Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3940/07.2TAVNG.P1
Nº Convencional: JTRP00042579
Relator: MARIA DO CARMO SILVA DIAS
Descritores: JOGO DE FORTUNA E AZAR
Nº do Documento: RP200905203940/07.2TAVNG.P1
Data do Acordão: 05/20/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO - LIVRO 581 - FLS. 215.
Área Temática: .
Sumário: Jogos de fortuna ou azar são os expressamente enunciados no nº 1 do art. 4º do DL nº 422/89, de 2 de Dezembro, bem como os que são ou vierem a ser autorizados pelo Governo e como tal sejam ou venham a ser classificados.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: (proc. n º 3940/07.2TAVNG.P1)
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Acordam, em conferência, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto:
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I- RELATÓRIO
No Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia, no processo comum (Tribunal Singular) nº 3940/07.2TAVNG do …º Juízo Criminal, foi proferida a seguinte decisão em 29/1/2009 (fls. 115 a 119):
“*
Autue como processo comum com a intervenção do Tribunal Singular.
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Vem o arguido B…………. acusado pela prática, como autor material, de um crime de exploração ilícita de jogo de fortuna ou azar, p. e p. pelo art. 108º, nºs 1 e 2 do DL nº 422/89, de 2 de Dezembro.
Preceitua o art. 108º, no seu nº 1, que: Quem, por qualquer forma, fizer a exploração de jogos de fortuna ou azar fora dos locais legalmente autorizados será punido com prisão até 2 anos e multa até 200 dias”.
Por jogos de fortuna ou azar deve entender-se “aqueles cujo resultado é contingente por assentar exclusiva ou fundamentalmente na sorte” - art. 1º do referido diploma legal - e são jogos de fortuna ou azar “os jogos em máquinas que, não pagando directamente prémios em fichas ou moedas, desenvolvem temas próprios dos jogos de fortuna ou azar, ou apresentem como resultado pontuações dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte” - art. 4º, nº 1, al. g).
Diferentes destes são as modalidades afins do jogo de fortuna ou azar, ou seja, “as operações oferecidas ao público em que a esperança de ganho reside conjuntamente na sorte e perícia do jogador, ou somente na sorte, e que atribuem como prémios coisas com valor económico” (v. g. rifas, tômbolas, sorteios, concursos publicitários, concursos de conhecimentos e passatempos) - cfr. art. 159º, n.º 1 e 2 do mesmo diploma legal.
A questão que se coloca no caso concreto é a de saber se a máquina com a denominação “SAI SEMPRE BRINDE” descrita na acusação e o cartaz com a exposição dos prémios, que foram apreendidas nestes autos, não serão modalidades afins dos jogos de fortuna ou azar e não jogos de fortuna ou azar, conforme defende a acusação.
A questão tem sido muito debatida na jurisprudência, sendo certo que a letra da lei não é suficientemente esclarecedora.
Entendemos ser de definir, antes de mais e com uma maior precisão, o que se entende por jogo de fortuna e azar.
No âmbito do DL nº 48912, de 18 de Março de 1969, a distinção entre jogo de fortuna e azar e modalidade afim era clara, porquanto definia o primeiro como aquele “cujos resultados são contingentes, por dependerem exclusivamente da sorte”, por contraposição as modalidades afins eram definidas como “as operações oferecidas ao público em que a esperança de ganho reside essencialmente na sorte”. Existia, assim, uma distinção clara entre estes dois conceitos: os resultados dos jogos de fortuna ou azar dependiam exclusivamente da sorte ao passo que os das operações consideradas como modalidades afins dependiam essencialmente da sorte.
A clareza desta distinção foi alterada logo com a publicação da versão originária do DL nº 422/89, de 2 de Dezembro, uma vez que definiu os jogos de fortuna ou azar como “aqueles cujo resultado é contingente por assentar exclusiva ou fundamentalmente na sorte”, o que significou que o conceito foi alargado em termos de abranger parte das modalidades afins, pelo menos aquelas que podiam ser consideradas como jogos.
E a situação complicou-se ainda mais com a redacção dada a este diploma pelo DL nº 10/95, de 19 de Janeiro, uma vez que definiu modalidades afins dos jogos de fortuna ou azar como “as operações oferecidas ao público em que a esperança de ganho reside conjuntamente na sorte e perícia do jogador, ou somente na sorte, e que atribuem como prémio coisas com valor económico”. Assim, alterou-se o cerne da distinção entre os dois conceitos, que deixou de assentar na relevância da sorte ou do azar para o resultado, já que tanto num caso como noutro a contingência do resultado pode derivar apenas da sorte.
Face a esta alteração legislativa multiplicaram-se os critérios jurisprudenciais de distinção entre os jogos de fortuna ou azar e as modalidades afins.
Um dos critérios situa a linha de fronteira na natureza dos prémios atribuídos: quando estes consistissem em dinheiro estar-se-ia perante jogo de fortuna ou azar, ao passo que a atribuição de prémios de outra natureza caracterizaria a modalidade afim. Neste sentido, cfr. Ac. da RP de 08/07/1998, proferido no processo nº 9840524 e publicado em http://www.dgsi.pt/jtrp. A este critério há a opor três argumentos: em primeiro lugar, a lei não se refere a ele para distinguir os jogos de fortuna e azar das modalidades afins; em segundo lugar, de entre as modalidades de jogos de fortuna e azar especificamente previstas no art. 4º há algumas em que os prémios podem consistir, pelo menos imediatamente, em fichas e o resultado ser apresentado como pontuações; em terceiro lugar, constitui contra-ordenação a substituição por dinheiro ou fichas dos prémios atribuídos pelas modalidades afins dos jogos de fortuna ou azar. No sentido de que este critério não pode ser utilizado, cfr. Ac. da RP de 16/09/1998, proferido no processo nº 9840555, Ac. da RP de 23/06/1999, proferido no processo nº 9940369, Ac. da RP de 10/11/1999, proferido no processo nº 9940494 e publicados em http://www.dgsi.pt/jtrp e Ac. da RL de 26/10/2005, proferido no processo nº 7610/2005-3 e publicado em http://www.dgsi.pt/jtrpl.
Um segundo critério entende que o que distingue o jogo de fortuna ou azar das modalidades afins é o facto de no primeiro o jogador poder auferir uma vantagem de valor indeterminado, em função da “aposta”, que pode multiplicar, de uma única vez, por forma a que entra num certo “risco”, auferindo uma vantagem em proporção não controlável por si, enquanto que no jogo afim o jogador praticamente nada arrisca, a sua “entrada” não se reveste da característica da “aposta”, mas apenas do “preço” da jogada, que é simples, sem possibilidade de ela mesmo multiplicar-se e o prémio que pode obter é fixo e pré-determinado. Neste sentido, cfr. Ac. da RP de 14/07/1999, proferido no processo nº 9910385 e publicado em http://www.dgsi.pt/jtrp.
Um outro critério mais recente e com o qual concordámos, concluindo que não existe distinção material entre os conceitos de jogo de fortuna ou azar e modalidades afins, defende que a distinção tem de ser formal, sendo considerados jogos de fortuna ou azar apenas aqueles cuja exploração nos termos dos nºs 1 e 3 do art. 4º da actual redacção do DL nº 422/89, de 2 de Dezembro, é autorizada nos casinos, ou seja, o campo de aplicação dos ilícitos criminais restringe-se à exploração e outras actividades ilícitas que tenham como objecto esses jogos de fortuna ou azar.
Por isso, o campo de aplicação dos arts. 108° a 111° e 115° do diploma que se vem citando, tem de se restringir à exploração e outras actividades ilícitas que tenham como objecto jogos de fortuna ou azar cuja exploração é expressa e legalmente autorizada nos casinos (Cfr. neste sentido, Ac. da RL de 26/10/2005 e de 21/11/2007, publicados em http://www.dgsi.pt/jtrpl; Ac. da RC de 01/02/2007 e de 21/03/2007, publicados in www.dgsi.pt/jtrc; Ac. da RE de 11/07/06, proferido no Processo Comum Singular nº 66/00.3 FAEVR do 2º Juízo de Competência Criminal da Comarca de Évora, Recurso nº 1254/06-1; Ac. do STJ de 28/11/2007, Recurso nº 3186/07-3ª; Ac. da RP de 29/10/2008, proferido no Processo nº 844144, Ac. da RP de 02/07/2008, proferido no Processo nº 842841, publicados in www.dgsi.pt/jtrcp).
No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça supra referido, pode ler-se que: “Os jogos de fortuna ou azar são aqueles cujo resultado é contingente por assentar exclusiva ou fundamentalmente na sorte (artigo 1º do Decreto-Lei nº 422/89, de 2 de Dezembro, e que estão tipificados no art. 4º, nº 1 do mesmo diploma. No que releva para o caso (...) as alíneas f) e g) do nº 1 do art. 4º Decreto-Lei nº 422/89 considera como tipos (modalidades) de jogos de fortuna ou azar os «jogos em máquinas pagando directamente prémios em fichas ou moedas» e os «jogos em máquinas que, não pagando directamente prémios em fichas ou moedas, desenvolvem formas próprias dos jogos de fortuna ou azar, ou apresentam como resultado pontuações dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte». Fora desta descrição, modalidades de jogos cujos resultados dependam exclusiva ou fundamentalmente da sorte, não constituem, na disciplina da lei, jogos de fortuna ou azar, mas modalidades afins, com regulamentação e consequências próprias”.
É pois, por recurso ao critério literal, à própria letra da lei, que deve fazer-se a distinção entre jogos de fortuna ou azar e modalidades afins.
Aderindo à citada jurisprudência, afigura-se-nos que o equipamento apreendido e descrito na acusação, não integra o conceito de jogo de fortuna ou azar, mas o de modalidade afim.
Na verdade, verifica-se que o jogo que a referida máquina proporciona, embora o resultado dependesse da sorte e não da perícia do utilizador, não explora temas próprios dos jogos de fortuna ou azar, nem pagava prémios em fichas ou moedas, pelo que falta, deste modo, as características essenciais que permitem qualificar um jogo como sendo de fortuna ou azar, nos termos do art. 4º, nº 1 do DL nº 422/89, de 2 de Dezembro.
As características e os elementos do jogo proporcionado reverte antes para as modalidades afins referidas no art. 159º do referido diploma, constituindo uma espécie de sorteio por meio de rifas ou tômbolas mecânicas, com o sentido e a natureza de modalidades afins de jogos de fortuna ou azar.
Face ao exposto, forçoso é concluir que a exploração não autorizada do jogo a que se refere os presentes autos constitui uma contra-ordenação, prevista no art. 163º, nº 1 da Lei do Jogo, por referência aos arts. 159º, 160º, nº 1, 161º do D.L. nº 422/89, de 2 de Dezembro (já que a exploração das máquinas em questão necessita de autorização, sem a qual, não constituindo crime, constitui contra-ordenação).
Ora, nos termos do art. 311º, nº 2, alínea a), do C.P.P., o juiz deve "rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada".
E a acusação considera-se manifestamente infundada, além do mais, quando os factos nela descritos não constituírem crime - artigo 311º, nº 3, alínea d), do C.P.P. - é, como supra curámos de evidenciar, o caso dos autos.
Por isso, nos termos dos artigos 311º, nºs 2, alínea a) e 3, alínea d), do C.P.P., rejeita-se a acusação deduzida pelo Ministério Público, por ser manifestamente infundada.
Notifique.
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Após trânsito, extraía certidão de todo o processado e remeta à autoridade administrativa competente para conhecer da contra-ordenação.
(…)”
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Não se conformando com essa decisão, o Ministério Público dela interpôs recurso (fls. 123 a 127), formulando as seguintes conclusões:
1. A integração legal feita na acusação é fundamentada e legítima, recolhendo apoio jurisprudencial.
2. Não é assim manifesto que os factos descritos na acusação não integrem o tipo legal de crime imputado ao arguido.
3. O despacho recorrido traduz uma diferença de opinião sobre uma questão técnico-jurídica mas, não representa o único entendimento possível para os factos em análise.
4. No despacho recorrido foram violados os artigos 108º nºs 1 e 2 do D.L. 422/89, na versão do D.L. 109/95, bem como os artigos 311º nºs 2 al. a) e nº3 al. b) e d) Cód. Proc. Penal.
5. Nestes termos, por não ser manifesto que a acusação deduzida não pode proceder, deverá o despacho proferido ser revogado e substituído por outro que proceda ao recebimento da acusação e designe dia para julgamento, assim se fazendo a costumada”.
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O Sr. Juiz a quo manteve a decisão sob recurso nos seus precisos termos (fls. 132).
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Nesta Relação, o Sr. Procurador-Geral Adjunto limitou-se a apor visto (fls. 137).
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Foi cumprido o disposto no art. 417 nº 2 do CPP.
Colhidos os vistos legais realizou-se a conferência.
Cumpre, assim, apreciar e decidir.
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II- FUNDAMENTAÇÃO
O recurso interposto pelo Ministério Público (demarcado pelo teor das suas conclusões - art. 412 nº 1 do CPP), começa por suscitar a questão de saber se, o Sr. Juiz a quo podia rejeitar a acusação, como o fez, quando a questão do enquadramento jurídico dos factos é controvertida, por existirem soluções jurídicas diversas da adoptada na decisão sob recurso (na perspectiva do recorrente, havendo diferentes soluções jurídicas, deveria o juiz do julgamento concluir não ser caso de rejeitar a acusação por a mesma não poder ser considerada como manifestamente infundada).
Vejamos então.
Dispõe o art. 311 (saneamento do processo) do CPP:
1- Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.
2- Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;
(…)
3- Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
a) Quando não contenha a identificação do arguido;
b) Quando não contenha a narração dos factos;
c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou
d) Se os factos não constituírem crime.
É, portanto, o nº 3 do art. 311 do CPP que define os casos em que a acusação é considerada manifestamente infundada, justificando, assim, a sua rejeição.
Um desses casos, que o legislador trata como de acusação “manifestamente infundada”, é precisamente o de os factos nela alegados não constituírem crime (art. 311 nº 2-a) e nº 3-d) do CPP): e foi esse o motivo da rejeição da acusação, como se percebe claramente da decisão sob recurso.
Não se trata aqui de um diferente enquadramento jurídico feito na altura do saneamento do processo, em que, ainda assim, é proferido despacho a designar dia para julgamento, mas antes de uma decisão que rejeita a acusação por os factos nela descritos não constituírem crime.
Obviamente que para chegar a essa conclusão (de os factos alegados na acusação não constituírem crime, o que a tornava manifestamente infundada, tendo então a obrigação de a rejeitar) o Sr. Juiz a quo teve que indicar um determinado percurso jurídico que seguiu, assim justificando (fundamentando) a decisão que tomou.
Note-se que, não está previsto na lei, como pretende o recorrente, que havendo diferentes correntes jurisprudenciais sobre a qualificação de determinada conduta (se é crime ou não) então o processo deve prosseguir para julgamento.
Não é isso o que resulta do disposto no art. 311 do CPP, pelo que esse tipo de argumentação não encontra apoio legal.
Isto mostra que, tal como o recorrente começou por colocar a questão, logo se desenhava a improcedência do recurso.
De qualquer modo, como nas conclusões do recurso invoca, de alguma forma, que a conduta descrita na acusação integra crime, importa conhecer do fundo da questão.
E, então, a questão que se coloca é a de saber se aqueles factos descritos na peça acusatória (que aqui se dão por reproduzidos) integram o crime de exploração ilícita de jogo (previsto no art. 108 nº 1 e 2 do DL nº 422/89, de 2/12, na redacção dada pelo DL nº 10/95, de 19/1) imputado ao arguido.
Para nós também é claro, manifesto, que os factos descritos na acusação não integram a prática de qualquer crime e, muito menos, o imputado ao arguido.
Dispõe o art. 108 (exploração ilícita de jogo) do cit. DL nº 422/89, na redacção do DL nº 10/95:
1- Quem, por qualquer forma, fizer exploração de jogos de fortuna ou azar fora dos locais legalmente autorizados será punido com prisão até dois anos e multa até 200 dias.
2- Será punido com a pena prevista no número anterior quem for encarregado da direcção do jogo, mesmo que não a exerça habitualmente, bem como os administradores, directores, gerentes, empregados e agentes da entidade exploradora.
A conduta típica prevista no seu nº 1 consiste na exploração, por qualquer forma, de jogos de fortuna ou azar fora dos locais legalmente autorizados e, a prevista no nº 2, é recortada a partir das qualidades funcionais (encarregado da direcção do jogo, administradores, directores, gerentes, empregados e agentes da entidade exploradora) do agente.
Para definir o âmbito da conduta proibida prevista no art. 108 nº 1 do DL nº 422/89, importa distinguir e estabelecer uma fronteira objectiva e nítida entre o que são “jogos de fortuna ou azar” e o que são “modalidades afins do jogo de fortuna ou azar e outras formas de jogo”.
E isto porque dispõe o art. 159 (modalidades afins do jogo de fortuna ou azar e outras formas de jogo) do mesmo diploma legal:
1. Modalidades afins dos jogos de fortuna ou azar são as operações oferecidas ao público em que a esperança de ganho reside conjuntamente na sorte e perícia do jogador, ou somente da sorte, e que atribuem como prémios coisas com valor económico.
2. São abrangidos pelo disposto no número anterior, nomeadamente, rifas, tômbolas, sorteios, concursos publicitários, concursos de conhecimentos e passatempos.
(…)
Estabelecendo, ainda, o art. 161 (proibições):
1 - Não é permitida a exploração de qualquer modalidade afim do jogo de fortuna ou azar e outras formas de jogo referidas no artigo 159.º por entidades com fins lucrativos, salvo os concursos de conhecimentos, passatempos ou outros, organizados por jornais, revistas, emissoras de rádio ou de televisão, e os concursos publicitários de promoção de bens ou serviços.
2 - Os concursos excepcionados no número anterior não poderão ocasionar qualquer dispêndio para o jogador que não seja o do custo normal de serviços públicos de correios e de telecomunicações, sem qualquer valor acrescentado, ou do custo do jornal ou revista, com comprovada publicação periódica há mais de um ano, cuja expansão se pretende promover, ou ainda do custo de aquisição dos produtos ou serviços que se pretende reclamar.
3 - As modalidades afins do jogo de fortuna ou azar e outras formas de jogo referidas no artigo 159.º não podem desenvolver temas característicos dos jogos de fortuna ou azar, nomeadamente o póquer, frutos, campainhas, roleta, dados, bingo, lotaria de números ou instantânea, totobola e totoloto, nem substituir por dinheiro ou fichas os prémios atribuídos.
Assim, importa ter presente, por um lado, o que dispõem os arts. 1 (jogos de fortuna ou azar)[1] e 4 (tipos de jogos de fortuna ou azar)[2] do cit. DL nº 422/89 e, por outro lado, o estatuído nos arts. 159 (modalidades afins do jogo de fortuna ou azar e outras formas de jogo) a 163 do mesmo diploma legal.
A maior dificuldade com que a jurisprudência se foi deparando ao longo do tempo nesta matéria, assentou na escolha de um critério legal que permitisse efectuar a referida distinção entre o crime e a contra-ordenação indicados (saber quando determinada conduta integrava a prática do crime ou a prática da contra-ordenação referidas), atenta a indefinição e ambiguidades que iam sobressaindo das sucessivas alterações legislativas nesta área (desde o DL nº 48.912 de 18/3/1969 até à actualidade, como se explica na decisão sob recurso), concretamente a partir da entrada em vigor do DL nº 422/89 que, nesse aspecto, não foi clarificado com a alteração introduzida pelo DL nº 10/95, de 19/1, nem pelas posteriores alterações (a última das quais foi introduzida pela Lei 64-A/2008, de 31/12).
Na impossibilidade de encontrar um outro critério legal (sendo certo que o factor “sorte” não servia, uma vez que tanto aparece na definição geral de “jogo de fortuna ou azar”, como na de “modalidade afim”, neste último caso ao lado da “perícia do jogador”) que permitisse estabelecer uma distinção material entre “jogos de fortuna ou azar” e “modalidades afins”, adianta Carlos Almeida, no Acórdão do TRL de 26/10/2005[3] (que classificaríamos como acórdão percursor, que teve o mérito de convencer parte da jurisprudência, nomeadamente desta Relação do Porto[4]), que então há que definir essa fronteira com recurso ao estabelecido nos arts. 1 e 4 do cit. DL nº 422/89, interpretando essas duas normas de forma articulada, o que permite chegar à conclusão de que os “jogos de fortuna ou azar”, para efeitos de delimitação dos crimes previstos nos arts. 108 a 111 e 115 do mesmo diploma legal, são “apenas aqueles, cuja exploração, nos termos dos nºs 1 e 3 do artigo 4 da actual redacção do DL nº 422/89, de 2 de Dezembro, é autorizada nos casinos”.
Tal entendimento mostra-se em sintonia com uma compreensão racional do argumento histórico e mesmo do literal (apelando também ao artigo 9 do CC), estando de acordo com o princípio da legalidade.
E, ainda apelando ao argumento sistemático, isto é, à forma como foi estruturada a referida “lei do jogo” (que tem subjacente a opção do legislador por um “sistema de autorização regulamentada” quanto a jogos de fortuna ou azar, como se assinala no Ac. do TC nº 99/2002[5]), é lógica a interpretação feita sobre a noção de “jogos de fortuna ou azar”, afigurando-se adequada ao espírito do legislador e à unidade do sistema jurídico, mostrando-se, assim, “funcionalmente justificada” para delimitar o recorte (a área de tutela típica) dos crimes previstos nos arts. 108 a 111 e 115 do cit. DL nº 422/89, distinguindo-os das contra-ordenações previstas nos arts. 159 a 163 do mesmo diploma legal.
Podemos, assim, avançar para a solução de que a noção de “jogos de fortuna ou azar”, para os efeitos indicados, concretiza-se através dos tipos de jogos previstos no artigo 4 do citado DL nº 422/89, sejam os que estão expressamente enunciados no seu nº 1, sejam os que são ou vierem a ser autorizados pelo Governo e como tal (como jogos de fortuna ou azar) sejam ou venham a ser classificados (sem prejuízo, claro, de questões de inconstitucionalidade que se possam suscitar no futuro, se não houver as cautelas devidas, como é adiantado no Ac. desta Relação de 29/10/2008[6]).
Assim, a conduta típica prevista no nº 1 do art. 108 do cit. DL nº 422/89, consiste em, por qualquer meio, fazer a exploração de “jogos de fortuna ou azar” previstos no artigo 4 do cit. DL nº 422/89, fora dos locais legalmente autorizados, isto é, fora dos casinos (para melhor se perceber a distinção em relação a jogos considerados de “fortuna ou azar” ver ainda as Portarias nº 817/2005, de 13/9 e nº 217/2007, de 26/2) ou de outros locais onde a exploração de jogos de fortuna ou azar é autorizada pelo Estado (cf. designadamente arts. 6, 7, 9 do referido DL nº 422/89, os quais sempre obedecem às regras estabelecidas para a sua utilização em casinos).
Esta interpretação é razoável quando se pensa até na falta de dignidade penal que determinadas condutas (como é o caso destes autos) merecem, sendo perfeitamente adequado a satisfazer as exigências de defesa da sociedade, a censura meramente contra-ordenacional prevista para a falta de licença (autorização) exigida relativamente à exploração de determinado tipo de máquinas que desenvolvem modalidades afins do jogo de fortuna ou azar e outras forma de jogo.
A partir daí (aceitando-se os argumentos apontados na decisão sob recurso, os quais nos dispensamos de reproduzir por já ali virem expostos, para a qual remetemos nesta matéria) torna-se nítida a distinção entre o crime previsto no art. 108 do DL nº 422/89 e as contra-ordenações previstas nos arts. 159 a 163 do mesmo diploma legal, nesta área relativa à exploração de jogo de fortuna ou azar e à exploração de modalidades afins.
Socorrendo-nos desse critério, colhido no próprio regime legal estabelecido no DL nº 422/89 (tal como claramente se explica na decisão sob recurso), não há dúvidas que a conduta descrita na acusação não integra qualquer crime.
Com efeito, aquela máquina (constituída por dois corpos, um sobreposto ao outro, sendo no corpo superior que estavam alojadas pequenas cápsulas ovais ocas que guardam no seu interior uma senha numerada, enquanto que no corpo inferior se situava um dispositivo para inserção de moedas de 0,50 € e um manípulo rotativo que é desbloqueado pela introdução de uma moeda, existindo ainda na parte lateral da máquina um pequeno compartimento que apenas permite visualizar uma cápsula diferente da que está pronta a sair após a introdução de moeda, encontrando-se a cápsula pronta a ser extraída alojada em compartimento não visível), que se encontrava em funcionamento em 20/8/2007, no interior do mencionado estabelecimento de restauração, colocada no balcão de atendimento, virada para o público, que seria explorada pelo arguido, desenvolvia “jogo” (jogo iniciado pela introdução de uma moeda de € 0,50 por uma ranhura situada na parte lateral direita com acesso a um pequeno cofre, após o que o jogador roda um manípulo que retira para o exterior a cápsula alojada no compartimento não visível, a qual contem uma senha indicando um número - que não é do conhecimento prévio do jogador e que nem este consegue visualizar, ficando sem previamente saber qual o concreto prémio que vai receber - que corresponde a um prémio exibido em cartaz exposto ao público, sendo os prémios de variada natureza e valor - incluindo relógios de vários géneros, lanternas a pilhas, calculadoras e microfones - sendo uns de valor económico superior a 0,50€ e outros de valor inferior a esse montante) que dava sempre prémio em espécie, o qual podia ser de valor superior ou inferior a 0,50 €, montante este que era precisamente o da moeda introduzida na máquina para ela funcionar.
Ou seja: apesar daquele jogo depender exclusivamente da sorte (consoante a senha que estivesse no interior da cápsula que viesse a sair - o que o “jogador” apenas tomava conhecimento quando abrisse a cápsula e procedesse à leitura da respectiva senha), o certo é que também previamente o jogador sabia que o prémio em espécie que iria receber era necessariamente um daqueles que estava exposto no cartaz (o que tornava relativa ou até afastava a contingência[7] do resultado, uma vez que havia sempre prémio em espécie, que era um dos que estava exposto no cartaz).
A única senha (que aqui pode ser classificada como “rifa”) que estava no interior da cápsula, que saía aleatoriamente, só tinha um número (portanto, nem cada cápsula tinha várias senhas, nem tinha várias séries de números como, por exemplo, sucede com outras cápsulas extraídas de diferentes máquinas, mas que ainda assim podem ser consideradas como “modalidades afins”[8]), correspondente a um dos prémios em espécie expostos no cartaz dos prémios.
Nem aquele “jogo” se assemelhava ao promovido noutra espécie de máquinas que desenvolvem temas próprios dos jogos de fortuna ou azar (cf. art. 4 nº 1-g) do citado diploma legal), nem o prémio pago era em “fichas ou moedas” (cf. art. 4 nº 1-f) do mesmo diploma legal)[9].
Esse tipo de máquina e cartaz com exposição de prémios em espécie, bem como “jogo” que desenvolvia da forma descrita (uma forma que poderíamos classificar de “básica” e “simples”) - cujo resultado dependia exclusivamente da sorte nos termos acima indicados e não da perícia do jogador - como é claro não se integra em qualquer dos tipos de “jogos de fortuna ou azar” previstos no artigo 4 do cit. DL nº 422/89 (nem a qualquer deles se equipara).
Logo, por aí, se percebia que o referido “jogo” desenvolvido naquela máquina não podia ser classificado como “jogo de fortuna ou azar”, razão pela qual a sua exploração não podia integrar o crime imputado ao arguido, nem qualquer outro crime previsto na dita “Lei do Jogo”.
Considerando o seu modo de funcionamento, tipo de jogo e prémios que atribuía era fácil (por ser nítido) concluir que se estava perante máquina que desenvolvia uma “modalidade afim”, tal como definida no art. 163 nº 1, por referência aos arts. 159, 160 nº 1 e 161 do cit. DL nº 422/89, pelo que a sua exploração (tal como estava descrita na acusação) não integrava a prática do crime imputado ao arguido.
Por isso, é manifesto que os factos alegados na peça acusatória não integram qualquer crime, não merecendo censura a decisão sob recurso.
Em conclusão: impõe-se negar provimento ao recurso, sendo certo que não foram violados os preceitos legais invocados pelo recorrente.
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III- DISPOSITIVO
Em face do exposto, acordam os Juízes desta Relação em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, confirmando a decisão impugnada.
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Sem custas por delas estar isento o recorrente.
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(Processado em computador e revisto pela 1ª signatária – art. 94 nº 2 do CPP)
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Porto, 20 de Maio de 2009
Maria do Carmo Saraiva de Menezes da Silva Dias
Jaime Paulo Tavares Valério
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[1] Artigo 1 (jogos de fortuna ou azar) do cit. DL nº 422/89: “Jogos de fortuna ou azar são aqueles cujo resultado é contingente por assentar exclusiva ou fundamentalmente na sorte.”
[2] Artigo 4º (tipos de jogos de fortuna ou azar) do mesmo diploma legal:
1 - Nos casinos é autorizada a exploração, nomeadamente, dos seguintes tipos de jogos de fortuna ou azar:
a) Jogos bancados em bancas simples ou duplas: bacará ponto e banca, banca francesa, boule, cussec, écarté bancado, roleta francesa e roleta americana com um zero;
b) Jogos bancados em bancas simples: black jack/21, chukluck e trinta e quarenta;
c) Jogos bancados em bancas duplas: bacará de banca limitada e craps;
d) Jogo bancado: keno;
e) Jogos não bancados: bacará chemin de fer, bacará de banca aberta, écarté e bingo;
f) Jogos em máquinas pagando directamente prémios em fichas ou moedas;
g) Jogos em máquinas que, não pagando directamente prémios em fichas ou moedas, desenvolvam temas próprios dos jogos de fortuna ou azar ou apresentem como resultado pontuações dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte.
2 - É permitido às concessionárias adoptar indiferentemente bancas simples ou duplas para a prática de qualquer dos jogos bancados referidos na alínea a) do n.º 1 deste artigo.
3 - Compete ao membro do Governo da tutela autorizar a exploração de novos tipos de jogos de fortuna ou azar, a requerimento das concessionárias e após parecer da Inspecção-Geral de Jogos.
[3] Ac. do TRL de 26/10/2005, proferido no processo nº 7610/2005-3, relatado por Carlos Almeida, publicado no site www.dgsi.pt.
[4] Nesta matéria destaca-se o mais recente Acórdão do TRP publicado no mesmo site, que é de 29/10/2008 (também citado na decisão sob recurso), proferido no processo nº 0842889 (relatado por António Gama), remetendo-se igualmente para a jurisprudência aí indicada.
[5] Ac. do TC nº 99/2002, publicado no DR II Série de 4/4/2002.
[6] Cf., ainda, acórdãos do TC nº 93/2001, publicado no DR II Série de 5/6/2001 e, bem assim, Rui Pinto Duarte, “O Jogo e o Direito”, in Themis, ano II (2001), nº 3, pp. 69 a 93.
[7] Contingência entendida como “facto possível, mas incerto”.
[8] Ver, também, Ac. do STJ de 28/11/2007, proferido no processo nº 07P3186 (relatado por Henriques Gaspar), consultado no mesmo site.
[9] Ibidem.