Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0818091
Nº Convencional: JTRP00042180
Relator: MARIA DO CARMO SILVA DIAS
Descritores: CRIME ESSENCIALMENTE MILITAR
Nº do Documento: RP200902040818091
Data do Acordão: 02/04/2009
Votação: MAIORIA COM 1 VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 565 - FLS 128.
Área Temática: .
Sumário: I - O “crime estritamente militar” exige uma ligação suficientemente densa e estruturante “entre a razão de ser da punição do acto ilícito” e os interesses militares protegidos pela incriminação em questão. No que diz respeito ao crime de comércio ilícito de material de guerra, tal qualificação supõe que a conduta em apreciação coloque em causa interesses militares de defesa nacional.
II - Deste modo, a posse pelo arguido de um “carregador” antigo, utilizado pelas Forças Armadas em armas automáticas G-3, pertencente ao património militar, não permite, por si só, qualificar essa conduta como crime estritamente militar, pois para tal era necessário que as circunstâncias particulares do caso concreto colocassem em causa os interesses militares da defesa nacional.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: (proc. n º 8091/08-1)
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Acordam, em conferência, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto:
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I- RELATÓRIO
Na .ª Vara Criminal do Porto, nos autos de processo comum colectivo (crimes militares) nº …/07.8TACVL, foi proferido acórdão, em 2/10/2008 (fls. 171 a 183), constando do dispositivo o seguinte:
“Acordam os Juízes que constituem este Tribunal Colectivo em concluir pelo não cometimento pelo arguido do crime de comércio ilícito de material de guerra, previsto e punido pelas disposições dos artigos 83º e 84º do CJM, dele absolvendo o arguido B………. .
Sem custas.
Após trânsito: uma vez que as munições e o carregador apreendidos ao arguido constituem material insusceptível de ser legalizada a sua posse, declaram-se os mesmos perdidos a favor do Estado, e sua ulterior destruição.

Notifique e proceda a depósito.
(…)”
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Não se conformando com esse acórdão, o Ministério Público dele interpôs recurso (fls. 192 a 201), formulando as seguintes conclusões:
“1. O douto tribunal colectivo deu como provado que “As descritas munições e carregador, muito embora não seja possível determinar a respectiva anterior propriedade pelas Forças Armadas, constituem material de guerra…”.
Porém, no que ao carregador diz respeito, teria de dar como provado que o mesmo era propriedade das Forças Armadas.
2. A comprovação deste facto decorre não só do arguido ter confessado que trouxe aquele carregador de Moçambique, em 1972, finda a sua comissão na guerra colonial, como também resulta inequivocamente das declarações do perito Sr. C………., Inspector da Polícia Judiciária:
Esclarecendo o teor do seu auto de exame de fls. 64 a 66, a uma pergunta do Procurador da República sobre a origem do carregador próprio para espingardas automáticas G3 afirmou: “Em (19)72 era só usado e fabricado para as armas militares”… e, mais adiante, “não, aí só fabricavam em exclusivo para as Forças Armadas… aí sim, sem dúvida” – cf. depoimento gravado no segmento de 11m20s a 13m30s.
3. Assim, ao contrário do afirmado na motivação da douta decisão de que ora se recorre, este perito, no que ao carregador diz respeito, não teve dúvidas em determinar a sua origem, ou seja, que ao tempo em que o arguido entrou na sua posse só poderia pertencer às Forças Armadas, o que está inteiramente de acordo com as declarações do próprio arguido.
4. Pelo exposto, devendo considerar-se que aquele carregador, componente de uma arma automática G3 era pertença das Forças Armadas Portuguesas, logo material de guerra, como entendemos que assim é, e que o arguido detinha, desde que acabou a sua comissão na guerra colonial, conhecendo as suas características, estão preenchidos os elementos do crime que lhe é imputado na acusação pública.
5. O Colectivo de Juízes questiona(-se) se a detenção de um determinado tipo de munição ou de uma arma de guerra deve ser considerado crime estritamente militar, mas ao responder negativamente fica-se sem saber o que é que foi determinante para a absolvição do arguido, se as dúvidas quanto à origem do carregador (era ou não pertença das Forças Armadas) ou se o “mau estado de conservação em que se encontrava, denotando o seu não uso”, uma vez que concorreram ambas para se afastar a verificação de um crime estritamente militar, posto que a sua posse não atentaria, na economia do acórdão, contra os interesses da defesa nacional.
6. Quanto às dúvidas sobre a origem, considerando a factualidade dada provada (que acima impugnamos), elas não deveriam subsistir, ou seja, no dizer do tribunal, o carregador não pertencia às Forças Armadas.
7. No concernente ao estado de conservação e aos indícios de uso, não se vê como possam relevar para a verificação do crime. O valor protegido pela norma é o interesse militar do material de guerra por qualquer forma subtraído à disponibilidade da defesa nacional e não o uso que lhe é dado posteriormente que é indiferente à verificação do tipo legal.
8. Ao contrário do que parece ser o entendimento do douto tribunal, cremos que, independentemente do valor, do uso ou afectação posterior, sempre que material de guerra, tal como é definido no art. 7 do CJM, afecto às Forças Armadas for subtraído ao domínio da defesa nacional fora das condições legais ou em contrário das prescrições e autorizações das autoridades competentes, está verificado o crime previsto no art. 82 e punido no art. 83, os dois do mencionado diploma legal, normas que, assim, foram violadas pelo douto acórdão posto em crise.
9. Assim, julgamos que, apenas no que se reporta ao carregador (único cuja pertença às Forças Armadas foi provado em julgamento) estão verificados os elementos típicos do crime de detenção de material de guerra tal como lhe é imputado na acusação, pelo que o arguido tem de ser condenado em conformidade.”
Termina pedindo o provimento do recurso e, consequentemente, a alteração da decisão recorrida no sentido da condenação do arguido pela prática, em autoria material, do crime de comércio ilícito de material de guerra que lhe foi imputado.
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Na 1ª instância, o arguido B………. respondeu ao recurso (fls. 204 a 206), concluindo pelo seu não provimento.
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Nesta Relação, a Srª. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer (fls. 217), acompanhando a motivação do recurso interposto pelo MP, pugnando pelo seu provimento.
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Foi cumprido o disposto no art. 417 nº 2 do CPP.
Colhidos os vistos legais realizou-se a conferência.
Cumpre, assim, apreciar e decidir.
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No acórdão sob recurso foram considerados provados os seguintes factos:
“No dia 13 de Junho de 2007, o arguido guardava no interior do seu quarto e dispensa de arrumos, na sua residência sita em Rua ………, .., ………., na Covilhã, entre outros objectos, armas e munições, as seguintes munições e objecto:
- 30 (trinta) munições de calibre 7,62mmxl7mm, também designado por cal. 32 AUTO), todas da marca Geco, todas com balas do tipo FMJ e todas aparentemente contendo todos os componentes e em bom estado de conservação exterior, sem valor atribuído;
- 01 (uma) munição de calibre 7,92 Mauser (7,92x57Mauser) do lote 66-13, da marca FNM (Fábrica Nacional de Munições), com bala do tipo FMJ, aparentemente contendo todos os componentes e aparentemente em condições de ser disparada em arma de fogo, sem valor atribuído;
- 01 (uma) munição de calibre 357 Smith & Wesson Magnum (9x32,5Rmm), da marca Sellier & Bellot, com bala do tipo FMJ, aparentemente contendo todos os componentes e em bom estado de conservação exterior, sem valor atribuído;
- um carregador para arma de calibre 7,62x51, com capacidade para 20 munições, em tudo idêntico aos utilizados na Espingarda Automática G-3, mas também capaz de ser usado noutras armas de outras marcas e outros fabricantes; foi fabricado em Portugal pela extinta Fábrica Militar de Braço de Prata e pertencente ao lote de fabrico 11/64 (ano de 1964), com número de série: 1005-12-127-7057; em mau estado de conservação, mas funcional, sem valor atribuído;
As descritas munições muito embora não seja possível determinar a respectiva anterior propriedade pelas Forças Armadas, constituem material de guerra, de valor seguramente inferior à U.C.
O carregador foi trazido pelo arguido em 1972, quando regressou da guerra do ultramar, onde combateu, como recordação.
Ao guardar e deter em seu poder o descrito material de guerra, o arguido estava ciente das suas características e de que as guardava e detinha de forma ilegal.
O arguido agiu de forma livre e consciente, sabendo que a descrita conduta é proibida e punida por lei.
Mais se provou que:
O arguido é oriundo da zona centro do país, tendo permanecido e organizado a sua própria vida num meio essencialmente rural, embora profissionalmente ligado à indústria de lanifícios.
Tendo desenvolvido actividade laboral, como operário fabril, na indústria de lanifícios. Há dezasseis anos que passou à inactividade, por falência da empresa onde trabalhava. Desempregado de longa data, nunca demonstrou grande empenho em alterar esta situação, acomodando-se à inactividade laboral, aguardando pelas poucas solicitações que vão surgindo, sempre que na aldeia acontecem imprevistos que fazem apelo às suas capacidades, pois é apontado como "engenhocas", sendo muito habilidoso, sobretudo em trabalhos de serralharia. Ocupa-se numa pequena oficina cheia de ferramentas que utiliza para recriar objectos para sua satisfação pessoal. Tem gosto em coleccionar diversos utensílios em metal.
Após concluir a 4a classe, com catorze anos de idade, deu início à actividade laboral na Covilhã. Foi nesta cidade que fixou residência, após ter casado aos vinte e um anos com D:………, de quem teve dois filhos, um com vida já organizada de forma autónoma e outro com problemas de saúde mental, a residir em ………., de forma mais ou menos independente.
Aos dezanove anos ingressou no serviço militar, tendo cumprido dois anos no Ultramar.
Acerca desta experiência B………. aponta para sintomatologia pós traumática, nos primeiros tempos após o regresso a casa.
Bem integrado na família e na comunidade da residência, o arguido é apontado como um indivíduo pacato, bem disposto e prestável.
Foi condenado em Novembro de 2007, no Processo ../06.1GHCVL do .º Juízo do Tribunal Judicial da Covilhã, por crime de receptação dolosa, em pena de multa, que pagou.
Mantém até ao presente, um relacionamento estável com a esposa e os dois filhos.
A esposa do arguido trabalha há dezassete anos na agricultura, numa empresa local – E………. - sendo o seu vencimento (mínimo nacional), a única fonte de rendimento do casal.
Residindo em casa própria, o arguido cultiva para gastos de casa uma pequena propriedade, onde ocupa algum do seu tempo livre.
As relações familiares e de vizinhança caracterizam-se pelo bom entendimento, constatando-se a existência de um saudável convívio com os conterrâneos, sendo B………. frequentemente solicitado para animar festas, com o seu acordeão.
A imagem que o arguido transmite no meio social da residência é de estabilidade, podendo caracterizar-se como um indivíduo sociável que não manifesta claramente desadequação da conduta, sendo bem aceite na comunidade que integra.”

Quanto a factos não provados, consignou-se:
“Não se provaram outros factos com interesse para a boa decisão da causa.”

Na respectiva fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, escreveu-se o seguinte:
“Os factos provados e que acima se elencaram resultaram da confissão integral feita pelo arguido tendo explicitado que as munições lhe foram vendidas por pessoas a quem comprou uma outra arma de calibre 6,35mm.
Ainda o auto de exame de fls. 64 a 66 complementadas pelas declarações prestadas em audiência pelo examinador, Inspector da P.J. C………., que sobre os factos depôs de modo claro, isento e inequívoco, explicitando das razões que o impedem de, com precisão, determinar a origem das munições e do carregador.
Ainda o auto de busca e apreensão constante dos autos a fls. 7 e 8.
O CRC do arguido de fls. 153, o teor do R.S. elaborado para julgamento para se darem como provados os factos pessoais e o percurso de vida do arguido.”

Quanto ao enquadramento jurídico foi apresentada a seguinte fundamentação:
“Vem o arguido acusado de ter cometido um crime de comércio ilícito de material de guerra, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 82º e 83º do CJM.
Estatuem estes preceitos legais que:
“Aquele que importar, fabricar, guardar, comprar, vender, ou puser à venda, ceder ou adquirir a qualquer título, transportar, distribuir, detiver, usar ou trouxer consigo material de guerra, conhecendo a essa qualidade e sem que para tal esteja autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente é punido com as penas previstas no artigo seguinte, conforme os casos.”
Por seu lado estabelece o art. 83 do referido diploma legal:
“Aquele que, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outrem, subtrair material de guerra é punido:
a) Com pena de prisão de 2 a 8 anos, se o valor da coisa furtada for elevado;
b) Com pena de 1 a 4 anos, se o valor da coisa for diminuto (…)”
No artigo 7º deste diploma legal concretiza-se o que se deve entender por material de guerra, referindo na alínea a) “Armas de fogo, portáteis, automáticas, tais como espingardas, carabinas, revólveres, pistolas-metralhadoras e metralhadoras, com excepção das armas de defesa, caça, precisão e recreio, salvo se pertencentes às Forças Armadas, ou outras forças militares” e na alínea c) desse mesmo preceito se fazer alusão às “ munições destinadas às armas referidas nas alíneas anteriores, sendo que na al. p) deste artigo se refere: partes e peças especializadas do material constante do presente artigo desde que tenham carácter militar”.
Ora dos factos assentes, que acima se elencaram, resulta inquestionável que o arguido tinha na sua posse (detinha) um conjunto de munições e um carregador, objectos que, pelas suas concretas características se qualificam de material de guerra.
Mas será que apenas este facto é suficiente para se concluir ter o arguido cometido o crime tipificado nos artigos acima referidos?
Como se sabe a aplicação do CJM está dependente de ter o agente cometido um crime de natureza estritamente militar, nos termos que se acham consagrados no nº 1 do artigo 1º desse diploma legal, clarificando-se, no nº 2 desse preceito, que: “Constitui crime estritamente militar o facto lesivo dos interesses militares da defesa nacional e dos demais que a Constituição comete às Forças Armadas e como tal qualificados por Lei”.
A ser assim, como é, a conduta de um qualquer agente para se subsumir às normas estabelecidas no CJM tem, antes de mais, de contender, de colocar em crise, esse bem primeiro que o legislador pretendeu defender com a incriminação.
Por este facto deixou de ser condição essencial para o preenchimento deste tipo de ilícitos a condição de militar, pois estes (os militares) podem cometer crimes que, por não atentarem contra os interesses militares da defesa nacional, são ilícitos criminais punidos pela lei penal comum e, por outro lado, não militares (civis) podem praticar crimes que atentem contra a defesa nacional caiam no âmbito de aplicação do CJM.
A este propósito lê-se no preâmbulo do CJM agora em vigor: “O Código não considera que os factos lesivos dos interesses militares da defesa nacional e dos demais que a Constituição comete às Forças Armadas possam só ser cometidos por militares. Por isso, tanto prevê crimes estritamente militares comuns como específicos. Nos primeiros o agente é indeterminado podendo ser qualquer sujeito; nos segundos, os agentes possíveis ficam circunscritos a um ou várias categorias determinadas (…)”.
Logo aqui pudemos quedar-nos e interrogarmo-nos: Se não é condição do cometimento de um crime estritamente militar a condição pessoal de quem o comete, será suficiente, para o seu preenchimento, a detenção de um determinado tipo de munição ou de uma arma de guerra?
A resposta só poderá ser, a nosso ver e salvo o devido respeito por opinião contrária, negativa.
Para estarmos perante um crime do elenco dos que constam do CJM, e concretamente, do que aqui agora nos ocupa de comércio ilícito de material de guerra, importa saber, se aquela concreta detenção, poderá contender com o valor primeiro que a incriminação visa proteger, e que já referimos ser, dos interesses militares da defesa nacional.
E tanto assim que a Lei 42/2006 de 25 de Agosto, que define os vários tipos de armas e regulamento os termos da sua posse e detenção, define como pertencente à Classe A, os equipamentos, meios militares e material de guerra – na classificação de armas que faz no seu artigo 3º- sendo no artigo 4º expressamente referida a proibição da sua venda, aquisição, detenção, uso e porte dessas armas, bem como de acessórios e munições da classe A.
É evidente que no nº 2 do artigo 1º se diz “Ficam excluídas do âmbito de aplicação da presente lei as actividades relativas a armas e munições destinadas às Forças Armadas, às forças e serviços de segurança, bem como a outras serviços públicos cuja lei expressamente as exclua, bem como aquelas que se destinem exclusivamente a fim militares”.
Ora daqui se conclui, que a detenção deste tipo de meios militares e material de guerra por uma pessoa, não a faz, “ipso factu”, incorrer num crime estritamente militar, já que a detenção de material de guerra que não tenham como destino exclusivo fins militares cai no âmbito da Lei comum.
Importará ainda dirimir, ainda que de modo sucinto, o que deve entender-se por “defesa nacional”. Antes de mais que é um conceito com dignidade constitucional, que se encontra plasmado no Título X da parte III da CRP, concretamente estabelecendo o artigo 273º que: “É obrigação do Estado assegurar a defesa nacional” para, no nº 2 deste preceito, se referir que: “A defesa nacional tem por objectivo garantir, no respeito da ordem constitucional, das instituições democráticas e das convenções internacionais, a independência nacional, a integridade do território e as segurança das populações contra qualquer agressão ou ameaças externas”.
A explicação desse conceito nas palavras do GEN Loureiro dos Santos, definindo “Defesa Nacional” como o “(…) conjunto de medidas, tanto de carácter militar como político, económico, social e cultural, que adequadamente coordenadas e integradas e desenvolvidas global e sectorialmente, permitem reforçar as potencialidades da Nação e minimizar as suas vulnerabilidades, com vista a torná-la apta a enfrentar todo o tipo de ameaças que directa ou indirectamente possam pôr em causa a Segurança Nacional” (Santos, 2000a, 81)[1].
Como se concluiu este conceito é suficientemente abrangente para nele se poderem incluir múltiplas e variadas situações da vida – quer militar quer de outra natureza – e não é “tão frágil” que a mera detenção de munições ou material de guerra, por si só, seja suficiente para o fazer perigar, mesmo provando-se que esse material em algum momento foi pertença das Forças Armadas.
A Constituição exige que o legislador se mantenha no âmbito estritamente castrense, só podendo submeter à jurisdição militar aquelas infracções que afectem inequivocamente interesses de carácter militar e que por isso mesmo hão-de ter com a instituição militar uma qualquer conexão relevante, quer porque exista um nexo entre a conduta punível e algum militar, quer porque esse nexo se estabeleça com os interesses militares da defesa nacional.
Não poderão assim entrar na definição de crimes estritamente militares os crimes comuns em que a única ligação com as Forças Armadas seja a qualidade de militar do seu agente ou qualquer outro elemento acessório (a qualidade de uma munição), antes postula-se a existência de uma conexão estrutural entre o fundamento da punibilidade da conduta e os interesses da instituição militar ou da defesa nacional.
Analisando o caso em apreço, como dos factos provados consta, relativamente às munições não foi possível determinar a respectiva anterior propriedade pelas Forças Armadas. Do exame feito a mesma conclusão se retirava para o carregador não fora a circunstância de o arguido ter querido confessar que o havia trazido “como recordação” quando regressou da guerra de África, há já mais de 30 anos, o que constituía, como se sabe, se não uma prática generalizada, pelo menos muito comum.
Com efeito do auto de exame que foi elaborado e que consta do processo claramente se refere: “Quanto às munições examinadas é de referir o seguinte: Não obstante estas não sejam munições de modelo, tipo, ou calibre, de uso exclusivo por parte das Forças Armadas (FA), foram fabricadas pela extinta Fábrica Nacional de Munições (FNM), empresa que durante décadas forneceu munições aos três ramos das FA. Razão pela qual poderá ser possível estabelecer uma relação entre as munições daquela marca (FNM) e uma eventual propriedade das FA.
Contudo, deve salientar-se que a FNM também vendeu munições a inúmeros outros clientes, tanto do mercado militar internacional, como do mercado civil, nacional e internacional.
Por outro lado, tanto a FNM, como as próprias FA, nomeadamente o Exército Português através da Direcção da Arma de Infantaria, forneceram, durante vários anos, milhares de munições deste calibre 9x 19mm (entre outros), à Federação Portuguesa de Tiro e aos clubes e associações ali federados. Essas munições destinaram-se a ser posteriormente vendidas ou cedidas aos atiradores federados que eram praticantes das diversas disciplinas de tiro em que se utilizam armas desse calibre.
É também de salientar que embora a FNM tenha sido encerrada e desmantelada, as munições ali produzidas ainda continuam a ser normalmente vendidas no mercado internacional, nomeadamente pelas empresas que adquiriram parte do espólio daquela fábrica, pelos armeiros retalhistas, pelo coleccionadores e associações de coleccionadores e até a nível desportivo.
Para além de todo esse comércio legal, as munições desta marca aparecem com frequência no mercado negro a nível nacional e além fronteiras.
Assim, e não obstante se possa admitir a hipótese destas munições terem pertencido às FA, também se tem que admitir que possam ter uma outra proveniência, em nada relacionada com os crimes previstos nos artigos 82° e 83° do CJM.
Atendendo à difusão que este tipo de munições têm e à elevada quantidade produzida e comercializada pela FNM (que chegou às dezenas de milhões por ano) não se antevê qualquer hipótese de identificar individualmente qualquer uma das munições examinadas, de forma a garantir inequivocamente uma relação com as FA.”
Quanto ao carregador provou-se a sua origem relacionando-a com as Forças Armadas em virtude da circunstância de o arguido ter querido confessar que o havia trazido “como recordação” quando regressou da guerra de África, há já mais de 30 anos, o que constituía, como se sabe, se não uma prática generalizada, pelo menos muito comum. Valorando o modo como ao longo do tempo o arguido o manteve na sua posse, o mau estado de conservação em que se encontrava, denotando o seu não uso, são tudo circunstâncias que ponderadas conjuntamente, nos levam a concluir que a detenção deste componente por si não tem virtualidade para atentar contra os interesses militares da defesa nacional, não constituindo, por isso, a sua posse um crime estritamente militar.
Assim sendo, pelos motivos expostos se concluiu pela improcedência da acusação.”
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II- FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso interposto pelo Ministério Público, delimitado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação (art. 412 nº 1 do CPP), suscita o conhecimento das seguintes questões:
1ª - Relativamente à decisão proferida sobre a matéria de facto, apurar se deveria ter sido dado como provado que o carregador referido nos factos dados como provados era propriedade das Forças Armadas;
2ª - Averiguar se existe erro de interpretação na subsunção dos factos ao direito quanto à absolvição do arguido (embora apenas em relação à detenção dolosa do carregador aludido nos factos dados como provados).
Passemos então a conhecer das questões colocadas.
1ª Questão
O recorrente não invoca que as munições (inclusive a de calibre 7,92 Mauser), aludidas nos factos dados como provados, fossem propriedade das Forças Armadas.
De facto, por se tratarem de calibres usados também para fins civis, face ao teor do exame pericial feito (complementado pelas declarações prestadas pelo perito em audiência de julgamento), não se podia concluir que aquelas munições fossem exclusivas (como sucede, por exemplo, com material de artilharia) ou que faziam parte de dotação orgânica das Forças Armadas Portuguesas.
A questão que coloca prende-se com o “carregador para arma de calibre 7,62x51, com capacidade para 20 munições, em tudo idêntico aos utilizados na Espingarda Automática G-3, mas também capaz de ser usado noutras armas de outras marcas e outros fabricantes”.
Vejamos então.
Como se verifica dos autos, procedeu-se à documentação (por meio de gravação em CD) das declarações prestadas oralmente em audiência de julgamento, encontrando-se junto aos autos o respectivo suporte magnético.
Ainda que de forma pouco modelar (embora se possa aceitar que o recorrente cumpriu minimamente os ónus previstos no art. 412 nº 3 e 4 do CPP), percebe-se que o recorrente pretendia que, na matéria de facto dada como provada, constasse expressamente que o carregador ali mencionado era propriedade das Forças Armadas.
No entanto, nem mesmo esse facto que, agora (em fase de recurso), pretende ver aditado, era alegado na peça acusatória (fls. 112 a 115).
Na peça acusatória, a esse respeito, escreveu-se o seguinte: ”As descritas munições e carregador, muito embora não seja possível determinar a respectiva anterior propriedade pelas Forças Armadas, constituem material de guerra, de valor seguramente inferior à UC.”
Como sabido, é a acusação que delimita e fixa o objecto do processo e, portanto, condiciona os poderes de cognição do tribunal do julgamento, desse modo também limitando o próprio princípio da investigação.
Logo, por aí, se percebe que, nessa matéria, o tribunal não podia extravasar os seus poderes de cognição (visto o teor limitativo da peça acusatória), salvo confissão do arguido, como sucedeu, quando este reconheceu em audiência de julgamento, que havia trazido aquele carregador “como recordação”, quando regressou da guerra de África em 1972 (carregador esse que lhe fora entregue gratuitamente por um colega de armas).
Perante os factos que considerou provados relativos ao dito carregador, o Colectivo conseguiu concluir, quando procedeu ao enquadramento jurídico-penal dos factos dados como provados, que aquela peça era propriedade das Forças Armadas.
Ou seja: a impugnação da matéria de facto apresentada pelo recorrente, no sentido de fazer constar expressamente da matéria de facto que o dito carregador era propriedade das Forças Armadas Portuguesas é desnecessária, face à análise que o Colectivo fez da prova produzida em julgamento e dos factos que deu como provados.
De resto, ouvindo a prova oral produzida em julgamento, concretamente as declarações prestadas pelo arguido e pelo perito (estas e aquelas consideradas no seu conjunto e não de forma sincopada) e, conjugando-as com a restante prova indicada na motivação da decisão sob recurso, não se pode criticar a convicção formada pelo Colectivo quanto aos factos que deu como provados, v.g. relativos ao carregador em questão.
Mesmo olhando para a motivação de facto, quanto à apreciação feita em relação às declarações prestadas pelo perito, não há incoerências uma vez que, se não fosse a confissão do arguido, só pelo exame pericial (como foi reconhecido em audiência pelo referido perito), ainda que complementado por aquelas declarações, não era possível concluir com segurança que o dito carregador fosse propriedade das Forças Armadas Portuguesas.
É que o carregador em questão (segundo o que foi declarado pelo Sr. Perito em audiência) pertencia a um lote de 1964, altura em que a sua finalidade não era exclusivamente de uso militar, não obstante em 1972, o seu fabrico e uso fosse para armas G-3 e em exclusivo para as Forças Armadas.
Ou seja: não fora a confissão do arguido (nos moldes em que foi feita), e forçosamente as declarações do perito (consideradas na sua totalidade e conjugadas com a prova pericial) eram insuficientes para se concluir no sentido dos factos dados como provados (desde logo porque o dito carregador fora fabricado em 1964, facto objectivo este que impedia o perito de garantir que o mesmo fosse propriedade das Forças Armadas; só a partir de 1972 - como declarou em audiência o mesmo perito - é que aquele tipo de carregador passou a ser fabricado exclusivamente para as Forças Armadas; daí que, à data do seu fabrico em 1964, aquele carregador tanto podia ser utilizado em armas G-3 das Forças Armadas, como em armas automáticas usadas para fins civis).
Para além disso, o que o recorrente invoca como sendo matéria dada como provada não é o que exactamente consta da decisão impressa sob recurso, junta a fls. 171 a 183 dos autos, depositada nos termos do art. 372 do CPP no mesmo dia em que foi lida (em 2/10/2008).
Existe discrepância entre o acórdão impresso e o que foi gravado no CD (suporte este que também foi remetido para esta Relação, sem estar devidamente actualizado como se impunha), tudo indicando que o recorrente, quando elaborou a sua motivação, apenas terá atentado (pelo menos nessa parte) na versão desactualizada constante desse mesmo suporte informático.
Por isso, torna-se incongruente a argumentação que utilizou na motivação de recurso, quanto à impugnação da matéria de facto.
Com efeito, em parte alguma da decisão proferida sobre matéria de facto se fez constar, como alega o recorrente, que “As descritas munições e carregador, muito embora não seja possível determinar a respectiva anterior propriedade pelas Forças Armadas, constituem material de guerra…”.
O que dessa parte da decisão sob recurso consta é o seguinte:
“(…) As descritas munições muito embora não seja possível determinar a respectiva anterior propriedade pelas Forças Armadas, constituem material de guerra, de valor seguramente inferior à U.C.
O carregador foi trazido pelo arguido em 1972, quando regressou da guerra do ultramar, onde combateu, como recordação.
Ao guardar e deter em seu poder o descrito material de guerra, o arguido estava ciente das suas características e de que as guardava e detinha de forma ilegal.
O arguido agiu de forma livre e consciente, sabendo que a descrita conduta é proibida e punida por lei.(…)”
Nessa medida, falece qualquer razão ao recorrente quanto à questão que levanta relativa à decisão proferida sobre a matéria de facto, não existindo, por isso, qualquer erro de julgamento, nem qualquer contradição entre os factos dados como provados e as considerações feitas a nível do enquadramento jurídico-penal.
O tribunal da 1ª instância fez o exame crítico de todas provas produzidas e examinadas em audiência, as quais sustentaram a sua decisão, tendo sido observado o disposto no n.º 2 do artigo 374.º do CPP.
As provas descritas, apreciadas em conjunto, permitiam ao tribunal colectivo, segundo as normais regras da experiência comum, formar a sua convicção no sentido dos factos que deu como provados.
Assim, improcede a argumentação do recorrente quando concluiu que as provas indicadas pelo Colectivo impunham decisão diversa quanto à matéria de facto dada como provada.
De resto, verificado o texto e o contexto da decisão em crise não se detecta qualquer dos vícios indicados no art. 410 nº 2 do CPP, que são de conhecimento oficioso.
Compulsado o texto da decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, este Tribunal da Relação não detecta qualquer dos vícios enunciados no art. 410 nº 2 do CPP.
O acórdão sob recurso, nesse aspecto, sendo de evidente clareza, mostra coerência lógica entre os factos provados (não havendo factos não provados), não patenteando qualquer erro de que o homem médio facilmente se desse conta.
A apreciação feita pelo Colectivo não contraria as regras da experiência comum e tão pouco evidencia qualquer erro de que o homem médio facilmente se desse conta.
Também não há distorções de ordem lógica, nem foi feita qualquer apreciação que seja ilógica, arbitrária, incongruente ou insustentável.
Em suma: não havendo erro de julgamento, nem se verificando os vícios previstos no art. 410 nº 2 do CPP e, tão pouco existindo qualquer nulidade de conhecimento oficioso, considera-se definitivamente fixada a decisão proferida pela 1ª instância sobre a matéria de facto.
2ª Questão
Invoca, ainda, o recorrente que existe erro de interpretação na subsunção dos factos ao direito quanto à conduta relativa ao dito carregador uma vez que, na sua perspectiva, essa matéria permitia a condenação do arguido pelo crime de que vinha acusado (crime de comércio ilícito de material de guerra p. e p. no art. 82 do Código de Justiça Militar, aprovado pela Lei nº 100/2003, de 15/11, por referência ao disposto nos arts. 7-a) e c) e 83 nº 1-b) do mesmo diploma legal).
O recorrente concorda com o Colectivo quando este concluiu que aquele carregador, enquanto componente de arma automática G-3, pertencente às Forças Armadas Portuguesas, era material de guerra, sendo detido dolosamente pelo arguido desde 1972 (quando regressou da guerra de África) até 13/6/2007 (data da apreensão na sequência de busca efectuada), peça essa que trouxera “como recordação” da guerra[2], o que era prática comum dos soldados que então ali prestavam serviço militar.
A razão da discordância assenta no facto de o Colectivo ter considerado que essa conduta não integrava um crime de natureza estritamente militar.
Sustenta o recorrente que a absolvição teria assentado em dois fundamentos:
- por um lado, dúvidas quanto à origem do carregador (se era ou não propriedade das Forças Armadas);
- e, por outro lado, que essa peça, pelo mau estado de conservação, denotando a sua não utilização por mais de 30 anos, não permitiria concluir que o arguido ao possuir nas ditas condições o dito carregador pertencente às Forças Armadas estava a atentar contra os interesses da defesa nacional.
O primeiro argumento do recorrente (quanto a supostas dúvidas sobre a origem do carregador) não tem razão de ser, pois, olhando para o teor do acórdão que consta dos autos, o Colectivo não teve dúvidas quanto ao dito carregador ser propriedade das Forças Armadas Portuguesas, dada a confissão efectuada pelo arguido em julgamento (se não fosse essa confissão, obviamente que a prova produzida em julgamento, v.g. declarações prestadas pelo perito e teor do exame pericial não eram bastantes para concluir que aquele carregador era propriedade das Forças Armadas, face ao ano do seu fabrico, como acima já se realçou).
O segundo argumento prende-se com a fundamentação apresentada pelo Colectivo para concluir que a conduta do arguido - enquanto possuiu aquele carregador pertencente às Forças Armadas, nas circunstâncias dadas como provadas - “não tinha virtualidade para atentar contra os interesses militares da defesa nacional”, razão pela qual a posse dolosa daquela peça não integrava crime estritamente militar, o que conduziu à decisão de absolvição.
Pois bem.
Para se perceber a perspectiva do tribunal da 1ª instância importa recordar que o Código de Justiça Militar, aprovado pela Lei nº 100/2003, de 15/11, traduziu a exigência constitucional de reformar a justiça militar vigente até essa data.
Se, por um lado, continuou a afirmar-se a necessidade da existência de um direito penal militar autónomo, por outro lado, não deixou de se exigir que se orientasse pelos princípios gerais que presidem ao direito penal e processual penal comum[3].
Enquanto direito penal militar enquadrado num Estado de direito democrático, a sua finalidade é proteger bens que servem os interesses militares e, portanto, contém tipificação específica, prevendo um conjunto de ilícitos penais que traduzem ofensas graves e intoleráveis aos bens jurídicos militares protegidos (tendo-se abandonado a perspectiva anterior de encarar o direito penal militar como um direito penal do agente ou de determinado tipo de agentes).
A concomitante alteração da noção anterior de “crime essencialmente militar” para a actual de “crime estritamente militar” (art. 1 da citada Lei nº 100/2003) não foi meramente semântica, antes significando uma “diferença de grau”, no sentido de exigir uma maior restrição na definição desta categoria específica de crimes.
O legislador foi sensível a variada jurisprudência do Tribunal Constitucional que vinha declarando inconstitucionais diversas normas do Código de Justiça Militar (mesmo o de 1977) que, em particulares situações, ainda assentava num direito penal do agente (de foro pessoal), apresentando igualmente um desproporcionado rigor em diversas áreas (nomeadamente a nível das sanções), para além de padecer de uma menor garantia dos direitos das pessoas.
Aliás, na discussão conjunta, na generalidade, entre outros, do projecto de lei nº 97/IX (aprova novo código de justiça militar e revoga legislação sobre a matéria), ocorrida em Reunião Plenária de 2/4/2003[4], o então deputado Vitalino Canas (que “apresentou” esse projecto de lei do PS) salientou que: “A nova justiça militar e a concomitante extinção dos tribunais militares em tempo de paz visa reforçar direitos, aperfeiçoar o Estado de Direito e contribuir para a modernização das Forças Armadas e da GNR. Pretende-se melhorar a situação no plano dos direitos e das garantias das pessoas. Visa-se melhorar a qualidade do Estado de direito. Mas não se fica por aí. (…) Umas forças militares e militarizadas modernas, prestigiadas e atraentes requerem uma justiça militar do século XXI, liberta de conceitos e de princípios pré-napoleónicos ou pré-democráticos. (…)”.
Para além disso, foi realçado “que o direito penal militar é um direito de tutela de bens jurídicos militares e não um direito penal do agente.”
Mas, até por exigências constitucionais (arts. 209 nº 4, 213 e 273 da CRP), impunha-se reformar o direito penal militar, o que arrastava consigo a necessidade de restringir o conceito de “crime essencialmente militar”, assim surgindo a nova terminologia de “crime estritamente militar”, matriz do actual Código de Justiça Militar, aprovado pela citada Lei nº 100/2003.
Dispõe o art. 1 nº 2 da citada Lei nº 100/2003 que “Constitui crime estritamente militar o facto lesivo dos interesses militares da defesa nacional e dos demais que a Constituição comete às Forças Armadas e como tal qualificados por Lei”.
O tipo legal imputado ao arguido (crime de comércio ilícito de material de guerra p. e p. no art. 82 do Código de Justiça Militar, aprovado pela Lei nº 100/2003, de 15/11, por referência ao disposto nos arts. 7-a) e c) e 83 nº 1-b) do mesmo diploma legal) insere-se no capítulo V da mesma lei, que apresenta o título “Crimes contra a capacidade militar e a defesa nacional”.
Olhando ao bem jurídico protegido com a incriminação imputada ao arguido e até à própria noção de “crime estritamente militar” é lógico que temos de ter presente o conceito estratégico de “defesa nacional”, no qual se incluirá o de capacidade militar (que igualmente abrange a noção de perda de operacionalidade quando é atingida, diminuída a capacidade militar).
Não há dúvidas que com aquela incriminação o legislador visou garantir uma tutela adequada e proporcionada dos interesses militares da defesa nacional, interesses estes sempre subjacentes a qualquer dos crimes previstos no Código de Justiça Militar.
Conceito estratégico de defesa nacional entendido (segundo o art. 8 da Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas, aprovada pela Lei n.º 29/82, de 11/12, alterada pelas Lei n.º 41/83, de 21/12, Lei n.º 111/91, de 29/8, Lei n.º 113/91, de 29/8, Lei n.º 18/95, de 13/7, Lei Orgânica n.º 3/99, de 18/9, Lei Orgânica n.º 4/2001, de 30/8 e Lei Orgânica n.º 2/2007, de 16/4) como “a definição dos aspectos fundamentais da estratégia global do Estado adoptada para a consecução dos objectivos da política de defesa nacional”.
Como tal, percebe-se a fundamentação da decisão sob recurso, não só quando apela ao conceito amplo de defesa nacional, como quando se interroga sobre o núcleo do conceito de crime estritamente militar, para poder aferir se a referida conduta do arguido era de tal forma grave e intolerável que fizesse “perigar” ou afectar os interesses militares da defesa nacional (que acabam por atingir toda a comunidade), subjacentes à incriminação que lhe foi imputada.
De recordar que, mesmo anteriormente à entrada em vigor da Lei nº 100/2003, reportando-se à noção de “crime essencialmente militar”, vários Acórdãos do Tribunal Constitucional, nomeadamente o nº 47/99 (relatado por Artur Maurício), salientavam (aqui citando o Ac. do TC nº 271/97, DR Iª Série A de 15/2/1997) que essa noção “implica que não possam ser considerados crimes essencialmente militares aquelas condutas cuja única especificidade relativamente aos crimes comuns consista no facto de se conexionarem, de qualquer forma, com a segurança ou a disciplina das Forças Armadas. É que, para que uma conduta possa ser qualificada como crime essencialmente militar, e não apenas acidentalmente militar, é necessário algo mais que a referida conexão; é necessário que haja uma ligação estruturalmente indissolúvel entre a razão de ser da punição do acto ilícito e interesses fundamentais da instituição militar ou da defesa nacional. Se assim não fosse, quase sempre a simples qualidade militar, ou o mero facto de a conduta ter sido praticada num espaço afecto à instituição militar, conduziriam à possibilidade de a lei vir a qualificar qualquer crime comum como essencialmente militar. Com efeito, raras vezes não estaríamos também, em tais casos, perante a violação de um dever militar ou difícil seria, pelo menos, não descortinar, aí, a existência de uma conexão com a segurança ou a disciplina militares.”
Com o Código de Justiça Militar aprovado pela citada Lei nº 100/2003, por um lado há crimes que eram essencialmente militares e ao mesmo tempo são hoje estritamente militares, mas por outro lado, também há crimes que sendo essencialmente militares já não são estritamente militares, “ficando de fora do espaço próprio da justiça militar”[5].
Neste caso, não sendo o arguido militar (o que, de qualquer modo, também não impedia que incorresse na prática de crime estritamente militar), o único elemento de ligação ou conexão a interesses militares era a posse e detenção, desde 1972, daquele carregador, propriedade das Forças Armadas Portuguesas, que havia trazido como “recordação” da guerra de África, onde combatera.
Aquele concreto carregador é considerado material de guerra por integrar a definição prevista no art. 7-p) do CJM (decorrendo o “carácter militar” daquela peça do facto de o mesmo ser utilizado pelas Forças Armadas em arma automática G-3 e, portanto, ser componente de arma de fogo prevista na alínea a) do mesmo artigo 7º).
Simultaneamente, tendo em atenção o disposto nos arts. 3 nº 2-a) e 86 nº 1-a) do novo Regime das Armas e Munições, aprovada pela Lei nº 5/2006, de 23/2, o mesmo carregador, por se tratar de material de guerra[6], é classificado como acessório da classe A, sendo de detenção proibida.
Nessa medida, sendo proibida a detenção desse material de guerra, a conduta do arguido pode integrar o crime p. e p. no art. 86 nº 1-a) da Lei nº 5/2006, de 23/2.
A questão está, assim, em saber se, a circunstância daquele carregador (enquanto material de guerra) ser propriedade das Forças Armadas Portuguesas, basta para qualificar a conduta do arguido (em vez de crime comum) como “crime estritamente militar”, concretamente o crime de comércio ilícito de material de guerra p. e p. no art. 82, por referência ao disposto nos arts. 7-p) e 83 nº 1-b), todos do Código de Justiça Militar, aprovado pela Lei nº 100/2003, de 15/11, que lhe foi imputado.
O facto do carregador ser património das Forças Armadas Portuguesas significa só por si que estamos aqui perante um “crime estritamente militar”?
Parece-nos que a resposta terá de ser negativa, desde logo por esse critério não ter sido elegido como elemento determinante na definição de “crime estritamente militar” prevista no art. 1 nº 2 do CJM, embora possa ser relevante para a classificação do que é material de guerra (como sucede com o disposto no art. 7-r) do CJM, onde está em causa qualquer outro bem, v.g. pertencente às Forças Armadas, cuja falta cause comprovados prejuízos à operacionalidade dos meios).
O que está agora aqui em causa não é a classificação do carregador como material de guerra, mas antes a qualificação daquela conduta do arguido como “crime estritamente militar”, tendo em atenção a incriminação que lhe é imputada (crime de comércio ilícito de material de guerra p. e p. no art. 82, por referência ao disposto nos arts. 7-p) e 83 nº 1-b), todos do CJM).
De qualquer modo, a norma prevista no art. 7-r) do CJM ao negar a classificação de “material de guerra” a qualquer outro bem (diferente dos indicados nas demais alíneas do art. 7) “pertencente às Forças Armadas”, cuja falta não cause comprovados prejuízos à operacionalidade dos meios, também evidencia que, nesse caso (pese embora a propriedade das Forças Armadas), serão de afastar as incriminações previstas na secção IV (extravio, furto e roubo de material de guerra) do capítulo V (crimes contra a capacidade militar e a defesa nacional) da parte especial do CJM.
E, igualmente indica que, neste aspecto, o conceito de “património militar”, constituído por bens que são propriedade das Forças Armadas, deve ser encarado olhando particularmente para a vertente da “operacionalidade da função militar” (sendo aqui relevante a noção do concreto prejuízo na medida em que a falta do bem afecte a capacidade militar, o que também se adequa com a exigência de “facto lesivo” v.g. dos interesses militares da defesa nacional, constante da definição de crime de natureza estritamente militar, ao qual se aplica o CJM).
Poderemos, assim, avançar para a ideia de que não é a circunstância daquele carregador pertencer ao património militar que só por si permite qualificar a conduta do arguido como “crime estritamente militar”; é necessário ainda que, perante as circunstâncias particulares do caso concreto, a conduta em apreciação coloque em causa os interesses militares da defesa nacional (nestes se incluindo a própria operacionalidade militar).
Por isso, o critério de definição de “crime estritamente militar” (cuja concretização foi, pela Constituição, remetido para o legislador ordinário) exige uma ligação suficientemente densa e estruturante “entre a razão de ser da punição do acto ilícito” e os interesses militares protegidos pela incriminação em questão.
Neste caso, essa qualificação supõe que a conduta em apreciação coloque em causa os interesses militares de defesa nacional (nos quais se incluem a capacidade e a operacionalidade militares) tutelados pela incriminação em questão (crime de comércio ilícito de material de guerra).
Se assim não for, então, aquela conduta terá de ser qualificada como crime comum (crime de detenção de arma proibida p. e p. nos arts. 3 nº 2-a) e 86 nº 1-a) da citada Lei nº 5/2006), na medida em que a posse dolosa de material de guerra constitui conduta potencialmente perigosa para a segurança e defesa da comunidade em geral.
Aquele carregador, fabricado em 1964, apesar de antigo (com 44 anos de idade) e, do seu mau estado de conservação, não era obsoleto uma vez que as Forças Armadas Portuguesas ainda utilizam armas automáticas G-3, compatíveis com aquele acessório.
No entanto, importa ponderar se a sua falta (da disponibilidade militar) coloca em causa a defesa nacional e a própria capacidade militar das Forças Armadas, isto é, a sua operacionalidade.
O facto de o dito carregador ter sido trazido como recordação da guerra de África (o que na altura, em 1972, era prática comum dos militares que regressavam da guerra) e ter sido mantido em mau estado de conservação (portanto não tendo sido usado, mesmo noutro tipo de armas automáticas que não são de uso exclusivo das Forças Militares), mostra a insignificância da conduta em questão, a tolerância social que havia nessa matéria (quando os militares, no fim da comissão de serviço, adoptavam ilicitamente esse tipo de comportamentos), evidenciando igualmente a ligação acidental em relação a interesses militares.
E, repare-se que aquele concreto carregador não pode ser comparado a um “carro de combate”, uma vez que este é um veículo especial concebido para uso militar, enquanto aquele (carregador), pese embora fosse propriedade das Forças Armadas, podia ser usado noutras armas de outras marcas e fabricantes, isto é, podia ser utilizado em armas de uso civil (embora sujeita ao condicionalismo previsto na lei).
Por outro lado, também não se pode equiparar a acção de quem possui um carregador com a de quem possui “centenas de carregadores”.
É que, enquanto a posse de centenas de carregadores (além dos prejuízos causados), pode colocar em causa a operacionalidade dos meios das Forças Armadas Portuguesas, o mesmo já não sucede com a posse de um só carregador, naquelas condições (antigo, em mau estado, sem valor de relevo e guardado sem uso, como recordação de guerra, desde 1972 até à data da sua apreensão em 13/6/2007).
São, por isso, irrelevantes (desde logo porque o que interessa para a decisão da causa são as circunstâncias particulares do caso concreto em apreciação) as especulações que o recorrente faz, nomeadamente quando coloca hipóteses, como a de serem apreendidas “centenas” de carregadores ou “por absurdo um carro de combate”.
Tudo isto aponta no sentido de que, neste caso concreto, não houve lesão ou perigo de lesão do bem jurídico militar protegido com a incriminação imputada ao arguido.
Apesar do arguido ter na sua posse aquele carregador nas referidas circunstâncias, não foi colocada em causa a capacidade militar e, muito menos, a operacionalidade das Forças Armadas, o que tudo mostra igualmente que não estiveram sequer em perigo os interesses militares da defesa nacional.
Isto significa, do mesmo modo, que a simples posse do referido carregador, naquelas circunstâncias, não é um elemento de conexão suficientemente forte e estruturante para se considerar que, em vez de um crime comum (p. e p. nos arts. 3 nº 2-a) e 86 nº 1-a) da citada Lei nº 5/2006), se está perante um crime estritamente militar, concretamente aquele que foi imputado ao arguido.
A posse pelo arguido daquele carregador, nas referidas circunstâncias, revela que apenas existe uma conexão acidental com a instituição militar (por aquele material de guerra ser propriedade das Forças Armadas), o que (como já vimos) não é suficiente para se poder concluir que foram directamente colocados em perigo ou lesados os interesses da defesa nacional, mesmo olhando para a vertente da diminuição de capacidade e operacionalidade militares.
Ou seja: estando a conduta do arguido acidentalmente ligada a interesses militares, essa conexão não é suficientemente densa para se poder qualificar o referido comportamento como crime estritamente militar em vez de crime comum.
Daí que se perceba a conclusão do Colectivo no sentido de que a posse, nas referidas circunstâncias, daquele carregador, propriedade das Forças Armadas Portuguesas, não integrava crime estritamente militar, tanto mais que o componente em questão (carregador fabricado em 1964) “não tinha virtualidade para atentar contra os interesses militares da defesa nacional”, o que levou à absolvição do arguido da prática do crime que lhe era imputado.
Sobraria, assim, o crime comum previsto e punido no art. 86 nº 1-a) da Lei nº 5/2006, de 23/2.
No entanto, em julgamento, não podia ser alterada a qualificação jurídica dos factos dados como provados, atenta desde logo a necessidade de diferente constituição do Tribunal, sob pena de incompetência material, o que integra nulidade insanável prevista no art. 119-e) do CPP.
Por isso, para a conduta do arguido poder ser julgada como crime comum, o Ministério Público, enquanto titular da acção penal, deverá solicitar a competente certidão para esse efeito e seguir o formalismo previsto na lei.
Em conclusão: improcede igualmente nesta parte a douta argumentação apresentada no recurso aqui em apreço, não tendo sido violadas as disposições legais citadas pelo recorrente.
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III- DISPOSITIVO
Em face do exposto, acordam os Juízes desta Relação, em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público.
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Sem custas por delas estar isento o recorrente.
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(Processado em computador e revisto pela 1ª signatária – art. 94 nº 2 do CPP)
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Porto, /04/02/2009
Maria do Carmo Saraiva de Menezes da Silva Dias
Jaime Paulo Tavares Valério
Major-General José Carlos Mendonça da Luz (Voto vencido, porque o carregador era propriedade das F.A. Portuguesas e não podemos abdicar do princípio de que a posse de material de guerra, mesmo que se trate de um simples carregador, é um crime estritamente militar, enquadrável nos artigos 82º e 83º, no seu nº 3, do CJM, e como tal deverá ser punido.)

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[1] In “Reflexões sobre Estratégia, Temas de Segurança e de Defesa”, das Publicações Europa América.
[2] Matéria esta que também resulta dos factos dados como provados, não existindo qualquer contradição, como invoca o recorrente (atento o lapso em que incorreu, quando apenas atentou na versão desactualizada da decisão proferida sobre a matéria de facto, constante do suporte informático do acórdão).
[3] Como diz Jorge Figueiredo Dias ("Justiça Militar", in Colóquio Parlamentar Promovido pela Comissão de Defesa Nacional, edição da Assembleia da República, 1995, páginas 25 e 26, citado no Ac. do TC nº 165/2008, publicado no DR II Série de 21/4/2008) “o direito penal militar não poderá constituir um outro direito penal, mas deverá limitar-se a ser um direito penal comum, só especializado pelos específicos bens jurídicos que lhe cumpre proteger e pela específica área de tutela em que os princípios da dignidade e da necessidade penais têm de actuar.”
[4] DAR Iª Série nº 107 de 3/4/2003, pp. 23-36.
[5] DAR Iª Série nº 107 de 3/4/2003, p.24.
[6] Sobre a constitucionalidade da norma constante do art. 86 nº 1-a) da Lei 5/2006, de 23/2, ver Ac. do TC nº 595/2008, publicado no DR II Série de 26/1/2009. Não se confunda, porém, o estatuído no art. 1 nº 2 da cit. Lei nº 5/2006 com a situação dos presentes autos.