Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0812216
Nº Convencional: JTRP00041552
Relator: FERREIRA DA COSTA
Descritores: ASSÉDIO LABORAL
Nº do Documento: RP200807070812216
Data do Acordão: 07/07/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONTRA-ORDENAÇÃO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 103 - FLS. 115.
Área Temática: .
Sumário: I. Entende-se por assédio todo o comportamento indesejado relacionado com os factores indicados no n.º 1 do art. 23º do Código do Trabalho (ascendência, idade, sexo, orientação sexual, estado civil, situação familiar, património genético, capacidade de trabalho reduzida, deficiência ou doença crónica, nacionalidade, origem étnica, religião, convicções políticas ou ideológicas e filiação sindical), praticado aquando do acesso ao emprego ou no próprio emprego, trabalho ou formação profissional, com o objectivo ou o efeito de afectar a dignidade da pessoa ou criar um ambiente intimidativo, degradante, humilhante ou desestabilizador.
II Preenche a previsão do assédio moral a atitude da entidade patronal que, perante uma trabalhadora que não apresentava níveis de produção considerados satisfatórios, a retirou da sua posição habitual na linha de produção e a colocou numa máquina de costura, colocada propositadamente para esse efeito para além do corredor de passagem e de frente para a sua linha de produção, em destaque perante todas as colegas da secção de costura.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Reg. N.º 528
Proc. N.º 2216/08-1.ª



Acordam no Tribunal da Relação do Porto:



Não se conformando com a decisão da Inspecção-Geral do Trabalho que lhe aplicou a coima de € 8.736,00 pela prática de uma contra-ordenação prevista e punida pela conjugação dos Art.ºs 23.º, n.º 1 e 24.º, n.º 2, ambos do Cód. do Trabalho[1], 32.º, n.º 2, alínea a) do respectivo Regulamento[2] e 642.º, n.º 1 e 620.º, n.º 4, alínea e), ambos daquele primeiro diploma, veio a arguida B…………….., Ld.ª recorrer para o Tribunal do Trabalho. Porém, tendo este considerado, pela douta sentença de fls. 73 a 77, que o recurso era improcedente, decidiu confirmar a referida decisão administrativa.
Inconformada com tal decisão, interpôs a arguida recurso para esta Relação, pedindo a sua revogação e tendo formulado a final as seguintes conclusões:

1ª) A trabalhadora, C…………., apresentou, sem causa aparente, decréscimo que justificasse a redução de produção entretanto detectada.
2ª) Entendeu a Apelante, empresa de dimensão considerável, procurar motivo para o sucedido, pelo que, à mingua de razões compreensíveis, se viu forçada no exercício legítimo da fiscalização do trabalho executado pela colaboradora no âmbito do respectivo contrato, colocá-la num espaço situado próximo da chefia e com a única intenção de controlar a sua actividade de modo a obter resposta efectiva para a constatada redução de produtividade.
3ª) Ficou demonstrado que "aquela trabalhadora não apresentava níveis de produção que a arguida considerasse satisfatórios"
4ª) Tendo sido colocada em local próximo da encarregada.
5ª) A relevância que se dá ao mesmo local quanto ao respectivo enquadramento é desenquadrada com as causas e motivações que a determinaram.
6ª) A Apelante, face à necessidade de obter e dar resposta à quebra de produtividade da trabalhadora, actuou no uso legítimo do seu poder de fiscalização e único que lhe permitiria desvendar as razões da menor actividade daquela.
7ª) Não a humilhou nem jamais teve intenção de o fazer.
8ª) O meritíssimo Juiz a quo, embora reconhecendo que as testemunhas procuraram relacionar a atitude da empresa com a falta de capacidade de trabalho da trabalhadora e a necessidade de a colocar numa posição em que pudesse ser acompanhada e ajudada pela encarregada, não lhes deu crédito sob pretexto de não entender porque razão esse acompanhamento e ajuda não podiam ser igualmente prestados sem a deslocação da trabalhadora.
9ª) O Tribunal não tomou, pois, em consideração as razões que justificaram tal deslocação.
10ª) Não concedendo qualquer beneficio de dúvida aos motivos da decisão da Apelante, interpretou, sustentando apenas nos poucos factos que deu como provados – manifestamente escassos e insuficientes – a conclusão de que a empresa teria agido com intuitos persecutórios e de humilhação apenas porque deslocou provisoriamente a trabalhadora para um espaço mais visível e de acesso mais próximo da chefia.
11ª) Integrando, sem razão, essa objectiva decisão na figura prevista no Art. 24° da Lei n°99/03 de 29 de Agosto - assédio.
12ª) Embora ciente das razões legítimas que no seu entendimento autorizavam o descrito procedimento, é convicção da Apelante, que o meritíssimo Juiz, face aos factos, estaria obrigado, no mínimo, a conceder-lhe o justificado benefício da dúvida.
13ª) Não sendo razoável - renova-se e atentos os parcos factos assentes - que destes se retirem as conclusões pronunciadas e, menos ainda, que integrem a figura do assédio, nos seus termos, prevista no citado Art. 24° do C.T..
14ª) Não cometeu, em coerência, a Apelante, qualquer contra-ordenação.
15ª) Pelo que deverá ser considerada sem efeito a coima sentenciada.
16ª) Dando-se por reproduzidas as alegações de fls.... apresentadas no recurso interposto no Tribunal de Trabalho de Viana do Castelo assim se suprindo eventuais lacunas.

A Sr.ª Procuradora da República, no Tribunal a quo, apresentou alegação de resposta, concluindo pela improcedência do recurso.
Nesta Relação, o Ex.m.º Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido de que o recurso deve soçobrar.
A Recorrente não tomou posição acerca do teor de tal parecer.
Recebido o recurso, correram os legais vistos.

Cumpre decidir.

São os seguintes os factos considerados provados pelo Tribunal a quo:
1 – No dia 5/2/07, pelas 11 horas, a arguida tinha ao seu serviço, sob a sua direcção e fiscalização, no seu estabelecimento, a trabalhadora C……………, admitida há cerca de 9 anos, com a categoria profissional de operadora de costura de 2ª.
2 – Como aquela trabalhadora não apresentava níveis de produção que a arguida considerasse satisfatórios, foi retirada da sua posição habitual na linha de produção e colocada numa máquina de costura, colocada propositadamente para esse efeito, para além do corredor de passagem e de frente para a sua linha de produção, em destaque perante todas as colegas da secção de costura.
3 – A arguida teve um volume de negócios em 2006 de € 19.307.327,00.

O direito.
Sendo pelas conclusões respectivas que se delimita o respectivo objecto, a única questão a decidir neste recurso, consiste em saber se a arguida não praticou a contra-ordenação pela qual foi condenada.
Vejamos.
A começar e previamente, dir-se-á que o presente recurso é restrito à matéria de direito, atento o disposto nos Art.ºs 75.º, n.º 1 e 41.º, n.º 1, ambos do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, ex vi do disposto no Art.º 615.º do Cód. do Trabalho, salvo se se verificar qualquer dos vícios previstos nas alíneas [a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova] do n.º 2 do Art.º 410.º do Cód. Proc. Penal.
Porém, inexistindo, in casu, qualquer dos apontados vícios, atender-se-á aos factos acima referidos e dados como provados pelo Tribunal a quo.

Entrando agora no conhecimento da questão propriamente dita, verificamos que foi aplicada à arguida a coima de € 8.736,00, imputando-se-lhe uma contra-ordenação prevista pela conjugação das normas constantes dos Art.ºs 23.º, n.º 1 e 24.º, n.º 2, ambos do CT e 32.º, n.º 2, alínea a) do RCT que, respectivamente, dispõem:

Artigo 23º
Proibição de discriminação

1 — O empregador não pode praticar qualquer discriminação, directa ou indirecta, baseada, nomeadamente, na ascendência, idade, sexo, orientação sexual, estado civil, situação familiar, património genético, capacidade de trabalho reduzida, deficiência ou doença crónica, nacionalidade, origem étnica, religião, convicções políticas ou ideológicas e filiação sindical.

Artigo 24º
Assédio
2 — Entende-se por assédio todo o comportamento indesejado relacionado com um dos factores indicados no nº 1 do artigo anterior, praticado aquando do acesso ao emprego ou no próprio emprego, trabalho ou formação profissional, com o objectivo ou o efeito de afectar a dignidade da pessoa ou criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador.

Artigo 32º
Conceitos
2 — Considera-se:
a) Discriminação directa sempre que, em razão de um dos factores indicados no referido preceito legal [Art.º 23.º, n.º 1 do CT], uma pessoa seja sujeita a tratamento menos favorável do que aquele que é, tenha sido ou venha a ser dado a outra pessoa em situação comparável.

A arguida entende que não praticou a referida contra-ordenação, pois a deslocação da trabalhadora para fora da linha de produção visou apenas proporcionar que ela, ficando posicionada em lugar mais próximo da encarregada, fosse ajudada por esta, de forma a atingir os níveis de produção considerados quantitativamente adequados..
Sucede, porém, como resulta da sentença, que não se provou:
- que esta mudança tenha sido ditada pela intenção de permitir que a encarregada a pudesse acompanhar e ajudar;
- que, após aquela mudança, a trabalhadora tenha readquirido os níveis normais de produção.

Daqui resulta, como é sabido, não a prova do facto contrário, mas que apenas ficou provado, nomeadamente, conforme o Tribunal a quo deu por assente, o facto que integra o n.º 2 da respectiva lista supra, que se repete:
2 – Como aquela trabalhadora não apresentava níveis de produção que a arguida considerasse satisfatórios, foi retirada da sua posição habitual na linha de produção e colocada numa máquina de costura, colocada propositadamente para esse efeito, para além do corredor de passagem e de frente para a sua linha de produção, em destaque perante todas as colegas da secção de costura.

Ora, embora não sejam muito pormenorizados tais factos, não parece, in casu, descabida a invocação da figura do assédio moral.
A arguida, embora sem provar a quantidade em causa, partindo da consideração de que a trabalhadora estava a produzir menos do que o que devia, decidiu adoptar uma conduta que convencesse esta a produzir mais, deslocando-a para fora da linha de produção e colocando-a diante da mesma, permitindo ser visualizada pelos restantes trabalhadores que ocupavam a mesma linha. Trata-se de tratamento discriminatório, porque desigual com relação aos outros trabalhadores e sem fundamento válido, pois não se provou que a deslocação para fora da linha tivesse como objectivo o aumento da produção e, muito menos, que ele tivesse logrado êxito.
Ora, tal conduta, embora se desconheça o tempo em que perdurou, prolongou-se certamente no tempo, pois pretendia ser persuasiva também pela reiteração, envolveu a prática de actos[3] levados a cabo de forma subtil, que de per si não seriam configuráveis como infracção a qualquer obrigação de proporcionar boas condições de trabalho mas, tomadas no seu conjunto, porque prolongados no tempo e dentro do descrito circunstancialismo fáctico, têm como efeito a humilhação da trabalhadora, afectando a sua dignidade pessoal. Na verdade, parecendo tratar-se apenas de mobbing vertical – descendente – certo é que ele adquire contornos de mobbing horizontal pois, ainda que indirectamente, os restantes trabalhadores, que se mantêm na linha de produção a vê-la permanentemente, funcionam como elementos de pressão ao lado do empregador e respectiva cadeia hierárquica.
Mesmo que não tivesse sido essa a intenção, certo é que tal efeito se produz, atentos os factos provados. De qualquer forma e segundo se tem entendido, o preenchimento da figura do mobbing não exige uma actuação intencional, bastando que o comportamento tenha como efeito o resultado de, in casu, vexar ou humilhar para coagir o trabalhador a adoptar uma conduta não querida, por exemplo, despedir-se por sua iniciativa, mas contra a sua vontade, não fosse a pressão exercida.
Tal significa que o preenchimento da contra-ordenação se basta com a imputação a título de negligência, consistente na omissão do dever objectivo de cuidado constante da lei, o que ocorre no presente caso.
Por outro lado, o ónus da prova acerca da materialidade do assédio moral encontra-se cumprido, pois basta a prova da base da presunção, sendo certo que a arguida não cumpriu o seu, atentos os factos não provados e acima elencados, pois impunha-se demonstrar que o seu comportamento era justificado.
Entendemos, destarte, que se encontram preenchidos os pressupostos do mobbing, tal qual se encontra regulado no CT e no RCT, atenta a situação concreta do caso. Trata-se de comportamento injustificado, contrário ao princípio da boa fé, violando o direito a que o a prestação laboral seja efectuada em boas condições, provocando um efeito humilhante perante a população da empresa, nomeadamente, perante os colegas de trabalho, deste modo afectando a dignidade humana da trabalhadora[4].
É certo que ao empregador, sendo o dono da empresa, cabe fazer a respectiva gestão, a todos os níveis, inclusive a de recursos humanos, assim assegurando a respectiva rentabilidade económica. No entanto, deverá socorrer-se das adequadas ferramentas, lançando mão dos meios permitidos pelo princípio da boa fé que deve estar presente na celebração e na execução do contrato de trabalho, permitindo que ao lado do bom desempenho da empresa, os trabalhadores também se possam realizar como pessoas.
Cremos, com o devido respeito por diferente opinião, que tal não foi feito.
Improcedem, deste modo, as conclusões do recurso.

Assim, tendo o Tribunal a quo considerado que a arguida praticou a infracção que lhe foi imputada, julgando por isso o recurso improcedente, bem decidiu, pelo que a sentença não deve ser revogada.

Decisão.
Nestes termos, acorda-se em rejeitar o recurso, assim confirmando a douta sentença recorrida.
Custas pela recorrente, fixando a taxa de justiça em 5 Ucs.

Porto, 07 de Julho de 2008
Manuel Joaquim Ferreira da Costa
Domingos José de Morais
___________
[1] Aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto, de ora em diante designado, abreviadamente, apenas por CT.
[2] Aprovado pela Lei n.º 35/2004, de 29 de Julho, de ora em diante designado, abreviadamente, apenas por RCT.
[3] Tem-se entendido que, embora não constituindo a regra, o mobbing pode ocorrer com a prática de um único acto, bastando que a situação concreta apresente o circunstancialismo caracterizador da figura.
[4] Cfr. Maria Regina Gomes Redinha, in Assédio moral ou Mobbing no Trabalho, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Raul Ventura, volume II, 2003, págs. 833 a 847 e in Assédio moral ou Mobbing no Trabalho (Sumário), V Congresso Nacional de Direito do Trabalho, 2003, págs. 169 a 171, Isabel Ribeiro Parreira, in O Assédio Moral no Trabalho, V Congresso Nacional de Direito do Trabalho, 2003, págs. 209 a 244, Mago Graciano de Rocha Pacheco, in O Assédio Moral no Trabalho, O Elo Mais Fraco, 2007, págs. 208 a 221, nomeadamente, Júlio Gomes, in Algumas Observações sobre o Mobbing nas Relações de Trabalho Subordinado, Estudos Jurídicos em Homenagem ao Professor António Motta Veiga, 2007, págs. 165 a 184 e in Direito do Trabalho, volume I, Relações Individuais de Trabalho, 2007, págs. 425 a 442, Maria do Rosário Palma Ramalho, in Direito do Trabalho, Parte II – Situações Laborais Individuais, 2006, págs. 148, 149 e 343 a 345 e Alexandra Marques Sequeira, in Do assédio no local de trabalho, Um caso de flirt legislativo, Exercício de aproximação ao enquadramento jurídico do fenómeno, Questões Laborais, 2006, n.º 28, págs. 241 a 258, Messias Carvalho, in A Ilicitude do Despedimento e a Reintegração do Trabalhador, Estudos Jurídicos em Homenagem ao Professor António Motta Veiga, 2007, págs. 193 e in Assédio Moral/Mobbing, Breves Considerações, Temas Laborais Luso-Brasileiros, JUTRA, 2006, págs. 261 a 286 e Pedro Romano Martinez e outros, in Código do Trabalho Anotado, 2003, págs. 107 a 111.