Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0840054
Nº Convencional: JTRP00041148
Relator: OLGA MAURÍCIO
Descritores: LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO
QUEIXA
Nº do Documento: RP200803120840054
Data do Acordão: 03/12/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: LIVRO 304 - FLS 330.
Área Temática: .
Sumário: Não se pode entender que a legitimidade do Ministério Público se restringe, sempre e apenas, aos factos constantes da queixa.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 54/08-4
(…./04.6TAGDM – .º juízo criminal do tribunal judicial de Gondomar)
Relatora: Olga Maurício


Acordam, em conferência, na 2ª secção criminal (4ª secção judicial) do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO

1.
B………. foi acusado pela prática de dois crimes de procuradoria ilícita, previstos e punidos pelos artigos 1º, 2º, 5º, 7º, nº1, a), da Lei nº 49/2004, de 24/08, e puníveis à data da prática dos factos pelos art. 53º e 56º, do Dec-Lei nº 84/84, de 16/03, alterado, entre outros, pela Lei nº 33/94, de 06/09, 30-E/2000, de 20/12 e 80/2001, de 20/07, e ainda pelo art. 358º, do Código Penal.
Remetido o processo para tribunal foi a acusação rejeitada por falta de uma condição legal de procedibilidade da acção – a queixa.

2.
Inconformado o Ministério Público recorreu, retirando da motivação de recurso as seguintes conclusões:
1ª - «A Mma Juiz a quo considerou na sua douta decisão de fls. 165-167 que o Ministério Público não tinha legitimidade para deduzir acusação pública pelo crime de procuradoria ilícita, e rejeitou a acusação, uma vez que se o crime assumia natureza pública à data dos factos e ora assume natureza semi-publica, e, na falta de queixa validamente apresentada à data do conhecimento dos factos e dos seus agentes, o Ministério Público deixou de ter legitimidade para a acção penal»;
2ª - «O Ministério Público discorda de tal decisão, pretendendo ver o despacho proferido a fls. 165-167, revogado, e substituído por outro que receba a acusação nos termos deduzidos»;
3ª - «Com efeito, três soluções são apontadas para a resolução dos casos em que o Ministério Público tem legitimidade para iniciar o procedimento criminal à data dos factos e entretanto, por força de alteração legislativa, deixa de ter legitimidade para a acção penal, por força da alteração da natureza do crime de publico para semi-público»;
4ª - «A primeira, será a de averiguar se no decurso do processo, o fendido manifestou vontade de procedimento criminal»;
5ª - «Como cuidamos de demonstrar, só com a notificação do teor das intervenções do arguido em diversos processos cíveis no decorrer do prazo de suspensão da Ordem dos Advogados, é que esta Instituição tomou conhecimento não só dos factos, mas também da existência de um inquérito a correr quanto ao arguido, mesmo porque, dada a existência do regime do segredo de justiça, a Ordem dos Advogados não podia saber se os factos que lhe haviam sido participados no decorrer de uma acção cível, tinham ou não originado um inquérito»;
6ª - «Admitir solução contrária, levaria a considerar o absurdo da obrigatoriedade da Ordem dos Advogados proceder ao levantamento de todas as situações que lhe haviam sido comunicadas ao abrigo da L.A. (note-se, ainda em sede apenas civil), para que, em relação a elas exercesse o direito de queixa»;
7ª - «E, não há dúvida de que, quando tomou conhecimento dos factos – com a relevância e a exigência do art. 115º, do Código Penal – veio tempestivamente exercer o seu direito de queixa, pelo que nunca a acusação poderia ser rejeitada nos moldes em que o foi»;
8ª - «A segunda das situações ou hipóteses possíveis, prende-se com a notificação feita nos autos à ofendida, enquanto titular do direito de queixa, para vir exercer tal direito, querendo, no prazo de 6 meses»;
9ª - «Ora, dando como bom e assente que só na data da notificação de fls. 125 é que a Ordem dos Advogados teve conhecimento dos factos, dos agentes e da existência de inquérito, não pode deixar de se considerar que a apresentação do direito de queixa foi tempestiva»;
10ª - «E, a formulação do direito de queixa é de tal ordem, que abarca não só a primeira das situações dos autos, como a segunda, como ainda outras que foram apreciadas no âmbito de outros inquéritos»;
11ª - «Com efeito, não pode deixar de se interpretar a queixa formulada pela Ordem dos Advogados como extensível a todas as situações de que teve conhecimento e que implicariam a previsão do crime de Procuradoria Ilícita»;
12ª - «Por aqui, também se vê que a Mmª Juiz a quo não tem razão, pelo que a acusação deveria ter sido recebida nos seus precisos termos»;
13ª - «Tendo-se iniciado validamente o procedimento criminal ao abrigo da lei antiga (LA), cujo crime assumia natureza pública, se a nova lei (LN) vem converter o crime em semi-público, tal não afecta a legitimidade do Ministério Público para deduzir acusação, apenas relevando para uma eventual desistência de queixa»;
14ª - «Com efeito, não se configurando a queixa, a data da pratica dos factos, e à data em que o Ministério Público deu início ao procedimento, condição objectiva de procedibilidade, não são de aplicar a regras de sucessão de leis no tempo, como se de uma alteração ao tipo legal de crime se tratasse (o que não ocorreu visto tratar-se essencialmente do mesmo crime), mantendo assim o Ministério Público a legitimidade para o exercício da acção penal, uma vez que deixa de haver lugar e necessidade para a apresentação de uma nova queixa cujos (possíveis) efeitos jurídicos já se produziram»;
15ª - «Assim, ao não receber a acusação pública que imputava ao arguido a prática de dois crimes de Procuradoria Ilícita, a Mma Juiz violou os arts 2º, nº4, 115º, nº1, do Código Penal e o art. 311º, nº1, do Código de Processo Penal».

3.
O recurso foi admitido.

4.
Nesta Relação, o Exmº P.G.A. emitiu parecer de concordância com o recorrente.

Cumprido o disposto no nº 2 do art. 417º do C.P.P. nada mais foi acrescentado.

5.
Proferido despacho preliminar foram colhidos os vistos legais.

Teve lugar a conferência, cumprindo decidir.
*
*

FACTOS PROVADOS

6.
Dos autos resultam os seguintes factos, relevantes para a decisão:
1º - O arguido B………. é advogado de profissão, usa o nome profissional de B1………., tem escritório na Rua ………., .., .º, sala ., Porto, e está inscrito na Ordem dos Advogados com a cédula profissional nº ….. .
2º - Por decisão do Conselho Geral da Ordem dos Advogados o arguido foi suspenso de funções no período de 19/01/1996 a 27/02/2001, inclusive, decisão que consta do edital de 22/01/1996, publicado no D.R., II, de 7/02/1996, e edital nº 185/2001, publicado no DR II, de 22/03/2001.
3º - No período compreendido entre 9/10/2002 a 29/06/2004, inclusive, o arguido esteve, de novo, suspenso e esta decisão foi publicitada no edital nº 1320/2002, publicado no D.R. II, de 30/10/2002 e edital nº 1180/2004, publicado no D.R. II, de 22/07/2004 (fls. 92-93).
4º - O arguido teve conhecimento destas decisões.
5º - No processo de embargos de terceiro nº …-D/1999, do .º juízo cível do tribunal judicial de Gondomar consta uma procuração, datada de 9-1-2003, de C………., embargante, constituindo seu mandatário o arguido.
6º - O arguido interveio no julgamento deste processo, que teve lugar em 29-3-2004.
7º - Por despacho de 5-5-2004 foram remetidas à Ordem dos Advogados certidões dos documentos referido em 5º e da acta do julgamento daquele processo.
8º - No inquérito nº ./01.0FACMN, .ª secção, do Ministério Público de Gondomar, consta uma procuração emitida por D………. a favor do arguido e datada de 22-10-2003.
9º - Neste processo o arguido interveio no interrogatório de arguido, que teve lugar em 22-10-2003.
10º - O arguido interveio no julgamento do processo ordinário nº …/1999, do .º juízo cível do tribunal judicial de Gondomar, na qualidade de mandatário da autora, julgamento que teve lugar em 10-4-2003.
11º - No processo agora em análise em 21-8-2006 foi proferido o seguinte despacho:
«Tiveram início os presentes autos com a certidão extraída dos autos de embargo de terceiro nº 650-D/1999 … no âmbito dos quais se dava notícia da prática por B………., que também usa o nome profissional de dr. B1………., de factos abstractamente subsumíveis, à data, ao crime de usurpação de funções, p. e p. pelo art. 358º, alínea b), do Código Penal.
B1………., notifique, via postal com a/r, a Ordem dos Advogados (Conselho Distrital do Porto) nos termos do art. 50º, nº 1, al. v), e 82º, nº 1, ambos do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei 15/2005, de 26 de Janeiro, para se pronunciar quanto ao teor dos factos constantes dos autos, designadamente de fls. 02 a 10, 42 a 43, 105 a 106, que remeterá juntamente com o presente despacho, e, caso entenda, apresentar queixa por tais factos – art. 7º, nº 2 e 4, da aludida Lei 49/2004, de 24 de Agosto …».
12º - Em resposta a esta notificação em 27 de Novembro de 2006 deu entrada o seguinte requerimento, do Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados:
«… apresenta denúncia-crime contra:
B………. …
Porquanto
… O denunciado é licenciado em direito e exerce a profissão de advogado.
… Por despacho de 09-10-2002, do Conselho Geral da Ordem dos Advogados, foi suspensa a inscrição do aqui denunciado, ao abrigo do disposto no Art. 37º, alínea d) do Estatuto da ordem dos Advogados.
… Tal despacho foi notificado ao denunciado através de edital que foi publicado no Diário da República, II Série, de 30 de Outubro de 2002
… O aqui denunciado apesar de ter tomado conhecimento desta decisão e de saber perfeitamente que lhe estava vedado exercer a advocacia, continuou a exercer esta profissão praticando actos próprios da mesma.
… Assim, em 17 de Janeiro de 2003, no processo nº …-D/l999 que corre seus termos pelo .º Juízo do Tribunal de Gondomar, requereu a junção aos autos de procuração, na qualidade de mandatário da embargante (conforme documento junto aos autos)
… E, em 29 de Março de 2004, o denunciado compareceu na audiência de julgamento, no processo supra referido, a fim de representar a embargante, na qualidade de mandatário forense (cfr. Doc junto aos autos)
… Acresce ainda que o aqui denunciado é reincidente neste tipo de crime, encontrando-se pendente no Tribunal Judicial de Vale de Cambra, outro processo crime que corre seus termos pelo .º Juízo com o nº …/03.8TAVLC.
… O denunciado agiu deliberadamente, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei.
… Cometeu pelo exposto, em autoria material, um crime de procuradoria ilícita, previsto e punido pelo artigo 7º da Lei nº 49/2004 de 24 de Agosto.
… A ora denunciante deseja procedimento criminal contra o denunciado e reserva-se a faculdade de oportunamente se constituir assistente …»
13º - Em 12-6-2007 o Ministério deduziu acusação contra o arguido pela prática dos seguintes factos:
«… O arguido B………., que usa o nome profissional de B1………., é Advogado de profissão, encontrando-se inscrito na Ordem dos Advogados com a cédula profissional nº ….., e tem escritório na Rua ………., .., .°, sala ., Porto.
Por decisão do Conselho Geral da Ordem dos Advogados, foi o arguido suspenso de funções no período de 19/01/1996 até 27/02/2001, inclusive, conforme edital de 22/01/1996, publicado no 1DR II, de 07/02/1996 e Edital nº 185/2001, publicado no DR II, de 22/03/2001.
Este mais tarde suspenso, também por falta de pagamento de quotas, de 09/10/2002 até 29/06/2004, inclusive, conforme Edital nº 1320/2002, publicado no DR II de 30/10/2002 e Edital nº 1180/2004, publicado no DR II de 22/07/2004 (fls. 92-93).
O arguido, apesar do conhecimento desta decisão, e de saber que lhe estava vedado exercer advocacia, continuou a exercer esta profissão, praticando actos próprios de Advogado, designadamente juntando procurações forenses em processos cíveis e criminais, fazendo vários requerimentos, assistindo clientes em diligências.
Não obstante, o arguido interveio na qualidade de Advogado no processo nº …-D/1999, que correu termos no .º Juízo deste Tribunal, tendo junto Procuração aos autos a favor do seu cliente C………., Lda, datada de 09/01/2003, e junta àqueles autos a 17/01/2003, tendo intervido na audiência de julgamento realizada naquele processo, a 29/03/2004, na qualidade de Advogado e exercendo as funções conferidas pelo mandato forense.
Igualmente no processo nº ./01.0 FACMN, que correu termos na .ª secção do Ministério Público nesta Comarca, o D………. constituí mandatário o arguido, por mandato Forense datado de 22/10/2003, tendo aquele intervido nos autos naquela data, em auto de interrogatório do seu cliente.
O arguido agiu com conhecimento e vontade, sabendo que estava suspenso de exercer a advocacia, e, não obstante, praticou os actos referidos e outros de idêntico teor, pois continuou a exercer tal profissão, mantendo o escritório aberto, recebendo clientes, aceitando mandatos forenses e apresentando em Tribunal como Advogado em exercício de funções, bem sabendo que a sua conduta era contrária ao direito e criminalmente punível.
Constituiu-se, assim, como autor, na forma consumada, de dois crimes de Procuradoria Ilícita, previstos e punidos pelos artigos 1º, 2º, 5º, 7º, nº1, a), da Lei nº 49/2004, de 24/08, e puníveis à data da prática dos factos pelos artºs 53º, 56º, do Dec-Lei nº 84/84, de 16/03, alterado, entre outros, pela Lei nº 33/94, de 06/09, 30-E/2000, de 20/12 e 80/2001, de 20/07, e ainda artº 358º, do Código Penal».
14º - Em 27-9-2007 foi decidido:
«Segundo o disposto no artigo 311º, nº 1 do Código de Processo Penal, recebidos os autos no tribunal, ao juiz cabe pronunciar-se sobre nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer, o que se fará.
Nos presentes autos, foi deduzida acusação pública contra o arguido B………. imputando-lhe a prática de dois crimes de procuradoria ilícita, previstos e punidos, à data, pelos artigos 53º e 56º do Decreto-Lei nº 84/84, de 16.03, alterado pela Lei n.º 6/86, de 26.03, pelos Decretos-Lei n.ºs 119/86, de 28.05 e 325/88, de 23.09, e pelas Leis n.ºs 33/94, de 06.09, 30-E/2000, de 20.12, e 80/01, de 20.07, e actualmente pelos artigos 1º, 2º, 5º e 7º, a) da Lei n.º 49/2004, de 24.08, que entrou em vigor em 29.08.2004.
Os factos em causa reportam-se aos anos de 2003 e Março de 2004.
À data da prática dos indiciados factos os crimes em causa, por referência o artigo 358º do Código Penal, revestiam natureza pública; com a alteração introduzida pela Lei n.º 49/2004, de 24.08, a punição de tais condutas passou a depender da apresentação de queixa pelo lesado ou pela Ordem dos Advogados, nos termos do artigo 7º, n.ºs 2 e 3 da referida lei, os quais têm um prazo de 6 meses para a apresentar contados da data em que tiveram conhecimento do facto e dos seus agentes (cfr. artigo 115º, n.º 1 do Código Penal).
Não obstante os factos terem sido indiciariamente praticados ao abrigo da lei anteriormente em vigor, há que atentar no disposto no artigo 2º, n.º 4 do Código Penal, segundo o qual, quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, será sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente.
Em face desta disposição, será sempre mais favorável ao agente o regime que imponha o exercício do direito de queixa ao seu titular, com prazos para tal, e a possibilidade de desistência da mesma.
Ora, compulsados os autos, verifica-se que a acusação se baseia em duas condutas do arguido: uma no âmbito do Processo n.º …-D/1999 que correu termos neste Juízo, por factos praticados em 09.01.2003 e 29.03.2004, e outra no âmbito do Processo n.º ./01.0FACMN que correu termos na .ª Secção do Ministério Público desta comarca por factos praticados em 22.10.2003.
Dos autos resulta, confrontando o teor de fls. 128-130, que o Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados veio, em 27.11.2006, apresentar queixa pelos factos praticados no âmbito daquele Processo n.º …-D/1999, mas já não quanto aos praticados no âmbito no Processo n.º ./01.0FACMN, pelo que, quanto a estes, nunca o Ministério Público, a nosso ver, teria legitimidade para deduzir a acusação (cfr. artigo 49º, n.º 1 do Código de Processo Penal).
Quanto à queixa apresentada, há que atentar no seguinte: o presente processo teve início com uma certidão do referido Processo n.º …-D/1999, da qual foi dado conhecimento, ainda nesse âmbito, à Ordem dos Advogados por despacho datado de 05.05.2004 (cfr. fls. 3-10). Tomou então a Ordem dos Advogados conhecimento desses factos e do respectivo agente nessa altura, até ainda antes da entrada em vigor da Lei n.º 49/2004. Assim sendo, quando em 27.11.2006 veio apresentar queixa pelos mesmos, há muito havia decorrido o prazo de 6 meses de que dispunha para o efeito, pelo que se encontrava extinto o seu direito.
Assim sendo, por falta de uma condição legal de procedibilidade da acção - a queixa -, e nos termos do artigo 311º, n.º 1 do Código de Processo Penal, rejeito a acusação pública e, em consequência, determino o arquivamento dos autos.
Sem custas.
Notifique».
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DECISÃO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente – art. 412º, nº 1, in fine, do C.P.P., Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 2ª ed., III, 335 e jurisprudência uniforme do S.T.J. (cfr. acórdão do S.T.J. de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, pág. 196 e jurisprudência ali citada e Simas Santos / Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., pág. 74 e decisões ali referenciadas), sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios enumerados no art. 410º, nº 2, do mesmo Código.

Por via dessa delimitação definem-se como questões a decidir por este Tribunal da Relação do Porto as seguintes:
I – Alteração da natureza do crime no decurso do inquérito e reflexo na legitimidade do Ministério Público para exercer a acção penal
II – Extensão da queixa apresentada pela Ordem dos Advogados
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I – Alteração da natureza do crime no decurso do inquérito e reflexo na legitimidade do Ministério Público para a acção penal

O Ministério Público deduziu acusação contra o arguido B………. porque:
- no processo nº …-D/1999, que correu termos no .º Juízo do tribunal de Gondomar, o arguido juntou procuração aos autos a favor do seu cliente, datada de 09/01/2003 e junta a 17/01/2003, e interveio no julgamento realizado a 29/03/2004, na qualidade de advogado e exercendo as funções conferidas pelo mandato forense;
- no processo nº ./01.0 FACMN, que correu termos na .ª secção do Ministério Público do tribunal de Gondomar, D………. constituiu o arguido seu mandatário, por mandato datado de 22/10/2003, e interveio naquela data no interrogatório do seu cliente.
Estes factos ocorreram em período em que o arguido estava suspenso da Ordem dos Advogados.
Com base nestes factos o Ministério Público imputou-lhe a prática de dois crimes de procuradoria ilícita.

O crime de procuradoria ilícita encontrava-se previsto no Decreto-Lei nº 84/84, de 16/3, diploma que sofreu alterações várias até à entrada em vigor da Lei nº 49/2004, de 24 de Agosto, lei que actualmente define o sentido e alcance dos actos próprios dos advogados e dos solicitadores e que tipifica o crime de procuradoria ilícita.
Estabelecia o nº 1 do art. 53º do Decreto-Lei nº 84/84, de 16/3, que «só os advogados e advogados estagiários com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados podem, em todo o território nacional e perante qualquer jurisdição, instância, autoridade ou entidade pública ou privada, praticar actos próprios da profissão e, designadamente, exercer o mandato judicial ou funções de consulta jurídica em regime de profissão liberal remunerada».
Dispõe o art. 1º, nº 1, da Lei 49/2004, de 24/8, que «apenas os licenciados em Direito com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados e os solicitadores inscritos na Câmara dos Solicitadores podem praticar os actos próprios dos advogados e dos solicitadores». Acto próprio é acto privativo, exclusivo.
Quanto ao crime de procuradoria ilícita, consta ele do seu art. 7º, nº 1, que dispõe que «quem em violação do disposto no artigo 1º:
a) Praticar actos próprios dos advogados e dos solicitadores;
b) Auxiliar ou colaborar na prática de actos próprios dos advogados e dos solicitadores;
é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias».
Portanto, agora como antes, só os licenciados em Direito com inscrição válida e em vigor na Ordem dos Advogados podem praticar actos próprios da advocacia.

Além de outras alterações esta lei alterou, também, a natureza do crime. Anteriormente tratava-se de um crime público e agora estamos perante um crime semi-público: o procedimento criminal depende de queixa e são titulares do respectivo direito os lesados, a Ordem dos Advogados e a Câmara dos Solicitadores (art. 7º, nº 2 e 3).
O presente procedimento criminal foi instaurado quando o crime de procuradoria ilícita tinha natureza pública. Daí a legitimidade do Ministério Público.
Devido à alteração legal exige agora a lei que um dos titulares do direito de queixa apresente queixa pela prática de factos integradores do crime para que o Ministério Público possa prosseguir a acção penal.
Queixa é o acto pelo qual a pessoa com legitimidade para tal leva ao conhecimento das autoridades competentes a notícia dos factos ilícitos praticados e a vontade de que seja instaurado o respectivo processo para averiguação da responsabilidade do agente.
O que se discute é se, no caso, o Ministério Público tinha, ou não, legitimidade para deduzir acusação, já que foi esta a razão do seu não recebimento.

Salvo em casos excepcionais é ao Ministério Público que pertence a legitimidade para promover a acção penal (art. 48º do Código de Processo Penal).
«O legislador português consagrou o princípio da oficialidade, o que significa que a iniciativa e o impulso processuais da investigação prévia e da submissão a julgamento das infracções criminais competem oficiosamente às entidades públicas … Mas o princípio da oficialidade sofre limitações que resultam, além do mais, da existência de crimes semi-públicos e de crimes particulares …» - Leal Henriques e Simas Santos, Código Penal anotado, 1º vol., 3ª edição, pág. 1176.
As excepções à regra da oficialidade constam dos art. 49º a 52º e devem-se a opções do legislador, motivadas por razões de política criminal.
A excepção prevista no art. 49º respeita aos crimes semipúblicos. Nos termos do seu nº 1 «quando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas dêem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo».
O problema foi suscitado durante a audiência de julgamento do processo nº …-D/1999, do tribunal de Gondomar, ocorrida em 29 de Março de 2004, durante a qual foi referido, em requerimento ditado para a acta, que o arguido tinha a sua inscrição na Ordem dos Advogados suspensa.
Na sequência deste incidente foi decidido naquele mesmo processo e por despacho de 5-5-2004, remeter à Ordem dos Advogados certidão de determinados elementos do processo (dos quais resulta o exercício por parte do arguido de actos próprios de advogado, ocorridos durante o período de suspensão).
Em resposta a esta notificação a Ordem confirmou que o arguido tinha a sua inscrição suspensa.
Entretanto em 21 de Agosto de 2006, já na pendência do inquérito, foi determinada a notificação da Ordem dos Advogados para, querendo, apresentar queixa contra o arguido pela prática de factos próprios de advogado praticados durante o período em que a sua inscrição na ordem esteve suspensa. A acompanhar a notificação seguiam cópias de documentos constantes dos processos …-D/1999 e ./01.0FACMN, dos quais se retirava aquela conclusão. Esta notificação deveu-se ao facto de se entender que este acto era necessário face à nova lei, entretanto entrada em vigor.
Em 27 de Novembro do mesmo ano deu entrada queixa-crime da Ordem dos Advogados contra o arguido.

Conforme tem sido entendido, três soluções são possíveis nos casos em que o Ministério Público tem legitimidade para iniciar o procedimento criminal mas, entretanto, por via de uma alteração da natureza do crime, perde a legitimidade para exercer a acção penal. A primeira das soluções será averiguar se no decurso do processo o fendido manifestou vontade de procedimento criminal e em caso afirmativo o processo prossegue, sem sobressaltos; a segunda solução possível será notificar o titular do direito de queixa para exercer esse direito, querendo, com vista ao prosseguimento do processo; finalmente, outra solução será entender que uma vez que o procedimento criminal se iniciou ao abrigo da lei antiga, à luz da qual o crime tinha natureza pública, a alteração da natureza do crime efectuada pela lei nova não afecta a legitimidade do Ministério Público para deduzir acusação (vide acórdão do S.T.J. de 19-3-1997, processo 97P192).
Dos elementos disponíveis resulta que o juiz do processo optou pela segunda das soluções, na medida em que notificou um dos titulares do direito de queixa – a Ordem dos Advogados – para exercer esse direito com vista ao prosseguimento do processo. Parece-nos que é este, inequivocamente, o sentido do despacho proferido em 24 de Julho de 2006 (fls. 123 dos autos).
E o que se seguiu foi que o convite foi aceite e aquela entidade apresentou queixa.
Aquele despacho foi comunicado e não teve oposição de qualquer dos intervenientes. Transitou em julgado, com aquele exacto conteúdo, e não pode agora ser posto em causa por decisão oposta.

Portanto, a queixa apresentada pela Ordem dos Advogados é válida e confere ao Ministério Público legitimidade para deduzir acusação, pelo que procedem as conclusões 1ª a 9ª e 13ª a 15ª.
*
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II – Extensão da queixa apresentada pela Ordem dos Advogados

Outra questão que se discute é saber de que factos se queixou a Ordem.
Repetindo, a acusação do Ministério Público respeita a factos ocorridos no âmbito dos processos nº …-D/1999, que correu termos no .º juízo do tribunal de Gondomar, e aos ocorridos no processo nº ./01.0 FACMN, da .ª secção do Ministério Público daquele mesmo tribunal.
Quanto à queixa, pode ler-se nela o seguinte:
«1º
O denunciado é licenciado em direito e exerce a profissão de advogado.

Por despacho de 09-10-2002, do Conselho Geral da Ordem dos Advogados, foi suspensa a inscrição do aqui denunciado, ao abrigo do disposto no Art. 37º, alínea d) do Estatuto da ordem dos Advogados.

Tal despacho foi notificado ao denunciado através de edital que foi publicado no Diário da República, II Série, de 30 de Outubro de 2002

O aqui denunciado apesar de ter tomado conhecimento desta decisão e de saber perfeitamente que lhe estava vedado exercer a advocacia, continuou a exercer esta profissão praticando actos próprios da mesma.

Assim, em 17 de Janeiro de 2003, no processo nº …-D/l999 que corre seus termos pelo .º Juízo do Tribunal de Gondomar, requereu a junção aos autos de procuração, na qualidade de mandatário da embargante (conforme documento junto aos autos)

E, em 29 de Março de 2004, o denunciado compareceu na audiência de julgamento, no processo supra referido, a fim de representar a embargante, na qualidade de mandatário forense (cfr. Doc junto aos autos)

Acresce ainda que o aqui denunciado é reincidente neste tipo de crime, encontrando-se pendente no Tribunal Judicial de Vale de Cambra, outro processo crime que corre seus termos pelo .º Juízo com o nº …/03.8TAVLC.

O denunciado agiu deliberadamente, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei.

Cometeu pelo exposto, em autoria material, um crime de procuradoria ilícita, previsto e punido pelo artigo 7º da Lei nº 49/2004 de 24 de Agosto.
10º
A ora denunciante deseja procedimento criminal contra o denunciado e reserva-se a faculdade de oportunamente se constituir assistente».

Conforme se disse, a queixa é o acto que leva ao conhecimento da autoridade competente a prática de factos ilícitos com vista à instauração de processo crime.
Sendo esta constituída por factos então poderíamos pensar que a legitimidade do Ministério Público para acusar se circunscreveria apenas aos factos que estivessem narrados nessa mesma queixa: quanto aos factos constantes da queixa existiria legitimidade; quanto a outros factos cujo conhecimento sobreviesse, faleceria uma tal legitimidade.
Parece-nos que a solução a dar dependerá das circunstâncias de cada caso e terá que ter em conta razões de eficácia e de razoabilidade e, também, as características do crime que se configure.
Em regra, não se pode exigir ao ofendido que esgote, aquando da apresentação da queixa, todo os factos possivelmente praticados pelo suspeito com a ameaça de que se assim não for não terá o Ministério Público legitimidade para prosseguir a acção penal no que concerne a outros factos.
Claro que, em princípio, uma queixa abrangerá o universo de factos com ela relacionados e os potenciais autores da sua prática.
No entanto, muitas vezes os factos apurados revelam-se substancialmente diferentes dos acusados. O mesmo sucede quanto aos autores dos factos. Muitas vezes vem a apurar-se que os autores não foram aqueles que haviam sido indicados na queixa e isso não tem obstado a entender-se que o Ministério Público mantém a sua legitimidade. A este respeito veja-se, por exemplo, o que foi decidido pela Relação de Coimbra nos acórdãos de 4-3-1987, citados por Leal Henriques e Simas Santos, obra citada, pág. 1182: o Ministério Público tem legitimidade para deduzir acusação contra o autor do crime, mesmo tratando-se de pessoa diferente da indicada na queixa, nos crimes em que o procedimento depende de queixa.
Portanto, não obstante a exigência da lei não se pode entender que a legitimidade do Ministério Público se restringe, sempre e apenas, aos factos constantes da queixa.

E então, no nosso caso, quid iuris?
Integra o crime de procuradoria ilícita, como vimos, a pratica de actos próprios dos advogados e dos solicitadores.
Mas praticar actos próprios daquelas profissões não é equivalente a exercer essas profissões: portanto, pode ocorrer aquele crime sem haver prática reiterada. Não é seu elemento constitutivo a habitualidade.
Do mesmo modo à pluralidade de actos não corresponde uma pluralidade de crimes. Ao invés «… constitui um só crime … a prática pelo agente de repetidos actos próprios de uma profissão cujo título se arroga possuir …» - Cristina Líbano Monteiro, Comentário Conimbricense ao Código Penal, parte especial, tomo III, 2001, pág. 449.
Então, entendemos que a queixa apresentada abarca todos os actos de procuradoria ilícita praticados pelo arguido durante o período de suspensão, sendo os art. 5º e 6º da queixa exemplificações dessa actuação ilegal. Já assim não seria se cada acto de procuradoria ilícita consubstanciasse, por si só, um crime autónomo.

Assim também nesta parte procedem as conclusões 10ª a 12ª.
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DISPOSITIVO

Pelos fundamentos expostos:
I - Concede-se provimento ao recurso e determina-se que seja proferida nova decisão recebendo a acusação deduzida pelo Ministério Público, se outros motivos de rejeição não houver.

II – Sem custas.

Elaborado em computador e revisto pela relatora, 1ª signatária.

Porto, 2008-03-12
Olga Maria dos Santos Maurício
Jorge Manuel Miranda Natividade Jacob
Arlindo Manuel Teixeira Pinto