Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0230116
Nº Convencional: JTRP00030977
Relator: COELHO DA ROCHA
Descritores: CHEQUE
PRESCRIÇÃO
TÍTULO EXECUTIVO
Nº do Documento: RP200202140230116
Data do Acordão: 02/14/2002
Votação: MAIORIA COM 1 VOT VENC
Tribunal Recorrido: 2 J CIV BARCELOS
Processo no Tribunal Recorrido: 437/01
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Área Temática: DIR PROC CIV - PROC EXEC.
Legislação Nacional: CPC95 ART46 C.
Sumário: Os cheques prescritos poderão continuar a valer como títulos executivos, enquanto documentos particulares, consubstanciando a obrigação subjacente, desde que estes sejam emergentes de negócio formal e a sua causa seja invocada no requerimento inicial da execução pelo credor originário, de modo a poder ser impugnado pelo devedor originário/executado na petição de embargos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

Em 28.5.2001, no ......... do Tribunal Judicial de .........., N.........., Lda, sediada em .............., intentou acção executiva com processo ordinário (nº.../..), para pagamento de quantia certa, contra C............, Lda, sediada em ........, deste mesmo concelho e comarca,
pedindo a citação desta para pagar-lhe a quantia de 2 794 862$00, acrescida de juros vincendos, até à sua liquidação, sob pena de se proceder à penhora dos seus bens;
porquanto a exequente é dona e portadora legítima de dois cheques que identifica, preenchidos, assinados e a si entregues pela executada, datados de 15.8 e 15.9 do ano de 1999, no montante de 1 250 contos cada um, “destinando-se os mesmos a pagamento de parte de uma dívida à exequente de fornecimento e montagens de estruturas metálicas, no âmbito comercial da exequente”.
Apresentados atempadamente a pagamento, não foram os referidos montantes pagos à exequente, devendo a esta o seu montante de 2 500 contos e juros de mora legais, a partir das datas de vencimento de cada um deles, que ao presente perfazem a quantia de 294.862$00.
Por apenso, a executada deduziu embargos, em 22.6.2001, unicamente porque, tendo os cheques exequendos as datas de 15.8 e 15.9 de 1999, podendo eles serem apresentados a pagamento até 23.8 e 23.9 1999; contudo a acção só foi proposta em 28.5.2001 e os embargantes citados em 7.6.2001. Logo, decorridos mais de 6 meses após a apresentação dos cheques a pagamento; pelo que se verifica a excepção da prescrição. Devem os embargantes, por isso, serem absolvidos.
Admitidos, a embargada/exequente veio apresentar contestação nos seguintes termos:
- deu à execução os cheques, cumprindo o normativo do art. 29º, da LUCH;
- mais, invocou no seu requerimento de execução o negócio existente entre si/exequente e a executada/embargante e que originou a obrigação de pagamento.
- O cheque prescrito apenas pode continuar a valer como título executivo, enquanto documento particular, consubstanciando a obrigação subjacente, desde que esta seja emergente de negócio formal e a sua causa seja invocada no requerimento de execução, de modo a poder ser impugnada pelo executado.
- O que no caso presente aconteceu, mas não foi impugnado pelo executada.
Devem os embargos improceder.
Proferiu-se saneador-sentença, onde além do mais se refere:
“....No caso dos autos, e da análise do requerimento inicial, constata-se que o exequente invoca como causa de pedir da acção executiva os cheques em apreço, enquanto títulos executivos, limitando-se a alegar, de forma vaga e genérica, que é sua legítima portadora e que os mesmos se destinavam ao pagamento de parte de uma dívida à exequente de fornecimento e montagem de estruturas metálicas. Alegação que, de modo algum, se pode considerar suficiente, para integrar a causa da obrigação, que deve ser invocada no requerimento inicial da execução.
Assim sendo, conclui-se que aquela obrigação cartular se encontra prescrita, sendo que a alegação do exequente, no que concerne à causa da obrigação, não se afigura suficiente, para que os cheques em causa possam valer como título executivo, nos termos do art. 46º, c), CPrC.
Em face do exposto, julgam-se os embargos totalmente procedentes e, em consequência, declara-se extinta a execução”.
Inconformada, a embargada/exequente interpôs recurso; em cujas alegações conclui:
1.-Os cheques dados à execução foram apresentados a pagamento, no prazo previsto no artigo 29º, LUCH.
2.-Do requerimento de execução consta devidamente invocada a causa da obrigação, ou seja a relação jurídica subjacente.
3.-A embargante não impugnou o mencionado negócio jurídico existente entre a exequente e a executada constante da petição executiva.
4.-Este negócio está descrito no art. 1º da petição, onde são invocados todos os seus elementos essenciais: montantes em dinheiro, prazo de pagamento e tipo de negócio.
5.-Tal não mereceu qualquer reparo ou impugnação da executada/recorrida.
6.-Pelo que a execução intentada tem título legítimo, sendo os cheques dados à execução títulos executivos.
7.-Ao decidir como decidiu, a sentença violou o disposto nos artigos 46º, c), CPrC, 29º, LUCH, 457º e 458º, CC, dada a posição assumida pela executada.
Deve revogar-se a decisão recorrida, substituindo-se por outra que considere improcedentes os embargos.
Contraalegando, a embargante/executada conclui:
1.-Os cheques dados à execução foram apresentados a pagamento no prazo previsto no artigo 29º LUCH; mas, contudo, encontravam-se prescritos, porquanto tinham decorrido mais de seis meses, contados do termo do prazo de apresentação, conforme estabelecido no art. 25º, ibidem.
2.-Do requerimento de execução não consta devidamente invocada a causa da obrigação.
3.-Do próprio requerimento executivo resulta que a recorrente quis dar à execução os cheques enquanto títulos de crédito e não enquanto meros quirógrafos.
4.-A recorrida impugnará o negócio jurídico subjacente em sede própria, ou seja, em eventual acção condenatória que a recorrente venha a propor.
5.- A execução intentada não tem, pois, título legítimo.
6.- Não violou a sentença recorrida qualquer disposição legal e deve ser confirmada.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
Na temática do recurso (artigos 684º-3 e 690º-1, CPrC), uma só questão a recorrente embargada/exequente suscita na sua impugnação :-saber se os documentos que servem de base à execução são títulos executivos, ao contrário do decidido.
Ora, podem ponderar-se para a decisão desta questão os seguintes factos, articulados pela exequente (itens 1º e 2º do seu requerimento inicial executivo) e não impugnados pela embargante:
- a recorrente instaurou acção executiva, em 28.5.2001, baseando-se na titularidade dos dois cheques, de que é portadora, em que a executada figura como sacadora, que os preencheu, assinou e entregou àquela.
- Tais documentos foram emitidos em 15.8 e 15.9.1999, e apresentados a pagamento dentro do prazo de 8 dias(“ut” art. 29º, LUCH); mas não foram pagos.
- Tais documentos cifram o montante individual de 1250 contos; que traduzem, na totalidade, parte de uma dívida (preço devido) da executada à exequente, pelo fornecimento e montagens de estruturas metálicas, que esta fez àquela, no exercício do seu comércio.
Que, na data em que a acção executiva deu entrada em juízo, já a obrigação cartular se encontrava prescrita (art. 52º, LUCH) – única oposição/excepção invocada na petição de embargos – é ponto decidido “a quo”, e “ad quem” não questionado.
Cientes ficamos, agora e já definitivamente, que prescritos os cheques exequendos, o seu portador perdeu o direito de acção cambiária, fundado nos mesmos, não podendo já utilizá-los como títulos executivos.
O cheque, enquanto título cambiário “a se”, já não legitima a execução.
CONTUDO,
tais cheques prescritos poderão continuar a valer como títulos executivos, enquanto documentos particulares, consubstanciando a obrigação subjacente, desde que estes sejam emergentes de negócio formal e a sua causa seja invocada no requerimento inicial da execução pelo credor originário, de modo a poder ser impugnado pela devedora originária/executada na petição de embargos.
A factualidade tida como assente espelha, na realidade, que
- estamos perante credor originário (recorrente) e devedora originária (embargante);
- credora e devedora têm perfeito conhecimento da relação negocial havida entre ambos, e que motivou a existência de tais cheques;
- nada disto foi posto em causa pela executada/embargante e devedora, que, em sua defesa, e por oposição à execução, apenas se escudou na invocação da prescrição de tais cheques (art. 52º referido), com a perda do direito de acção cambiária neles fundada pela exequente;
- mas não pôs em causa que “tais documentos se destinavam a pagamento de parte de uma dívida à exequente de fornecimento e montagens de estruturas metálicas, no âmbito comercial da exequente (cfr documentos juntos, para que remete)-(sic);
- que muito bem – caso para tal tivesse motivos – poderia ter impugnado.
Isto, porque consabido é que a oposição da executada, quando formalizada na petição dos embargos, visa a extinção da execução, mediante o reconhecimento da actual inexistência do direito exequendo ou da falta de um pressuposto, específico ou geral, da acção executiva.
Constituindo os embargos de executado uma verdadeira acção declarativa, que corre por apenso ao processo de execução, neles é possível ao executado, não só levantar questões de conhecimento oficioso, mas também alegar factos novos, apresentar novos meios de prova e levantar questões de direito, que estejam na sua disponibilidade (v. g. prescrição, como se verificou já que aqui o fez; ou a compensação que não tenha invocado antes da acção executiva –artigos 303º e 848º, 1, CC).
Permite a matéria articulada pela recorrente, e ora tida por assente, uma decisão de mérito da causa.
Que resposta dar, então, à questão de se saber se os documentos ajuizados poderão valer como título executivo, desta vez enquanto escritos particulares, consubstanciadores da obrigação subjacente, causal ou fundamental, invocada pela exequente
Dispõe o normativo do artigo 46º, c), CPrC, que «à execução apenas podem servir de base, os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado...».
Faculta-se, assim, à exequente o indispensável título executivo, quando se reconhece um direito do credor sobre o qual não recai verdadeira controvérsia.
Aqui e agora, os documentos exequendos (cheques prescritos) e como meros quirógrafos; ísto é, como documentos particulares, assinados pela devedora/executada, que não impugnou os seus montantes monetários, os prazos de pagamento e o tipo de negócio jurídico existente entre si e a credora/exequente, assim e por isso, se havendo como reconhecidas as obrigações pecuniárias, têm eles força executiva.
Ora em causa, está tão só em análise a relação fundamental originária, invocada pela credora originária, suportada pelos documentos particulares (cheques prescritos) exequendos; que conservam, no entanto, a sua exequibilidade, quanto à relação fundamental, “ex vi” art. 46º c) referido.
A autonomia dos títulos dados à execução em face da obrigação exequenda e a consideração do regime do reconhecimento da dívida (art. 458º, 1, CC), leva a admiti-los como títulos executivos, uma vez que a causa da obrigação foi invocada no requerimento inicial executivo e não foi impugnado pela executada na petição inicial dos embargos (cfr. J. Lebre de Freitas, in Acção Executiva, 2ª edição, 1997, pág. 54.
No caso, dúvidas não podem subsistir de que a executada/embargante não impugnou a existência da dívida (de que os documentos exequendos traduzem o reconhecimento de uma parte, necessariamente inferior, mas certa e determinada) e do negócio invocado, como existente entre ambas (exequente e embargante) e que originou a obrigação de pagamento, quando lhe foi dada oportunidade processual de o fazer....então, se limitando à invocação da prescrição (art. 52º, LUCH).
Verificada ficou, por isso, a dívida da devedora originária subjacente a tais documentos exequendos à credora originária.
A menção deles constante – pague por este cheque à ordem da N........., Lda a quantia de 1250 contos – traduz uma ordem ao Banco sacado, como também constitui uma declaração da emitente, através da qual esta lhe designa aquele a quem deve pagar os 1250 contos.
Nesta óptica, poder-se-á dizer até, que a emitente do documento exequendo formaliza uma dívida perante a beneficiária designada, declarando e reconhecendo mesmo uma dívida pré-existente, a favor da beneficiária nele inscrita, conferindo-lhe o direito de levantar tal quantia dos seus fundos disponíveis, depositados no Banco sacado (cfr. artigos 1º e 2º, LUCH; 362º, 376º, 1 e 2, CC; 46º, c), CPrC; e J Lebre de Freitas, ob cit, pág. 58, 64 e 69).
Aqui, pois, os cheques prescritos e documentos exequendos valem como documentos particulares, consubstanciando a obrigação subjacente, assinados pela devedora originária – ainda que não como títulos cambiários - para efeitos de exequibilidade, e podendo, com aquela natureza, a sua credora originária executá-los.
Como simples quirógrafos, assim, se têm os cheques ajuizados; que, ainda assim, no caso, e por tudo o que se deixa exposto, suportam a obrigação exigida, que é a causal, subjacente ou fundamental, e importam, por si só, a constituição ou reconhecimento da obrigação pecuniária da sacadora já anteriormente constituida.
Daí, sejam, enquanto meros quirógrafos, também títulos executivos.
Procedem, assim, as conclusões da alegação do recurso.
Termos em que se decide
- julgar procedente a apelação; e, em consequência,
- revogar a sentença na parte impugnada; e, em sua vez,
- julgar improcedentes os embargos,
- ordenando-se o prosseguimento, regular e legal, dos termos da execução.
Custas pela executada/embargante e ora recorrente, em ambas as instâncias.
Porto, 14 de Fevereiro de 2002
António Domingos Ribeiro Coelho da Rocha
Estevão Vaz Saleiro de Abreu
Fernando Manuel de Oliveira Vasconcelos (vencido. Entendo que, presenta a acção cambiária (art. 52º da L.U. sobre Cheques), o cheque não tem força executiva, enquanto simples documento particular.
Um dos requisitos de fundo para que os documentos particulares constituam títulos executivos é que “importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias (art. 46º al. c) do CPC)”. Ora um cheque apenas enuncia ou contém uma ordem de pagamento. Por si só, não constitui ou reconhece uma obrigação pecuniária (vd. Acs. do STJ, de 29.2.2000 e de 18.1.2001, CJ/STJ, 2000, I, 124 e 2001, I, 71; Ac. R.C., de 27.6.2000, CJ 2000, III, 37 e AC. RP, de 25.1.2000, in Proc. 9337/00-3ª, de que fui relator).