Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0740091
Nº Convencional: JTRP00040182
Relator: JOSÉ PIEDADE
Descritores: SIGILO BANCÁRIO
Nº do Documento: RP200703280740091
Data do Acordão: 03/28/2007
Votação: UNANIMIDADE COM 2 DEC VOT
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: INCIDENTE.
Decisão: INDEFERIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 259 - FLS 64.
Área Temática: .
Sumário: Se a entidade bancária, escudando-se no dever de sigilo, recusa fornecer informações atinentes a uma conta, como o nome do seu titular e o registo de movimentos, não tem cabimento o incidente de quebra de sigilo bancário, tendo o tribunal de 1ª instância competência para ordenar a apreensão de documentos que contenham essas informações
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência, os Juízes desta 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

O Sr. Juiz do .º Juízo TIC do Porto, invocando o disposto nos arts. 182º, nº 2 e 135º, nºs 2 e 3, do CPP, suscitou neste Tribunal da Relação, o incidente de quebra do sigilo bancário, em favor da B………., porque aquela entidade bancária, «invocando o dever de sigilo bancário, escusa-se a fornecer os elementos imprescindíveis e solicitados».
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Neste Tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto, emitiu parecer no sentido da quebra do sigilo bancário.
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Colhidos os Vistos, efectuada a Conferência, cumpre apreciar e decidir.
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Com interesse para a decisão a proferir, dos autos resulta o seguinte:
- No inquérito supra identificado, investiga-se a prática de factos susceptíveis de integrarem a prática de um crime de burla.
- Pelo MºPº, foi promovido que o Sr. Juiz de Instrução Criminal ordenasse à B………. o fornecimento das seguintes informações: «A identificação completa, contactos telefónicos e morada do titular, bem como extracto de movimentos da conta com o NIB …………………, onde conste a transferência efectuada a 20/12/2005, pelas 03h38», para que «na posse de tais dados se possa efectuar um interrogatório capaz ao denunciado C……….».
- Sob essa promoção, recaiu o seguinte Despacho:
«Compulsados os autos, apresenta-se relevante para a investigação, relativamente ao ilícito aqui participado (eventual crime de burla), proceder às diligências solicitadas na Douta promoção de fls 53, as quais se deferem, nos termos do disposto nos arts. 174º e segs, todos do CPP.
Contudo, e apesar do disposto no art. 181º do CPP, porque os elementos requeridos se reportam apenas a documentação e informações, solicite à respectiva Instituição Bancária, conforme o ali requerido e com referência ao mencionado a fls. 51/52.
Advirta, porém, que, se o solicitado merecer recusa por parte daquela Instituição, proceder-se-á de acordo com o disposto nos nºs 1, 2 e 3 do art. 135º e para efeitos do 182º, ambos do CPP.»
- Pela B………. foi enviado ofício com o seguinte teor, dirigido «à Exma. Srª. Juiz de Direito»:
«Os elementos solicitados estão sujeitos a segredo bancário, nos termos do art. 78º, do Regime Geral das instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo DL. nº 298/92, de 31/12.
Não se verificando, face aos dados fornecidos, nenhuma das excepções estabelecidas no art. 79º, do mencionado Regime, designadamente nas alíneas d) e e) do seu nº 2, não podemos fornecer os elementos solicitados, sob pena de violarmos o dever de segredo a que estamos legalmente vinculados.»
- O Despacho suscitador do incidente tem o seguinte teor:
«Conforme resulta do nosso Despacho de fls. 55, com os fundamentos ali constantes e nos termos das disposições legais mencionadas, foram deferidas as diligências requeridas a fls. 51/52.
Todavia, não obstante o teor do respectivo Despacho, conforme ofício de fls. 60, a respectiva Entidade Bancária, invocando o dever de sigilo bancário, escusa-se fornecer os elementos imprescindíveis e solicitados.
Assim sendo, necessário se torna recorrer ao incidente prescrito no nº 3 do art. 135º do CPP, a fim de ser obtida a necessária informação.
Nessa conformidade, decide-se suscitar a intervenção do Venerando Tribunal da Relação do Porto, a fim de ser decidido o incidente de quebra de sigilo bancário, nos termos conjugados dos arts. 182º, nº 2 e 135º, nºs 2 e 3, ambos do CPP.»
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Do procedimento sintetizado conclui-se que, estando-se numa fase inicial do Inquérito, a entidade encarregue de o dirigir – o MºPº solicitou ao Juiz de Instrução Criminal que ordenasse à entidade bancária o fornecimento dos seguintes elementos: a identificação completa, contactos telefónicos e morada do titular, bem como extracto de movimentos de uma conta. Tinha-se em vista a aquisição de elementos que possibilitassem um interrogatório capaz ao suspeito.
A entidade bancária recusou, por simples ofício. Em face dessa recusa, a autoridade judiciária desautorizada considerou necessário recorrer ao incidente previsto no art. 135º, nº 3, do CPP, suscitando a intervenção deste Tribunal.
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Esta é uma prática bancária constante, como temos vindo a verificar.
É sabido que a decisão deste Tribunal, no incidente suscitado, é susceptível de recurso para o órgão situado no topo da hierarquia dos Tribunais Judiciais – o Supremo Tribunal de Justiça.
Perante essa prática bancária, vem-se a constatar a contínua solicitação, pela 1ª Instância, da intervenção deste Tribunal, com o consequente emprego de meios humanos e monetários que são limitados, e o prejuízo que daí deriva para todas as outras superiores tarefas atribuídas a este Tribunal (para além do prejuízo para a acção da Justiça no caso concreto, que deriva da paralisação da investigação, por falta dos elementos que a entidade bancária se recusa a fornecer).
Este procedimento implica – para além do mais – uma aceitação pela autoridade judicial encarregue de dirigir o Inquérito – o MºPº, e pelo Tribunal de 1ª Instância (órgão de soberania a quem solicitou a emissão da ordem), de uma autêntica capitis deminutio para fazer respeitar as suas competências (e, no que ao segundo respeita, a ordem que proferiu).
Perante esta situação, mostra-se adequado colocar a pergunta: pode um simples ofício de uma entidade bancária gerar uma actividade jurisdicional de tal volume e importância, claramente desproporcionada à graduação dos interesses sob tutela e acarretando um uso tão irracional dos meios judiciários?
Não se conhece igual procedimento no Direito Comparado.
Tanto mais que esta Instância de Recurso, considerando preponderante o interesse da aplicação da Justiça, decide sistematicamente pela quebra do sigilo bancário.
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O agente da entidade bancária invoca a sua sujeição a segredo bancário, para não cumprir a ordem que lhe foi dada.
A autoridade judiciária desobedecida, sem mais, considera necessário suscitar a intervenção deste Tribunal Superior, para que decida “o incidente de quebra de segredo bancário”.
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Analise-se, então, o regime estabelecido no nosso Ordenamento Jurídico – a nível substantivo e adjectivo –, a respeito do sigilo profissional, e mais especificamente, acerca do segredo bancário, tendo em vista a ponderação se a entidade bancária se encontra sujeita a segredo profissional e se o Tribunal de 1ª Instância tem de suscitar a intervenção deste Tribunal, situado na escala hierárquica imediatamente superior.
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Começando pelo Direito substantivo.
Antes de mais, indo à etimologia do conceito: a palavra segredo deriva do Latim “secretum” (lugar retirado, discrição, mistério); na sua evolução etimológica significa aquilo que se quer cuidadosamente ocultar, o que não está divulgado, abrangendo por isso acontecimentos que não se querem do conhecimento de outras pessoas.
Segredo é normalmente compreendido como uma palavra de sentido contrário ao de informação, ao de conhecimento público.
Segredo profissional equivale, pois, a discrição profissional. Tem como referência mais antiga, ao nível dos textos escritos, a Antiguidade Clássica e o célebre Juramento de Hipócrates (não é despropositado enunciá-lo, visto que é notavelmente evocativo): «Juro por Apolo, médico, por Esculápio, e os deuses e as deusas, tornando-os como testemunhas de tudo o que veja ou ouça em sociedade, no exercício da minha profissão ou fora dela, calarei o que nunca tenha necessidade de ser divulgado, tomando, nessa circunstância, a discrição como um dever.»
No nosso Ordenamento Jurídico, o segredo profissional obteve tutela adjectiva na Reforma Judiciária de 1837 (art. 114º) em relação a 3 categorias profissionais: médicos, advogados e confessores.
Porém, a punição da revelação do segredo apenas teve tutela penal com o CP de 1852 (art. 461º). Só com o CPP de 1929 foram alargadas as categorias profissionais com a possibilidade de invocarem segredo aos procuradores, notários e parteiras.
A extensão do segredo aos agentes das entidades bancárias (e também aos jornalistas) é recente, tendo surgido apenas com o actual Código de Processo Penal.
No entanto – e essa é uma realidade inquestionável – são as entidades bancárias quem mais faz uso dessa invocação, hoje em dia.
O art. 78º do DL 298/92, de 31 de Dezembro, que contém o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, delimita o objecto e conteúdo do dever de discrição bancária (terminologia que, como decorre da interpretação histórica sintetizada, é mais precisa), pela seguinte forma:
Tem por objecto os “factos ou elementos respeitantes à vida da Instituição de Crédito ou às relações desta com os seus clientes, cujo conhecimento (aos agentes da Instituição Bancária) lhes advenha, exclusivamente do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços”, nomeadamente, “os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos, e outras operações bancárias (art. 78º do Regime Geral).
Tem por conteúdo a revelação (publicamente ou perante um terceiro), ou a utilização (implica um aproveitamento do segredo pela pessoa que o viola) desses factos ou elementos.
A Constituição referencia a sua razão de ser:
Tem como interesse protegido, primordialmente, o direito de personalidade, à reserva da intimidade da vida privada e familiar dos clientes, tutelado constitucionalmente como Direito Fundamental (art. 26º, nºs 1 e 2), secundariamente, o interesse da confiança do público no sistema bancário (aflorado no art. 101º, da CRP) e, residualmente, o direito da Instituição financeira ao seu bom-nome e reputação (art. 12º e 26º, nº 1 da CRP).
Daqui decorre que o que está consagrado Constitucionalmente – de forma directa e expressa – é o direito à intimidade da vida privada; não a garantia do sigilo bancário. Este é acessório do direito à intimidade da vida privada.
O dever de discrição bancária, com este objecto, conteúdo e razão de ser, tem tutela penal nos arts. 195º e 196º do CP. Assinale-se, porém, que essa tutela penal não é específica, tem lugar conjuntamente com a tutela de todos os outros interesses protegidos pelo dever de segredo profissional (religiosos, médicos, advogados, jornalistas, etc.).
O art. 195º (violação de segredo) pune “quem, sem consentimento, revelar segredo alheio, de que tenha tomado conhecimento, em razão do seu estado, oficio, emprego, profissão ou arte”.
O art. 196º (aproveitamento indevido de segredo) pune quem “sem consentimento, se aproveitar de segredo relativo à actividade comercial, industrial, profissional ou artística alheia, de que tenha tomado conhecimento em razão do seu estado, oficio, emprego, profissão ou arte”.
Decorre desta genérica tutela penal que excluem o dever de discrição bancária, desde logo, todas as causa de exclusão da ilicitude previstas na Lei Penal Geral, nomeadamente nos arts. 31º a 34º, 36º, 38º e 39º do CP.
Entre as causas de justificação da ilicitude incluem-se as do art. 31º, nºs 1 e 2, al. c) do CP (a quebra do sigilo bancário não será punível quando a sua ilicitude for excluída pelo cumprimento de um dever imposto por Lei, ou por ordem legítima da autoridade.)
Para além destas causas gerais de exclusão da ilicitude, outras específicas se estabelecem no Regime Especial aplicável.
Concretizando, no art. 79º, do DL. 298/92, estabelecem-se excepções ao dever de segredo bancário.
Entre elas, na al. d) do seu nº 2, permite-se a revelação dos factos e elementos cobertos pelo dever de segredo “nos termos previstos na Lei Penal e de Processo Penal” (esta excepção justifica-se pelo interesse Público Colectivo na investigação e punição dos crimes).
Este regime conjugado de normas implica que não pode existir sigilo bancário, que protege, primordialmente, o interesse do cliente, onde não houver direito à intimidade, ou direito à vida privada, por o bem jurídico tutelado ceder perante outros interesses prevalecentes, como o direito Colectivo à segurança e liberdade (e é sabido que sem segurança, não pode haver liberdade).
Por outro lado, outros interesses privados, de igual nível, como o direito à integridade física e moral, podem com ele colidir e prevalecer.
Acresce que, no caso, os elementos informativos recusados nem sequer integram o conteúdo essencial do direito primordialmente protegido pela consagração do dever de discrição bancária: o referido direito à intimidade da vida privada e familiar.
Normalmente, os bancos dispõem, mais do que qualquer outra entidade, de inúmeras informações sobre os seus clientes, não apenas as respeitantes à sua esfera pública (idade, residência, actividade profissional), mas também à sua esfera privada (situação financeira pessoal, residências secundárias, eventuais obrigações de alimentos) e mesmo à sua esfera íntima (exames médicos ou declarações pessoais para a celebração de seguros exigidos em relação à concessão de certos créditos).
Não fazem parte do conteúdo essencial do direito à reserva da vida privada, a identificação (na qual se incluem os contactos telefónicos e morada) e a apreciação da licitude de um determinado movimento duma conta bancária – cfr. Capelo de Sousa, in Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Inocêncio Galvão Telles, Vol. II – Direito Bancário – 2002, pág. 218.
É conveniente também relembrar que o dever de discrição bancária e a faculdade de o invocar têm como contraponto a obrigação de prestação, aos clientes, acerca das operações bancárias que efectua, preço dos serviços prestados e outros encargos suportados por aqueles (art. 75º, nº 1 do Regime Geral).
E que nesse contexto se incluem no âmbito do conjunto dos deveres para com os clientes.
Daqui decorre, também, que a discrição bancária, não se pode erigir como uma prerrogativa da entidade bancária, mas como um dever que tem como fonte um vínculo obrigacional, decorrente do contrato celebrado com o cliente, em que este surge como sujeito activo.
Em conclusão, e do ponto de vista substantivo, o dever de discrição bancária está excluído, não só com a autorização do cliente, mas também em cumprimento de deveres específicos de acatamento das ordens das autoridades judiciais penais, como decorre da al. d) do art. 79º do DL. 298/92, e do disposto do art. 31º, nºs 1 e 2, al. c) do CP.
Esse dever de acatamento tem também consagração constitucional no art. 208º, nº 2 da CRP (nenhuma entidade está imune às ordens das autoridades judiciais).
É o caso.
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Analise-se, agora, a questão do ponto de vista adjectivo.
No Despacho que suscitou o incidente, a norma processual para cujo conteúdo aponta a norma remissiva invocada (o art. 182º, nº 2 do CPP), é o art. 135º, nºs 2 e 3, do CPP.
A norma insere-se no Livro III (Da Prova), Título II (Dos Meios de Prova), Capítulo I (Da Prova Testemunhal) e tem como epigrafe: Segredo Profissional.
Insere-se, pois, no Capítulo que estabelece as regras de procedimento atinentes à produção da prova testemunhal, e surge na sequência da delimitação do objecto e limites do depoimento, estabelecida no art. 128º do CPP.
No art. 135º estabelecem-se restrições à aplicação dessa regra, no respeitante a matérias cobertas pelo segredo profissional, reportando-se a agentes tão diversos como religiosos, advogados, médicos, jornalistas e, também, funcionários bancários, etc.
Regulamenta-se, pois, a produção da prova testemunhal, em Inquérito, Instrução ou Audiência.
Os agentes acima referenciados podem escusar-se a depor sobre factos abrangidos pelo segredo profissional, mediante a invocação desse segredo.
A autoridade judiciária, perante a qual o depoimento deve ser prestado, se considerar a escusa legítima, mas continuar a considera o depoimento necessário, suscita o incidente de quebra de segredo profissional no Tribunal Superior.
A regra do nº 2, do art. 135º, só entra em funcionamento, na eventualidade da escusa a depor ter levantado dúvidas sobre a sua legitimidade, consequentemente antes de ser suscitada a questão da quebra do sigilo. No nº 2 não se equaciona qualquer problema de quebra do sigilo, isso é matéria tratada no nº 3.
A averiguação da autenticidade e justificação da recusa cabe à autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado (MºPº, Juiz de Instrução ou Juiz de Julgamento).
Concluindo pela ilegitimidade da escusa, ordena ou, no caso do MºPº, requer ao Tribunal que ordene a prestação do depoimento recusado (art. 135º, nºs 2 e 5 do CPP, incorrendo na prática de um crime de recusa de depoimento, p. e p. pelo art. 360º do CP, se o não fizer).
O nº 3 do art. 135º, do CPP, regulamenta o procedimento numa segunda fase do incidente de prestação de depoimento, em casos de segredo profissional. Esta fase surge quando a autoridade judiciária, aceitando que a escusa de depor é legitima, pretende – dado o interesse da investigação – ver quebrado o segredo profissional, obrigando-se o recusante a depor.
Só há lugar à aplicação do regime do nº 3, do art. 135º, se a autoridade judiciária concluir que a matéria sobre a qual versa o depoimento integra a área sigilosa, mas, não obstante, mostra-se justificada a quebra do segredo, por força da aplicação do princípio da prevalência do interesse preponderante (os interesses de ordem Colectiva, tutelados no Direito Penal, prevalecem sobre os interesses de ordem privada protegidos pelo dever de segredo); se isto concluir, terá de suscitar a intervenção do Tribunal Superior para confirmar ou infirmar tal juízo (CPP Anotado, Simas Santos, Leal-Henriques, vol. I, pág. 743).
Em conclusão, no respeitante à prova testemunhal, existir ou não dever de segredo profissional é matéria prevista no nº 2 e sindicável pela via do recurso ordinário.
Só após se ter concluído pela existência do dever de segredo e determinada a sua quebra, há que lograr o juízo confirmativo da Instância Superior, nos termos do nº 3, para que a quebra de sigilo possa operar.
Mas, no caso, não estamos perante a produção de prova testemunhal. Estamos perante o fornecimento de elementos informativos, em fase de Inquérito, destinados a possibilitar o desenvolvimento da averiguação de factos susceptíveis de integrar um crime de burla e determinar os seus agentes (nomeadamente, a fornecer elementos capazes para possibilitar o interrogatório do suspeito).
Este art. 135º, nº3 do CPP só é susceptível de ser aplicável ao caso, por remissão (não é uma norma cuja previsão vise a situação em causa).
A norma remissiva indicada no Despacho que suscitou o incidente é o art. 182º, nº 2 do CPP.
O art. 182º, do CPP, insere-se no Título III (Dos meios de obtenção da prova), Cap. III (Das apreensões). Tem como epigrafe: Segredo profissional ou de funcionário e segredo de Estado. Contém o procedimento a observar na apreensão de documentos que possam contender com o segredo profissional ou de funcionários ou com o segredo de Estado, relativamente a pessoas que os têm em seu poder (entre os quais os membros ou funcionários de instituições de crédito).
Nessa norma, o que se estabelece é a obrigação de as pessoas aí mencionadas, onde se incluem os membros de instituições de crédito, apresentarem à autoridade judiciária, quando esta o ordenar, os documentos ou quaisquer objectos que tiverem na sua posse e devam ser apreendidos, salvo se invocarem, por escrito, segredo profissional.
Admitindo-se a possibilidade de invocação, por escrito, do dever de segredo profissional como fundamento da recusa, a Lei permite que se possa proceder a diligências com vista à averiguação da sua legitimidade – as previstas no art. 135º, nº 2 do CPP.
A remissão para o nº 3 do art. 135º é nova, apenas surgiu com a revisão operada por via da Lei 59/98, de 25/08.
Se formos verificar nas Actas das Sessões da Comissão de Revisão, surge, na Acta da 20ª Sessão, que, com as alterações ao art. 182º, se pretendia «um mero ajustamento das remissões».
Tal é consonante com o constante da Acta da 6ª Sessão, aquando do debate da redacção do art. 135º «obter-se uma mais perfeita conjugação entre esta disposição e as disposições contidas nos arts. 181º e 182º».
O art. 181º tem como epígrafe: Apreensão em estabelecimento bancário e no debate sobre a sua redacção se contém esta curiosa afirmação do Presidente da Comissão de Revisão, Prof. Germano Marques da Silva: «Com a sua proposta não se pretendia tomar posição sobre o segredo bancário, o qual, a seu ver, não devia ser tratado no Código de Processo Penal».
A alteração acrescentou apenas uma referência aos documentos entre os objectos susceptíveis de apreensão em estabelecimento bancário. «Na verdade, podia haver documentos relacionados com o crime, nos termos legalmente exigidos, que deviam ser apreendidos e não havia razão para limitar o objecto da apreensão».
Daqui decorre que a norma remissiva invocada apenas é aplicável aos casos de apreensão de documentos em estabelecimento bancário e que o procedimento suscitado, com a intervenção deste Tribunal, é recente, só sendo admissível desde 1 de Janeiro de 1999.
Ora, no caso sob apreciação, não estamos perante a produção de prova testemunhal, nem sequer perante a apreensão de “documentos, títulos, valores, quantias e quaisquer outros objectos” na posse de entidades bancárias.
Daqui decorre que nem a norma expressa, nem a norma remissiva têm aplicação ao caso (a não ser que seja invocada a sua aplicação analógica, o que nunca vimos invocado, nem tratado jurisprudencialmente).
Em conclusão, não tem cabimento processual a dedução do presente incidente, nesta fase.
Não tem cabimento porque as normas processuais invocadas não são aplicáveis ao caso e porque, do ponto de vista substantivo, a recusa não é legítima (essa ilegitimidade nem foi objecto de apreciação, neste caso: a autoridade judiciária limitou-se a constatar a recusa e a suscitar o incidente).
Não sendo a recusa legítima, a autoridade judiciária desobedecida deve ordenar o fornecimento dos elementos pretendidos, sob pena da prática de um crime de desobediência p. e p. pelo art. 360º, nº 2 do CP.
Somente mantida a recusa, e, consequentemente, praticado esse crime de desobediência, deve ser ordenada a apreensão dos documentos que contenham os elementos informativos recusados.
Só nessa fase do procedimento, por aplicação do art. 182º, nº 1, do CPP, seria comportável, do ponto de vista adjectivo, a invocação do dever de discrição bancária. Mas, ainda assim, o suscitar da intervenção deste Tribunal Superior não seria admissível, dado que tal invocação seria ilegítima face às regras do direito substantivo enunciadas.
Consequentemente, e para além do mais, pensamos ser inaceitável o entendimento de que, ordenado à entidade bancária - tendo em vista o desenvolvimento de uma investigação durante o Inquérito - o fornecimento de informações atinentes a uma determinada conta bancária (nomeadamente o nome do seu titular e o registo de alguns movimentos), não ter o Tribunal de 1ª Instância (órgão de soberania situado na 1ª escala da hierarquia Jurisdicional) competência para ordenar a apreensão dos documentos que contenham essas informações.
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Nos termos relatados, decide-se:
- considerar ilegítima a recusa da entidade bancária em causa em fornecer os elementos solicitados;
- determinar, consequentemente, o envio do processo para a 1ª Instância, para que o Sr. Juiz de Instrução Criminal, em face desta declarada ilegitimidade, ordene o fornecimento dos elementos informativos em falta e, mantendo-se essa recusa, extraia dela as consequências penais e processuais acima assinaladas.
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Sem custas
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Porto, 28 de Março de 2007
José Joaquim Aniceto Piedade
Airisa Maurício Antunes Caldinho (Vencida, por considerar que tratando-se de recusa legítima nos termos do art. 135º CPP, aplicável por força do art. 182º do mesmo Código, cabe suscitar a intervenção deste Tribunal e, por isso, verificados os demais pressupostos, deferiria o solicitado)
António Luís T. Cravo Roxo (Declaração: Sem prejuízo de maior estudo, voto a decisão, apesar de que suscitarem dúvidas)