Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0653378
Nº Convencional: JTRP00039320
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: EMBARGOS DE EXECUTADO
CHEQUE
QUIRÓGRAFO
TÍTULO EXECUTIVO
NEGÓCIO ABSTRACTO
Nº do Documento: RP200606190653378
Data do Acordão: 06/19/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA.
Indicações Eventuais: LIVRO 265 - FLS 77.
Área Temática: .
Sumário: I - Sendo o cheque um título abstracto, não constando dele, por isso, a causa da obrigação que esteve na base da sua emissão, apenas pode servir de título executivo, como documento particular assinado pelo devedor – quirógrafo – se o exequente, no requerimento executivo, invocar, expressamente, a relação subjacente que esteve na base da respectiva emissão.
II - A presunção do art. 458º, nº1, do Código Civil apenas vale entre o credor e o devedor originários, conferindo ao credor a vantagem de o “dispensar” de provar a relação fundamental, (que se presume até prova em contrário), prova essa, obviamente, a cargo do emitente da declaração unilateral.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

Por apenso à Execução comum para Pagamento de Quantia Certa que lhe move pelo Tribunal Judicial da Comarca de Matosinhos – .º Juízo Cível – “B………., Ldª”, veio, em 12.10.2005, C………. deduzir Oposição à execução invocando, entre outros fundamentos, a prescrição dos títulos executivos – dezasseis cheques exequendos – nos termos do disposto no art. 52º da Lei Uniforme do Cheque.

Notificada, a exequente apresentou contestação na qual alega, em resumo, que já no requerimento executivo, defendeu que os cheques dados à execução tinham o valor de documentos particulares, funcionando como quirógrafos da obrigação, constituindo, por isso, títulos executivos nos termos do disposto no art. 46º, al. c) do Código de Processo Civil, alegando, também, a relação jurídica subjacente à emissão desses mesmos cheques.
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Tendo-se considerado que o estado do processo permitia, sem necessidade de mais provas, a apreciação da oposição passou-se de imediato a conhecer do mérito da causa, julgando-se procedente por provada e excepção de prescrição deduzida e, em consequência, extinta a execução.
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Inconformada recorreu a embargante que, alegando, formulou as seguintes conclusões

A – Os dezasseis cheques foram dados à execução como documentos particulares, funcionando como quirógrafos da obrigação.

B – Sendo por isso títulos executivos.

C – A aqui recorrente alegou no seu requerimento inicial qual a relação causal aos referidos cheques.

D – Relação essa que se consubstanciou na prestação de serviços e pagamento de despesas bancárias e alfandegárias, conforme resulta dos docs. de 1 a 148 juntos com o requerimento executivo e no mesmo alegada.

E – Para pagamento do montante em dívida, € 112.472,83 (cento e doze mil quatrocentos e setenta e dois euros e oitenta e três cêntimos) a aqui recorrida sacou os referidos 16 (dezasseis) cheques, conforme também o alegado no requerimento executivo.

F – A aqui recorrida reconheceu de forma unilateral a dívida – art. 458, n°1, do Código Civil, pois ao sacar os cheques pretendia efectuar o pagamento da obrigação pecuniária. Importando o reconhecimento da obrigação pecuniária.

G – À semelhança do que já tinha feito em momentos anteriores, pois a recorrida já havia efectuado outros pagamentos à aqui Recorrente, conforme o alegado na contestação à oposição.

H – O crédito da Recorrente emerge de um negócio jurídico não formal, também conforme o alegado no requerimento executivo.
I – A obrigação que se está a executar não é cambiaria, mas a subjacente, sendo os cheques o seu quirógrafo.

J – Nestas circunstâncias, a obrigação de pagamento não se encontra prescrita.

L – A douta sentença violou expressamente o disposto no art. 46º, alínea a) do Código de Processo Civil, na redacção dada pelo D.L. 329-A/95.

M – Implicando destarte o reconhecimento da obrigação pecuniária.

N – Devendo o sentido dessa mesma norma ser aplicado por forma a considerar que os cheques foram dados à execução como documentos particulares assinados pela recorrida.

O – Constituindo por isso títulos executivos.

Termos em que e nos melhores de Direito, deve o presente recurso ser julgado procedente com todas as consequências legais.

A exequente/embargada contra-alegou, batendo-se pela confirmação do saneador-sentença.
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Colhidos os vistos legais cumpre decidir.

Na instância recorrida foram considerados provados os seguintes factos:

1. A exequente é portadora de 16 cheques sacados pela executada: dois deles emitidos em 11 de Abril de 2003 e os restantes catorze em 12 de Maio de 2003, conforme documentos juntos aos autos principais a fls. 19 a 24, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

2. A execução a que estes autos se encontram apensos deu entrada em juízo 13 de Junho de 2005.

Importa, ainda, considerar provado o seguinte:

3. No requerimento executivo a exequente “B………., Ldª” alegou, além do mais:

“A Exequente é uma sociedade comercial que tem por objecto a prestação de serviços aduaneiros.
No âmbito da sua actividade prestou à firma “D………., Ldª” diversos serviços de despachos aduaneiros, e desalfandegamento de mercadorias pertencentes a clientes da “D………., Ldª”, o que a aqui Exequente fazia pagando previamente junto da Alfândega todas as despesas inerentes a estes serviços. Em resultado da prestação à “D………., Ldª” daqueles serviços e pagamento de despesas bancárias e alfandegárias, a aqui Exequente no final do ano de 2002 era credora “D………., Ldª”, da quantia de € 85.216,35, (doc. 1) saldo este que transitou para c ano de 2003.
Para pagamento do débito ante-referido a Executada (C……….) entregou os dezasseis cheques agora dados à execução, sacados respectivamente em 11/04/2003 e 12/05/2003, os quais não foram pagos pelos motivos constantes nos seus respectivos versos, os cheques têm valor de documentos particulares, funcionando como quirógrafos da obrigação…” (sublinhámos).

4. Os cheques foram sacados pela ora executada C………. sobre a sua conta no E………., (……….) à ordem de “B………., Ldª”, nas datas referidas em 1. constando no verso um carimbo onde se lê – “Devolvido na Comp. Motivo: Cheque revogado por justa causa. Por mandato Banco Sacado”.

Fundamentação:

Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se afere do objecto do recurso, importa saber se a executada é responsável pelo pagamento dos cheques exequendos, que sacou a favor da exequente/embargada.

As partes não dissentem que os dezasseis cheques dados à execução se acham prescritos, nos termos do art. 52º da LUC conjugado com o seu art. 29º.1.

A questão que os separa é saber se, tendo a exequente alegado que a quantia exequenda é da responsabilidade “D………., Ldª” a quem prestou serviços que não foram por ela pagos, e que os cheques sacados pela executada visavam esse pagamento, a sacadora-executada se constituiu devedora dos montantes neles inscritos valendo os cheques como meros quirógrafos duma obrigação.

A acção do portador contra os endossantes, contra o sacador ou contra os demais co-obrigados prescreve decorridos que sejam seis meses, contados desde o termo ao prazo de apresentação – art. 52º LUC.

Dispõe o art. 45º do Código de Processo Civil:

“1 – Toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva.
2 – O fim da execução, para o efeito do processo aplicável, pode consistir no pagamento de quantia certa, na entrega de coisa certa ou na prestação de um facto, quer positivo, quer negativo”.

Por sua vez o art. 46º do citado diploma, após a Reforma de 1995/96, regime aplicável ao caso em apreço, define as várias espécies de títulos executivos do seguinte modo:

“À execução apenas podem servir de base:
a) As sentenças condenatórias;
b) os documentos exarados ou autenticados por notário que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação;
c) os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável nos termos do artigo 805º, ou de obrigação de entrega de coisas móveis ou de prestação de facto;
d) os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva.”

No caso em apreciação, apenas poderá estar em causa a hipótese prevista na alínea c), se se puder considerar que o documento dado à execução pela embargada é documento particular assinado pelo devedor, importando o reconhecimento ou a constituição de obrigação pecuniária, de montante determinado ou determinável por liquidação, nos termos do art. 805º do Código de Processo Civil.

Foi inquestionável propósito da Reforma de 1995/96, alargar o elenco dos títulos executivos tendo sido suprimida, além do mais, a expressa alusão aos títulos cambiários que constava da al. c) antes referida, para, no preceito actual – art. 46º c) – se considerar como título executivo:

“Os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável nos termos do art. 805º, ou de obrigações de entrega de coisas móveis ou de prestação de facto”.

O cheque, como título cambiário, consubstancia uma ordem de pagamento, um direito literal e autónomo, legitimando a sua posse, o respectivo portador a exercer o direito nele incorporado.

O cheque, na sua génese, tem de obedecer aos requisitos previstos no art. 1º da LUC, exprimindo um mandato puro e simples de pagar quantia determinada.

O direito emergente do título – direito cartular – é independente e autónomo do direito subjacente.

No cheque, o direito cartular exprime um crédito pecuniário do qual é credor o portador do título e devedores todos os intervenientes nele: sacador, endossantes, avalistas e, sobretudo, o sacado-banqueiro.

“Título executivo – é a peça que pela sua força probatória abre directamente as portas da acção executiva.
É no plano probatório, o salvo-conduto indispensável para ingressar na área do processo executivo.
Em síntese é um instrumento probatório especial da obrigação exequente e, consequentemente, distingue-se da causa de pedir já que esta é, em resumo, um elemento essencial da identificação da pretensão processual” – Antunes Varela, RLJ, 121-148.

O título executivo é condição indispensável para o exercício da acção executiva, mas a causa de pedir na acção, não é o próprio documento, mas a relação substantiva que está na base da sua emissão, ou seja, o direito plasmado no título, pressupondo a execução o incumprimento de uma obrigação de índole patrimonial, seja ela pecuniária ou não – art. 46º c) do Código de Processo Civil, após a Revisão de 1995/96.

Sendo o cheque um título abstracto, não constando dele, por isso, a causa da obrigação que esteve na base da sua emissão, apenas pode servir de título executivo, como documento particular assinado pelo devedor, se o exequente, no requerimento executivo, invocar, expressamente, a relação subjacente que esteve na base da respectiva emissão.

Cfr. neste sentido, “Comentários ao Código de Processo Civil”, de Lopes do Rego, pág. 69 e, segundo cremos, ser esse o sentido da lição de Lebre de Freitas, na obra de sua autoria, “A acção Executiva, à Luz do Código Revisto” – 2ª edição, pág. 54.

No caso em apreço, analisada a petição executiva, verifica-se que o exequente não invocou a relação subjacente à emissão dos cheques, senão relativamente à “D………., Ldª”, (que não é sujeito cambiário) apenas referindo que para pagamento da quantia devida por aquela sociedade, a executada “entregou os dezasseis cheques dados à execução”.

Ora, é certo que, nos termos do art. 767º, nº1, do Código Civil – “A prestação pode ser feita tanto pelo devedor como por terceiro, interessado ou não no cumprimento da obrigação”.

Mas para o cheque funcione como quirógrafo da obrigação do sacador não basta a mera alegação de que o emitente dos cheques “os entregou” (por si sacados obviamente), ao credor, importa que o portador/exequente alegue, no requerimento executivo, qual a razão substancial que conduziu à emissão do cheque, ou seja, que caracterize a relação extracartular que vincula o sacador dos títulos, para que assim se afira da sua responsabilidade e aquele (sacador) se possa defender em termos de oposição.

A exequente, com o devido respeito, não o fez.

Como se sentenciou no Ac. do STJ, de 30.1.2001, in CJSTJ, 2001. I, 85:

“I – Na actual versão do Código de Processo Civil (95/96) prescrita a obrigação cartular constante de uma letra dada à execução, poderá, ainda assim, esta última valer como título executivo, enquanto documento particular consubstanciando a obrigação subjacente.
II – Todavia, para que tal aconteça, necessário se torna que, no requerimento inicial da execução, o exequente invoque logo a respectiva causa da obrigação.
III – Se não fizer a aludida invocação, naquela altura, vedado está ao exequente vir fazê-lo, mais tarde, na pendência do processo, por tal implicar uma alteração da causa de pedir”.

Muito embora o douto Acórdão em referência verse sobre letra prescrita, a doutrina que sufraga é aplicável à hipótese em apreço, porquanto se trata de saber de que requisitos depende a atribuição de força executiva, agora como documento particular, ao título cambiário cheque.

Estando prescrito o cheque não vale ele como título executivo, mas antes e tão só como quirógrafo da obrigação fundamental.

A recorrente pretende que, além de ter invocado na petição executiva a razão subjacente à sua emissão, dispõe o documento de força executiva, já que ao emitir o cheque, o sacador reconhece a existência duma obrigação, presumindo-se a existência da dívida, nos termos do art. 458º, nº1, do Código Civil.

O nº1 do citado normativo estabelece:

“Se alguém, por simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem indicação da respectiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário”.

Este normativo tem o seu campo privilegiado de aplicação nos negócios puramente abstractos que apenas existem no domínio dos direitos de crédito – cfr. “Código Civil Anotado”, de Pires de Lima e Antunes Varela, vol. I, pág. 440.

Mas entendemos que, no caso concreto, o recorrente não se pode prevalecer deste normativo.

É que, omitindo completamente o negócio jurídico subjacente à emissão do cheque, não se sabe sequer se na base da sua emissão esteve um negócio formal.

A presunção do art. 458º, nº1, do Código Civil apenas vale entre o credor e o devedor originários, conferindo ao credor a vantagem de o “dispensar” de provar a relação fundamental, (que se presume até prova em contrário), prova essa, obviamente, a cargo do emitente da declaração unilateral, estabelecendo-se, deste modo, a inversão do ónus da prova da existência da relação fundamental.

Se, efectivamente, esteve em causa um negócio desse tipo, nem assim ao documento particular se poderia aplicar o regime do citado normativo do Código Civil.

Permitimo-nos citar o Ac. do STJ, de 16.12.2004, de que foi Relator o Ex.mo Conselheiro Neves Ribeiro, acessível no sítio da Internet www.dgsi.pt, número convencional JSTJ000:

“… Abordando o tema em estudo, o Prof. Lebre de Freitas ([“A Acção Executiva – À Luz do Código Revisto, 2ª ed., pág. 54”]) observou que, quanto aos títulos de crédito prescritos dos quais não conste a causa da obrigação, tal como quanto a qualquer outro documento particular nas mesmas condições, há que distinguir consoante a obrigação a que se reportam emirja ou não dum negócio jurídico formal; no primeiro caso, uma vez que a causa do negócio jurídico é um elemento essencial deste, o documento não poderá constituir título executivo (arts. 221°, nº1, e 223°, nº1, do C.Civil); no segundo caso, porém, a autonomia do título executivo em face da obrigação exequenda e a consideração do regime do reconhecimento de dívida (art. 458°, nº1, do C.Civil ([“A figura do reconhecimento de dívida não representa a consagração de um negócio abstracto, resultando da norma apenas a inversão do ónus da prova da existência da relação fundamental – vide Prof. Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, pág. 439”]), leva a admiti-lo como título executivo, sem prejuízo de a causa da obrigação dever ser invocada no requerimento inicial da execução e poder ser impugnada pelo executado”.

Sufragamos tal opinião que é largamente dominante na jurisprudência dos Tribunais Superiores.

Como se acha provado, o exequente-embargado, não invocou na petição executiva a “causa da obrigação” da sacadora dos cheques, nem lhe sendo lícito fazê-lo em momento ulterior, não pode considerar-se que tais documentos particulares disponham de força executiva, por se não verificarem os requisitos do art. 46º c) do Código de Processo Civil.

Para que aos cheques sacados pela executada valessem como título executivo seria mister que a sacadora, ora executada, fosse parte na relação credor/devedor originário.

Na alegação da exequente o devedor originário é “D………., Ldª”, a quem a exequente prestou serviços que não foram pagos e não a executada.

Não referindo o título executivo a causa da sua emissão, o exequente terá de alegar a causa (relação subjacente ou causal) no requerimento com que instaura a execução. A obrigação que assim se executa não é a cambiária, mas a subjacente ou causal, de que o cheque prescrito é mero quirógrafo.

Como se pode ler no sumário do douto Acórdão do STJ de 19.1.2004 – acessível no sítio da Internet www.dgsi.pt, de que foi Relator o Ex.mo Conselheiro Dr. Nuno Cameira

“1. No âmbito das relações credor originário/devedor originário, e para execução da obrigação fundamental (causal), o cheque prescrito pode valer como título executivo, agora na veste de documento particular assinado pelo devedor.
2. Para isso, no entanto, é necessário que na petição executiva (não na contestação dos embargos à execução) o exequente alegue aquela obrigação e que esta não constitua um negócio jurídico formal.
3. O regime previsto no art. 458º do Código Civil para as declarações unilaterais de reconhecimento de dívida só é válido nas relações estabelecidas entre credor e devedor originários.[…].

O recurso não pode, por isso, vingar.

Decisão:

Nestes termos, acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas pela apelante.

Porto, 19 de Junho de 2006
António José Pinto da Fonseca Ramos
José Augusto Fernandes do Vale
António Manuel Martins Lopes