Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0854752
Nº Convencional: JTRP00041892
Relator: ANABELA LUNA DE CARVALHO
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRA CONTRATUAL
CULPA
Nº do Documento: RP200811240854752
Data do Acordão: 11/24/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA.
Indicações Eventuais: LIVRO 358 - FLS 107.
Área Temática: .
Sumário: I - Constitui ilícito civil a conduta de uma instituição do ensino superior que embora conhecendo o conteúdo de um “Código de Praxe” ofensivo, e intimador, violador da dignidade da pessoa humana, permite que o mesmo continue a ser aplicado.
II - Tal instituição tem o dever específico de respeitar, fazer respeitar e promover direitos fundamentais, como o respeito mútuo. A liberdade, a solidariedade, a dignidade da pessoa humana.
III - Como tal a instituição tem a obrigação de indemnizar quem tenha sido ofendido pelas ditas praxes académicas, relativamente aos danos patrimoniais e morais.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: APELAÇÃO Nº 4752/08-5
5ª SECÇÃO


Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I
B………., residente na ………., bloco . - ….., ….-… Chaves, intentou a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum ordinário, contra “C……….”, com sede na Rua ………., apartado …, ………., ….-… ………., Vila Nova de Gaia, pedindo se condene a ré no pagamento da quantia de € 67.740,67, a título de indemnização por danos morais e patrimoniais, acrescida de juros de mora desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Em fundamento da sua pretensão, e em síntese, a autora alegou que: no dia 14/09/2002 matriculou-se na D………., criada pela ré no âmbito do seu objecto, no curso de fisioterapia; no início das aulas, nos dias 14/10/2002 e 15/10/2002, nas instalações daquela escola, foi sujeita a várias práticas humilhantes de praxe, que descreve; devido à situação a que foi submetida, dirigiu uma carta ao Presidente do Conselho Executivo do C………. de Macedo de Cavaleiros, datada de 13/11/2002, cuja cópia consta de fls. 29 a 31; na sequência dessa carta, foi convocada para uma reunião no dia 3/12/2002; tal reunião foi promovida pela ré com o único intuito de humilhar e intimidar a autora; por causa dessa reunião, a autora sofreu danos morais, que discrimina, avaliados em € 20.000,00; em consequência dos actos de praxe a que foi sujeita, que só aconteceram porque a ré o permitiu, a autora sofreu danos morais, que discrimina, avaliados em € 30.000,00; a autora sofreu ainda danos patrimoniais, que de igual modo discrimina, no valor total de € 17.740,67.
A ré apresentou contestação, impugnando a maioria dos factos alegados na petição inicial, sustentando que nenhuma responsabilidade lhe pode ser assacada pelos danos invocados pela autora e concluindo pela improcedência da acção, com a sua consequente absolvição do pedido.
A autora deduziu réplica, mantendo a posição assumida na petição inicial.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, no decurso da qual a autora e a ré peticionaram a condenação recíproca em multa e indemnização como litigantes de má fé, tendo sido proferida sentença que julgou a acção improcedente e, em consequência, absolveu a ré do pedido.

Inconformada com tal decisão, dela veio recorrer a Autora, concluindo do seguinte modo as suas alegações de recurso:
1 – A autora sofreu danos de natureza patrimonial no montante de € 13.537,97 a título de danos emergentes e de lucros cessantes.
2 – O procedimento disciplinar destina-se a avaliar a natureza, o alcance, e a dimensão da conduta do aluno infractor face às individualizadas e especificadas regras exigidas pelo bom e salutar funcionamento do estabelecimento de ensino.
3 – A ré aplicou à autora a sanção de repreensão escrita pela forma subjectiva e excessiva como relatou os factos, que sabia não terem a gravidade que decorrem da sua exposição.
4 – A ré actuou em Abuso de Direito ao aplicar a sanção à autora já que a sanção que lhe foi aplicada foi-o para punir uma infracção que não está prevista no Regulamento Disciplinar, sendo certo que a autora denunciou factos que se vieram a apurar ser verdadeiros – a denúncia da autora não foi caluniosa nem para com os colegas, nem para com os órgãos da escola.
5 – A ré foi no mínimo negligente ao aplicar a sanção à autora, não ponderando o regulamento disciplinar e as demais circunstâncias do caso, não agindo criteriosamente como lhe era exigível.
6 – A ponderação dos factos «Após a deliberação de lhe ser aplicada uma sanção disciplinar a autora sentiu-se indignada e revoltada» e «Após a deliberação de lhe ser aplicada uma sanção disciplinar a autora anulou a matrícula» permite, ao abrigo do artigo 349º do CC firmar a conclusão de que a autora anulou a matrícula devido à sanção que lhe foi aplicada.
7 – Foi a conduta da ré de aplicar a sanção à autora que a obrigou a anular a matrícula e a sofrer os danos de natureza patrimonial, não tendo ocorrido qualquer circunstância extraordinária ou anómala entre o acto do agente (ré) e os danos sofridos pela autora.
8 – A sentença recorrida encontra-se inquinada com o vício de erro de julgamento por erro de interpretação dos artigos 483º, 349º e 563º todos do Código Civil.
9 – No dia 14.10.2002, no âmbito da recepção aos caloiros, dentro do E………. da ré em Macedo de Cavaleiros, foi ordenado à autora que vestisse do avesso a roupa da cintura para cima e que colocasse o soutien do lado de fora da roupa, que simulasse orgasmos com um poste de iluminação, que rebolasse na relva, que carregasse com os arreios de um burro.
10 – Os actos de praxe a que a autora foi sujeita são aptos a provocar danos de natureza não patrimonial, nomeadamente a tristeza e humilhação sentidas.
11 – Os actos de praxe referidos em 9) foram praticados com conhecimento e permissão da ré – a ré bem sabia que se praticavam actos de praxe violadores dos direitos de personalidade dos novos alunos e, só por isso, fazia questão de na primeira reunião a que estes se apresentavam, informar expressamente de que se podiam recusar a qualquer praxe que considerassem atentar contra os seus princípios e valores.
12 – A informação dada aos novos alunos a que se refere o número anterior não preenche o dever jurídico de agir que impendia sobre a ré – tal dever jurídico de agir impunha à ré obrigações, tais como, controlar e, eventualmente sancionar, caso fosse necessário, as praxes violadoras de direitos da personalidade ou, em alternativa, proibir actos de praxe dentro das suas instalações.
13 – A ré tinha o dever jurídico de agir porque:
- os alunos são subordinados da escola na medida em que estão sujeitos à acção disciplinar, sendo a ré obrigada a velar pela sua segurança;
- para Menezes Cordeiro um esforço mínimo da ré teria evitado os danos sofridos pela autora;
- para Maia Gonçalves, a omissão da ré é ilícita porque a tal estaria obrigada pela moral e pelos bons costumes;
- para Figueiredo Dias, a omissão da ré é ilícita pois tal ofende os mais elementares princípios de solidarismo social.
14 – A ré agiu com culpa, na medida em que agiu inconvenientemente embora lhe tivesse sido possível, com o cuidado exigível e diligência devida ou com boa vontade, comportar-se em termos convenientes.
15 – Para apurar se a autora consentiu nas praxes não é relevante o que a mesma declarou no Auto de Depoimento mas, se consentiu tacitamente no momento em que as praxes lhe estavam a ser aplicadas.
16 – A autora não tinha capacidade para se recusar verificado o condicionalismo de se encontrar face a uma série de alunos, com a autoridade que lhes advém do trajar académico, que lhe davam ordens, ordens essas que a autora estava convencida que era obrigada a cumprir.
17 – Por um lado, a autora estava convencida que era obrigada a cumprir as ordens – erro na formação da vontade;
18 – Por outro lado, a própria atitude dos colegas funcionou como coação pois quando a autora começou a chorar, demonstrando a sua tristeza e a sua humilhação, as praxes não pararam, pelo contrário, os colegas esperaram que se acalmasse para continuarem a dar ordens.
19 – A resposta da autora de que o seu choro se devia ao impacto do primeiro dia, não é razoável ser aceite pelo agente como sinal de consentimento, mas sim de como receio de advir ainda pior se confessasse a sua tristeza e humilhação e a sua vontade de não receber mais ordens.
20 – Segundo Claus Roxin nunca se poderá considerar consentimento eficaz se só o receio do pior permite que a vítima aceite a lesão dos seus bens jurídicos.
21 – Por fim, as praxes a que a autora foi sujeita ofendem a moral pública, já que nenhum membro da nossa comunidade simularia orgasmos e carregaria com os arreios de um burro sem se sentir atingido nos seus mais elementares princípios e valores; também nenhum membro da nossa comunidade lhe passaria pela cabeça dizer a alguém para simular orgasmos e carregar com os arreios de um burro, a não ser que tal pessoa se encontrasse despida de princípios morais.
22 – A autora não poderia ter confessado, como se diz na sentença em crise, que as ordens que recebeu não haviam sido feitas com malícia ou com carga sexual, porque tal confissão só poderia ter sido feita pelo agente, nunca pela autora.
23 – A sentença recorrida violou, por erro de julgamento, os artigos 340º e 486º do Código Civil.
24 – A autora provou os danos morais decorrentes da reunião de 03.12.2002, nomeadamente que lhe foram receitados ansiolíticos e anti depressivos e que a partir de Janeiro de 2003 passou a deslocar-se à escola unicamente para realizar frequências e exames.
25 – Por outro lado, as próprias circunstâncias da reunião aludida em J) dos factos assentes, dizem-nos que todos os presentes, excepto as duas representantes da ré detinham para a autora referência por ela classificadas como negativas pelas suas intervenções nos actos de praxe.
26 – Os factos assentes em J) são suficientes para, apelando ao disposto no artigo 349º do CC, retirar a ilação de que tais actos são aptos a provocar danos morais e, objecto obrigatório de prova são apenas os factos de que o julgador infere outros; quanto às ilações que o tribunal retira dos factos assentes não necessitam de ser provados, pois baseiam-se nas regras de experiência e o conhecimento destas, o tribunal deve ter e se não tiver, deve procurar obter.
27 – A autora provou os danos sofridos com a reunião de 03.12.2002.
28 – A ré, pessoa colectiva privada incumbiu as suas duas funcionárias de convocar a autora para a reunião de 03.12.2002.
29 – As ditas funcionárias actuavam por conta da ré, daí resultando a responsabilidade desta pelos danos causados por aquelas no exercício das suas funções – artigo 500º do CC.
30 – Cabia então à ré provar que não agiu com culpa, nem cometeu nenhum ilícito na forma como convocou e conduziu a reunião em causa – inversão do ónus da prova por força da presunção de culpa operada pelo artigo 500º do CC.
31 – A ré apenas provou que as reuniões foram realizadas com o intuito de esclarecer os factos relatados pela autora, mas não logrou provar que, apesar dessa intenção, tenha agido com a conduta exigível a um bom pai de família e que não tenha agido em claro abuso de direito, como lhe competia.
32 – Só fazendo tal prova se poderia dizer que a autora se apresentou na reunião com conhecimento do que ia encontrar, nomeadamente a quantidade de antagonistas que iria encontrar.
33 – Ubi commoda, ubi incommoda.
34 – A sentença recorrida incorreu em erro de julgamento, por errada interpretação das normas contidas nos artigos 344º, 349 e 500º do Código Civil.
A final requer que seja feita justiça.

Contra-alegou a Ré, pugnando pela manutenção do julgado.
II
O Tribunal “a quo” deu como provada a seguinte matéria de facto, completada em itálico por factualidade acrescentada por esta Relação, nos termos do artigo 712º alª a) do CPC:
1) A Ré é uma cooperativa de ensino cujo objecto é criar e manter estabelecimentos destinados a ministrar o ensino superior, e dentro deste âmbito, desenvolver estruturas educativas, sociais, assistenciais, de investigação, culturais, desportivas turísticas, construção de obras próprias e actividades laborais, bem como todas as demais nomeadamente colóquios, conferências e semanários, edições divulgação e comercialização de livros e publicações da sua especialidade que se afigurem como apoio económico e logístico ao desenvolvimento da instituição, dos seus beneficiários e comunidades de que faz parte, a fim de participar de forma activa no desenvolvimento humano, integral e ecológico dos diferentes grupos etários e sociais em cada sociedade, e das diferentes etnias, comunidades e povos, e com sede na ………. (actual Rua ……….), ………., Vila Nova de Gaia, registada na Conservatória do Registo Comercial de Vila Nova de Gaia, sob o n.º 45.
2) No âmbito do seu objecto a Ré criou a D………. .
3) No dia 14 de Setembro de 2002, a Autora matriculou-se na D………., no curso de fisioterapia.
4) As aulas começaram no dia 14/10/2002.
5) No início das aulas, no referido dia 14/10/2002, durante a manhã, a Autora participou numa reunião de alunos do 1.º ano do curso de fisioterapia, com a directora, a coordenadora do 1.º ano do curso de fisioterapia e mais dois docentes da turma, na qual foi feita a apresentação da escola e do curso.
6) A Autora faltou às aulas nos dias 17 e 18 de Outubro de 2002 e recomeçou a frequência das aulas no dia 22 de Outubro de 2002.
7) A Autora remeteu ao Presidente do Conselho Executivo do E………. de Macedo de Cavaleiros do C………., que a recebeu, a carta datada de 13/11/2002, cuja cópia consta de fls. 29 a 31 e que se dá por totalmente reproduzida, e dirigiu ainda carta de igual teor ao Ministério da Ciência e do Ensino Superior.
É do seguinte teor a referida carta:
“Ex mo. Sr. Presidente do Conselho Executivo do C………. de Macedo de Cavaleiros
Excelência:
Eu, B………., com dezoito anos de idade, estudante número ………., e aluna do 1° ano do curso de fisioterapia no D……… de Macedo de Cavaleiros, venho por este meio informar vossa excelência, do meu descontentamento para com as praxes realizadas neste estabelecimento de ensino.
Desde o dia 14 de Outubro até ao dia 16 de Outubro, vivi nesse instituto momentos que me levaram a uma depressão (atestado comprovativo), devido à humilhação que me fizeram sentir os alunos dos 2° e 3° anos do curso de fisioterapia (desconheço os respectivos nomes, mas sou capaz de identificá-los pessoalmente)
Muitas das coisas que me obrigaram a fazer foram de encontro à educação que recebi, confrontando-se com os princípios e os valores que defendo.
No decorrer desta carta terei oportunidade de citar as atitudes maliciosas e muito desagradáveis que fui obrigada a ter, devido a ordens que me foram incutidas durante os dois dias referidos anteriormente.
Assim, serão proferidas palavras, incluindo calões de elevado grau, que posteriormente irei citar, que retractarão a veracidade deste meu descontentamento.
Sendo assim, passo a citar os momentos mais desagradáveis que tive de realizar nas praxes, e que afectaram o meu estado psicológico.
Tive que:
• Despir a roupa que trazia vestida na rua, com o intuito de a vestir do lado avesso, sendo apenas encoberta por duas capas negras, e posteriormente na casa de banho masculina, pois alegaram que as femininas estavam encerradas:
• Usar a roupa interior, mais concretamente o soutien, por cima da roupa que trazia vestida, sendo a única da minha turma nessas condições, o que me fez sentir menosprezada em relação aos outros;
• Ajoelhar-me, com as mãos no solo (coloquei-me de quatro como referiam), sempre que aparecia um aluno do curso de fisioterapia, tendo que proferir as seguintes palavras «Eu reles e triste caloira, dez palmos abaixo de merda, cinco abaixo de cão, um acima de polícia, filha de mãe virgem e de pai desconhecido...». Tive então, que repetir isto inúmeras vezes, sempre que alguém sugerisse que me apresentasse;
• Simular orgasmos com um poste de iluminação, posteriormente com uma planta, se não conseguisse excitá-la, o que seria traduzido pelo crescimento desta, estaria «fodida» (palavra preferida por elementos que me incutiram a ordem);
• Gatinhar sobre a relva molhada, no campo de terra, fazendo corridas, o que provocou o aparecimento de nódoas negras nos joelhos e nas mãos;
• imitar um asno, usando na minha cabeça um selim grosseiro próprio para animais de carga, preferindo sons característicos desses animais, enquanto me puxavam com uma corda e em voz alta diziam «Olha a burra!»;
• Questionaram-me se era virgem e respondi que a partir do momento que colocassem questões relativas à minha intimidade não responderia. Sendo assim, obrigaram-me a rebolar na lama durante o tempo que eles determinaram. Regressando, voltaram a fazer a mesma pergunta, à qual não voltei a responder.
Então, mandaram-me rebolar numa bancada, onde não conseguia fazê-lo, pois as dimensões eram inferiores ao meu comprimento. Assim, aleguei que não conseguiria e disseram desenmerde-se»;
Simular actos sexuais com colegas de turma, até então desconhecidos, tendo que demonstrar momentos de prazer, obrigando-me a proferir palavras como «quero mais», «quero uma pilinha», «enterra-ma toda», «não pares» e outras de muito baixo nível.
Ameaçaram-me que iriam buscar-me a casa, caso não saísse à noite. Que me obrigariam a empurrar um carro, que o «F» que se encontrava na lista de nomes de caloiros, não significaria falta, mas sim «fodida»;
• Colocaram-me no meio de um campo de futebol, completamente isolada com as mãos na cabeça e de joelhos, pelo tempo que eles determinaram;
• A partir de um momento comecei a chorar, não me encontrando muito bem, e mesmo assim não fui dispensada para poder recompor o meu estado emocional.
Tudo isto, não passam de exemplos, talvez os que mais marcaram o meu estado psicológico e que me levaram a ser considerada impossibilitada para frequentar as aulas, pois não me encontrava nas perfeitas condições para voltar a encarar tal pessoas (alunos que realizaram as praxes).
Sendo assim, restou-me declarar anti-praxe, estando impossibilitada de «praxar» nos próximos anos, de usar o traje e de participar em algum evento académico.
Tive que regressar a Chaves, faltando às aulas como é previsível.
É importante também destacar as preocupações e as despesas acrescidas que os meus pais tiveram, com tudo isto que me sucedeu.
Denuncio este meu descontentamento apenas agora, pois receava que quando tivesse que voltar a frequentar as aulas, fosse menosprezada ou mesmo ofendida pelos elementos que me «praxaram», o que me levaria a denunciar tudo isto nesta precisa carta.
Lamento imenso o que se sucedeu, e que infelizmente pessoas que frequentam o ensino superior tenham comportamentos infantis com uma enorme falta de educação e de respeito com o próximo e que se comportem como pessoas frustradas. Infelizmente, recorreram a todo o momento à humilhação, tornando-me subalterna das suas ordens, completamente desapropriadas a um espírito académico.
É verídico, que não conseguirei apagar da minha memória todos os momentos desagradáveis que vivi e nem recuperar um óptimo estado psicológico.
Contudo, espero que seja feita alguma coisa, incluindo uma chamada de atenção e uma repreensão a estes alunos E quem sabe uma fiscalização às praxes realizadas, pois estas continuam a decorrer sem serem colocados limites às ordens que tendem a incutir.
É realmente penoso saber, que na sociedade em que vivemos para podermos ingressar no ensino superior, temos que encarar pessoas que não têm um mínimo de educação, nem de consideração com jovens que passam por uma mudança nas suas vidas, desde o abandono temporário da sua cidade, casa, família, amigos...
Ingressei no ensino superior com o objectivo de tirar um curso e ser uma boa profissional, mas da forma como fui confrontada com esse tal espírito académico, certamente terei uma visão um tanto ou quanto pessimista.
Espero que sejam tomadas as devidas atitudes, para que situações como estas não voltem a suceder, para que se possam formar pessoas muito mais civilizadas, que não usem a humilhação para se destacarem na nossa sociedade.
Agradecia poder receber uma resposta.
Sem mais nenhum assunto de momento,
Atenciosamente (B……….)
PS. Foi enviada uma carta igual a esta ao Ministério da Ciência e do Ensino Superior.
Chaves, 13 de Novembro de 2002”.
8) Na última semana de Novembro, na sequência do aludido em 7), a Autora foi convocada para, numa reunião com a directora do C………. de Macedo de Cavaleiros, identificar, por fotografia, os alunos que a teriam submetido a actos de praxe.
9) No dia 3/12/2002, a Autora foi convocada para uma nova reunião, tendo-se a Autora apresentado nessa reunião acompanhada do pai, cuja presença não foi admitida pela ré.
10) Na reunião aludida em 9), encontravam-se presentes a directora da escola Dra. F………., a coordenadora do curso de fisioterapia, os alunos identificados pela Autora como sendo os praticantes da praxe a que teria sido sujeita e toda a comissão de praxe, sendo que todos os alunos presentes, excepto a Autora, ostentaram o traje académico, tendo tal reunião demorado três horas.
11) A direcção do E………. de Macedo de Cavaleiros do C………. informou a Inspecção-Geral de Educação que a reunião havia sido inconclusiva por existirem vários intervenientes, cada qual com a sua opinião.
12) Por deliberação da Direcção da D………., com data de 23/01/2003, foi aplicada à Autora a seguinte sanção: “repreensão escrita à aluna, pela forma subjectiva excessiva como relatou os factos, que sabia não terem a gravidade que decorre da sua exposição, tal como ela própria reconheceu. No entanto, considerando a atenuante de ter apresentado os acontecimentos aos órgãos (Direcção) da Escola, esta sanção não fica sujeita a registo”.
13) Tal deliberação foi notificada à Autora.
14) Em 26/02/2003, a Autora anulou a matrícula na D………. . 15) A Autora residia em Chaves.
16) A Autora desde Julho de 2002 havia arrendado um apartamento em Macedo de Cavaleiros, a fim de frequentar as aulas.
17) No dia 14/10/2002, no âmbito da recepção aos caloiros, e já depois da reunião aludida em 5), a Autora foi sujeita a vários actos de praxe por parte de outros alunos, dentro do D……… da Ré em Macedo de Cavaleiros, designadamente, foi-lhe ordenado que vestisse do avesso a roupa da cintura para cima e que colocasse o soutien do lado de fora da roupa, tendo tal mudança da posição da roupa e do soutien sido feita resguardada de olhares alheios, na casa de banho.
18) À Autora foi ainda ordenado que simulasse orgasmos com um poste de iluminação.
19) À Autora foi ainda ordenado que rebolasse na relva.
20) À Autora foi ainda ordenado que carregasse com arreios de um burro.
21) A Autora, enquanto durou a sua praxe, esteve triste.
22) A Autora não se recusou a ser praxada.
23) A Autora no dia 16/10/2002 comunicou à comissão de praxe a sua vontade de se declarar anti-praxe.
24) Em consequência da praxe a que foi sujeita a Autora sentiu-se triste e humilhada.
25) Por causa do referido em 24), a Autora teve baixa médica por dez dias.
26) Em virtude de tal baixa médica, a Autora faltou às aulas como o aludido em 6).
27) A Autora recomeçou a frequentar as aulas antes de terminar o período de doença fixado no atestado médico, como aludido em 6), por não querer perder as aulas.
28) Na reunião referida em 8), a Autora identificou alguns dos alunos que a haviam praxado.
29) A praxe no E………. de Macedo de Cavaleiros estava regulada no documento de fls. 74 a 88, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
Ressalva-se do documento, o seguinte:
“DA COMISSÃO DE PRAXE
Constituição/Designação/Fins
Artigo 1°
A Comissão de Praxe do D………. de Macedo de Cavaleiros é constituída por alunos matriculados neste Instituto tendo, obrigatoriamente, pelo menos três matriculas no Instituto, salvo os cursos que têm duração de três anos que podem fazer parte a partir da segunda matricula. (…)
Objectivos
Artigo 3°
a) Organizar, programar, concretizar, coordenar e fiscalizar todas as actividades inerentes à realização da Recepção ao Caloiro e a todas as actividades de praxe que sejam realizadas.
b) Fazer cumprir, respeitar e honrar o Presente Código de Praxe e todas as Tradições Académicas do D………. — Macedo de Cavaleiros. (…)
Artigo 5º
Podem ser convidados a fazer parte desta Comissão de Praxe, seguindo o artigo 6°, qualquer aluno matriculado no D………. — Macedo de Cavaleiros, respeitando obrigatoriamente as seguintes determinações:
a) Respeitar o artigo 1º deste regulamento;
b) Respeitar os valores morais e humanos da vida em sociedade;
c) Ter um historial reconhecido de participação na vida académica do D………. — Macedo de Cavaleiros;
d) Ser proposto por, pelo menos, dois elementos da Comissão De Praxe para avaliação em Reunião Magna. (…)
Artigo 12°
Constitui praxe académica o conjunto de usos e costumes tradicionais existentes entre os estudantes do D………. de Macedo de Cavaleiros (os que forem decretados pela Comissão de Praxe).
Artigo 14°
0) VERMES — Pertencem à categoria de Vermes os alunos de cursos superiores que no D………. — Macedo de Cavaleiros estejam pela primeira vez, sem que antes se tenham matriculado em qualquer estabelecimento de ensino superior, português ou estrangeiro, e que ainda não possuam o Baptismo e o Diploma de caloiro.
1) CALOIROS — Pertencem à categoria de Caloiros os alunos de cursos superiores que no D………. — Macedo de Cavaleiros estejam matriculados pela primeira vez e sem que antes se tenham matriculado em qualquer estabelecimento superior, português ou estrangeiro, que já possua Baptismo e Diploma de Caloiro.
2) BOSTA — pertencem à categoria de Bosta os alunos que tenham recusado a praxe, nos moldes do artigo 20º.(…)
9) COMISSÃO DE PRAXE — Esta categoria tem como função fiscalizar as praxes executadas aos caloiros, sendo o posto mais alto na hierarquia de praxe do D………. — Macedo de Cavaleiros. (…)
Artigo 17°
a) O período de praxe conta-se a partir do primeiro dia de abertura oficial do ano lectivo até às duas horas da noite de serenatas, na semana académica.
b) O período de recepção ao caloiro é determinado pela Comissão De Praxe, mas deve realizar-se obrigatoriamente no decorrer do primeiro mês de aulas do ano lectivo decorrente. (…)
Artigo 20°
a) À bosta são impostas as seguintes condições:
1) Não pode utilizar, em caso algum, o Traje Académico;
2) Não pode participar em qualquer actividade Académica, sela ela festa, reunião, colóquio, conferência, A.E., Comissão de Queima. Queima das Fitas, Tuna Académica, Etc..
3) Não pode apresentar-se como aluno do D………. — Macedo de Cavaleiros em situação alguma, exceptuando o ponto 6) da alínea a) do presente artigo, sob pena de processo criminal passível, através da legalização da A.E., como consta em Diário da República.
4) Devem ser ignorados socialmente pelo alunos do D………. — Macedo de Cavaleiros.
5) São ignorados academicamente pelos alunos do D………. — Macedo de Cavaleiros, pelo ponto 2) da alínea a) do presente artigo.
6) Cabe à Comissão de Praxe dar autorização expressa da designação de aluno do D………. — Macedo de Cavaleiros, em qualquer situação à Bosta.
7) Para que nunca seja esquecido, o nome da Bosta ficará registado no livro de Actas da Comissão de Praxe, que será afixado durante o período de praxe.
b) Ao verme é imposta toda a alínea c) deste artigo, com a agravante da submissão total à praxe, sem excepção.
e) Ao caloiro é imposto:
1) Sujeitar-se à praxe pelos Doutores, Enfermeiros, Fisioterapeutas, de acordo com o artigo 29° deste código.
2) Ao caloiro é-lhe vedado o uso do traje académico em situação alguma;
3) Não pode apresentar queixa directamente à Comissão de Praxe, apenas podendo estas serem apresentadas através de um Doutor, Enfermeiro ou Fisioterapeuta trajado;
4) O caloiro tem de se sujeitar às sanções proferidas pela Comissão de Praxe, incorrendo pelo não cumprimento à condição prevista em todos os pontos da alínea c) deste artigo. (…)
Artigo 29°
O caloiro só é praxado nos locais declarados a céu aberto, estando protegido de qualquer tipo de praxe na sua própria casa, não sendo permitido retirá-lo daí pela força. Os locais de céu aberto serão todo o recinto do D………. — Macedo de Cavaleiros e todas as ruas e locais ao ar livre em Macedo de Cavaleiros. Todos os outros locais como bares e outros recintos fechados só serão declarados céu aberto após deliberação da Comissão De Praxe e com aviso prévio de 12 horas ou, em casos excepcionais, no momento.
Artigo 30°
Sendo o caloiro uma besta, asno, quadrúpede, jumento ou ainda pedaço de burro, a posição que se lhe adequa e se aconselha aos excelentíssimos Doutores, Enfermeiros e Fisioterapeutas é de quatro com os cascos dianteiros assentes (e não “acentes” como escrito no texto) no chão. (…)
Das proibições
Artigo 32°
É proibido em praxe:
a) Expolir (decerto “espoliar) dinheiro aos caloiros, ou fazê-los expolir (espoliar) a terceiros;
b) Atentar contra a moral e integridade física do caloiro tais como: espancamento, abuso ou assédio sexual, etc.
c) Permitir que elementos não matriculados no D………. — Macedo de Cavaleiros ou em outra faculdade praxem os caloiros, ficando o Doutor, Enfermeiro ou Fisioterapeuta que o permitiu ou proporcionou sujeito a sanções por parte da Comissão De Praxe;
d) Obrigar o caloiro, contra sua expressa vontade a ingerir bebidas alcoólicas ou outra substância que altere o seu comportamento;
e) Outras proibições expressamente declaradas pela Comissão De Praxe”.
30) Em caso de recusa de praxe, a comissão aplicava as sanções aludidas em tal documento.
31) Tal documento estava afixado no E………. da Ré e era do seu conhecimento.
32) A Ré conhecia o referido em 29) e 30).
33) A Ré não proibia a actividade da praxe.
34) A Ré em 6/01/2003 suspendeu as actividades relacionadas com a praxe.
35) A partir de Janeiro de 2003 a Autora passou a deslocar-se à escola unicamente para realizar as frequências e exames.
36) Em 30 de Janeiro 2003 foram receitados à Autora ansiolíticos e antidepressivos, para debelar sintomas ligados a depressão e stress.
37) Em consequência da deliberação aludida em 12) (que aplicou à autora a sanção de repreensão escrita) a autora sentiu-se indignada e revoltada.
38) Após a deliberação aludida em 12) a Autora anulou a matrícula.
39) A Autora só regressou ao ensino superior no ano lectivo 2003/2004, tendo perdido um ano.
40) Até há cerca de dois anos os alunos que acabavam o curso de fisioterapia na Ré normalmente arranjavam logo emprego e ganhavam em média € 700,00 mensais.
41) No ano lectivo de 2002/2003, a autora pagou à ré em propinas e taxas moderadoras a quantia de € 2.175,00, que lhe foi entregue para o efeito pelos pais.
42) Em rendas de Julho de 2002 a Fevereiro de 2003, a Autora pagou o montante de € 890,00, que lhe foi entregue para o efeito pelos pais.
43) A Autora pagou em despesas com água, luz e telefone, naquele período, o montante total de € 375,46, que lhe foi entregue para o efeito pelos pais.
44) A autora gastou em material escolar o montante de € 235,21, que lhe foi entregue para o efeito pelos pais.
45) Nas respectivas consultas médicas a que se referem 25) e 36), a Autora gastou o montante de € 65,00, que lhe foi entregue para o efeito pelos pais.
46) As reuniões referidas em 8) e 10) foram realizadas pela ré com o intuito de esclarecer os factos relatados pela Autora na exposição aludida em 7) , ou seja, na carta de 13/11/2002.
47) O documento referido em 29) (regulamento da comissão de Praxe) estava afixado no placard reservado aos alunos.
48) A Autora reconheceu e confessou, em depoimento prestado posteriormente à sua denúncia dos factos: que em tempo algum ficou totalmente despida; que quando virou a roupa do avesso estava encoberta por duas ou três capas do traje académico; que talvez tenha sido a falta de informação que a levou a acreditar que teria mesmo que cumprir as ordens dos colegas, nomeadamente a de simular orgasmos com postes de iluminação e com uma planta; não considerar que essas situações fossem feitas com malícia nem com uma carga sexual mas sim com a intenção de brincar com a situação; não considerar que tenha sido abusada sexualmente; que as corridas nos campos de terra se destinavam a ver quem ganhava e que todos os outros caloiros também foram obrigados a rebolar na relva; que a perguntas dos outros colegas sobre se estava triste respondeu que era o impacto do primeiro dia pelo que estes não deveriam ligar; que os colegas lhe afirmaram que tudo o que estavam a fazer era na brincadeira; que quando começou a chorar os colegas mais velhos aguardaram que se acalmasse para depois recomeçarem a praxe; que posteriormente compreendeu que quando lhe perguntaram se era virgem os colegas estavam a referir-se ao signo e que se fosse hoje levaria a pergunta para a brincadeira; que ninguém a violentou sexualmente; que apesar de ter apresentado um atestado médico por dez dias apenas faltou 3 dias por não querer perder as aulas.
49) Consta de fls. 32/44 dos autos uma Informação da Equipa Inspectiva designada pela Inspecção-Geral de Educação, Delegação Regional do Norte, para apurar os factos denunciados pela Autora, donde consta, o seguinte:
“(…) foram realizadas, no dia 10 de Janeiro de 2003, duas reuniões distintas, uma com o Presidente do E………. do C………. de Macedo de Cavaleiros e com a Presidente da Direcção da D………. e a outra com a aluna B………. .
(…) Resultado da reunião com a aluna B………. .
No inicio da reunião a aluna manifestou à equipa inspectiva que gostaria de fazer uma descrição e uma abordagem sequencial dos factos ocorridos, dado que, até ao momento, não lhe tinha sido facultada a oportunidade de explicar os acontecimentos, a forma como os viveu e o modo como os interiorizou, face aos seus princípios e valores.
Suportando-se no conteúdo da sua carta, reafirmou o seu teor e foi explicando pormenorizadamente os factos ocorridos.
Assim, confirmou que, no dia 14 de Outubro de 2002, da parte da manhã, participou numa reunião de alunos do 1.° ano do Curso de Fisioterapia, com a Directora, a Coordenadora do 1º ano do Curso e mais duas docentes da Turma, na qual foi feita a apresentação da Escola e do Curso.
Ao sair desta reunião, no átrio da Escola, duas alunas colocaram-lhe as capas à volta e deram-lhe ordens para se despir, tornar a vestir-se do avesso e pôr o soutien por cima da roupa. Durante o resto da manhã andou assim vestida, sendo a única a quem foram dadas essas ordens. Entretanto, foram-lhe dadas outras ordens, entre as quais, ajoelhar, gatinhar e entoar cânticos com palavras obscenas. A forma de abordagem foi feita, sempre, com altivez o que lhe provocou um certo medo. Sentiu-se assustada, mas apesar de contrariada, fez tudo o que lhe mandaram porque estava convencida que não tinha outra alternativa e também porque não queria ser discriminada.
Na hora do almoço, em sua casa, vestiu-se normalmente. No regresso à escola uma das alunas ordenou-lhe para vestir novamente a roupa do avesso. Para o efeito, teve que utilizar as instalações sanitárias masculinas porque, de acordo com a informação de uma funcionária, as femininas estavam encerradas. Durante a tarde cumpriu todas as ordens que lhe foram dadas, incluindo repetir várias vezes, e alternadamente, com outras tarefas a simulação de actos sexuais e de orgasmos, com plantas, com postes, com martelos de plástico, com colegas “caloiros” e havendo com estes, nalguns casos, contacto físico.
Não pode afirmar, com segurança, que as práticas a que foi sujeita configuram abertamente assédio sexual, porque tal afirmação depende do significado atribuído à palavra e também porque não sabe se quem a estava a mandar fazer e a observar retirava algum prazer de tais actos e da sua intimidade.
Quando a questionaram se as praxadas eram virgens, foi a única que se recusou a responder, pois pela forma como a pergunta lhe foi colocada entendeu que esta se relacionava com a sua virgindade. Face à sua recusa em responder, como penalização, mandaram-na rebolar na lama, após o que repetiram a mesma pergunta e perante a sua recusa, mandaram-na rebolar na bancada do campo de futebol.
Manifestou, ainda, que sentiu grande humilhação e vexame quando foi obrigada a carregar com os arreios de um burro e a emitir os sons deste animal.
No final da tarde começou a chorar e embora algumas praxantes se tenham apercebido disso, ao ponto de ter sido apoiada por uma delas que se ofereceu para ser sua madrinha, prosseguiram com a praxe.
No dia 15, continuaram as actividades da praxe no átrio da Escola e no Pavilhão dos Desportos, tendo-lhe sido ordenado que ajoelhasse na relva molhada e que simulasse orgasmos, com uma rapariga também “caloira”, com recurso à utilização de um martelo de plástico a imitar o órgão sexual masculino.
Em nenhum momento considerou as atitudes dos praxantes e as actividades que realizou como uma brincadeira, porque, sendo uma pessoa reservada, não gosta de expor a sua intimidade.
Quanto à informação que detinha sobre as praxes disse que estava pouco esclarecida e que só posteriormente teve conhecimento que o Código da Praxe estava afixado no Bar. Sabia que as praxes eram colectivas, mas, no seu caso particular, acabaram por ser quase individualizadas devido ao reduzido número de “caloiros” presentes.
Perante a sua dificuldade em aceitar este modelo de praxe contactou com antigos colegas do 12º ano a frequentar outras instituições do ensino superior, tendo-lhe um deles dado a informação de que poderia declarar-se antipraxe.
No dia seguinte dirigiu-se à Associação de Estudantes e falou com uma aluna da Comissão de Praxe a quem comunicou a sua vontade de ser antipraxe. Essa aluna tentou dissuadi-la, falou-lhe das consequências desse acto e de que seria pior para ela não ser praxada.
Em consequência, nos dias 17 e 18, desse mesmo mês, faltou à Escola por razões de saúde. Tendo regressado dia 22 de Outubro, porque não queria perder mais aulas, sentiu que as actividades lectivas decorriam com normalidade. Embora fosse ignorada pelos alunos mais velhos, estes não tiveram para consigo nenhuma atitude de hostilidade. A sua integração na turma e nas aulas processou-se sem qualquer atitude diferenciadora por parte dos professores.
No seu entendimento, os praxantes não consideraram anormal os actos praticados. Para eles, as coisas que estavam a fazer eram aceitáveis, não compreendendo a sua rejeição e muito menos o facto de ter ficado afectada psicologicamente. Quanto aos alunos do 1º ano não apoiaram a sua opção, nem manifestaram solidariedade,
Quando enviou a Carta ao Senhor Ministro foi com a intenção de manifestar o seu descontentamento com o sucedido, O tempo que mediou entre os acontecimentos e a escrita da carta foi de reflexão, face a uma perspectiva negativa com que ficou das práticas da Escola. Ainda hoje não consegue compreender o porquê da praxe e questiona-se se isto corresponde a uma integração, pois as tarefas que lhe ordenaram para fazer em nada contribuíram para a sua integração no ensino superior.
No final de Novembro, foi abordada por dois elementos da Comissão de Praxe para participar numa reunião sobre as praxes. Esta reunião, realizada nas instalações da Associação de Estudantes, onde estiveram os elementos da referida comissão, constituiu o primeiro momento em que foi confrontada com os responsáveis pela praxe. No seu decurso, tentaram intimidá-la por ser antipraxe e criticaram-na por ter enviado a carta ao Senhor Ministro, quando deveria ter sido dirigida à Comissão de Praxe.
No dia seguinte a mãe da aluna contactou pessoalmente a Directora, procurando, por um lado saber qual foi o objectivo da referida reunião e, por outro, dar conhecimento da situação psicológica em que se encontrava a filha. Foi só então que a Directora apresentou à aluna um álbum com as fotografias dos alunos afim de ela identificar os intervenientes nas praxes.
Posteriormente, no dia 3 de Dezembro, a aluna foi convocada para uma reunião, constando da respectiva convocatória os nomes dos quatro ou cinco alunos por si identificados como autores das praxes. A aluna compareceu acompanhada do pai que não foi autorizado a participar. Ficou surpreendida com a presença de todos os elementos da Comissão de Praxe, uma vez que os seus nomes não constavam da convocatória que lhe foi apresentada.
Antes desta reunião a aluna havia sido contactada, por um colega, de turma que lhe pediu para retirar a queixa, referindo-lhe que dos alunos identificados uma já tinha um processo disciplinar e outros estavam em risco de lhes serem aplicadas sanções o que poderia agravar sua situação.
A aluna frisou que essa reunião foi, para si, muito difícil e penalizante porque, embora estivessem presentes a Directora da Escola e a Coordenadora do Curso de Fisioterapia, não só se sentiu isolada contra um grupo alargado, mas também constrangida com a presença dos 19 alunos da Comissão de Praxe, todos trajados. Esta reunião, que demorou cerca de três horas, decorreu em torno das afirmações constantes da carta, da sua não aceitação da praxe e da justificação da Comissão das práticas da mesma. No final, a Directora disse que esta reunião serviu para alertar os alunos sobre as praxes e para reflectirem sobre o assunto. A aluna ficou com a percepção de que o assunto estava encerrado e de que a Direcção não pensava fazer mais nada sobre este matéria. Sentindo-se oprimida e com a sensação de que estiveram constantemente a humilhá-la, sem que os responsáveis tivessem dado qualquer solução, acabou por chorar.
Ao sair da sala, a aluna disse que, dadas as circunstâncias, iria abandonar a Escola.
Já na saída, o pai tentou demonstrar à Directora o seu descontentamento, dizendo que se a filha estava nesta Escola era por influência dele pois, pelas classificações que tinha, podia estar numa Universidade. A esta afirmação do pai, a Directora respondeu: “então leve-a para lá”. O pai acrescentou que, tendo os acontecimentos ocorrido nas instalações da Escola, os responsáveis institucionais deveriam intervir. Sobre esta questão, a Directora respondeu que as praxes eram da responsabilidade dos alunos, que a Escola não poderia intervir e como tal não tinha qualquer responsabilidade.
Desta reunião foi elaborada uma acta que nunca chegou ao conhecimento da aluna, apesar de a ter solicitado verbalmente.
O Presidente do E………., na sua opinião, tem sido a única pessoa a apoiá-la e a incentivá-la para que não desista, informando-a de que a Escola está a desenvolver diligências para resolver a situação.
Achou conveniente referir que a sua participação nas aulas, até às férias de Natal. decorreu com normalidade.
Após o regresso de férias, dadas as dimensões que esta situação atingiu, está latente o seu receio de vir à Escola, pelo que, apenas tem realizado as frequências. No que diz respeito ao clima sentido na turma, disse que sente dificuldade em se integrar, situação que se agravou depois de ter sido informada por um colega do 1.° ano que tinha sido contactado por uma outra aluna de ano mais adiantado do Curso de Fisioterapia que lhe pediu para a ignorar.
No dia 7 de Janeiro, participou numa reunião onde estiveram presentes uma advogada, uma psicóloga e uma enfermeira da Escola que, com base no conteúdo da carta enviada em 13 de Novembro, lhe pediram para identificar os alunos intervenientes nas praxes a que foi sujeita.
Em consequência desta situação, no dia 8 de Janeiro, deu conhecimento ao Presidente do E………. que se iria ausentar das aulas e nesse mesmo dia estabeleceu contacto telefónico com Gabinete do Senhor Ministro para pedir ajuda e ser ouvida sobre o assunto o mais brevemente possível.
Por último, considerando a “pressão” em que vive, está sempre na eminência de desistir.
(…)
A análise conjugada do conteúdo dos documentos consultados permitiu estabelecer o cruzamento e a articulação com as informações verbais recolhidas.
É de salientar que, deste conjunto documental, merece destaque, pela negativa, o Código da Praxe que prescreve, em vários artigos, sanções discriminatórias a aplicar aos alunos que se declarem antipraxe, configurando, pelo seu teor, violação dos direitos fundamentais enquanto alunos e sendo algumas dessas sanções claramente ofensivas e atentatórias da sua dignidade.
CONCLUSÕES
Decorrente das informações recolhidas, da convergência das afirmações veiculadas pelos participantes nas reuniões realizadas no âmbito desta intervenção inspectiva e da análise e consulta documental efectuada, conclui-se que:
a) as práticas da praxe académica a que se refere a aluna B………. na sua exposição, decorreram nas instalações da D………., Macedo de Cavaleiros;
(…)
c) o órgão da Direcção da Escola teve conhecimento formal das ocorrências em 15 de Novembro de 2002, através da exposição, enviada directamente pela aluna;
d) o conteúdo da exposição da aluna não foi posto em causa, em nenhum momento, quer pelo Presidente do E………., quer pela Presidente da Direcção da Escola;
e) a Presidente da Direcção, não desencadeou, de imediato, os mecanismos institucionais previstos nos Estatutos com vista a apurar os factos;
f) os órgãos de direcção tomaram algumas iniciativas para esclarecer a situação,
(…)
h) os órgãos de governo da Escola, não desenvolveram quaisquer mecanismos de regulação e de controlo da prática da praxe académica, até 6 de Janeiro de 2003, data a partir da qual o Presidente do E………. suspendeu todas as actividades relacionadas com as praxes académicas;
i) a aluna faltou às aulas nos dois dias que se seguiram aos acontecimentos da praxe, frequentou com normalidade as actividades lectivas até às férias de Natal, e, a partir de Janeiro, apenas tem comparecido na Escola para realizar as frequências;
j) as actividades realizadas pela aluna, no âmbito da praxe, afectaram-na psicologicamente e não contribuíram para a sua integração na Escola:
k) o Código da Praxe, afixado nas instalações do E………. de Macedo de Cavaleiros, inclui alguns artigos cujo conteúdo não é compatível com os objectivos, os princípios e os valores inerentes ao ensino superior;
1) a ser provado, o tipo de tarefas que os praxantes ordenaram à aluna para executar, configuram uma fixação recorrente, quer pelo tema da sexualidade, quer pela utilização de palavras obscenas e o desrespeito pela integridade física e pelo equilíbrio emocional dos praxados;
m) os acontecimentos ocorridos, na D………., Macedo de Cavaleiros, em que foi interveniente a aluna B………., não tiveram, por parte dos órgãos de gestão, a necessária resposta em termos do desencadeamento de mecanismos, nem de implementação de medidas capazes de resolver a situação”.
III
O objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer das matérias não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (artºs 684º, nº 3 e 690º, nºs 1 e 3 do C. P. Civil).
Antes de mais, impõe-se referir que não vem impugnada a matéria de facto, o que significa que, é com a factualidade dada como assente no Tribunal a quo, desenvolvida por esta Relação, nos termos do artigo 712º a) CPC, que teremos de apreciar as questões suscitadas nas conclusões da apelação.
A questão que importa decidir é a da existência dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual da Ré e correspondente dever de indemnizar a Autora.
Imputa a apelante à sentença recorrida, vício de julgamento por erro de interpretação dos artigos 483º (princípio geral da responsabilidade civil), 349º (noção de presunções) e 563º (nexo de causalidade), todos do Código Civil.

Defende a apelante que, a ponderação dos factos, permite concluir pela existência:
- Do conhecimento e permissão da Ré da prática de actos de praxe violadores dos direitos de personalidade e, da omissão do dever jurídico de agir;
-Da prática de actos humilhantes e imorais à Autora, com conhecimento da Ré;
-Da existência de danos morais e patrimoniais sofridos pela Autora;
- Do abuso de direito da Ré e da aplicação injusta de uma sanção à Autora;
-Da irrelevância do conhecimento que tinha que se podia recusar à praxe considerando as sanções e sevícias que iria sofrer;
-Da irrelevância do reconhecimento posterior da menor gravidade de alguns actos;
-Do nexo de causalidade entre o consentimento da Ré à pratica e actos humilhantes, imorais e violadores da boa convivência societária, agravado com a censura feita à Ré por os ter denunciado, e, os prejuízos sofridos;

Vejamos:
A Ré é uma cooperativa de ensino cujo objecto é criar e manter estabelecimentos destinados a ministrar o ensino superior, e dentro deste âmbito visa desenvolver, entre outras, estruturas educativas que conduzam à participação de forma activa no desenvolvimento humano e integral dos diferentes grupos etários e sociais.
No âmbito do seu objecto criou a D………, tendo a apelante, no dia 14 de Setembro de 2002, efectuado a matrícula na D………. de Macedo de Cavaleiros, pertencente àquela, no curso de fisioterapia.
Em tal escola, no início do ano lectivo, eram levadas a cabo por estudantes mais antigos sobre os estudantes recém-chegados, um conjunto de actos de praxe, assentes num documento escrito – regulamento da praxe – o qual se encontrava afixado no átrio da escola e, era do conhecimento da Ré.
Resulta de tal documento que, o aluno convidado a integrar a comissão da praxe tinha de assumir, entre outras, a determinação de – “Respeitar os valores morais e humanos da vida em sociedade”;
E, definia que “Constitui praxe académica o conjunto de usos e costumes tradicionais existentes entre os estudantes do D………. de Macedo de Cavaleiros (os que forem decretados pela Comissão de Praxe)”.
Por sua vez, catalogava os alunos de acordo com uma hierarquia, assente em factores de antiguidade e participação na vida académica, sendo de realçar, duas categorias, assim chamadas: os Vermes e a Bosta.
Cabem na categoria de Vermes os alunos de cursos superiores que no D………. — Macedo de Cavaleiros estejam pela primeira vez, sem que antes se tenham matriculado em qualquer estabelecimento de ensino superior, português ou estrangeiro, e que ainda não possuam o Baptismo e o Diploma de caloiro.
Cabem na categoria de Bosta os alunos que tenham recusado a praxe.
A estes últimos seriam aplicadas as seguintes sanções:
1) Não poder utilizar, em caso algum, o Traje Académico;
2) Não poder participar em qualquer actividade Académica, seja ela festa, reunião, colóquio, conferência, A.E., Comissão de Queima. Queima das Fitas, Tuna Académica, Etc..
3) Não poder apresentar-se como aluno do D………. — Macedo de Cavaleiros em situação alguma, “sob pena de processo criminal passível, através da legalização da A.E., como consta em Diário da República”.
4) Deverem ser ignorados socialmente pelo alunos do D………. — Macedo de Cavaleiros.
5) Serem ignorados academicamente pelos alunos do D………. — Macedo de Cavaleiros, pelo ponto 2) da alínea a) do presente artigo.
6) Caberia à Comissão de Praxe dar autorização expressa da designação de aluno do D………. — Macedo de Cavaleiros, em qualquer situação à Bosta.
7) Para que nunca fosse esquecido, o nome da Bosta ficaria registado no livro de Actas da Comissão de Praxe, que seria afixado durante o período de praxe.
Aconselhava-se ainda em tal regulamento que, sendo o caloiro uma besta, asno, quadrúpede, jumento ou ainda pedaço de burro, a posição que se lhe adequa e se aconselha aos excelentíssimos Doutores, Enfermeiros e Fisioterapeutas é de quatro com os cascos dianteiros assentes no chão.
Em caso de recusa de praxe, a comissão aplicava as sanções aludidas em tal documento.
A Ré, conhecendo embora tal documento, não proibiu o conteúdo ofensivo e intimidador, violador da dignidade da pessoa humana, previsto naquele documento, regulador da actividade da praxe.
Expressões ofensivas e humilhantes como “bosta”, “verme” “besta”, “asno”, “quadrúpede”, “jumento” “pedaço de burro”, para qualificar alunos, e determinações ilegais como, a imposição, ao aluno que se recusasse à praxe, de não poder apresentar-se como aluno do D……… — Macedo de Cavaleiros, em situação alguma, “sob pena de processo criminal”, ou ofensivas, como a que sugere uma posição de quadrúpede, impunham uma acção disciplinadora e inibidora por parte da Ré.
Enquanto estabelecimento autorizado de ensino superior está vinculada a um quadro de valores destinados ao desenvolvimento da pessoa humana.
Tem, por isso, o dever específico de respeitar, fazer respeitar e promover direitos fundamentais, como o respeito mútuo, a liberdade, a solidariedade, a dignidade da pessoa humana.
Assim, estava a Ré obrigada a fazer eliminar do regulamento da praxe destinado a ser utilizado no seu estabelecimento de ensino, as expressões e sugestões ofensivas e ameaçadoras, nele contidas e já referidas, o que não fez.
Ao abrigo dessa regulação consentida pela Ré foram praticados à Autora um conjunto de actos de praxe.
As aulas começaram no dia 14/10/2002 e nesse dia durante a manhã a Autora participou numa reunião de alunos do 1.º ano do curso de fisioterapia, com a directora, a coordenadora do 1.º ano do curso de fisioterapia e mais dois docentes da turma, na qual foi feita a apresentação da escola e do curso.
Após a referida reunião a Autora foi sujeita a vários actos de praxe por parte de alunos, dentro do E………. da Ré, designadamente (expressão que consta dos factos provados e que sublinhamos dado traduzir um carácter exemplificativo), foi-lhe ordenado que vestisse do avesso a roupa da cintura para cima e que colocasse o soutien do lado de fora da roupa, tendo tal mudança da posição da roupa e do soutien sido feita resguardada de olhares alheios, na casa de banho.
À Autora foi ainda ordenado que simulasse orgasmos com um poste de iluminação, que se rebolasse na relva, que carregasse com arreios de um burro.
Na carta que posteriormente escreveu ao Presidente do Conselho Executivo do E………. de Macedo de Cavaleiros do C………., a Autora descreve com pormenor aquelas situações.
Assim, alega, terá sido obrigada a: despir a roupa que trazia vestida na rua, com o intuito de a vestir do lado avesso, sendo apenas encoberta por duas capas negras, e posteriormente na casa de banho masculina, pois alegaram que as femininas estavam encerradas; usar o soutien, por cima da roupa que trazia vestida; ajoelhar-se, com as mãos no solo (de quatro); sempre que aparecia um aluno do curso de fisioterapia, tinha que proferir as seguintes palavras «Eu reles e triste caloira, dez palmos abaixo de merda, cinco abaixo de cão, um acima de polícia, filha de mãe virgem e de pai desconhecido...»; simular orgasmos com um poste de iluminação, posteriormente com uma planta, e se não conseguisse excitá-la, o que seria traduzido pelo crescimento desta, estaria «fodida»; gatinhar sobre a relva molhada, no campo de terra, fazendo corridas, o que provocou o aparecimento de nódoas negras nos joelhos e nas mãos; imitar um asno, usando na cabeça um selim grosseiro próprio para animais de carga, preferindo sons característicos desses animais, enquanto a puxavam com uma corda e em voz alta diziam «Olha a burra!»; questionaram-na se era virgem tendo-se recusado a responder pelo que a obrigaram a rebolar-se na lama durante o tempo que determinaram; mandaram-na rebolar numa bancada com as dimensões inferiores ao seu comprimento, e, ao alegar que não conseguiria, disseram-lhe «desenmerde-se»; simular actos sexuais com colegas de turma, até então desconhecidos, tendo que demonstrar momentos de prazer, obrigando-a a proferir palavras como «quero mais», «quero uma pilinha», «enterra-ma toda», «não pares» e outras; ameaçaram-na que a iriam buscar a casa, caso não saísse à noite; que seria obrigada a empurrar um carro, que o «F» que se encontrava na lista de nomes de caloiros, não significaria falta, mas sim «fodida»; colocaram-na no meio de um campo de futebol, completamente isolada com as mãos na cabeça e de joelhos, pelo tempo que determinaram.
Para quem sai de casa para frequentar um curso superior, estes são tempos novos, de muita esperança, mas igualmente de muita ansiedade. Quem chega espera ser acolhido de forma amigável, deseja ver facilitada a sua integração. E, ninguém estaria em melhores condições para o fazer que os colegas “doutores”, com experiência acumulada.
O que aconteceu à Autora foi pelo contrário, uma humilhação, baseada na imposição de tarefas desagradáveis, a ofensa verbal, a exposição da sexualidade, a obrigação de usar uma linguagem grosseira, o medo imposto por ameaças de maior mal.
Esta, a praxe perversa a que foi sujeita.
A Ré não podia deixar de conhecer, pelo menos, a aplicação das expressões “bosta”, “verme” “besta”, “asno”, “quadrúpede”, “jumento” “pedaço de burro”, contidas no regulamento da praxe, bem como, a imposição ao aluno qualificado de “bosta” de se colocar em posição de quadrúpede, bem como a aplicação a tal aluno de uma verdadeira política de discriminação, como resulta do regulamento em causa.
Em 13/11 desse ano de 2002 a Autora remeteu ao Presidente do Conselho Consultivo da Ré uma carta denunciando os factos concretos a que foi sujeita.
Sucedeu então que, na sequência dessa carta, na última semana de Novembro, a Autora foi convocada para, numa reunião com a directora do C………., identificar, por fotografia, os alunos que a teriam submetido a actos de praxe.
No dia 3/12/2002, a Autora foi convocada para uma nova reunião, tendo-se a Autora apresentado nessa reunião acompanhada do pai, cuja presença não foi admitida pela Ré. Nessa reunião, encontravam-se presentes a directora da escola, a coordenadora do curso de fisioterapia, os alunos identificados pela autora como sendo os praticantes da praxe a que teria sido sujeita e, toda a comissão de praxe (19 elementos), sendo que todos os alunos presentes, excepto a Autora, ostentaram o traje académico.
Tal reunião demorou três horas.
Não podemos deixar de sublinhar a situação de inferioridade psicológica a que a Autora foi sujeita nessa reunião, da responsabilidade da Ré.
A Autora foi impedida de estar acompanhada de um familiar, seu pai, mas, os alunos denunciados como praticantes dos actos de praxe, estavam acompanhados por toda a comissão de praxe, envergando todos eles, o traje académico.
Veja-se o efeito intimidador e constrangedor da sua liberdade, conseguido, não só através da presença da numerosa comissão de praxe, mas, igualmente, pela legitimação de uma aparência, umas vestes que, nas circunstâncias, simbolizavam uma forma de pressão.
A Autora daqui, saiu inferiorizada.
Desta reunião, a Ré nada concluiu.
Efectivamente, a direcção do E………. de Macedo de Cavaleiros do C………. informou a Inspecção-Geral de Educação que, a reunião em causa, havia sido inconclusiva por existirem vários intervenientes, cada qual com a sua opinião.
Contudo, apesar de não extrair conclusões, a Direcção da Ré deliberou aplicar à Autora a seguinte sanção: “repreensão escrita à aluna, pela forma subjectiva excessiva como relatou os factos, que sabia não terem a gravidade que decorre da sua exposição, tal como ela própria reconheceu. No entanto, considerando a atenuante de ter apresentado os acontecimentos aos órgãos (Direcção) da Escola, esta sanção não fica sujeita a registo”.
Tal deliberação foi notificada à Autora por carta de 23/01/2003, a qual, em 26/02/2003, anulou a matrícula.
De vítima a Ré passou a acusada.
Acusada de ter relatado os factos “de forma subjectiva excessiva”.
Não disse a Ré o que entendia como subjectivo e excessivo, pelo que sempre a defesa da Autora perante tal reacção seria uma “subjectividade”.
Apoiou-se a Ré para a aplicação de tal sanção numa declaração da própria A. em que o reconhece.
Resulta efectivamente provado que: - “A autora reconheceu e confessou, em depoimento prestado posteriormente à sua denúncia dos factos: que em tempo algum ficou totalmente despida; que quando virou a roupa do avesso estava encoberta por duas ou três capas do traje académico; que talvez tenha sido a falta de informação que a levou a acreditar que teria mesmo que cumprir as ordens dos colegas, nomeadamente a de simular orgasmos com postes de iluminação e com uma planta; não considerar que essas situações fossem feitas com malícia nem com uma carga sexual mas sim com a intenção de brincar com a situação; não considerar que tenha sido abusada sexualmente; que as corridas nos campos de terra se destinavam a ver quem ganhava e que todos os outros caloiros também foram obrigados a rebolar na relva; que a perguntas dos outros colegas sobre se estava triste respondeu que era o impacto do primeiro dia pelo que estes não deveriam ligar; que os colegas lhe afirmaram que tudo o que estavam a fazer era na brincadeira; que quando começou a chorar os colegas mais velhos aguardaram que se acalmasse para depois recomeçarem a praxe; que posteriormente compreendeu que quando lhe perguntaram se era virgem os colegas estavam a referir-se ao signo e que se fosse hoje levaria a pergunta para a brincadeira; que ninguém a violentou sexualmente; que apesar de ter apresentado um atestado médico por dez dias apenas faltou 3 dias por não querer perder as aulas”.
Daqui se conclui que, a Autora nada confessou, não só porque nunca faltou à verdade mas também porque nada praticou que tivesse de ser confessado.
A expressão “confessou” nos factos provados, mostra-se inadequada.
A A. apenas terá, a dada altura, quando ouvida pela comissão de inquérito da escola, relativizado a gravidade dos ofensas, atento o tempo decorrido e, uma vez aliviada da pressão que sentiu.
Extrai-se, da deliberação da Direcção da Escola, a fls. 91 que “a Autora afirmou no seu depoimento à Comissão de Inquérito nomeada pela Escola para apurar os factos que: «…não se sentiu violentada, nem física, nem sexualmente e que se os factos descritos tivessem ocorrido actualmente, a sua percepção dos mesmos já seria diferente»; e que apesar de estar devidamente informada, a aluna “…não se recusou a realizar qualquer praxe não demonstrou perante os colegas o seu descontentamento, nem procurou a ajuda oferecida”.
Tal declaração foi proferida no âmbito do processo de inquérito e disciplinar instaurado pela Escola para averiguar os factos.
A equipa de inspectores designada pela Inspecção Geral de Educação teve um entendimento não coincidente com este, como é evidenciado pelo Relatório a que supra se alude no ponto 49) dos factos provados.
A referida “declaração” que serviu para punir a Autora, não tem a relevância que se lhe atribuiu, não desmente quaisquer dos factos participados.
A tolerância da Ré a um regulamento de praxe ofensivo de direitos subjectivos e valores de cidadania, converte-se agora, na sua defesa.
Primeiro a Ré consentiu por omissão, agora consente por legitimação.
Não se entende que tenha sancionado a Autora por “subjectivismo excessivo”, não estando demonstrada qualquer inverdade na sua denúncia.
Nenhuma infracção disciplinar poderia ser imputada à Autora.
Da omissão do dever jurídico de agir passou a Ré ao abusivo exercício de um poder disciplinar, injustificado, sobre a Autora.
A Ré abusou claramente do seu direito de aplicar sanções disciplinares quando aplicou à Autora uma repreensão escrita não sujeita a registo.
E, porque não ponderou como lhe competia quer nas consequências que o regulamento da praxe poderia acarretar, para os novos alunos, quer na criação das condições de salvaguarda da integridade psíquica da Autora, após a denúncia dos factos, tendo obrigação de o fazer, atentas as especiais responsabilidades que deve assumir na área educativa, actuou culposamente.
Aqui chegados importa tecer algumas considerações sobre a conclusão a que chegou o Tribunal a quo quanto a ter havido consentimento da Autora nos actos de praxe.
Lê-se na sentença:
«No caso ajuizado, atentando no comportamento da autora, constata-se que a mesma foi sujeita a vários actos de praxe, designadamente foi-lhe ordenado que vestisse a roupa da cintura para cima do avesso e colocasse o soutien do lado de fora da roupa, que simulasse orgasmos com um poste de iluminação, que rebolasse na relva e que carregasse com arreios de um burro, e não ficou provado que a mesma se tenha recusado a submeter-se a tais actividades de praxe. (sublinhados nossos).
Ao invés, ficou provado que a autora não se recusou a ser praxada, o que vale por dizer que a autora consentiu tacitamente na sua integração nas preditas actividades de praxe.
Ora:
O tribunal a quo confunde de forma simplista a não recusa com o consentimento descurando a existência de um conjunto de circunstâncias inibidoras dessa “não recusa” explícita, como seja, o receio das consequências da recusa.
E continuou:
«Esse consentimento prestado pela autora tem de se haver como livre e esclarecido.
Com efeito, a autora quando foi sujeita a esses actos de praxe, no dia 14 de Outubro de 2002, sabia que se podia recusar a praticar tais actos, porquanto nesse mesmo dia, antes do início de tais actividades de praxe, a mesma participou numa reunião de alunos do 1.º ano do curso de fisioterapia, com a coordenadora do curso (G……….), a directora e mais dois docentes da turma, na qual foi feita a apresentação da escola e do curso, e no decurso da qual a dita coordenadora abordou, entre outros temas, o assunto da praxe, tendo expressamente informado os alunos do direito de recusa a qualquer acto de praxe que considerassem atentar contra os seus princípios e valores (cfr. 5) e 17) dos factos assentes e fundamentação da resposta à matéria de facto)».
Discordamos totalmente.
Não se provou que, em tal reunião tenha sido transmitido aos alunos as concretas consequências previstas no regulamento da praxe, apenas se informaram estes que tinham o direito de recusa a qualquer acto de praxe, pelo que, de modo algum se pode falar em consentimento livre e esclarecido.
Ninguém de bom grado fará em público o papel de “asno”, ou simulará actos sexuais, com uma linguagem atentatória da moralidade, se não tiver em cima uma pressão poderosa. Por medo de não ser aceite, por desconhecimento do que vem a seguir, os alunos vão-se sujeitando.
Foi isso o que aconteceu com a Autora que apenas se recusou expressamente a responder à pergunta se era virgem. E que só no dia 16/10/2002, dois dias depois do início da praxe, comunicou à comissão de praxe a sua vontade de se declarar anti-praxe.
O Tribunal a quo não valorizou a ambiência de medo, de constrangimento, de ansiedade, vivida pela Autora e motivado pela ameaça duma exclusão, com consequências penosas.
De resto, como pode falar-se em consentimento livre e esclarecido quando se prova que, em consequência da praxe a que foi sujeita, a autora sentiu-se triste e humilhada, e chorou?
Mal andou, igualmente, o tribunal a quo na afirmação de que:
«Constituindo as praxes académicas um fenómeno público e notório e do conhecimento geral, a autora também sabia no que consistiam essas praxes».
O facto de ser público e notório, a existência de praxes académicas, não permite concluir que a Autora ou qualquer cidadão comum, conheça o teor dessas práticas: como simular actos sexuais com um poste, simular um orgasmo, exibir a roupa interior, proferir expressões de elevada grosseria, carregar os arreios de um burro, ser chamado de bosta, etc.
Irrelevante é assim, a informação que a A. tinha, de que se podia recusar à praxe, considerando a superficialidade da mesma, e, a grandiosidade das sanções e sevícias que receava sofrer.
Nenhuma causa de exclusão da ilicitude se verifica no caso concreto.

Dos danos morais e patrimoniais sofridos pela Autora.
A Autora, enquanto durou a sua praxe, esteve triste e chegou a chorar.
Em consequência da praxe a que foi sujeita sentiu-se triste e humilhada, e foi-lhe dada baixa médica por dez dias.
A Autora, contudo, por não querer perder as aulas, faltou apenas nos dias 17 e 18 de Outubro de 2002 e recomeçou a frequência das aulas no dia 22 de Outubro de 2002.
A partir de Janeiro de 2003 a Autora passou a deslocar-se à escola unicamente para realizar as frequências e exames.
Em 30 de Janeiro 2003 foram receitados à Autora ansiolíticos e antidepressivos, para debelar sintomas ligados a depressão e stress.
A Autora sofreu psicologicamente em resultado da reunião em que se viu confrontada com a pressão intimidadora da comissão de praxe, numa presença injustificada.
Como consequência da deliberação que aplicou à Autora a sanção de repreensão escrita a Autora sentiu-se indignada e revoltada e anulou a matrícula.
A Autora só regressou ao ensino superior no ano lectivo 2003/2004, tendo perdido um ano.
Estes os danos morais sofridos pela Autora.

No ano lectivo de 2002/2003, a Autora pagou à ré em propinas e taxas moderadoras a quantia de € 2.175,00, que lhe foi entregue para o efeito pelos pais.
A Autora residia em Chaves, por isso, desde Julho de 2002 havia arrendado um apartamento em Macedo de Cavaleiros, a fim de frequentar as aulas.
Em rendas de Julho de 2002 a Fevereiro de 2003, a Autora pagou o montante de € 890,00, que lhe foi entregue para o efeito pelos pais.
A autora pagou em despesas com água, luz e telefone, naquele período, o montante total de € 375,46, que lhe foi entregue para o efeito pelos pais.
A Autora gastou em material escolar o montante de € 235,21, que lhe foi entregue para o efeito pelos pais.
Nas respectivas consultas médicas a Autora gastou o montante de € 65,00, que lhe foi entregue para o efeito pelos pais.
A Autora perdeu um ano escolar.
Resultou provado que, até há cerca de dois anos os alunos que acabavam o curso de fisioterapia na Ré normalmente arranjavam logo emprego e ganhavam em média € 700,00 mensais.
Num contexto de normalidade a Autora beneficiaria do mesmo ganho.
Na fixação da indemnização pode o tribunal atender aos danos futuros, desde que sejam previsíveis.
No caso, tal dano não só é previsível, como o seu montante se mostra determinável.
Estes os danos patrimoniais sofridos pela Autora.

Existe um nexo de causalidade entre o comportamento da Ré, que começa por ser de tolerância à pratica de actos humilhantes, imorais e violadores da boa convivência societária e estudantil no seu espaço escolar, e que passou a ser de legitimação dessa prática pela desprotecção a que sujeitou a Autora, após a denúncia dos factos, e, os prejuízos morais e patrimoniais sofridos por esta.
Está assim a Ré obrigada a indemnizar a Autora.

A Autora peticionou a quantia de € 20.000,00 para ressarcimento de danos não patrimoniais que invocou ter sofrido em consequência da reunião ocorrida no dia 3/12/2002, promovida pela Ré.
Ainda a título de danos não patrimoniais, a autora peticiona a quantia de € 30.000,00, para ressarcimento de danos dessa natureza que lhe advieram dos actos de praxe a que foi submetida.
O montante da indemnização deve ser fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso as circunstâncias referidas no artº 494 do CC, ou seja, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso.
A Ré tolerou e actuou de forma grosseira, desajustada aos objectivos de formação de cidadãos defensores de valores sociais.
Não está apurada a sua real situação económica, mas sendo uma cooperativa de ensino, é de presumir pelas regras da experiência que disporá de um fundo financeiro à medida dos gastos que tem de suportar, sem grande margem de manobra.
A Autora, pessoa singular é estudante e vive da ajuda dos pais.
A indemnização por danos morais será única por razões de justiça e equidade.
Fixa-se, assim, a indemnização por danos morais em 25.000,00 (vinte e cinco mil euros).
A Autora peticionou o montante de €. 3.740,67 a título de danos patrimoniais emergentes e, € 9.800 a título de lucros cessantes (€ 700,00 x 14), pelo rendimento salarial perdido em razão da perda de um ano escolar.
Estão comprovados esses valores, pelo que a eles tem direito.
Somam, assim, os danos patrimoniais o montante de € 13.540,67.
IV
Termos em que, acorda-se em julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência condena-se a Ré no pagamento à Autora da quantia de 25.000,00 Euros (vinte e cinco mil euros) a título de danos morais e, 13.540,67 Euros (treze mil quinhentos e quarenta euros e sessenta e sete cêntimos) a título de danos patrimoniais, num total de 38.540,67 Euros (trinta e oito mil quinhentos e quarenta euros e sessenta e sete euros) sendo devidos juros de mora em relação a ambas as quantias, desde a citação.

Vai a Ré absolvida quanto ao mais.
Custas por recorrente e recorrida na proporção do decaimento.

Porto, 24 de Novembro de 2008
Anabela Figueiredo Luna de Carvalho
Maria de Deus Simão da Cruz Silva Damasceno Correia
Baltazar Marques Peixoto