparação provisória é, pois, o da existência de um direito de indemnização, já judicialmente reclamado ou a reclamar, pela produção de um dos referidos danos”.
Entendendo-se ainda que a prova da obrigação de indemnizar se basta com um juízo de mera probabilidade (fumus boni iuris), contrariamente ao que sucede com a prova da situação de necessidade que deve fundar-se numa profunda convicção do julgador (summaria cognitio).
No caso dos autos estamos perante um procedimento cautelar de reparação provisória do dano morte do marido e pai das requerentes, destinado a culmatar, provisoriamente, a situação de necessidade em que se encontram por se terem visto privadas, em consequência daquela morte, dos alimentos que lhes eram prestados pelo falecido, ou seja, do sustento que aquele lhes proporcionava.
Entendemos que é aplicável ao procedimento cautelar de arbitramento de reparação provisória a possibilidade da alteração e a possibilidade de cessação da providência, nos termos do artº 410º nº1 “ex vi” do artº 404º nº1, ambos do C.P.Civil.
Diz o artº 404º nº1 do C.P.Civil que é aplicável ao processamento da providência referida no artigo anterior o disposto acerca dos alimentos provisórios, com as necessárias adaptações. E por seu turno, dispõe-se no artº 401º nº 2 do mesmo diploma legal que se houver fundamentos para alterar ou fazer cessar a prestação fixada, será o pedido deduzido no mesmo processo, observando-se os termos prescritos nos artigos anteriores.
Esta providência cautelar – fixação de uma renda mensal – visa acudir a uma situação de necessidade económica do requente. Pelo que, dúvidas não restam de que a alteração da mesma deve ocorrer sempre que se altere essa situação de necessidade, e mesmo deverá ser declarada cessada, sem essa necessidade deixar, pura e simplesmente, de existir.
Mas como é sabido são, entre outras, características dos procedimentos cautelares: a dependência, já que as providências cautelares pressupõem sempre um processo principal onde se procura exercer o direito acautelado, já instaurado ou a instaurar, cfr. artº 383º nº1 do C.P.Civil, e a provisoriedade, ou seja, as providências cautelares, que presupondo a instauração de uma acção principal, ficam esgotadas com o trânsito em julgado da decisão nela proferida.
Finalmente, entende-se que porque a providência decretada não dirime de forma definitiva o conflito entre as partes, já que o tribunal se limita a decretar medidas que acautelem a eficácia da futura decisão, a força essencial do caso julgado da sua decisão, que consiste na sua imodificabilidade, fica arredada no procedimento cautelar de alimentos provisórios e no de arbitramento de reparação provisória, em face do disposto nos artºs 401º nº2 e 404º nº1, ambos do C.P.Civil, já que as respectivas decisões são passíveis de serem alteradas e mesmo declaradas cessadas, não só por ter ocorrido uma alteração significativa das circunstâncias de facto que determinaram o seu decretamento.
Ora, atendendo às citadas características de dependência e de provisoriedade das providências cautelares e ainda à particularidade de que se reveste a força do caso julgado da decisão da providência em apreço nos autos, julgamos que alterando-se significativamente, as circunstâncias de facto que determinaram os seu decretamento, deve, nos termos do artº 401º nº2 “ex vi” do artrº 604º nº1, ambos do C.P.Civil, alterar-se a providência decretada.
Assim há que apurar quais são as circunstâncias de facto que podem sofrer alteração relevante a ponto de, essa alteração, determinar a possibilidade de alteração ou mesmos de cessação da providência decretada.
No caso da providência cautelar em apreço, essa circunstância de facto é tão só a situação de necessidade do requerente em consequência dos danos sofridos. A indiciada existência da obrigação de indemnização por parte do requerido, resultante de um juízo de mera probabilidade que, em parte, funda o decretamento da providência de arbitramento provisória de reparação, mantêm-se inalterada, não obstante ter sido proferida sentença absolutória na acção principal, não transitada em julgado e pendente de recurso. Na verdade, trata-se de um juízo indiciário sobre a existência da obrigação de indemnização e não de um juízo sobre uma circunstância de facto ou sobre um facto. Aquele juízo indiciário só deixará de o ser com o trânsito em julgado da decisão da acção principal, enquanto que a referida circunstância de facto poderá ser alterada a qualquer momento dependendo apenas da situação pessoal e económica do requerente.
No caso dos autos, está assente que por sentença de 7.06.2006, ainda não transitada em julgado, proferida na acção principal de que a presente providência é um apenso, foi a mesma acção julgada improcedente, por não provada e, consequentemente foram os réus D………., SA, E………. e Fundo de Garantia Automóvel, absolvidos dos pedidos contra si formulados pelas, ora, requerentes.
A sentença absolutória, não transitada em julgado, porque pendente de recurso, dos aqui requeridos nos presentes autos, não altera a indiciação de existência da obrigação de indemnizar a cargo dos requeridos, que assim se mantém, indiciada, desde que apreciada em sede da decisão que decretou a providência e até decisão ao trânsito em julgado da decisão que venha a julgar definitivamente a respectiva acção.
O requerido Fundo de Garantia Automóvel peticiona a a suspensão da providência decretada até ao trânsito em julgado da sentença proferida nos autos principais entendendo que com a prolação da mesma e não obstante não ter transitado em julgado por estar pendente de recurso se alterou um dos pressupostos que deram lugar ao decretamento da presente providência e ainda por, dada a situação económica das requerentes, temer o agravamento da sua situação de, eventualmente, devedoras, caso a sentença venha a ser confirmada pelo Tribunal de recurso.
Não obstante as alegações do recorrente, cremos que, pelo que acima se deixou exposto, se deverá confirmar o despacho recorrido, já que a prolação de sentença absolutória em sede de acção principal, não transitada em julgado, por pendente de recurso, não belisca o juízo de mera probabilidade efectuado aquando do decretamento da presente providência, da existência da obrigação de indemnizar por parte dos requeridos, incluindo, o ora recorrente, o qual apenas poderá deixar de o ser por decisão definitiva, ou seja, transitada em julgado, pelo que até lá tal juízo indiciário mantém-se inalterado.
Improcedem, pois, todas as conclusões do recurso do agravante.

IV - Pelo exposto acordam o juízes que compõem esta secção cível em negar provimento ao agravo e, consequentemente, confirmar o despacho recorrido.
Sem custas.
Porto, 6 de Março de 2007
Anabela Dias da Silva
Albino de Lemos Jorge
António Luís Caldas Antas de Barros