Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0813421
Nº Convencional: JTRP00041872
Relator: JOSÉ CARRETO
Descritores: HOMICÍDIO POR NEGLIGÊNCIA
NEGLIGÊNCIA MÉDICA
Nº do Documento: RP200811120813421
Data do Acordão: 11/12/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: LIVRO 556 - FLS 87.
Área Temática: .
Sumário: O resultado (morte) deve ser imputado objectivamente à conduta omissiva do médico que não prestou à lesada os cuidados médicos necessários e adequados a evitar o resultado que a situação exigia, segundo as “legis artis” e os conhecimentos da medicina.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso nº 3421/08-1
1ª Secção Criminal

Acordam em audiência os juízes no Tribunal da Relação do Porto
No Proc. C. Singular nº …/01.8 TAMCN do .º Juízo do Tribunal Judicial do Marco de Canavezes, em são assistentes B………., C………. e D………., foi julgado o arguido
E………., filho de F………. e de G………., natural de Moçambique, nascido em 27.03.1950, médico, residente na Rua ………., nº …, ……….,
Acusado da prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. nos termos do artigo 137º, nº 1, do Código Penal.
E a final foi proferida em 6/7/06 por sentença a seguinte decisão:
“Por tudo o exposto o tribunal decide julgar a acusação totalmente improcedente, absolvendo consequentemente o arguido E………. .
Custas pelos assistentes, sem prejuízo do apoio judiciário concedido.”
Inconformados, em 25/7/06, recorrem os assistentes, os quais no final da sua motivação, formulam as seguintes conclusões:
Conclusões:
1ª A M.ma Juiz a quo decidiu-se pela absolvição do arguido, por se lhe terem levantado dúvidas quanto à determinação da causa da morte;
2ª Tais dúvidas permitiram assentar como não provados os factos constantes das alíneas B) e D) dos “Factos Não Provados”, cujo teor se dá aqui por reproduzido;
3ª Salvo o devido respeito, ao retirar as duas referidas conclusões (de não provado), a M.ma Juiz a quo incorreu em “erro notório na apreciação da prova”;
De facto,
4ª Da conjugação do relatório da autópsia (fls. 48 dos autos) com as declarações prestadas, a fls. 104, pelo perito médico Dr. H………., bem como com o “Relatório Médico” elaborado pelo mesmo perito (fls. 165) e ainda com o depoimento pelo mesmo prestado na sessão da Audiência de Julgamento realizada em 02/05/2006, resulta claramente que a morte ficou a dever-se ao conjunto das diversas lesões sofridas pela vítima aquando do atropelamento;
5ª O Dr. H………. mencionou tal causa de morte no relatório da autópsia; afirmou-a no Inquérito (vide duas últimas linhas do Auto de Inquirição de fls. 104); explicitou-a no Relatório Médico de fls. 165; e reafirmou-a na Audiência de Julgamento, em que, para além do mais, afastou qualquer possibilidade de a morte ter ficado a dever-se a causas naturais (designadamente, a enfarte do miocárdio, pois teve o cuidado de observar o coração);
6ª Na Audiência de Julgamento, este Perito Médico esclareceu, pormenorizadamente, quais os órgãos internos que apresentavam lesões e o modo gradual como se instalou o choque hipovolémico (em consequência do derrame paulatino de sangue, que saiu dos vasos e se instalou nos tecidos);
7ª Mais tendo esclarecido o Dr. H………. que era grande a quantidade de sangue derramado (havia muitos coágulos e os tecidos estavam “pretos” devido ao sangue instalado);
8ª E que a morte poderia ter sido evitada se tivessem sido feitos os tratamentos adequados;
9ª De salientar que o Dr. H………. foi o único Perito Médico, para além do arguido, que teve contacto com a vítima, não tendo nenhum dos demais peritos ouvidos e testemunhas inquiridas pelo Tribunal tido qualquer contacto com a mesma;
10ª Este Perito Médico teve o cadáver à sua disposição, fez uma autópsia que durou cerca de 3 horas, segundo afirmou, e viu, observou, analisou e estudou o mesmo;
11ª Desse trabalho e desse estudo não lhe restaram dúvidas quanto à causa da morte (múltiplos hematomas e pequenas hemorragias internas que provocaram a redução do sangue em circulação – consubstanciando-se numa anemia grave –, que conduziu a um choque hipovolémico – incapacidade de o sangue chegar em quantidade adequada a todas as zonas importantes do organismo - e à morte);
12ª Também deveria ser essa a conclusão a extrair pela M.ma Juiz a quo.
13ª Admitiam, porém, os Assistentes que outra pudesse ser a conclusão a que o Tribunal chegaria, desde que da inquirição das testemunhas, dos documentos que fossem juntos aos autos e dos esclarecimentos que viessem a ser prestados pelos Senhores Peritos resultassem provas diferentes e diferentes conclusões;
14ª O que não se verificou!
15ª E, por isso, os referidos factos dados como “Não Provados” deveriam, ao invés, ter sido considerados como “Provados”;
Na verdade,
16ª Nenhuma das testemunhas inquiridas, nenhum dos documentos juntos aos autos, e nenhum dos esclarecimentos prestados pelos Peritos, afastou as certezas e a segurança patenteadas pelo Dr. H……….;
17ª É que, para que as certezas evidenciadas pelo Perito Médico que realizou a autópsia pudessem ser afastadas ou abaladas, não bastava que apenas algumas dúvidas fossem levantadas por quem somente viu “papéis” e não teve oportunidade de analisar a situação concreta, in loco;
18ª Era necessário que tais certezas fossem convicta e fundamentadamente postas em crise, o que não se verificou;
19ª Desde logo, porque o próprio Perito Médico em cujos esclarecimentos mais se apoiou a fundamentação da sentença, Prof. Dr. I………. – referido a linhas 23 e ss., de fls. 6, da sentença, admitiu como perfeitamente possível que a vítima tivesse sofrido choque hipovolémico, tal como, aliás na própria sentença se refere (a fls. 7, linhas 30 a 33);
20ª Depois, porque as dúvidas referidas a fls. 8, linhas 1 a 9, não têm razão de ser, face ao que se deixou dito em 1. a 8. supra (quanto à ocorrência de choque hipovolémico) e tendo em conta os esclarecimentos prestados pelo Dr. H………. na sessão da audiência de julgamento realizada em 02/05/2006, quanto à observação do coração;
21ª Também a Perita em Medicina Legal, Drª J………., afirmou que as lesões que a vítima apresentava são causa adequada de morte;
22ª Finalmente, as certezas do Perito Médico que efectuou a autópsia não foram, tampouco, postas em crise pela tão propalada (pela defesa) “morte devido a causa natural, designadamente enfarte do miocárdio”;
23ª E não o foram, em primeiro lugar, porque, não só não ficou provado que, antes do atropelamento, a vítima tivesse dificuldades de movimentação - alínea G) dos Factos Não Provados -, como até resultou provado o inverso, pois várias testemunhas afirmaram que aquela fazia todas as tarefas domésticas, amanhava o quintal e fazia longas caminhadas, designadamente de casa até à Igreja Paroquial de ………., para acompanhar o neto à catequese – cf.., entre outros, os depoimentos de K………. e de C……….;
24ª E, em segundo lugar, porquanto o que se refere na sentença a fls. 9, linhas 10 a 14, está em flagrante contradição com o depoimento prestado pelo Dr. L………., antigo médico de família da vítima, constituindo mais um “erro notório na apreciação da prova”;
25ª Na verdade, o referido médico não afirmou que a vítima “deveria fazer medicação e seguir um programa de consultas mais regular e menos espaçado, o que aquela, contudo, não cumpria”;
26ª O que o Dr. L………. afirmou foi que, atendendo a que a vítima era obesa e sexagenária, deveria controlar o colesterol com medicação, mas, embora recordando-se bem dela (o que significa que ela o visitava assiduamente), não se lembrava que medicamentos ou tratamentos lhe receitava, se é que receitava, se ela aderia à medicação, se ela recorria a médicos particulares (o que é, aliás, muito comum), com que frequência a Dª M………. fazia exames, se ia à consulta de rotina com maior frequência do que de seis em seis meses, por exemplo, etc.
27ª Os aludidos factos da Acusação dados como “Não Provados” deveriam, consequentemente, ter sido considerados “Provados”, uma vez que resultou cabalmente demonstrado que a morte foi causada pelos múltiplos hematomas e pequenas hemorragias internas que provocaram a redução do sangue em circulação, o que conduziu a um choque hipovolémico e à morte - alínea B) -, a qual adveio em consequência da falta de tratamento - alínea D).
28ª Por tudo o que deveria o arguido ter sido condenado pela prática do crime de homicídio por negligência de que vinha acusado.
29ª Consideram-se violadas as citadas disposições legais – artº 410º, nº 2, al. c), do Código de Processo Penal.”

O Mº Publico respondeu ao recurso no sentido da sua improcedência
O arguido respondeu pugnando pela sua improcedência;
Remetidos os autos a este Tribunal em 8/5/08, nesta Relação o ilustre PGA é de parecer que o recurso não merece provimento;
Foi cumprido o disposto no artº 417º2 CPP, e não houve resposta

Colhidos os vistos, procedeu-se á audiência, com observância do formalismo legal:
Cumpre apreciar:

Consta da sentença recorrida (transcrição):

“FACTOS PROVADOS
1) No dia 3 de Novembro de 2001, pelas 17.40 horas, M………. foi vítima de atropelamento, tendo o seu corpo sofrido projecção em distância superior a 3 metros.
2) Em consequência do atropelamento M………. foi socorrida pelos bombeiros e transportada ao Hospital ………, onde chegou pelas 18.05 horas.
3) Encontrava-se no serviço de urgência o médico E………., a quem coube toda a observação e determinação do tratamento à ofendida M………., tendo-lhe sido dado conhecimento do motivo da admissão.
4) A referida M………. apresentava politraumatismo por atropelamento, escoriações na face e tronco e dores nas mãos.
5) A paciente foi sujeita aos seguintes exames, que ofereceram os resultados que seguem:
a. auscultação pulmonar, apresentando murmúrio vesicular bilateralmente conservado, sem ruídos adventícios;
b. auscultação cardíaca, com S1 e S2 normais, sem ruídos adventícios, pulso rítmico amplo e regular, com cerca de 70 batimentos por minuto;
c. medição da tensão arterial, com o resultado 140/90;
d. palpação abdominal superficial e profunda sem defesas, não se palpando tumefacções e massas;
e. Rx aos punhos, face, coluna cervical e lombar;
f. Radiografia dorso-lombar, que denunciava fractura do corpo vertebral da D12;
6) A fractura do corpo vertebral da D12 indicava violência do traumatismo e justificava, por si só, o estudo radiológico da restante coluna.
7) Num politraumatizado por atropelamento com projecção à distância e queda no solo é imperativo para o médico que procede ao atendimento efectuar os seguintes exames:
g. Exame aos órgãos dos sentidos;
h. Exame do aparelho cardiovascular;
i. Exame do aparelho respiratório;
j. Exame neurológico;
k. Exame ao aparelho locomotor;
l. Exame ao aparelho urinário para observação da diurese;
m. Exame das regiões cervical, torácica, abdominal e períneo para detecção de lesões pouco evidentes ou ocultas;
n. Hemograma;
o. Amilasemia;
p. Radiografia pleuropulmunar;
q. Radiografia da bacia;
r. Estudo ecográfico das cavidades pleural, pericárdia e abdominal;
s. Observação por um período de 12 horas.
8) Cerca das 23.00 horas do mesmo dia o arguido E………. deu alta à ofendida, a qual foi transportada, em ambulância, para a sua residência, sita em ………. .
9) Desde o momento em que deu entrada no Hospital até que dele saiu que M………. queixou-se sempre de dores.
10) Pelas 23.45 horas do dia 04.11.01 foi verificado o óbito de M………., no seu domicílio.
11) Realizada autópsia médico-legal à ofendida, no respectivo relatório ficou a constar o seguinte: “A morte de M………. foi devido a politraumatismo, nomeadamente às lesões raqui-medulares descritas. Estas, bem como as restantes lesões, resultaram de violento traumatismo de natureza contundente tal como o que pode ser devido a acidente de viação, como consta da informação atrás descrita”.
12) Do relatório da autópsia consta que existiam fracturas do 6º ao 9º arcos costais esquerdos, contusão do lobo pulmonar inferior esquerdo, contusões musculares variadas, contusão uterina, ovárica e vesical e fractura da coluna dorsal D7/D8.
13) Quando da autópsia não se detectou qualquer lesão que, por si só, justificasse a morte.
14) Na maioria dos casos a fractura e as lesões raqui-medulares com lesão medular completa poderão desenvolver um quadro de futura incapacidade, mas não desencadear a morte.
15) Quando deu entrada no hospital M………. referiu que havia sido atropelada, não tendo mencionado projecção à distância e queda no solo.
16) O arguido desconhecia que a paciente tivesse sido projectada quando do atropelamento.
17) Entre os exames ordenados pelo arguido consta o exame “Combur”, por via do qual se visa detectar elementos estranhos à urina.
18) M………. era obesa.
19) À data do atropelamento M………. tinha 64 anos de idade.

FACTOS NÃO PROVADOS
Com pertinência para a decisão da causa não se provaram os demais factos, designadamente:
A. Que não tenha sido efectuado exame neurológico sumário e às articulações.
B. Que as múltiplas lesões traumáticas, com múltiplos hematomas praticamente generalizados e pequenas hemorragias parenquimatosas tenham afectado vários órgãos, razão pela qual, nas horas seguintes, tenha havido uma queda do hematócrito, tendo no seu conjunto provocado uma falência multi-orgânica, associada a choque hipovolémico, que conduziu à morte.
C. Que o arguido tenha representado como possível o resultado morte, não se conformando contudo com tal possibilidade.
D. Que caso as lesões apresentadas por M………. tivessem sido devidamente diagnosticadas e tratadas no tempo devido o resultado morte não tivesse advindo.
E. Que o arguido tenha actuado livre, voluntária e conscientemente, conhecendo o carácter proibido da sua conduta omissiva.
F. Que o exame “Combur” tenha sido efectuado meia hora antes de a ofendida abandonar o hospital.
G. Que antes do atropelamento a vítima M………. tivesse dificuldades de movimentação.
H. Que a vítima M………. tenha acedido sem dificuldades a movimentar os braços e as pernas.
MOTIVAÇÃO
O tribunal considerou desde logo a prova documental de fls. 48 (relatório de autópsia), 155 ss. e 307 (relatório pericial); 22, em conjugação com o original, a fls. 614 (relativo à ficha de atendimento, observação e tratamento) e ainda fls. 617 ss. (respeitante ao processo que determinou a atribuição de uma taxa de invalidez à vítima, determinante de uma precoce aposentação).
Foram ainda consideradas as declarações do arguido, o qual, muito embora haja defendido ter diligenciado pela realização de todos os exames médicos que - em seu entender e face ao quadro que se lhe apresentava - se impunham, reconheceu igualmente que, em bom rigor, desconhecia que quadro era esse.
Isto porque, não obstante saber que a sua paciente havia sido vítima de atropelamento, o arguido não se inteirou da dinâmica do mesmo (desconhecendo assim que aquela havia sido projectada a mais de 3 metros, caindo de costas sobre umas pedras, conforme nos foi relatado em audiência de julgamento, de forma séria e credível, pela sua filha, K……….).
Este desconhecimento adveio, por um lado, do facto de a vítima não lho ter contado de forma espontânea, por outro, da circunstância de o arguido não lho ter perguntado, conforme o próprio afirmou, e isso apesar de a vítima se encontrar lúcida e colaborante no momento em que foi atendida. Nesta parte o arguido admitiu ainda que caso soubesse que a paciente havia sofrido projecção e queda violenta, teria certamente diligenciando pelo respectivo transporte para um hospital central.
Para compreensão dos exames que se impunha realizar naquela situação concreta o tribunal considerou essencialmente as declarações do médico perito subscritor do relatório de fls. 156 ss., Prof. Dr. I………., o qual se mostrou perfeitamente seguro e conhecedor da situação, apresentando-se simultaneamente desinteressado e imparcial, merecendo por isso a máxima credibilidade.
O indicado perito esclareceu, por um lado, quais os exames e tratamentos que se impunham (tendo sublinhado que o clínico se deve inteirar da situação que conduziu o paciente ao hospital, para o que deve perguntar - ao paciente ou a um familiar e/ou acompanhante - o que sucedeu, estando-lhe vedado trabalhar com base em suposições), lavrando expressa e viva censura, quer quanto à omissão da realização do hemograma (pois um hematoma retroperitonial não determinaria necessariamente o aparecimento de sangue na urina, sendo que tampouco o teste “Combur” serve para esse tipo de análises), quer quanto à omissão da realização de uma radiografia à lombar e outra à dorsal (pois apenas foi efectuada uma dorso-lombar), quer quanto ao desinteresse do médico arguido no que toca à recolha de informações relativas à dinâmica do atropelamento, quer ainda quanto ao período de observação, que considerou diminuto, pois face ao episódio traumático e à possibilidade de ocorrerem hemorragias tardias a observação deveria ter durado pelo menos 12 horas. A este propósito o indicado perito afirmou ainda que a “alta” concedida foi, no mínimo, prematura, pugnando mesmo pela inadequação da mesma num quadro em que a paciente tem que sair do hospital numa maca sem se conseguir locomover, como sucedeu no caso dos autos (conforme resultou dos depoimentos prestados por N………., K………., C………. – familiares da vítima que descreveram de modo credível a forma como aquela, só amparada, se mexia -, O………. – enfermeiro, o qual referiu que a vítima sempre se queixou de muitas dores, mais tendo afirmado que, pelo que se recorda, teve que se aguardar pela vinda da maca para a senhora poder sair - e P………. – técnico de Rx, o qual referiu que no momento do exame o filho da vítima teve que a amparar).
A censura do médico em causa estendeu-se também à autópsia realizada e ao relatório a que a mesma deu lugar.
A este propósito verificou-se aliás unanimidade entre os médicos, pois todos eles evidenciaram a falta de rigor do indicado relatório, a qual é tanto mais grave quanto é certo que essa ausência de rigor acaba por cercear e comprometer qualquer juízo seguro quanto à causa da morte da vítima M………. . De facto, foi aceite por todos que os elementos mencionados no relatório de autópsia, por imprecisos, são impeditivos da formulação de uma conclusão quanto à causa da morte
E assim, se por exemplo o Prof. Dr. I………. admitiu como perfeitamente possível que a vítima haja sofrido choque hipovolémico (que se traduz na incapacidade de o sangue chegar em quantidade adequada a todas as zonas importantes) em consequência de um hematoma retro-peritonial volumoso não detectado pelo médico arguido, admite do mesmo modo a possibilidade de ter sido outra a causa da morte, designadamente, enfarte do miocárdio.
Esta dúvida, em seu entender, assenta em dois aspectos fundamentais: por um lado o relatório da autópsia não faz qualquer referência a uma grande quantidade de sangue depositado - sendo que para que pudesse afirmar-se a ocorrência do indicado choque hipovolémico necessário seria que o sangue perdido tivesse ficado retido numa qualquer zona do organismo, em caso de hemorragia interna; por outro, não foi efectuado qualquer exame ao coração que permita afastar a hipótese de acidente cardíaco.
É também este o entendimento do Prof. Dr. Q………., o qual desaprovou igualmente o relatório da autópsia por o mesmo se revelar inconclusivo.
O indicado depoente chegou mesmo a defender que a morte se terá devido a causa natural (problema do foro cardíaco), uma vez que a vítima era obesa e sexagenária, sendo sua opinião que caso existisse qualquer hemorragia o Combur teria dado negativo.
Outros médicos afirmaram contudo coisa diversa (vg. o Dr. S………., director clínico do Hospital ………., que afirmou que o Combur poderá apenas eventualmente detectar alterações ao nível proteico na urina e o Prof. Dr. I………. rejeitou que o Combur fosse um exame adequado a tais pesquisas).
Assim, dada a discrepância o tribunal não se convenceu de que a morte se tenha ficado necessariamente a dever a causa natural, não podendo contudo afirmar, em contrapartida, que a mesma se tenha devido a choque hipovolémico, advindo de um hematoma retro-peritonial volumoso.
E as dúvidas que para o tribunal subsistiram quanto à causa da morte assentam, por um lado, nas próprias hesitações reveladas pelos demais médicos ouvidos em audiência, por outro, nos factores de risco de que a vítima sofria (obesidade e excesso de gordura no sangue).
De facto, pelos médicos foi referido que se a paciente tivesse sofrido choque hipovolémico a auscultação cardíaca não teria resultado normal e o pulso rítmico não seria regular, conforme se consignou na ficha de atendimento e observação, a qual não foi eficazmente desacreditada em audiência (este aspecto foi salientado pela Ex.ma Sra. Dra. J………., a qual, muito embora tenha lavrado nos autos parecer onde estabelece sem dificuldade um nexo causal entre a não detecção adequada das lesões e a morte – fls. 192 -, em julgamento, depois de inteirada de outros elementos que não possuía quando da elaboração do dito parecer – parecer este que lhe havia sido solicitado pela Companhia Seguradora “T……….” – afirmou que as lesões poderão ter dado causa à morte, não excluído porém qualquer outra).
Acresce que a vítima era efectivamente obesa, tendo aliás sido referido pelo médico que a acompanhava (Dr. L……….) que a mesma deveria fazer medicação e seguir um programa de consultas mais regular e menos espaçado, o que aquela, contudo, não cumpria.
Resulta ainda dos documentos de fls. 617 ss. (mais concretamente a fls. 620) que a senhora sofria de problemas de excesso de gordura no sangue, o que, naturalmente, nada de bom prognosticava para o aparelho cardíaco.
A conjugação de todos estes aspectos resultou assim numa dúvida insanável para o tribunal quanto à causa da morte, pelo que os factos se vieram a decidir em benefício do arguido de acordo com o princípio do in dubio pro reo.
A não demonstração dos factos referidos em F) e G) resultou do fracasso da prova a tal propósito produzida, sendo que relativamente ao facto referido em H) o que se apurou é que a vítima não só não movimentava com facilidade os braços e as pernas como, pura e simplesmente, não os movimentava senão com auxílio de terceiros e grande sofrimento.
As condições económicas do arguido consideraram-se com base nas suas próprias declarações, que nessa parte foram credíveis.”
+
A questão a solucionar é a de saber se ocorre “erro notório na apreciação da prova” face aos factos não provados B e C;
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A questão a apreciar é a descrita emergentes das conclusões apresentadas, mas sendo o recurso delimitado pelas conclusões extraídas da motivação há também que ponderar também os vícios e nulidades de conhecimento oficioso ainda que não invocados pelos sujeitos processuais – artºs 412º1, 403º1 CPP e Jurisp dos Acs STJ 1/94 de 2/12 in DR I-A de 11/12/94 e 7/95 de 19/10 in Dr. I-A de 28/12, tal como, mesmo que o fundamento de recurso fosse só de Direito: a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; ou o erro notório na apreciação da prova, (Ac. Pleno STJ nº 7/95 de 19/10/95 in DR., I-A Série de 28/12/95), mas que, terão de resultar “do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum” – artº 410º2 CPP, “não podendo o tribunal socorrer-se de quaisquer outros elementos constantes do processo” in G. Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, III vol. pág. 367, e Simas Santos e Leal Henriques, “C.P.Penal Anotado”, II vol., pág. 742.
No caso coincide a questão suscitada com a de erro notório na apreciação da prova, sendo que em relação ás demais, de conhecimento oficioso, não se vislumbra a sua ocorrência.

Ora “Erro notório na apreciação da prova” é aquele erro ostensivo, o erro que é de tal modo evidente que não possa passar despercebido ao comum dos observadores, “como facto de que todos se apercebem directamente, ou que, observados pela generalidade dos cidadãos, adquire carácter notório” Ac. STJ 6/4/94 CJ STJ II, 2, 186), ou “não escapa á observação do homem de formação média” Ac. STJ 17/12/98 BMJ 472, 407, quando procede á leitura do acórdão ou quando o homem de formação média facilmente dele se dá conta” (G. Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, III vol., pág. 367, ou ainda “… quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional ou lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras de experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida.
Mas existe igualmente erro notório na apreciação da prova quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legis artis ...” (Simas Santos e Leal Henriques, “C.P.Penal Anotado”, II vol., pág. 740)
No fundo, quando “…no texto e no contexto da decisão recorrida, …existam e se revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, ou que traduza uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável…” Ac. STJ de 9/2/05 -Proc. 04P4721 www.dgsi.pt, e essa “… incongruência há-de resultar de uma descoordenação factual patente que a decisão imediatamente revele, por incompatibilidade no espaço, de tempo ou de circunstâncias entre os factos, seja natural e no domínio das correlações imediatamente físicas, ou verificável no plano da realidade das coisas, apreciada não por simples projecções de probabilidade, mas segundo as regras da experiência comum” cf., também neste sentido, entre muitos outros, podem-se ver os Ac. do STJ de 13/10/99 CJ STJ III 184, e de 16/6/99 BMJ 488/262, e o recente Ac. STJ 24/4/08 www.dgsi.pr/jstj proc. 06P3057, juiz Cons. Souto de Moura estão apenas em causa factos e não o Direito;

Ora diz-nos a sentença nos pontos B e C como Não provados:
“B. Que as múltiplas lesões traumáticas, com múltiplos hematomas praticamente generalizados e pequenas hemorragias parenquimatosas tenham afectado vários órgãos, razão pela qual, nas horas seguintes, tenha havido uma queda do hematócrito, tendo no seu conjunto provocado uma falência multi-orgânica, associada a choque hipovolémico, que conduziu à morte.
C- Que o arguido tenha representado como possível o resultado morte, não se conformando contudo com tal possibilidade.”
Ora está provado que a falecida foi vitima de acidente de viação, tendo sido atropelada, e em consequência desse atropelamento sofreu: “politraumatismo por atropelamento, escoriações na face e tronco e dores nas mãos, fractura do corpo vertebral da D12, fracturas do 6º ao 9º arcos costais esquerdos, contusão do lobo pulmonar inferior esquerdo, contusões musculares variadas, contusão uterina, ovárica e vesical e fractura da coluna dorsal D7/D8.”, donde ocorreram múltiplas lesões traumáticas
Levada para o Hospital foi observada, e sujeita “aos seguintes exames, que ofereceram os resultados que seguem:
a. auscultação pulmonar, apresentando murmúrio vesicular bilateralmente conservado, sem ruídos adventícios;
b. auscultação cardíaca, com S1 e S2 normais, sem ruídos adventícios, pulso rítmico amplo e regular, com cerca de 70 batimentos por minuto;
c. medição da tensão arterial, com o resultado 140/90;
d. palpação abdominal superficial e profunda sem defesas, não se palpando tumefacções e massas;
e. Rx aos punhos, face, coluna cervical e lombar;
f. Radiografia dorso-lombar, que denunciava fractura do corpo vertebral da D12;”
e após “Cerca das 23.00 horas do mesmo dia o arguido E………. deu alta à ofendida, a qual foi transportada, em ambulância, para a sua residência, sita em ………. .
9) Desde o momento em que deu entrada no Hospital até que dele saiu que M………. queixou-se sempre de dores,“,
tendo vindo a falecer, “Pelas 23.45 horas do dia 04.11.01 foi verificado o óbito de M………., no seu domicílio.”
Quando em face do atropelamento e das lesões sofridas, “é imperativo para o médico que procede ao atendimento efectuar os seguintes exames:
g. Exame aos órgãos dos sentidos;
h. Exame do aparelho cardiovascular;
i. Exame do aparelho respiratório;
j. Exame neurológico;
k. Exame ao aparelho locomotor;
l. Exame ao aparelho urinário para observação da diurese;
m. Exame das regiões cervical, torácica, abdominal e períneo para detecção de lesões pouco evidentes ou ocultas;
n. Hemograma;
o. Amilasemia;
p. Radiografia pleuropulmunar;
q. Radiografia da bacia;
r. Estudo ecográfico das cavidades pleural, pericárdia e abdominal;
s. Observação por um período de 12 horas.”,
sendo que a paciente apenas foi medicada com “aspergic em soro” – ficha médica de atendimento a fls. 614, do Hospital, para que a sentença remete na motivação.
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Como resulta da sentença e do recurso e não é posto em causa, é aceite que o arguido agiu de modo negligente, o que resulta evidente da matéria de facto transcrita sobre o que devia ter feito e não fez, por culpa sua (desde a averiguação das causas do acidente até á detecção da fractura da vértebra D12 assinalada no RX e período de observação), o que é questionado é que a causa da morte da falecida tenha sido a falta adequada de tratamento médico, tendo o tribunal absolvido o arguido em obediência ao principio in dubio pro reo.
Ora tendo em conta que ocorreu um acidente de viação, que causou lesões traumáticas e fracturas ósseas, que necessitavam tratamento médico para serem curadas, e não se mostrando que aquelas lesões por si só causassem a morte, pois “Quando da autópsia não se detectou qualquer lesão que, por si só, justificasse a morte.” in nº 13 dos factos provados, e tendo em conta que aquelas lesões não se curam, por si próprias mas necessitam para tal de ser tratadas, afigura-se-nos óbvio, que a causa da morte foi por um lado as lesões causadas em acidente de viação e por outro a falta de tratamento médico adequado destas. É a conclusão lógica, imediata que decorre das regras da experiência, pois:
- Uma pessoa vítima de acidente de viação, com aquelas lesões, muito provavelmente (quase de certeza) de acordo com as regras da experiência morrerá se não for tratada, sendo certo que as lesões (tratadas) só por si não conduziriam á morte, mas a outros efeitos, como se refere na sentença: tetraplegia. Assim em face das lesões e da ausência de tratamento, a vitima veio a falecer, donde causa da morte foram as lesões por um lado e a falta de tratamento por outro.
Esta conclusão só não estaria certa, sendo colocada em causa, se tivéssemos qualquer outra causa da morte, sendo que neste âmbito não valem meras suposições (como as referidas na motivação … podia ser ataque cardíaco - mais a mais quando se assaca ao relatório da autopsia irregularidades relativas á análise do coração e nele se descreve como tendo sido observado o seu “regular” estado, o que não pode deixar de ter um significado preciso de não se ter detectado nada de anormal, de acordo não apenas com as regras da experiência, mas também com a linguística e o modo de proceder em medicina legal, ou a provável hemorragia resultante do hematoma retroperitonial ... que podia ter ocorrido não se demonstra que exista, ou o … podia ser ligado á obesidade), sendo certo que não foram questionadas as “múltiplas lesões traumáticas, com múltiplos hematomas praticamente generalizados e pequenas hemorragias parenquimatosas tenham afectado vários órgãos,” que podiam levar de acordo com as regras da experiência á perda de sangue internamente, e de que dá conta o relatório da autopsia (resultado da verificação in loco do cadáver e de que as fotos juntas são elucidativas), sendo certo que a falecida vivia e viveu sempre até ao acidente/ morte com aquela obesidade ou causa de reforma, sem que se demonstre a existência de qualquer problema daí emergente, o que segundo as regras da experiência continuaria a fazer não fora a ocorrência do acidente e da falta de tratamento médico ás lesões sofridas.
Entre o acidente e as lesões causadas e a falta de tratamento, e a morte ocorrida escassas 24 horas depois da “alta médica”, não se interpõe qualquer outra causa que plausivelmente conduza ao resultado morte, sendo que este é consequência previsível e normal daquelas lesões não tratadas;
Dito de outro modo:
- não é indicada a ocorrência de uma qualquer causa que leve á morte, sendo que a única com potencialidade para o fazer, e que sabemos que interveio lesando a saúde e integridade física da ofendida, foi ter sido vitima de um acidente sofrendo lesões corporais graves que não foram tratadas, sendo que uma pessoa com aquelas lesões não tratadas previsivelmente/ normalmente/ consoante as regras da experiência/ virá a morrer atenta a sua gravidade, pois as mesmas não se curarão por si próprias (ou darão origem a infecções a necessitar de tratamento médico).
Assim tendo em conta que as lesões causadas pelo acidente de viação, por si sós, não foram consideradas causas de morte, mas que não sendo devidamente tratadas conduziriam á mesma morte, tem de se considerar, face á falta de prestação de cuidados de saúde pelo arguido, que a morte foi o resultado das lesões sofridas no acidente e da falta de tratamento médico devido ás mesmas, como concausas ou causas concorrentes.

Por outro lado tem de se considerar como provado que o arguido não representou como possível o resultado morte, não se conformando com tal possibilidade, agindo assim com negligência inconsciente, pois resultando da motivação da sentença a evidência da atitude negligente (veja-se só que devia ter visto no RX a fractura da D 12, e o que devia ter feito, para já não falar no período de OBS para se concluir pela negligência e só não lhe é imputável a titulo de negligência consciente, por falta de prova de ter representado a morte como possível, sendo no entanto de salientar, que o arguido como se refere na motivação desconhecia o quadro clínico que a vitima lhe apresentava, quando não devia, assumindo aqui especial relevo a violação dessas normas de cuidado (Comentário Conimbricense ao CP, Tomo I, pág. 108), tanto mais que estamos perante uma “ urgência grave” porque doente politraumatizado, correspondendo a um risco vital (as outras urgências são média e ligeiras) - Cfr. “Responsabilidade penal dos médicos” in www. extraído de J. A. Esperança Pina, in Responsabilidade dos Médicos, sendo certo que o médico “… embora seja um cidadão especialmente qualificado para lidar com os mais elevados bens da humanidade – a saúde e a própria vida; por isso é-lhe exigível especial atenção, especial respeito e esforço continuo em prol desses bens – há desde logo, desconhecimentos indesculpáveis (ou dificilmente desculpáveis) e, por outro lado, situações em que a fadiga ou o desconhecimento o deverão levar a não assumir certos encargos (para evitar falhas muitas vezes irremediáveis) mas a remete-los para quem esteja capaz de competentemente lhe dar resposta “in Maria da Conceição Pereira da Cunha “Algumas considerações sobre a responsabilidade penal médica por omissão “in, Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, pág. 813 - é a chamada “culpa por assunção “por assumir o encargo ao invés de o remeter para alguém competente. Cfr. nota 10.
É assim também de imputar o resultado morte á conduta negligente do médico, que não apenas não observou as normas de cuidado que lhe eram exigidas enquanto tal (cf. Comentário cit., pág. 108), como violou as regras legais, profissionais, e da experiência médica, sendo que o mesmo tem capacidade para observar tais regras, deveres e normas, sendo que a inobservância dos “cuidados” adequados, como resulta dos factos provados, abrangeu tanto o diagnóstico, como a prevenção e a “indicação médica” ou seja o tratamento idóneo / adequado (segundo os conhecimento e experiências da medicina) e a realização segundo as legis artis.
Dado que qualquer dos erros médicos verificados a este nível, excluem as intervenções médicas “licitas”, têm de se considerar preenchidos os elementos típicos do crime de que o arguido foi acusado, não existindo nenhuma causa que exclua a ilicitude da sua conduta ou a sua culpa ou que constitua causa de desculpa, tendo presente “… as obrigações médicas são “obrigações de meios” não de “resultados”, ou seja o médico apenas responde pelos resultados quando (como sempre acontece na responsabilização jurídica – quer civil quer penal) estes se possam imputar á conduta assumida…” in Algumas considerações, idem.. pág. 612, - (mas o médico pode prometer um resultado – Responsabilidade Médica em Portugal, Figueiredo Dias e Sinde Monteiro in BMJ 332, 46) - como ocorre no caso, sendo de afirmar a imputação objectiva do resultado á conduta quando para além de um dever de garante (que impende sobre o médico) se possa afirmar segundo um juízo ex ante, que o tratamento, que o médico podia prestar, era susceptível de impedir o resultado - Cfr. Taipa de Carvalho, in Comentário Conimbricense, II, pág. 1019, sendo de afirmar essa imputação sempre que a actuação do médico é segundo, o critério da potenciação do risco/ não diminuição do risco, adequada ao resultado verificado, quando como é o caso a morte foi consequência criada ou potenciada pela falta de prestação dos cuidados médicos devidos (pois só por si:“) A fractura do corpo vertebral da D12 indicava violência do traumatismo e justificava, por si só, o estudo radiológico da restante coluna.” o que não ocorreu, nem em face da situação de politraumatizada lhe foram feitos os exames necessários e adequados expressos no nº 7 dos factos provados).
È sem dúvida nestes casos que tem inteira aplicação, o ensinamento do Prof. Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, tomo I, 2ª ed. Coimbra ed. 2007, pag. 335: “ Sucede muitas vezes que, na situação, já está criado, antes da actuação do agente, um risco que ameaça o bem jurídico protegido. Não obstante, o resultado será ainda imputável ao agente se este, com a sua conduta, aumentou ou potenciou o risco já existente, piorando, em consequência, a situação do bem jurídico ameaçado. São objectivamente imputáveis, por conseguinte, condutas como a daquele que dá a morte a um paciente já moribundo, ou agrava o estado corporal de um doente…”

Aliás o primeiro sentimento que o homem médio expressa perante a actuação do arguido é de indignação e incompreensão, sinal de que notoriamente a sua conduta está errada, e, no caso, não há dúvida que, o médico teve uma actuação claramente insuficiente por um lado, não se inteirando do quadro clínico, não se deixando motivar nem pelas dores permanentes, nem pela fractura expressa no RX ou adequado período de OBS, e, omissiva por outro, que levou ao resultado morte, quando sobre ele impendia o dever jurídico-legal de efectuar o tratamento médico, de modo a evitar a verificação do resultado lesivo para a saúde e vida do doente - artº 284º CP e F. Dias e S. Monteiro, in Responsabilidade Médica em Portugal, cit., pág. 63 /64, não podendo por isso recusar o tratamento, e, pensar de outro modo era consentir o pensamento inumano de que a lesada podia ou não, ser tratada.
Assim, o resultado deve ser imputado objectivamente à conduta omissiva do médico que não prestou á lesada os cuidados médicos necessários e adequados a evitar o resultado, que a sua situação exigia segundo as legis artis e os conhecimentos da medicina (face “…a alta potencialidade do risco para com as pessoas que o seu incorrecto exercício comporta.” – Responsabilidade Médica em Portugal, ob cit. pág. 73) e de que dispunha, estando a tal pessoalmente obrigado e podendo fazê-lo, sendo que o resultado ocorrido, não se verificaria de modo normal e típico, se tivesse sido cumprido/ observado esse dever, pois a acção devida era idónea (segundo um juízo de prognose póstuma) a evitar o resultado, de acordo com as regras da experiência normais e as circunstâncias concretas conhecidas, e a omissão ocorrida é idónea a causar o resultado verificado, donde o risco decorrente da actuação do arguido se materializou no resultado que se veio a verificar, que não ocorreria se a acção do médico tivesse sido de acordo com os cuidados médicos adequados e necessários á paciente (cfr. F. Dias, ob cit. pág 336 a 338).
Deve assim e em conformidade ser alterada a matéria de facto, devendo em consonância com o expendido, retirar da matéria de facto não provada e acrescentar á matéria de facto provada o seguinte:
“7 A: Actos médicos, que á excepção dos referido em 6, o arguido não fez;
12 A: As múltiplas lesões traumáticas, descritas no relatório de autopsia e atrás mencionadas, com múltiplos hematomas praticamente generalizados e pequenas hemorragias parenquimatosas afectaram o funcionamento de diversos órgãos, lesões essas que associadas á falta de tratamento médico necessário e adequado, conduziram á morte da lesada.
12B – O arguido agiu voluntária, livre e conscientemente, e não procedeu com o cuidado devido, a que em face do estado em que se encontrava a ofendida, estava obrigado e de que era capaz, ao atender a lesada no serviço de urgência hospitalar, bem sabendo que isso lhe era proibido, não tendo contudo representado como possível que a mesma em virtude dessa falta de cuidados médicos e tratamento viesse a falecer;“
Em face do que se altera a redacção das alíneas:
- B): “nas horas seguintes tenha havido uma queda do hematócrito tendo no seu conjunto provocado uma falência multi-orgânica associada a choque hipovolémico;”
-C) “O arguido tenha representado como possível o resultado morte”
Elimina-se a alínea E), e acrescenta-se a expressão “em resultado delas” aos factos não provados da alínea D);
Assim e em face desta e da demais matéria de facto provada, verifica-se que se mostram preenchidos os elementos típicos objectivos e subjectivos do crime de homicídio negligente por omissão de que foi acusado.
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Na determinação da medida da pena, a aplicar ao arguido, atender-se-á ás exigências de prevenção e á sua culpa, suporte axiológico de toda a pena e seu limite máximo)- artº 71º1 CP, tendo em conta os fins das penas e a necessidade de ressocialização do arguido, e ainda nos termos do artº 71º2 CP, o grau de ilicitude do facto que se mostra elevado, o modo como decorreu, o resultado dos seus actos, e o elevado grau de violação dos seus deveres (sendo que no âmbito do Código Deontológico “que é a principal fonte de deveres no âmbito do exercício da profissão médica, estabelece como dever geral dos médicos a “prestação dos melhores cuidados ao seu alcance, agindo com correcção e delicadeza, no exclusivo intuito de promover ou restituir a Saúde, suavizar os sofrimentos e prolongar a vida, no pleno respeito pela dignidade do Ser humano” - Franco Caiado Guerreiro, in Guia da Responsabilidade dos Médicos, pág. 9, disponível na pesquisa em www.) em que bastava ter um mínimo de cuidado quer ao falar com a vitima quer ao ver o RX, para ter evitado todo o mal (vide: motivação da sentença), a negligência inconsciente, as suas condições pessoais e situação económicas (casado, médico, a sua idade,) a ausência de prova de antecedentes criminais, e o teor das suas declarações expressas na motivação.
Em face desses dados de facto, afigura-se-nos - por estarmos perante uma concorrência de factos que se predispuseram para o resultado, apenas em parte imputável á conduta do arguido (embora maior, porque as lesões por si sós não conduziam á morte), á data dos factos (2001) e as necessidades da pena sofreram alguma atenuação, - que a aplicação da pena de multa prevista no tipo legal, realiza nesta altura de forma adequada e suficiente as finalidades da punição e por isso por ela optamos (ao abrigo do artº 70º CP).
E em face daqueles factos, cremos ser justa e adequada ao arguido a pena de 200 dias de multa á taxa diária de 15.00€, no total de 3.000,00 €, pena esta que é a mais favorável em face da alteração legislativa em vigor desde 15/9/07 emergente da Lei 59/07, que não tendo alterado o tipo incriminador ou a pena, alterou no que ao caso concerne a taxa diária da multa cujo mínimo passou para 5.00€ (artº 47º2 CP), e em face do que a taxa diária actual não deveria ser inferior a 20,00€;
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Pelo exposto, o Tribunal da Relação do Porto, decide
- Julgar procedente o recurso interposto pelos assistentes, e em consequência:
- Como autor de um crime de homicídio por negligência, p. p. pelos artºs 137º, 26, 10º CP/95, e ponderando o disposto nos artºs 70º e 71º, e 2º4 CP por mais favorável, condena o arguido E………., na pena de duzentos (200) dias de multa á taxa diária de quinze Euros (15.00 €), o que perfaz três mil euros (3.000,00 €)
Condena o arguido no pagamento da taxa de justiça de 10 UC a que acresce 1% nos termos do artº 13º DL 421/93, e nas demais custas, com a procuradoria a favos dos SSMJ;
Boletim á DSIC;
Comunique á Inspecção Geral de Saúde;
Registe e Notifique
DN
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Porto, 12/11/2008
José Alberto Vaz Carreto
Joaquim Arménio Correia Gomes
Manuel Jorge França Moreira
José Manuel Baião Papão