Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0546541
Nº Convencional: JTRP00040280
Relator: LUÍS GOMINHO
Descritores: PROIBIÇÃO DE PROVA
EXAMES
Nº do Documento: RP200705020546541
Data do Acordão: 05/02/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: LIVRO 263 - FLS 02.
Área Temática: .
Sumário: É inválida a prova obtida através de exame à saliva, pelo método de zaragatoa bucal, do suspeito de um crime de homicídio, contra a sua vontade, se o exame, ordenado durante o inquérito pelo Ministério Público, não foi previamente autorizado pelo juiz de instrução.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal da Relação do Porto:

I – Relatório:

I – 1.) Inconformado como despacho proferido de fls. 119 a 129 destes autos (1068 a 1078 do processo principal), em que a Mmª Juiz do ..º Juízo-A do Tribunal de Instrução Criminal do Porto julgou “improcedente a nulidade e consequente proibição de valoração como prova, do resultado da análise da saliva colhida através de zaragatoa bucal que lhe foi efectuada”, e “ser legal o despacho proferido pelo Exm.º Magistrado do M.º P.º titular do inquérito, que ordenou a realização dos preditos exames à saliva dos arguidos a colher através de zaragatoa bucal”, dele veio interpor recurso para esta Relação o arguido B………., que para o efeito apresentou as seguintes conclusões:

1.ª - No direito português vigente só o consentimento livre e esclarecido do arguido pode legitimar a sua submissão a uma colheita de vestígios biológicos para análise de ADN;

2.ª - Uma vez que o arguido e ora recorrente manifestou a sua expressa recusa em colaborar ou permitir tal colheita, foi manifestamente ilegal e até criminalmente ilícita a sua realização coactiva, por manifesta falta do indispensável suporte legal - lacuna essa que o intérprete e aplicador da lei não estão, por si, legitimados a colmatar;

3.ª - Mercê disso, dever-se-ia ter reconhecido e declarado a ilegalidade da sobredita colheita, nos termos em que a mesma teve lugar, com todas as legais consequências, a começar pela proibição absoluta de valoração da(s) prova(s) assim obtida(s) e sem esquecer a devida instauração do adequado procedimento criminal contra todos quantos determinaram, efectuaram, colaboraram ou por qualquer forma participaram na dita colheita ilegal, assim incorrendo na prática de um crime contra a integridade pessoal do ora recorrente, em manifesta violação do disposto, entre outros, no art. 25.º, n.º 1, da CRP, e no art. 143.º, n.º 1, do Cód. Penal;

4.ª - Decidindo de forma diversa, a Mmª Juíza a quo violou, entre outras, as normas contidas nos art.ºs 25.º, 26.º, n.º 1, e 32.º. n.º 8, todos da CRP, o art. 8.º da CEDH, o art. 12.º da DUDH, o art. 17.º do PIDCP e os art.ºs 126.º, n.ºs 1, 2, al.ªs a) e c) e 3, bem como o art. 172.º, n.º 1, ambos do CPPenal;

5.ª - De resto, sempre estaria ferida de inconstitucionalidade a norma do art. 172.º, n.º 1, do CPPenal, interpretada no sentido de possibilitar ao Mº Pº ordenar a colheita coactiva de vestígios biológicos de um arguido para determinação do seu perfil genético, quando este último tenha manifestado a sua expressa recusa em colaborar ou permitir tal colheita;

6.º - Da mesma forma que seria igualmente inconstitucional a norma do art. 126.º, n.ºs 1, 2, al.ªs a) e c), e 3, do CPPenal, quando interpretada no sentido de considerar válida e, consequentemente, susceptível de ulterior utilização e valoração, a prova obtida através da colheita efectuada nos moldes descritos na conclusão anterior.

Termos em que, e nos melhores de Direito, deve dar-se provimento ao presente recurso, em conformidade com as conclusões acabadas de alinhar.

I – 2.) Por douto acórdão aqui proferido em 3 de Maio de 2006, e melhor constante de fls. 190 a 202 dos autos, foi o predito recurso julgado improcedente.

I – 3.) Uma vez mais inconformado, veio o arguido a recorrer para o Tribunal Constitucional, que em douto acórdão prolatado em 2 de Março de 2007 veio a decidir:

i) Julgar inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 25.º, 26.º e 32.º, n.º 4, da Constituição, a norma constante do artigo 172.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de possibilitar, sem autorização do juiz, a colheita coactiva de vestígios biológicos de um arguido para determinação do seu perfil genético quando este último tenha manifestado a sua expressa recusa em colaborar ou permitir tal colheita;

ii) Consequencialmente, julgar inconstitucional, por violação do disposto no artigo 32.º, n.º 4, da Constituição, a norma constante do artigo 126.º, n.ºs 1, 2, alíneas a) e c), e 3, do Código de Processo Penal, quando interpretada em termos de considerar válida e, por conseguinte, susceptível de ulterior utilização e valoração a prova obtida através da colheita realizada nos moldes descritos na alínea anterior;

iii) Consequentemente, (…) ordenar a reforma da decisão recorrida em conformidade com o juízo de inconstitucionalidade que agora se formula.

II – Tendo em vista a finalidade assim preconizada foram os autos sujeitos à apreciação da conferência.
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Para o que o previamente se fizeram correr novos vistos.
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Cumpre pois, nessa conformidade, apreciar e decidir:

III – 1.) Tornando uma vez mais presente a situação processual que conduziu ao despacho objecto do recurso inicial dirigido a esta Relação, haverá que evidenciar, para os efeitos que aqui importa relevantemente ter em consideração, que:

- No decurso do Inquérito objecto dos presentes autos, em que se investiga a prática de eventuais crimes de homicídio qualificado, por se terem entretanto encontrado vestígios biológicos, alguns deles entendidos como “referentes aos autores do crime”, perante a não anuência dos respectivos visados na sua efectivação, o M.º P.º determinou a submissão dos mesmos à realização de exame para colheita de vestígios biológicos, mais concretamente de saliva, através de zaragatoa bucal, tendo em vista a identificação do seu perfil genético (estudo do DNA) e comparação com os vestígios acima aludidos (cfr. fls. 69 a 72 e 75/76).
- O ora recorrente não compareceu à diligência inicialmente marcada por considerar “que o acto de inquérito em causa deveria praticar-se fora do período de férias judiciais”, mas mostrou-se “inteiramente disposto a submeter-se à prova de ADN”.
- Conforme decorre do auto de fls. 84, e no que concerne ao arguido/recorrente B………., aquela acabou por se realizar, posto que, consignadamente, contra a sua vontade.
- Na sua sequência, requereu ao Sr. Juiz de Instrução Criminal que declarasse a sua ilegalidade e a consequente proibição absoluta de valoração das provas assim obtidas.
- Por despacho de fls. 119 a 129, a Mm.ª Juiz do ..º Juízo-A, daquele Tribunal do Porto, julgou “improcedente a invocada nulidade e consequente proibição de valoração como prova, do resultado da análise da saliva colhida através de zaragatoa bucal efectuada ao arguido B……… e ainda a efectuar aos restantes arguidos, e por conseguinte, ser legal o despacho proferido pelo Exm.º Magistrado do Mº Pº titular do inquérito, que ordenou a realização dos preditos exames à saliva dos arguidos a colher através de zaragatoa bucal”.

III – 2.) Conforme decorre do douto acórdão agora proferido pelo Tribunal Constitucional, o sentido da apreciação levada a cabo no correspondente aresto, teve em vista indagar da conformidade com o nosso texto fundamental de uma interpretação do art. 172.º do Cód. Proc. Penal, “em termos de possibilitar ao Ministério Público ordenar a colheita coactiva de vestígios biológicos de um arguido para determinação do seu perfil genético na medida estritamente indispensável para posterior comparação com vestígios colhidos no local do crime, se necessário através da ameaça da utilização do recurso à força física para salvaguarda da integridade de quem realizar a recolha, quando aquele tenha manifestado a sua expressa recusa em colaborar ou permitir tal colheita e, do artigo 126.º, n.ºs 1, 2, alíneas a) e c), e 3, do mesmo diploma, em termos de considerar válida e, consequentemente, susceptível de ulterior utilização e valoração a prova obtida através da colheita realizada nos termos antes descritos.”

Ora ainda que se tenha reconhecido “que a recolha de saliva através da utilização da técnica da zaragatoa bucal, sem efectivo recurso à força física mas realizada contra a vontade expressa do arguido e sob a ameaça de recurso à mesma, conflitua com o âmbito constitucionalmente protegido do seu direito à integridade pessoal”, a verdade é que, a possibilidade da sua restrição, por efeito da determinação de uma diligência com aquela natureza, foi reconhecida como admissível por um crivo dogmaticamente exigente:
i) O ser autorizada pela Constituição (artigo 18.º, n.º 2, primeira parte);
ii) Estar suficientemente sustentada em lei da Assembleia da República ou em decreto-lei autorizado (artigo 18.º, n.º 2, primeira parte, e 165.º, n.º 1, alínea b);
iii) Visar a salvaguarda de outro direito ou interesse constitucionalmente protegido (artigo 18.º, n.º 2, in fine);
iv) Ser necessária a essa salvaguarda, adequada para o efeito e proporcional a esse objectivo (artigo 18.º,n.º 2, segunda parte);
v) Ter carácter geral e abstracto, e não tiver efeito retroactivo e não diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais.

Neste domínio de indagação, o único óbice encontrado, foi o que resultou da consideração em como “contendendo o acto em causa, de forma relevante, com direitos, liberdades e garantias fundamentais, a sua admissibilidade no decurso da fase de inquérito depende, pelas mesmas razões que justificam essa dependência no caso dos actos que constam da lista constante do artigo 269.º do Código de Processo Penal, isto é, por consubstanciar intervenção significativa nos direitos fundamentais do arguido, da prévia autorização do juiz de instrução. E nem se diga que será suficiente, como aconteceu nos presentes autos, uma intervenção a posteriori daquele juiz, tomada na sequência de requerimento apresentado após a decisão do Ministério Público que determinou a realização dos exames que agora estão em causa, uma vez que a mesma não poderia desfazer a restrição de alguns dos direitos (v. g., o direito à integridade física ou o direito à reserva da vida privada), entretanto irremediavelmente afectados”, donde o sentido depois exarado na doutrina condensada na respectiva decisão.

III – 3.3.) Assim sendo, sem necessidade de mais considerações, que o casuísmo da douta decisão em referência acaba por nos dispensar, porque na realidade aquela autorização não existiu e a decisão depois tomada pela Mm.ª Juiz de Instrução Criminal não a pode convalidar ou substituir, haverá pois que na conformidade apontada conceder procedência ao recurso.

III – 3.4.) A montante da problemática indicada, o recurso interposto acaba de algum maneira por colocar o problema da sua própria extensão.

Como vimos, recorrente é aqui apenas o arguido B………. .
Porém, como o despacho recorrido já o recenseava, também os arguidos C……… e D………., respectivamente por requerimentos constantes a fls. 1000/1001 e 1005 a 1007, haviam também solicitado àquele Tribunal de Instrução Criminal “o reconhecimento e declaração da violação da legalidade do despacho do M.º P.º que ordenou a sujeição coactiva dos arguidos à colheita de amostra biológica para tipificação de ADN”.
Razão pela qual, nessa conformidade, o despacho proferido alude na sua parte final, “julgar improcedente a invocada nulidade e consequente proibição de valoração como prova, do resultado da análise da saliva colhida através de zaragatoa bucal efectuada ao arguido B………. e ainda a efectuar aos restantes arguidos, e por conseguinte, ser legal o despacho proferido pelo Exmº Magistrado do Mº Pº titular do inquérito, que ordenou a realização dos preditos exames à saliva dos arguidos a colher através de zaragatoa bucal” (negrito nosso).

A nosso ver, também os indicados C………. e D………. deveriam ter recorrido da sobredita decisão.
É que ainda que se possa conceder que o recurso interposto não o é por motivos estritamente pessoais, a verdade é que não está estabelecida nos autos, mesmo que indiciariamente, qualquer situação de “comparticipação” na autoria dos crimes sob investigação, de modo a aqueles poderem beneficiar do preceituado no art. 402.º, n.º 2, al. a), do Cód. Proc. Penal.

Haverá então que neste domínio prevalecer o bom senso, já que estando a decisão recorrida inquinada pela forma referida, aliás já reafirmada por outro acórdão do Tribunal Constitucional sobre o mesmo caso (disponibilizada inclusive no site daquele tribunal), o sentido a conferir à decisão daquelas situações não poderá deixar de ser o mesmo.

Nesta conformidade:

IV – Decisão:

Nos termos e com os fundamentos indicados, conferindo procedência ao recurso interposto pelo arguido B………., revoga-se a decisão recorrida, pelo que não se tendo como constitucional a colheita coactiva de vestígios biológicos que lhe foi efectuada para determinação do seu perfil genético, ordenada pelo Ministério Público, considera-se não válida e consequentemente não susceptível de ulterior utilização e valoração, a prova obtida através da mesma.

Elaborado em computador. Revisto pelo Relator, o 1.º signatário, por ser o 1.º Adjunto no acórdão reformado.

Porto, 5 de Maio de 2007
Luís Eduardo Branco de Almeida Gominho
Custódio Abel Ferreira de Sousa Silva
Ernesto de Jesus de Deus Nascimento