Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0626567
Nº Convencional: JTRP00040083
Relator: HENRIQUE ARAÚJO
Descritores: AVAL
DIREITO DE REGRESSO
AVALISTA
Nº do Documento: RP200702270626567
Data do Acordão: 02/27/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO.
Indicações Eventuais: LIVRO 241 - FLS 180.
Área Temática: .
Sumário: I - As relações e responsabilidades dos vários avalistas entre si regem-se pelo direito comum e não pelo direito cambiário.
II - O avalista que paga voluntariamente, sem ter sido judicialmente demandado, a totalidade da dívida, só tem direito de regresso contra os seus co-avalistas, se houver previamente excutido todos os bens do devedor principal, salvo se houver convenção dos co-avalistas que anule tal exigência.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

I. RELATÓRIO

B………. e mulher, C………., residentes na Rua ………., n.º .., Porto instauraram contra D………., casado, residente na Rua ………., n.º …, sector ., habitação .., Vila Nova de Gaia, a presente acção declarativa de condenação, com processo sumário, pedindo a condenação deste a pagar-lhes a quantia de € 13.287,50, correspondente a metade do valor de uma livrança que ambos assinaram como avalistas da subscritora e que os Autores pagaram ao Banco portador da mesma, acrescida dos juros legais de mora a contar da citação e até integral pagamento.
Citado, o Réu requereu a intervenção principal provocada da “E………., Lda.” e de F………., a primeira subscritora da livrança em causa e o segundo adquirente das quotas que o Autor e o Réu tinham naquela sociedade e que, no acto de aquisição das referidas quotas, se comprometeu a pagar as responsabilidades da sociedade perante o G………., S.A., responsabilidades essas tituladas por livranças avalizadas pelo Autor e Réu e, se necessário, substituir-se a estes nos avales prestados.
Em contestação, depois de impugnar a matéria alegada pelos Autores, o Réu sustenta que o Autor apenas lhe pode pedir 20% do valor da referida livrança por ser essa a participação que detinha na sociedade avalizada. Mais alega que também ele pagou livranças avalizadas pelos dois, assistindo-lhe o direito de ser ressarcido pelo Autor marido da quantia que pagou a mais e que pretende ver compensada.
A intervenção requerida foi admitida e os chamados citados, não tendo nenhum deles apresentado contestação.

Os Autores responderam à contestação, reduzindo o pedido na sequência da aceitação do pagamento por parte do Réu das livranças por ele juntas à contestação.
O Mmº Juiz, no despacho saneador, julgou improcedente a acção e absolveu o Réu do pedido.
Os Autores não se conformaram e recorreram.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo – v. fls. 107.

Na motivação da apelação os recorrentes pedem que se revogue a decisão da 1ª instância e formulam, para esse fim, as conclusões que seguem:
A. Aval e fiança são figuras jurídicas afins, mas não idênticas.
B. A norma do n.º 3 do art. 650º do CC é desde há muito tempo discutida na doutrina nacional, sendo actualmente objecto de uma redução teleológica.
C. Atentas as conclusões anteriores, será de considerar como inaplicável à hipótese de aval colectivo, ainda que analogicamente, a norma do n.º 3 do art. 650º do CC.
D. Não é legítima a invocação do benefício de excussão no âmbito de dívidas comerciais como aquela constante do título cambiário integrado nos autos.
E. Ao avalista de um título de crédito não é lícito invocar o benefício de divisão a que aludem os nºs 2 e 3 do art. 650º do CC.
F. Na hipótese de aval colectivo, apenas será aplicável analogicamente a norma do n.º 1 do art. 650º, sendo esta a única que assegura integralmente o respeito pelas distintas características, sendo esta a única que assegura integralmente o respeito pelas distintas características do aval face à fiança.
G. A posse de um título de crédito pelo avalista, a que acresce a declaração de quitação inserida no título cambiário, faz presumir legalmente o respectivo pagamento, nos termos do n.º 3 do art. 786º do CC, operando uma inversão do ónus da prova, em termos que obrigam o Réu a demonstrar a falta desse efectivo pagamento.

O Réu contra-alegou, batendo-se pela confirmação do julgado.

Foram colhidos os vistos legais.
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Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões dos recorrentes – arts. 684º, n.º 3 e 690º do CPC – a questão resume-se a saber, em última análise, se a acção devia proceder.
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II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

O Tribunal recorrido considerou assentes os seguintes factos:

a) “E………., Lda”, subscreveu uma livrança pela importância de € 26.575,00, sendo seus avalistas os Autores e o Réu – doc. de fls. 13 dos autos, cujos dizeres se dão aqui por reproduzidos.

b) No verso da livrança referida em a) consta a seguinte menção, seguida de um carimbo com a designação “G………., S.A.” e de duas assinaturas ilegíveis: “RECEBEMOS DOS AVALISTAS, Sr. Eng. B………. e D. C………. a Importância de 26.575 Euros titulada por esta livrança”.

c) O Réu e o Autor marido foram sócios e gerentes da sociedade “E………., Lda.”, sendo a participação do Réu no capital da mesma de 20% e a participação do Autor de 80%. – doc. de fls. 24 a 30 dos autos, cujo teor se dá aqui por reproduzido.

d) Por escritura pública de 28 de Fevereiro de 2003, Autor e Réu cederam as quotas que detinham no capital da referida “E………., Lda” a F………., residente na Rua ………., n.º .., Lisboa – doc. de fls 24 a 30 dos autos.

e) Na escritura referida em d) o referido F………. obrigou-se “A pagar integralmente até ao dia trinta de Abril de dois mil e três as responsabilidades da sociedade emergentes de um financiamento concedido pelo “G………., S.A.”, em conta de gestão de tesouraria até ao montante máximo de Vinte e Cinco Mil Euros, titulada por livrança subscrita pela Sociedade e avalizada pessoalmente pelos primeiro e segundo outorgante marido” – doc. de fls. 24 a 30 dos autos.

f) Em 1 de Junho de 2004, o Réu pagou as livranças que constituem os documentos juntos de fls. 31 a 34 dos autos, no valor de € 1.790,00 – documentos de fls. 30 a 34 dos autos, cujos conteúdos se dão aqui por reproduzidos.

O DIREITO

Com a presente demanda os Autores pretendem receber do Réu metade da quantia titulada na livrança que, juntamente com este, avalizaram à sociedade “E………., Lda.”, alegando terem pago a totalidade do valor da livrança ao G………., S.A. dado que, na data do respectivo vencimento, a mesma não foi liquidada pela subscritora.
Vejamos se esta pretensão tem condições de procedibilidade.

Na letra o devedor principal é o aceitante; na livrança o devedor principal é o subscritor da livrança – arts. 28º e 78º da LULL.
O pagamento de uma letra ou livrança pode ser no todo ou em parte garantido por aval.
O aval consiste, assim, no acto cambiário pelo qual um terceiro ou signatário da letra ou livrança garante o pagamento desse título por parte de um dos seus subscritores – arts. 30º e 77º da LULL.
No caso que nos ocupa, o aval à subscritora foi prestado pelos Autores e pelo Réu. Tratou-se, pois, de um aval colectivo.
No aval colectivo todos os avalistas respondem solidariamente e como obrigados autónomos.
O art. 32º da LULL, que regula as relações entre o avalista e o devedor principal, dispõe que se o dador do aval paga a letra (ou livrança), fica sub-rogado nos direitos dela emergentes contra a pessoa a favor de quem foi dado o aval e contra os obrigados para com esta em virtude da letra ou livrança – v. § 3º. Ou seja, pagando pelo signatário garantido, o avalista, ao mesmo tempo que adquire o direito que tinha contra o avalizado, o portador ou a pessoa a quem pagou, fica investido nos próprios direitos cambiários que o garantido tinha, dada a sua posição na letra ou na livrança – v. Gonçalves Dias, “Da Letra e da Livrança”, Vol. VII, pág. 561.
Mas não são estas relações que nos propomos tratar. O que importa analisar no âmbito do presente litígio são as relações do avalista que pagou contra o co-avalista não pagador.
De facto, no aval colectivo ao mesmo devedor, configuram-se dois níveis de relações jurídicas: por um lado, a relação dos co-avalistas com o avalizado e outros obrigados para com este em virtude do título – a que acabámos de fazer referência (art. 32º) – e, por outro, a relação dos avalistas entre si.
No primeiro caso, a obrigação é de natureza estritamente cambiária, enquanto no segundo, por ausência de nexo cambiário, a obrigação é regulada pelo direito comum.
Com efeito, tem-se entendido, na doutrina e na jurisprudência, que o co-avalista que pagou não tem uma acção cambiária contra o co-avalista não pagador – v. Gonçalves Dias, ob. cit., pág. 584, Ac. STJ de 24.10.2002, CJSTJ, Tomo III, pág. 120, e Ac. desta Relação do Porto, de 27.05.2004, no processo n.º 0432601, em www.dgsi.pt. As relações internas que se estabelecem entre co-avalistas são, portanto, de direito comum – v. Gonçalves Dias, ob. cit., págs. 588/589, Ac. STJ de 07.07.1999, CJSTJ, Ano VII, Tomo III, pág. 14, e Ac. Rel. Porto, de 12.12.2002, no processo n.º 0232527. Por isso, tem de recorrer-se às normas reguladoras do instituto da fiança, como regime mais afim, em especial ao estatuído no art. 650º do CC, designadamente o que consta do seu n.º 1 – cfr. Consideração 75 da Conferência de Genebra. Daí decorre que o fiador que pagou fica sub-rogado nos direitos do credor contra os outros fiadores, de harmonia com as regras das obrigações solidárias, das quais é de destacar o direito de regresso contra cada um deles na parte que lhes competir, sendo de presumir (presunção juris tantum) que todos comparticipavam em partes iguais na dívida comum – v. arts. 516º e 523º do CC.
Se o fiador, judicialmente demandado, cumprir integralmente a obrigação ou uma parte superior à sua quota, apesar de lhe ser lícito invocar o benefício da divisão, tem o direito de reclamar dos outros as quotas deles, no que haja pago a mais, ainda que o devedor não esteja insolvente – n.º 2 do art. 650º.
Se o fiador, podendo embora invocar o benefício da divisão, cumprir voluntariamente a obrigação nas condições previstas no número anterior, o seu regresso contra os outros fiadores só é admitido depois de excutidos todos os bens do devedor – n.º 3 do art. 650º.
É a parte final desta última disposição que surge no alvo da crítica dos apelantes, cuja aplicação rejeitam.
Sem razão, todavia.
Como resulta do facto descrito sob a alínea b), no verso da livrança de fls. 13 consta a declaração de que o G………, S.A. recebeu dos Autores a totalidade do valor da livrança em causa.
Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, Vol. 1º, págs. 484/485, advogam que “se o avalista cumpriu voluntariamente a obrigação, o seu regresso contra os co-avalistas só é admissível depois de excutidos os bens do emitente do título e, só depois de accionado o subscritor da livrança, é que poderá exigir dos outros co-avalistas, de harmonia com as regras das obrigações solidárias, as partes que proporcionalmente lhes cabem em dívida”.
Assim, se o confiador paga a totalidade da dívida de forma voluntária, isto é, sem ter sido judicialmente demandado, não lhe será lícito exercer o direito de regresso contra os outros confiadores, sem previamente ter excutido todos os bens do devedor, no exercício da sub-rogação que lhe é concedida, salvo se houver convenção dos co-avalistas que anule essa exigência.
Tudo se passa como se a lei, mercê da atitude espontânea do fiador que se adiantou a cumprir a obrigação na totalidade, concedesse aos outros confiadores uma espécie de benefício de excussão contra o confiador que pagou – Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, Vol. II, 4ª edição, pág. 494.
Cabia, pois, aos Autores, no percurso desta acção declarativa, e já que não optaram por não demandar a devedora principal, alegar que esta não possui bens que pudessem excutidos para satisfação do seu crédito.
Não o fazendo, criaram condições para a improcedência da acção.
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III. DECISÃO

Pelo exposto, julga-se improcedente a apelação e confirma-se a decisão da 1ª instância.
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Custas pelos apelantes.
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PORTO, 27 de Fevereiro de 2007
Henrique Luís de Brito Araújo
Alziro Antunes Cardoso
José Manuel Cabrita Vieira e Cunha