Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0111200
Nº Convencional: JTRP00033214
Relator: CLEMENTE LIMA
Descritores: JUNÇÃO DE DOCUMENTO
PARECERES
PRAZO
INJÚRIA
ERRO NOTÓRIO
Nº do Documento: RP200201160111200
Data do Acordão: 01/16/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: 2 J CR BRAGA
Processo no Tribunal Recorrido: 60/01
Data Dec. Recorrida: 06/07/2001
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: DIR CRIM - CRIM C/PESSOAS.
DIR PROC PENAL.
Legislação Nacional: CPP98 ART165 N1 ART410 N2 C.
Sumário: É de indeferir a admissão requerida pelo recorrente na motivação do recurso de um "parecer técnico etimológico" em que alega ter sumo interesse para apreciação do mérito. Por um lado, porque a junção de documentos tem a disciplina constante da norma do artigo 165 n.1 do Código de Processo Penal, por outro porque o Tribunal ad quem não pode apreciar elementos de prova que o tribunal recorrido não apreciou.
O vocativo "filho da puta" tanto pode constituir um insulto como um elogio, dependendo dos contextos em que aparece.
Não se pode considerar notoriamente errado o juízo a que o tribunal chegou de ter a arguida utilizado a expressão "filho da puta" no sentido de "gajo", "fulano" ou "tipo", que é o sentido corrente em certas zonas do país e entre pessoas do meio social a que pertence a arguida, o que aliás era do conhecimento da assistente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam, precedendo audiência, na Relação do Porto:
I
Relatório
1. O processo.
Nos autos de processo comum n.º ../.., do ...º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da comarca de....., a arguida, Lucinda....., acusada, pelo assistente, José....., da prática, em autoria material e concurso real, de dois crimes de ofensa à memória de pessoa falecida, cada um previsto e punível nos termos do disposto no art. 185.º, do Código Penal, um destes com o agravamento decorrente do disposto no art. 183.º n.º 1 a), ex vi do disposto no art. 185.º n.º 2, do mesmo Código, e de dois crimes de injúria, cada um p. e p. nos termos do disposto no art. 181.º, do CP, um dos quais com o agravamento previsto no art. 183.º n.º 1 a), ex vi do disposto no art. 185.º n.º 2, do mesmo Código, acusação que a arguida contestou, e demandada, pelo mesmo assistente, em pedido de indemnização civil, pela quantia de 1.000.000$00, a título de danos morais e ainda pelo montante de danos patrimoniais a calcular a final, foi submetida a julgamento, vindo o Tribunal recorrido a decidir, por sentença inserta a fls. 180-191, no que ao presente recurso importa, julgar a acusação improcedente, absolvendo a arguida dos crimes que lhe vinham imputados, e julgar igualmente improcedente o pedido de indemnização civil formulado pelo assistente, dele absolvendo a demandada.
2. O recurso.
O assistente interpôs recurso de tal sentença, concluindo a correspondente motivação por dizer:
2.1. «Existe patente erro na apreciação da prova por parte do Tribunal a quo, que acolheu integralmente a tese factual expandida por testemunhas que têm interesse no caso por serem partes civis e penais noutros processos contra o ora recorrente impondo decisão diversa da recorrida:»
2.2. «Situação que violando o dispositivo da alínea b) do n.º 3 do art. 412.º, do CPP e carece de reenvio para julgamento, ao abrigo do art. 426.º, igualmente do CPP:»
2.3. «A expressão “filho da puta”, confessada pela arguida, não equivale correntemente, nem pode equivaler, a “gajo”, “fulano” ou “tipo”, em ...... e arredores:»
2.4. «Nem é credível que a arguida use correntemente tais expressões porque não é natural de....., nem ali reside habitualmente, mas sim no....:»
2.5. «Não é possível, nem socialmente desejável, que se ratifique a vulgarização de expressões de conteúdo ofensivo:»
2.6. «A arguida não tentou sequer explicar a intenção pacífica e não ofensiva dessa imputação feita ao recorrente e sua falecida mãe, que sabe falsa:»
2.7. «Ficando provada a sua real e efectiva intenção de ofender a honra e consideração devidas ao recorrente e sua falecida mãe:»
2.8. «Decidindo em contrário violou a douta sentença a quo o disposto no art. 410.º n.º 2 c), do CPP:»
2.9. O que carece de ser revogado para, após novo julgamento, ser condenada a arguida nos crimes de que vem acusada». [transcrição]
Requer a «admissão do parecer técnico etimológico anexo, que se reputa com sumo interesse para a boa apreciação do mérito do recurso». Junta um documento, inserto a fls. 223/224.
Requer também «que, ao abrigo do n.º 4 do art. 412.º, do CPP, seja a prova produzida em julgamento e gravada sujeita a transcrição».
O recurso foi recebido por despacho de fls. 230 v.º.
3. A resposta.
A Ex.ma Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal recorrido respondeu à motivação, concluindo pela verificação de erro notório na apreciação da prova.
4. O parecer.
Nesta instância, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto é de parecer que o Tribunal não deve ordenar a transcrição quando, como é o caso, apenas sejam invocados vícios da matéria de facto nos termos do disposto no art. 410.º n.º 2, do CPP, defendendo, quanto ao mérito, que o recurso não merece provimento.
5. Os poderes de cognição do Tribunal ad quem.
O objecto do recurso é demarcado pelas conclusões que o recorrente extrai da correspondente motivação – art. 412.º n.º 1, do CPP.
Ainda que se tenha procedido, no julgamento revidendo, à documentação dos actos de audiência, certo é que o assistente recorrente optou por não impugnar a matéria de facto na forma que lhe era consentida pelo disposto no art. 428.º, do CPP, não dando aliás cumprimento ao disposto no art. 412 n.º 3, do mesmo Código, pelo que os poderes de cognição deste Tribunal, atento o objecto do recurso definido pelo recorrente nas conclusões da motivação (art. 412.º n.º 1, do CPP) se cingem ao conhecimento do invocado vício de erro notório na apreciação da prova, a que se reporta o disposto na alínea c) do n.º 2, do art. 410.º, do CPP, adiantando-se que, ex officio [Cfr. Acórdão, do Supremo Tribunal de Justiça (Pleno), n.º 7/95, de 19-10-95, no D. R., 1.ª série A, de 28-12-95, pp. 8211 e ss., no sentido de que «é oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito.»], não se verifica, do texto da decisão recorrida, qualquer dos vícios a que se referem as alíneas a) e b) do citado segmento normativo.
Sem embargo, importa dar resposta ao requerido no epílogo da minuta de recurso.
II
Fundamentos
6. Junção de documento e transcrição da prova.
6.1. Pretende o recorrente que se determine a junção de um documento, que diz «parecer técnico etimológico», alegando que o mesmo tem «sumo interesse para a boa apreciação do mérito do recurso».
Em vista do disposto no art. 165.º n.º 1, do CPP, o documento em referência não pode ser considerado.
Por razões de substância, já que este Tribunal «ad quem» não pode operar qualquer reapreciação ou aditamento relativamente à matéria de facto sedimentada pelo Tribunal recorrido. Não pode, designadamente apreciar elementos de prova que o Tribunal recorrido não apreciou.
Também por razões de forma, posto que se não pode esquecer que a junção de documentos, em processo penal, tem uma disciplina, ínsita na norma constante do art. 165.º/1, do CPP, a significar que o documento em questão deveria ter sido oferecido até ao encerramento da audiência em 1.ª instância, não havendo razões de sobreveniente conveniência que possam tutelar a sua desatempada junção.
Por isso que o requerido não pode proceder.
6.2. Pretende ademais o recorrente «que, ao abrigo do n.º 4 do art. 412.º, do CPP, seja a prova produzida em julgamento e gravada sujeita a transcrição».
O requerido não faz, salvo o devido respeito, qualquer sentido, desde logo por ser ao próprio recorrente que incumbiria o ónus consignado no preceito invocado, de remeter as especificações transcritas para os suportes técnicos, mas também por ter sido o próprio recorrente a estabelecer o objecto do recurso alheado da impugnação «directa» da matéria de facto, centrando-o no vício de erro notório na apreciação da prova.
Por outro lado, a transcrição em referência, ordenada por despacho de fls. 230 v.º, consta, em apenso, dos presentes autos.
Assim, também neste ponto o requerido não pode merecer acolhimento.
Vejamos agora.
7. O julgamento de facto, em 1.ª instância.
7.1. O Tribunal a quo julgou provado o seguinte acervo de factos:
«1. O assistente é casado e, durante alguns anos, ele e a sua família mantiveram relações de amizade com uma filha da arguida de nome Maria......
2. A dada altura, o assistente iniciou e manteve com a referida Maria..... uma relação amorosa extraconjugal, a qual veio a terminar em data não concretamente apurada, mas antes do mês de Julho de 1999.
3. A partir daí, entre o assistente e aquela Maria..... começou a existir um conflituoso e mau relacionamento.
4. Arrogando-se inclusive o assistente credor de uma determinada quantia em dinheiro, referente a despesas e honorários do exercício da sua actividade profissional de administrador de bens alheios, relativamente à representação dos interesses que a Maria..... e seus filhos detinham numa sociedade em....., através de procuração.
5. E negando a Maria..... a existência dessa divida.
6. Na sequência desse mau relacionamento, o assistente, no dia 5 de Agosto de 1999, por volta das 00.30 horas, dirigiu-se á residência da Maria....., sita em....., ......
7. No interior dessa residência e para além da Maria....., encontrava-se então também – e pelo menos -, uma filha desta e a arguida Lucinda, que é emigrante no..... e nessa altura estava a passar férias em Portugal.
8. Nessas circunstâncias, o assistente, na via pública em frente á residência da Maria..... e da arguida, de molde a ser ouvido quer pelas pessoas que se encontravam nessa casa quer pela vizinhança, começou em altos berros e repetidamente a exigir que a Maria..... lhe pagasse o que lhe devia, chamando-lhe “caloteira”, “porca” e “puta”.
9. Perante o que a arguida Lucinda solicitou por telefone a presença da G.N.R.
10. Quando, na sequência desse telefonema, compareceram no local três agentes da G.N.R., o assistente ainda mantinha o mesmo comportamento referido no ponto anterior, continuando a vociferar em altos berros.
11. Nessa altura, a arguida Lucinda, que até aí se tinha mantido sempre no interior da sua residência, saiu para a rua e, dirigindo-se a um dos agentes de autoridade, em tom de desabafo e transtornada com o escândalo que o assistente estava a fazer à sua porte disse:
“Ó Senhor agente, vem um filha da puta de..... para aqui chatear as pessoas!”
Querendo com essa expressão referir-se ao assistente, que então se encontrava em local próximo e também a ouviu.
12. Perante o que o assistente, dirigindo-se à arguida, de imediato retorquiu em voz alta:
“Puta és tu, que já conheceste dois homens e tens filhos dos dois!”
13. Perante esta situação, os agentes da autoridade tomaram conta da situação, acalmando os ânimos e aconselhando a arguida a, no dia seguinte, apresentar a respectiva queixa no posto, não tendo dado idêntico conselho ao assistente.
13. No Norte de Portugal e concretamente em..... e arredores, principalmente entre pessoas do meio social a que pertence a arguida, é muito corrente o uso de palavrões na linguagem do dia-a-dia, designadamente da expressão “filho da puta”, que se utiliza muitas vezes apenas com o sentido de “gajo”, “fulano” ou “tipo”.
14. O que era do conhecimento do assistente, que vinha muitas vezes a ..... e convivia com a filha da arguida e família desta, tendo inclusive já passado férias com a sua própria mulher e filha em casa dela.
15. E foi precisamente com o referido sentido de “gajo”, fulano” ou “tipo”, que a arguida utilizou a expressão “filho da puta” nas circunstâncias supra mencionadas no ponto 11.
16. A arguida, à altura dos facto supra referidos, encontrava-se muito nervosa e perturbada com o escândalo que o assistente estava a fazer de madrugada à porta da sua casa.
17. A arguida é delinquente primária.
18. Em 02.07.99, o assistente enviou á filha da arguida Maria..... a carta e factura cuja cópia consta de fls. 65 e 66, que aqui se dá por integralmente reproduzida.
19. Em Julho de 1999, a mãe do assistente já tinha falecido.
20. Por causa do presente processo, o assistente já se deslocou de....., onde reside, a ..... e constituiu um advogado». [transcrição]
7.2. O Tribunal recorrido julgou não provados «os demais factos constantes da acusação particular, designadamente:
a) Que a filha da arguida Maria..... tenha conhecido o assistente e respectiva família na ....., em 1997.
Que o marido da referida Maria..... tivesse falecido em 1989 e, então, o assistente e sua mulher lhe tivessem dado apoio financeiro e psicológico ao alcance das suas possibilidades, apoio esse necessário e útil para quem se viu sozinha com três filhos menores para criar.
Que quando o assistente representou os interesses da Maria..... e dos filhos numa sociedade que detinham em....., face às dificuldades económicas da primeira, tivesse ficado estabelecido que o pagamento das respectivas despesas e honorários se daria “quando acabasse de criar os filhos”.
Que no Verão de 1998 o filho mais novo da Maria....., então com 16 anos e meio, abandonou os estudos e começou a trabalhar por conta de outrem.
Consolidando a sua posição laboral na Primavera seguinte, ao conseguir ser admitido na fábrica onde o seu irmão mais velho trabalhava.
b) Que no dia 30.07.99, por volta das 19 horas, o assistente telefonou, a partir do seu escritório, em....., para casa da arguida, em....., com vista a saber da sua devedora Maria..... se e quando pretendia efectuar o pagamento da factura supra referida no ponto 17.
Que, então, o assistente tenha sido atendido pela arguida que, de maus modos, o insultou com a expressão:
“A minha filha não lhe deve nada, vá chatear a puta da sua mãe”.
Que o assistente tenha reagido veementemente contra tal ofensa lembrando que a sua mãe já havia falecido e não era para ali chamada, nem merecia tal tratamento.
Que a arguida conhecesse esse facto, por haver telefonado do..... a apresentar condolências.
Que, ainda assim, a arguida tenha dito:
”Quero lá saber, você é um filha da puta qualquer”.
c) Que o motivo que levou o assistente a deslocar-se a ...... no dia 04.08.99 tenha sido a cobrança da divida da Maria..... ou a negociação de uma forma de pagamento diferido.
Que no dia 05.08.99, nas circunstâncias de tempo e lugar supra referidas no ponto 6, a arguida, na presença de três praças da G.N.R., tenha dirigido ao assistente a seguinte expressão:
“Seu grande filho da puta, vá foder a puta da sua mãe”.
Que então, e uma vez mais, o assistente insistisse em recordar á arguida a morte da sua mãe e a falta de fundamento para tão grande ofensa.
d) Que a expressão supra referida em 11 muito tivesse ofendido o assistente na sua honra e consideração.» [transcrição]
7.3. O Tribunal a quo fundamentou a decisão sobre a matéria de facto nos seguintes termos:
«Para a prova dos factos supra referidos, a convicção do tribunal formou-se com base na conjugação das declarações das testemunhas Maria..... e Ana.... - que se encontravam presentes à altura dos acontecimentos ocorridos na madrugada do dia 05.08.99, em....., junto á residência da arguida -, e na sua conjugação com os depoimentos das testemunhas Manuel....., Alberto..... e Bento..... – todos agentes da G.N.R. que na mesa ocasião se deslocaram a esse local.
Tendo todas estas pessoas deposto de forma sincera e coincidente entre si.
As referidas Maria..... (filha da arguida), a Ana..... e ainda a testemunha Francisco..... (estes dois últimos filhos da primeira), depuseram também de forma coincidente sobre o tipo de relações existentes entre o assistente e aquela Maria..... e sobre os desentendimentos que a dada altura começaram a existir entre ambos.
Consideraram-se ainda os documentos de fls. 63 a 69, 109 a 11 e C.R.C. de fls. 79, todos devidamente submetidos a contraditório em audiência.
A factualidade supra descrita no ponto 13, teve por base as regras da experiência comum, no contexto de toda a prova produzida.
A tomada de posição relativamente á factualidade não apurada ficou a dever-se:
À ausência de prova, no que respeita aos factos supra mencionados na alínea a) da epígrafe “Factos Não Provados”.
Também á ausência de prova no que respeita á factualidade supra mencionada na al. b).
Pois a este respeito, apenas a testemunha Marta..... referiu ter presenciado o assistente a efectuar um telefonema para um número de telefone que desconhece, tendo sido atendido por uma voz feminina cuja identidade também desconhece, que o insultou.
A tomada de posição relativamente à factualidade supra descrita na al. c), teve por base a prova do contrário, feita com base no depoimento das testemunhas Manuel....., Alberto..... e Bento....., todos agentes da G.N.R. presentes nessas circunstâncias de tempo e local, que referiram não ter a arguida então pronunciado as expressões que lhe são imputadas.
O que também foi confirmado pelas testemunhas Maria..... e Ana....., que também se encontravam presentes nessa ocasião.
Não tendo os depoimentos das testemunhas Carlota e Débora..... sido consideradas suficientes para infirmar os depoimentos das outras testemunhas atrás mencionadas.
Já que as referidas Carlota e Débora.... referiram estar nessa altura em......, tendo recebido um telefonema da filha da arguida a dizer-lhes que o assistente estava a fazer um escândalo á sua porta, tendo elas ouvido, simultaneamente com essa conversa, uma voz feminina a proferir insultos.
Voz essa que calcularam ser a da arguida, assim como calcularam que os respectivos insultos eram dirigidos ao assistente.
Tais depoimentos, não mereceram contudo credibilidade, pois para além da testemunha Maria..... negar ter efectuado esse telefonema, deles não resulta com a necessária segurança que a voz feminina que a Carlota e a Débora dizem ter ouvido seja a da arguida.
Tanto mais que a Débora referiu já não contactar com a arguida há cerca de 10 anos e a Carlota disse que quem atendeu o telefonema e manteve a respectiva conversa foi apenas a Débora, donde resulta que mesmo que no local onde estava o telefone emissor, alguém estivesse a proferir insultos em voz alta, era impossível a testemunha Carlota identificar com certeza o autor dessa voz.
Por último, a tomada de posição relativamente aos factos supra mencionados na al. d) teve por base a prova do contrário, resultante da conjugação dos depoimentos de todas as testemunhas que então se encontravam presentes (já supra identificadas), bem como o próprio circunstancialismo em que a expressão proferida pela arguida foi dita e o comportamento que o assistente teve antes e depois desses factos.» [transcrição]
8. O direito. Os fundamentos do recurso.
8.1. O erro notório na apreciação da prova.
Nos termos prevenidos no art. 410.º n.º 2, do CPP, «mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; e c) o erro notório na apreciação da prova.»
Assim, os vícios da matéria de facto em referência têm de resultar do texto da decisão recorrida e, como é jurisprudência sedimentada, sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos [Por mais significativos, vd. Acórdãos, do Supremo Tribunal de Justiça, de 31-1-90 (BMJ 393-333), de 20-6-90 (CJ XV-3-22), de 19-12-90 (BMJ 402-232), de 11-6-92 (BMJ 418-478), de 8-1-97 (BMJ 463-189), de 5-3-97 (BMJ 465-407), de 9-4-97 (BMJ 466-392), de 17-12-97 (BMJ 472-407), de 27-1-98 (BMJ 473-148), de 10-2-98 (BMJ 474-351) e de 9-12-98 (BMJ 482-68)] - não sendo admissível, designadamente, o recurso a declarações ou depoimentos exarados no processo [Acórdão, do Supremo Tribunal de Justiça, de 19-12-90 (BMJ 402-232)] e não podendo basear-se em documentos juntos ao processo [Acórdão, da Relação de Coimbra, de 5-2-97 (BMJ 464-627).], nenhum relevo assumindo as regras da experiência comum [Acórdãos, do Supremo Tribunal de Justiça, de 16-10-91 (BMJ 410-610) e de 9-4-97 (BMJ 466-392)].
Tais vícios não podem, designadamente, ser confundidos com uma divergência entre a convicção alcançada pelo recorrente sobre a prova produzida em audiência e aquela convicção que, nos termos prevenidos no art. 127.º, do CPP e com respeito, designadamente, pelo disposto no art. 125.º, do mesmo Código, o Tribunal «a quo» alcançou sobre os factos [Como se refere, impressiva e lapidarmente, no acórdão, do Supremo Tribunal de Justiça, de 9-12-98, citado, «quando o recorrente pretende contrapor a convicção que ele próprio alcançou sobre os factos à convicção que o tribunal colectivo ou de júri teve sobre os mesmos factos, livremente apreciada segundo as regras da experiência, e invocar como vício a alínea a) do n.º 2 do art. 410.º, do CPP, está a confundir insuficiência da matéria de facto com insuficiência da prova para decidir, sendo a sua convicção irrelevante.»].
Quanto ao erro notório na apreciação da prova [art. 410.º n.º 2 c), do CPP], refere o Prof. Germano Marques da Silva que «é o erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem de formação média facilmente dele se dá conta.» [«Curso de Processo Penal», III, Verbo 2000, pp. 341 e 342. Um facto é notório quando o juiz o conhece como tal, colocado na posição do cidadão comum, regularmente informado, sem necessitar de recorrer a operações lógicas e cognitivas nem a juízos presuntivos. Vd., com particular interesse, Alberto dos Reis, no «Código de Processo Civil, Anotado», III, pp. 259 e ss., Castro Mendes, «Do Conceito de Prova», pp. 711 e ss. e Vaz Serra, «Provas», no BMJ 110, pp. 61 e ss.].
8.2. In casu.
O recorrente descortina o invocado erro notório na apreciação da prova seja no facto de o Tribunal a quo ter relevado o depoimento der testemunhas que afirma falhas de isenção, seja ainda no facto de, tendo a arguida confessado o uso do vocativo «filho da puta», o Tribunal não ter por assente a correspondente intenção ofensiva.
Afigura-se, à luz das proposições e ensinamentos supra, que não subsiste, no texto da sentença sindicada, aquele ou qualquer outro dos vícios da matéria de facto a que se refere o n.º 2 do art. 410.º, do CPP.
Por um lado, na medida em que a divergência por parte do recorrente quanto à convicção alcançada pelo Tribunal recorrido é, no contexto do objecto do recurso, e em vista do disposto no citado art. 127.º, do CPP, incontornavelmente irrelevante.
De outra banda, não pode deduzir-se, a se, a verificação do impetrado vício do facto de se ter assente como provado que:
«13. No Norte de Portugal e concretamente em Braga e arredores, principalmente entre pessoas do meio social a que pertence a arguida, é muito corrente o uso de palavrões na linguagem do dia-a-dia, designadamente da expressão “filho da puta”, que se utiliza muitas vezes apenas com o sentido de “gajo”, “fulano” ou “tipo”.
14. O que era do conhecimento do assistente, que vinha muitas vezes a Braga e convivia com a filha da arguida e família desta, tendo inclusive já passado férias com a sua própria mulher e filha em casa dela.
15. E foi precisamente com o referido sentido de “gajo”, fulano” ou “tipo”, que a arguida utilizou a expressão “filho da puta” nas circunstâncias supra mencionadas no ponto 11».
E assim, na medida em que o vocativo «filho da puta», originariamente «filho de pai incógnito», tratando-se de expressão que se transformou e ganhou diversas conotações, «tanto podendo constituir um insulto como um elogio, tudo dependendo dos contextos em que aparece» [No dizer de Afonso Praça, in «Novo Dicionário de Calão», Ed. Notícias, Abril de 2001, pp. 112/113.], tratando-se, no mais comum dos sentidos, de expressão grosseira, com o significado de «pessoa desprezível, ordinária» [Cfr. «Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea», da Academia das Ciências de Lisboa, A-F, pág. 1747.] bem podia, no encadeamento de factos em que foi utilizada e no meio em questão, ter sido proferida no figurado sentido de «gajo», «fulano» ou «tipo», e sem o ânimo injurioso que o assistente refere, como foi ajuizado em 1.ª instância.
Por isso que não possa ter-se, sem mais, por notoriamente errado o juízo alcançado pelo Tribunal a quo.
O que se afigura é subsistir, também neste particular, uma divergência de convicção que, como se disse, não pode, para o pretendido efeito, ser relevada.
Termos em que o recurso não pode deixar de improceder.
Resta decidir.
III
Decisão
9. Nestes termos e com tais fundamentos, decide-se:
9.1. Indeferir os requerimentos aportados na parte final da minuta do recurso.
9.2. Negar provimento ao recurso.
9.3. Condenar o recorrente assistente nas custas [art. 515.º n.º 1 b), do CPP], com a taxa de justiça em 5 UC [art. 87.º n.º 1 b), do Código das Custas Judiciais].
10. Honorários ao Ex.mo Defensor oficioso, nesta instância, pelo n.º 6 da Tabela anexa à Portaria n.º 1200-C/2000, de 20 de Dezembro.
Porto, 16 de Janeiro de 2002
António Manuel Clemente Lima
José Maria Tomé Branco
Heitor Pereira Carvalho Gonçalves
Joaquim Costa de Morais