Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
815/11.4PAVCD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARTUR OLIVEIRA
Descritores: ARMA BRANCA
FACA
Nº do Documento: RP20120912815/11.4PAVCD.P1
Data do Acordão: 09/12/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Nas armas brancas o que contribui decisivamente para o preenchimento do quadro incriminatório é a natureza indefinida da sua funcionalidade e não o comprimento da lâmina ou a circunstância concreta em que o agente a porta.
II - Assim, se a arma em questão não se apresenta como arma branca “sem aplicação definida”, a sua detenção não integra a prática do crime de detenção de arma proibida, do artigo 86º, n.° 1, alínea d), da Lei n.º 5/2006, na redacção da pela Lei n.º 12/2011, de 27 de abril.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO – SECÇÃO CRIMINAL (QUARTA)
- no processo n.º 815/11.4PAVCD.P1
- com os juízes Artur Oliveira [relator] e José Piedade,
- após conferência, profere, em 12 de setembro de 2012, o seguinte
Acórdão
I - RELATÓRIO
1. No processo sumário n.º 815/11.4PAVCD, do 1º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Vila do Conde, em que é arguido B…, foi proferida sentença que decidiu nos seguintes termos [fls. 30]:
«(…) Pelo exposto, julgo a acusação provada e procedente e condeno o arguido B… na pena de 140 (cento e quarenta) dias de multa à taxa diária de € 7,00 (sete euros), pela prática de um crime de Detenção de Arma Proibida, p.p. pelos artº artº 2º, nº 1, m) e 86º, nº 1, d), todos da Lei 5/2006, de 23/02, com as alterações introduzidas pela Lei 17/2009, de 6/05.
(…)»
2. Inconformado, o arguido recorre, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões [fls. 47]:
A. O arguido foi condenado por um crime de detenção de arma proibida (faca com 19 cm de lâmina), nos termos dos artigos 2º, n.º 1 al. m) e 86º, n.º 1 al. d) da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro.
B. A faca, sendo considerada arma branca, não pertence a nenhuma classe, designadamente a A, constante do artigo 3º, n.º 3 al. f) da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro.
C. A faca, porque tem uma aplicação definida – está afecta às lides domésticas – não é susceptível de integrar o conceito de ‘’outras armas brancas sem aplicação definida’’, constante do artigo 86º, n.º 1 al. d) da Lei 5/2006, de 23/02.
D. A acusação omitiu a referência explícita à posse (in)justificada pelo seu portador.
E. A faca, atendendo ao contexto espacial da sua utilização, não é arma proibida, ainda que seja considerada arma branca, como se pronunciou o Tribunal da Relação de Guimarães, no processo n.º 2447/08-1, in www.dgsi.pt.
F. A detenção de uma faca de cozinha pelo arguido não integra o crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86º, n.º 1 al. d) da Lei 5/2006, de 23/02, independentemente do cumprimento da lâmina ou da superfície cortante, pelo que deve o arguido ser absolvido.
Termos em que se requer a V. Exas. Se dignem revogar a sentença condenatória, substituindo-a por outra que absolva o arguido do crime pelo qual foi condenado, assim se fazendo JUSTIÇA.
(…)»
3. Na resposta, o Ministério Público refuta todos os argumentos do recurso, pugnando pela manutenção do decidido [fls. 50-51].
4. Neste Tribunal, a Exma. Procuradora-geral Adjunta acompanha a resposta, emitindo parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso [fls. 71].
5. Colhidos os vistos, realizou-se a conferência.
6. A sentença recorrida deu como provados e não provados os seguintes factos, seguidos da respectiva motivação [fls. 23-25]:
«(…) Factos Provados
1º - No dia 16 de Dezembro de 2011, pelas 10.43 horas, na …, em Vila do Conde, o arguido circulava a pé, trazendo à cintura um coldre, com uma faca, sem marca, com 19 cm de lâmina metálica e com cabo, em plástico, com 10 cm.
2º - O arguido circulava na via pública com tal objecto, alegadamente por ter sido vítima de um assalto e pretender tirar desforço dos respectivos autores.
3º - O arguido sabia que não lhe era permitido a detenção e uso da referida arma branca, cujas características bem conhecia e que sabia poder ser utilizada como arma de agressão, propósito, aliás, que tinha em mente.
4º - Agiu livre, voluntária e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
5º - O arguido é pescador.
6º - O arguido não tem antecedentes criminais.
Factos Não Provados
Não existem.
Motivação
A convicção do tribunal baseou-se:
O arguido foi julgado na ausência.
No depoimento da testemunha C…, agente da PSP que afirmou ter existido uma denúncia para a esquadra dando conta de que o arguido andava na rua com uma faca de cozinha introduzida num coldre artesanal colocado à cintura.
Deslocou-se ao local e constatou que efectivamente o arguido detinha a faca apreendida a fls. 6 dos autos nas circunstâncias que haviam sido descritas.
Mais afirma que o arguido afirmou que a sua residência havia sido assaltada e a faca era para reaver os bens que lhe haviam sido furtados.
A testemunha depôs de forma isenta, objectiva e segura confirmando o teor do auto de notícia de fls. 2 e 3 quanto aos factos que presenciou.
Valorou-se ainda o auto de apreensão de fls. 6, a fotografia da faca de fls. 7 e o auto de exame de fls. 8.
Quanto à ausência de antecedentes criminais valorou-se o CRC junto a fls. 9. (…)»
II – FUNDAMENTAÇÃO
7. Face às conclusões apresentadas, que delimitam o objeto do recurso, a única questão a decidir é saber se a detenção da faca apreendida ao recorrente – com 19 cm de lâmina metálica e 10 cm de cabo, transportada num coldre, à cintura, com a justificação de que pretendia tirar desforço dos autores de um assalto de que alegadamente terá sido vítima – não consubstancia a prática de um crime de Detenção de Arma Proibida, previsto e punido pelos artigos 2.º, n.º 1, alínea m) e 86.º, n.º 1, alínea d), da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro (na redação dada pela Lei n.º 12/2011, de 27 de abril). Sem pôr em causa a factualidade provada, o recorrente realça que, de acordo com os elementos objetivos do tipo legal de crime, as armas brancas só são passíveis de integrar a previsão referida se se revelar que não têm aplicação definida [“sem aplicação definida” – diz a alínea d) do n.º 1 do artigo 86.º] — o que não é o caso, uma vez que estamos perante uma “faca de cozinha”, por natureza afeta às lides domésticas.
8. O recorrente tem razão. Na verdade, face aos preceitos da Lei, a faca portada pelo arguido nas circunstâncias descritas é uma arma branca, mas não é uma arma proibida.
9. A Lei define arma branca na alínea m) do n.º 1 ao artigo 2.º da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, na redação dada pela Lei n.º 17/2009, de 6 de maio:
“(…) todo o objeto ou instrumento portátil dotado de uma lâmina ou outra superfície cortante, perfurante, ou corto-contundente, de comprimento igual ou superior a 10 cm e, independentemente das suas dimensões, as facas borboleta, as facas de abertura automática ou de ponta e mola, as facas de arremesso, os estiletes com lâmina ou haste e todos os objetos destinados a lançar lâminas, flechas ou virotões”.
10. De acordo com a natureza e caraterísticas descritas no ponto 1 dos Factos Provados, a faca (de cozinha) apreendida ao recorrente é uma arma branca.
11. Porém, o artigo 86.º, n.º 1, alínea d), da mesma lei, ao estabelecer os elementos constitutivos do tipo legal de crime pelo qual o recorrente vem condenado [Detenção de arma proibida] não inclui, na sua previsão normativa, todas as armas definidas como armas brancas, limitando-se àquelas que não possuam uma “aplicação definida”. Assim, pode ler-se na disposição citada:
1 - Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, importar, transferir, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação, transferência ou exportação, usar ou trouxer consigo:
(…)
d) Arma da classe E, arma branca dissimulada sob a forma de outro objeto, faca de abertura automática, estilete, faca de borboleta, faca de arremesso, estrela de lançar, boxers, outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse, aerossóis de defesa não constantes da alínea a) do n.º 7 do artigo 3.º, armas lançadoras de gases, bastão, bastão extensível, bastão elétrico, armas elétricas não constantes da alínea b) do n.º 7 do artigo 3.º, quaisquer engenhos ou instrumentos construídos exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressão, silenciador, partes essenciais da arma de fogo, bem como munições de armas de fogo independentemente do tipo de projétil utilizado, é punido com pena de prisão até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias. [Sublinhado nosso]
12. Parece clara a intenção do legislador de restringir a previsão normativa do tipo de crime às armas brancas (ou engenhos ou instrumentos) que não tenham “aplicação definida” [porque “acentuam uma particular perigosidade” – AcRL de 20.12.2011], deixando de fora todos os objetos que, emboras suscetíveis de integrar a classificação de armas brancas, tenham uma utilização conhecida e uso comum.
13. Ou seja: nas armas brancas o que contribui decisivamente para o preenchimento do quadro incriminatório é a natureza indefinida da sua funcionalidade e não o comprimento da lâmina ou a circunstância concreta em que o agente a porta.
14. Assim, dado que a faca apreendida ao recorrente é uma arma branca mas não se apresenta como uma arma branca “sem aplicação definida”, a sua detenção não integra a prática do crime de Detenção de arma proibida, do artigo 86.º, n.º 1, alínea d), da Lei n.º 5/2006, na redação da pela Lei n.º 12/2011, de 27 de abril, pelo qual vem condenado. [Nesse sentido, v.g., AcRP de 13.12.2006 (Olga Maurício – subscrito pelo aqui relator), AcRG de 9.2.2009 (Nazaré Saraiva), AcRL de 08.10.2009, Processo 279/03.6GBBNV da 9ª Secção (Abrunhosa de Carvalho) e AcRL de 20.12.2011 (Agostinho Torres), disponíveis em www.dgsi.pt, com exceção do penúltimo, disponível em www.pgdlisboa/pt].
III – DISPOSITIVO
Pelo exposto, os Juízes acordam em:
● Conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido B…, absolvendo-o do crime de Detenção de arma proibida, do artigo 86.º, n.º 1, alínea d), da Lei n.º 5/2006, na redação da pela Lei n.º 12/2011, de 27 de abril, pelo qual vinha condenado.
Sem tributação [artigo 513.º, n.º 1, a contrario, do Cód. Proc. Penal].
[Elaborado e revisto pelo relator – em grafia conforme ao Acordo Ortográfico de 1990]

Porto, 12 de setembro de 2012
Artur Manuel da Silva Oliveira
José Joaquim Aniceto Piedade