Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0651113
Nº Convencional: JTRP00039007
Relator: CAIMOTO JÁCOME
Descritores: INSOLVÊNCIA
NORMA INOVADORA
EXONERAÇÃO
PASSIVO
PRAZO
NÃO RETROACTIVIDADE
INDEFERIMENTO LIMINAR
Nº do Documento: RP200603270651113
Data do Acordão: 03/27/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: LIVRO 256 - FLS. 221.
Área Temática: .
Sumário: I - O CIRE – que entrou em vigor em 15.9.2004 – estabeleceu de modo inovador a figura da exoneração do passivo restante de que pode, em certas circunstâncias, beneficiar o devedor insolvente (pessoa singular).
II - Face ao seu carácter inovador o prazo de seis meses, previsto no art. 238º, nº1, d) daquele diploma, tem de decorrer, integralmente, desde do início de vigência do diploma que rege o actual regime jurídico da insolvência, não tendo eficácia retroactiva.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

1- RELATÓRIO

B………., S.A., com sede no Funchal, veio, em 23/12/2004, intentar o presente processo especial de insolvência contra C………. e mulher D………., residentes na Rua ………., …, ………., pedindo a declaração de insolvência dos requeridos.
Cumprido o formalismo legal previsto no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), aprovado pelo DL nº 53/2004, de 18/03, com a redacção dada pelo DL 200/2004, de 18/08, foi proferida decisão (fls. 116-118) a declarar em estado de insolvência os requeridos C………. e mulher D………. .
Posteriormente, aquando da realização da assembleia de credores, veio (fls. 234-235) a proferir-se a seguinte decisão:
“Face à constatação constante do relatório apresentado pelo Sr. Administrador da Insolvência, a qual não mereceu oposição da Assemb1eia de Credores, tendo em conta o disposto nos art.ºs 230º nº1 d) e 232° do CIRE, não nos resta senão determinar o encerramento do processo por manifesta insuficiência da massa insolvente para satisfação das custas do processo e restantes dividas daquela massa, o que se decide com todos os legais efeitos, designadamente os previstos no art.º 233º do CIRE”.
**
No decurso do processo, mas antes da decisão que declarou em estado de insolvência os requeridos, estes vieram, a fls. 110-113, requerer a exoneração do passivo restante, invocando o estatuído no artº 235º e seguintes, do CIRE.
Na assembleia de apreciação do relatório foi dada aos credores e ao Sr. Administrador da insolvência a possibilidade de se pronunciarem sobre o referido requerimento.
Os credores "E………., S.A.", "F………., S.A." e "G………., S.A.", que representavam 57,41% dos votos, pronunciaram-se contra a concessão da faculdade requerida pelos insolventes.
Também o Sr. Administrador se pronunciou em igual sentido. Os restantes credores presentes, abstiveram-se de manifestar a sua posição.
**

Por despacho de fls. 275-276, o Sr. Juiz ponderou que:
- Os bens apreendidos pelo Sr. Administrador são bens móveis, de reduzidíssimo valor;
- O valor das dívidas dos insolventes é bastante considerável, sobretudo, se considerarmos que dizem respeito a pessoas singulares;
- Além disso, algumas dessas dívidas foram contraídas, pelo menos, em 2002 e, muitas outras em 2003 e 2004;
- Já nessa altura, de acordo com os documentos disponíveis no processo, os insolventes não tinham qualquer possibilidade de solver essas responsabilidades;
- Tinham, por isso, o dever de há muito se apresentarem à
falência/insolvência;
- Não podem, pois, face ao disposto no art° 238º, nº1, al. d), do CIRE, beneficiar da exoneração do passivo restante, tal como pretendem.
Em face do ponderado, decidiu indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelos insolventes.
**

Inconformados, os requeridos agravaram deste despacho de indeferimento liminar tendo, nas suas alegações, formulado as seguintes conclusões.
a) O despacho em crise ao indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante violou as normas contidas nos art. 12.º do C. Civil, ao dar efeito retroactivo à alínea d) do n.º 1 do 238.º do CIRE;
b) Não se demonstrou que os insolventes não preenchiam todos os pressupostos legais exigidos pelo CIRE para que se indefira liminarmente pedido de exoneração do passivo restante, nomeadamente, a não apresentação à insolvência no prazo de 6 meses;
c) Não se demonstrou que os credores sofreram qualquer prejuízo, e muito menos, causado pela suposta não apresentação em devido tempo à insolvência.
d) Não se demonstrou também que os insolventes sabiam ou não podiam ignorar sem culpa grave, que não existia qualquer perspectiva séria da melhoria da sua condição económica.

Não houve resposta às alegações.
**

O julgador a quo sustentou a decisão.
**

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

2- FUNDAMENTAÇÃO

2.1- OS FACTOS E O DIREITO APLICÁVEL

Os factos a atender são os descritos no relatório.
*
O objecto do recurso é balizado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - arts. 684º, nº 3, e 690º, nº 1 e 3, do C.P.Civil.
O Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) entrou em vigor em 15/09/2004 (ver arts. 12º e 13º, do DL nº 53/2004, de 18/03, e artº 3º, do DL 200/2004, de 18/08).
Nos arts. 2º, 3º e 18º, do CIRE, estatui-se, respectivamente, sobre os sujeitos passivos da declaração de insolvência (v.g. as pessoas singulares), a definição da situação de insolvência e o dever de apresentação à insolvência (no nº 2, do artº 18º, exceptuam-se do referido dever as pessoas singulares que não sejam titulares de uma empresa na data em que incorram em situação de insolvência).
Dispõe o art° 235°, do CIRE, que se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste.
Como referem L. A. Carvalho Fernandes e João Labareda (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, vol. II, p. 183 e segs.) “O Título que se inicia no art.º 235.° respeita, como a sua epígrafe logo esclarece, a «disposições específicas da insolvência de pessoas singulares», que não têm corres­pondência no CPEREF” (Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, aprovado pelo DL nº 132/93, de 23/04, cuja última redacção foi dada pelo DL nº 315/98, de 20/10).
“A exoneração de que se trata neste Capítulo, traduz-se na liberação definitiva do devedor quanto ao passivo que não seja integralmente pago no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento nas condições fixadas no incidente. Daí falar-se de passivo restante”.
Nas diversas alíneas do nº 1, do artº 238º, do CIRE, estabelecem-se os fundamentos que determinam o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante.
Na al. d) do nº 1, desse normativo, preceitua-se que o pedido de exoneração será indeferido liminarmente se “o devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica”.
No despacho recorrido considerou-se que sendo o valor das dívidas dos insolventes bastante considerável, que algumas dessas dívidas foram contraídas, pelo menos, em 2002, muitas outras, em 2003 e 2004, e, de acordo com os documentos disponíveis no processo, os insolventes não tinham qualquer possibilidade de solver essas responsabilidades, tinham, por isso, o dever de há muito se apresentarem à falência/insolvência. Concluiu-se no despacho que os requeridos não podiam, face ao disposto no art° 238º, nº 1, al. d), do CIRE, beneficiar da exoneração do passivo restante.
Como vimos, o CIRE entrou em vigor em 15/09/2004.
O estatuído no mencionado artº 238º não tem correspondência no anterior CPEREF.
Mesmo que a situação de insolvência se tenha verificado antes daquela data, não tinham os requeridos/insolventes qualquer obrigação de apresentação à insolvência/falência, uma vez que não existia, então, qualquer disposição legal a impor o dever de apresentação, não existindo, também, qualquer instituto jurídico, igual ou semelhante, à exoneração do passivo restante, de pessoa singular, regulado no artº 235º e seguintes do CIRE.
Tal como defendem os recorrentes, também a nosso ver, a contagem do prazo de seis meses previsto na al. d), do nº 1, do artº 238º, terá que iniciar-se em 15/09/2004 (artº 12º, do C. Civil), pelo que não se lhes pode imputar a não apresentação à insolvência no aludido prazo de seis meses.
Por outro lado, como sustentam os agravantes, também entendemos não estar demonstrado que os requeridos/insolventes sabiam, ou não podiam ignorar sem culpa grave, que não existia qualquer perspectiva séria da melhoria da sua condição económica.
Em suma, pensamos que a matéria de facto constante dos autos, não possibilita o indeferimento liminar com base no disposto no art° 238º, nº 1, al. d), do CIRE, não se justificando, desde logo, a recusa do pedido de exoneração do passivo restante.
Procedem, assim, as conclusões do recurso.

3- DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal em dar provimento ao agravo, revogando-se a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra a apreciar os pressupostos da concessão efectiva da requerida exoneração do passivo restante (artº 237º, do CIRE).
Sem custas (artº 2º, nº 1, al. g), do CCJ).

Porto, 27 de Março de 2006
Manuel José Caimoto Jácome
Carlos Alberto Macedo Domingues
José António Sousa Lameira