Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0731622
Nº Convencional: JTRP00040268
Relator: FERNANDO BAPTISTA
Descritores: ALD
PROCEDIMENTOS CAUTELARES
DIRECÇÃO EFECTIVA DE VIATURA
Nº do Documento: RP200704190731622
Data do Acordão: 04/19/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 714 - FLS 152.
Área Temática: .
Sumário: I - O “fundado receio” referido no artº 381º, nº1 CPC é aquele que é apoiado em factos que permitam afirmar, com objectividade e distanciamento, a seriedade e actualidade da ameaça e a necessidade de serem adoptadas medidas tendentes a evitar o prejuízo, não bastando simples dúvidas, conjecturas ou receios meramente subjectivos ou precipitados, assentes numa apreciação ligeira da realidade.
II - O risco de perda ou deterioração da viatura, no contrato de ALD, é um risco do próprio negócio, inerente ao próprio gozo da viatura.
III - Para que tal risco possa justificar o aludido “fundado receio”, tem de exceder o risco normal, impondo-se, ainda, a alegação de que a conduta do locatário torna impossível ou muito difícil o ressarcimento dos prejuízos pela locadora, em consequência da demora na entrega da viatura.
IV - No contrato de ALD, a direcção efectiva do veículo locado é detida pelo locatário, não podendo, por isso, a locadora ser responsabilizada, ainda que a título de risco, em caso de sinistro que envolva o veículo locado e não segurado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do tribunal da Relação do Porto

I. RELATÓRIO:

No Tribunal de Vila Nova de Gaia, veio B………., S A ., com sede na Rua ……….., n.° ., .°-B, Lisboa, instaurar providência cautelar não especificada contra C………., residente na Rua ………., n.° .., ………., ………., pedindo se decrete a apreensão do veículo automóvel de passageiros FIAT, modelo ………., com a matrícula ..-..-TL, e respectivos documentos.

Alega, em suma, que, no exercício da sua actividade de locação financeira, deu de aluguer à aqui requerida o veículo supra identificado, de sua propriedade, por um período de 71 meses, tendo-se esta comprometido, a título de contrapartida, a pagar-lhe os alugueres contratados, o primeiro no montante de 400,21 €, e os setenta e um restantes no montante, cada um deles, de 153,00 €. Mais alegou que a requerida a partir de determinada altura deixou de proceder ao pagamento dos alugueres acordados, no montante de 763.09 €, facto que levou a requerente a resolver o contrato. Alegou ainda que não obstante a resolução do contrato a requerida não lhe devolveu o veículo objecto do mesmo, mantendo-se, ilegitimamente, no seu uso e fruição.

Conclusos os autos, foi indeferido liminarmente o procedimento cautelar em apreço, por se entender que faltava a alegação de factos integrantes de um dos requisitos que a lei impõe para o decretamento da providência cautelar, qual seja, o fundado receio de lesão grave e de difícil reparação do direito invocado.

Inconformada, a requerente interpõe recurso de agravo, apresentando as pertinentes alegações que termina com as seguintes

CONCLUSÕES:
“a) O presente recurso vem interposto decisão proferida no processo à margem referenciado que indeferiu liminarmente a Providência Cautelar não Especificada com fundamento na não verificação dos requisitos previstos nos artigos 381° e 387° do CPC;
b) A ora Requerente alegou, no seu requerimento inicial, a matéria constante nos pontos n.° 1° a 17° que se deixaram transcritos e aqui se dão por reproduzidos para todos os efeitos legais.
c) Alegou-se nomeadamente:
- que foi celebrado um contrato de aluguer de veículo automóvel sem condutor entre a Requerente e a Requerida;
- que a Requerida deixou de pagar alugueres acordados;
- que a Requerente a interpelou para pagar ou não pagando, para entregar o veículo, considerando-se resolvido o contrato;
- que a Requerida não o entregou;
d) Alegou-se ainda que, a utilização de uma viatura automóvel a deprecia e diminui o seu valor, o mesmo acontecendo com o mero decurso do tempo;
e) Para que seja decretada uma providência cautelar não especificada devem ser preenchidos os requisitos constantes do n.° 1 e 2 do artigo 381° do Código do Processo Civil, e que, sumariamente, são: que muito provavelmente exista o direito tido por ameaçado; que haja fundado receio que o direito a defender esteja ameaçado de lesão grave e dificilmente reparável; que ao caso não convenha nenhuma das providências tipificadas nos artigos 393° a 427° do CPC; que a providência requerida seja adequada a remover o periculum in mora concretamente verificado e a assegurar a efectividade do direito ameaçado; que o prejuízo resultante da providência não exceda o dano que com ela se quis evitar;
f) O Tribunal a quo, atenta a matéria constante dos pontos 1° a 17° só podia concluir pelo preenchimento de todos os requisitos enunciados e que são os constantes do artigo 3 81 ° do CPC;
g) Acontece que a douta decisão recorrida, entendeu não existir fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável do direito daquela e com esse fundamento, indeferiu liminarmente a Providência;
h) -Este entendimento é infundado: o Tribunal a quo, em vez de se centrar no perigo que assola o direito de propriedade sobre o veículo em causa, cuidou de referir que haverá sempre possibilidade por parte da ora Requerente ver os seus prejuízos reparados através de acção declarativa de condenação ou acção executiva;
i) Há, portanto, uma invocação implícita da capacidade económica da Requerida, para vir a indemnizar a Requerente pela falta de pagamento dos alugueres devidos e pela não entrega do veículo depois da resolução contratual;
j) O periculum in mora tinha de ter sido apreciado em face da situação concreta, ou seja, relativamente à viatura objecto da Providência e não relativamente à possibilidade económica da Requerida vir a ressarcir a Requerente, pressuposto deve ser analisado em sede de arresto e não está aqui, claramente, em causa;
k) Por outro lado, o facto da Requerida se furtar ao pagamento dos alugueres acordados e se manter na posse da viatura, depois de instada a proceder à sua entrega, não louva a seu favor no que respeita ao bom cumprimento das obrigações que assume ou lhe seja impostas, mesmo que por sentença transitada em julgado;
L) O que estava em causa era o direito de propriedade do veículo objecto dos autos: direito subjectivo da Requerente relativamente àquele veículo concreto; e,
m) Assim, é manifesto que o prejuízo para a Requerente, decorrente do facto da Requerida se encontrar na posse do veículo, sem legitimidade para isso, é de difícil reparação;
n) Um veículo automóvel está sujeito a um conjunto de vicissitudes físicas e jurídicas que não permitem que possa concluir-se que o decurso de três ou quatro anos (tempo médio para se chegar à execução para entrega de coisa certa), não gera uma prejuízo dificilmente reparável;
Tendo em conta a natureza do bem, os prejuízos dificilmente reparáveis para a Requerente começam no facto de um veículo de sua propriedade estar a circular em circunstâncias fisicas e jurídicas que ela não controla;
p) Tem, desta forma, a ora Requerente, no seu activo, um bem que em vez de lhe potenciar um proveito, se lhe apresenta como passível de lhe causar prejuízos decorrentes de um uso ilegítimo por parte de terceiro;
q) Acresce que, a natureza perecível do automóvel foi reconhecida pelo legislador nos Decretos Lei n.° 54/75, de 24 de Fevereiro e Decreto lei 149/95, de 24 de Junho, que regulou as providências que visam assegurar o não perecimento do direito de propriedade sobre automóveis, com dispensa da prova do periculum in mora, critério que tem estreito paralelismo com o caso em apreço;
r) A decisão recorrida fez uma errónea interpretação e aplicação do disposto no artigo 381° e 387 n.° 1 do CPC ao não analisar o periculum in mora face ao direito de propriedade mas sim face à capacidade de a Requerida vir a indemnizar a Requerente pelos prejuízos causados em função do incumprimento contratual.
s) Trata-se de uma tese que se afasta da jurisprudência dominante em todas as instâncias pelo que nos dispensamos de a citar.

Nestes termos e nos melhores de direito, sempre com o douto suprimento de V. Exas., deve ser julgado procedente por provado o presente recurso, anulando-se ou revogando-se a decisão recorrida, com todas as legais consequências.”

O Mmº Juiz a quo sustentou a decisão recorrida (fls. 79).

Foram colhidos os vistos legais.

II. FUNDAMENTAÇÃO.
II.1. AS QUESTÕES:

Tendo presente que:
--O objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (arts. 684º, nº3 e 690º, nºs 1 e 3, do C. P. Civil);
-- Nos recursos se apreciam questões e não razões;
-- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido,

a questão a resolver consiste em saber se foram alegados factos suficientes para o preenchimento dos requisitos para o decretamento da providência cautelar, maxime o fundado receio de lesão grave e de difícil reparação do direito invocado pela requerente.

II. 2. OS FACTOS:

Os factos a levar em conta são os alegados na petição inicial e documentos com ela juntos-- pois o que se pretende saber é se tais factos, a provarem-se, são suficientes para o decretamento da providência cautelar.

III. APRECIANDO E DECIDINDO:

Vejamos se estão preenchidos, na alegação da requerente, os requisitos necessários para o decretamento da providência cautelar requerida.

Com a reforma processual operada pelo Dec.-Lei nº 329-A/95, de 12.12, as providências cautelares não especificadas, largamente enraizadas na nossa tradição como um meio de protecção de direitos ameaçados, foram eliminadas e substituídas por um «procedimento cautelar comum», do qual consta a regulamentação dos aspectos comuns a toda a justiça cautelar.
Assim, resulta do artº 381º do CPC que o decretamento de uma providência cautelar não especificada depende da concorrência dos seguintes requisitos: a) que muito provavelmente exista o direito tido por ameaçado—objectivo da acção declarativa-, ou que venha a emergir de decisão a proferir em acção constitutiva, já proposta ou a propor; b) que haja fundado receio de que outrem antes de proferida decisão de mérito, ou porque a acção não está sequer proposta ou porque ainda se encontra pendente, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito; c) que ao caso não convenha nenhuma das providências tipificadas nos arts. 393º a 427º do CPC; d) que a providência requerida seja adequada a remover o periculum in mora concretamente verificado e a assegurar a efectividade do direito ameaçado; e) que o prejuízo resultante da providência não exceda o dano que com ela se quis evitar.

Como elementos constitutivos do seu direito, à requerente incumbia a alegação e prova dos aludidos requisitos (artº 342º do CC).
Ora, não cremos que a requerente tenha alegado factos suficientes ao preenchimento do requisito referido supra sob a al. b): a existência de “fundado receio de que outrem”—no caso, o requerido—“antes de proferida decisão de mérito, .........., cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito”. E não tendo alegado, sequer, essa factualidade, não pode fazer a prova (sumária) dos factos reveladores desse requisito ou pressuposto.

Efectivamente, o legislador condicionou a tutela antecipada ou conservatória à prova sumária do aludido fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável—o periculum in mora (requisito comum a todas as providências cautelares).
Como se dispõe na lei, só lesões graves e dificilmente reparáveis têm a virtualidade de permitir ao tribunal, mediante iniciativa do interessado, a tomada de uma decisão que o coloque a coberto da previsível lesão[1].
É que, tratando-se de uma tutela cautelar decretada muitas vezes sem a audiência da parte contrária (cfr. artº 385º, nº1, 2ª parte)—como, no caso sub judice, foi solicitado pela requerente (fls. 4)--, não se pode aceitar que seja qualquer lesão a justificar a intromissão na esfera jurídica do requerido, causando-lhe, porventura, um prejuízo do qual pode não ser compensado em caso de injustificado recurso à providência cautelar (artº 390º CPC).
Deve, assim, o juiz colocar na balança dos interesses, a par dos prejuízos que o requerente pretende evitar, também aqueles que, porventura, a decisão possa determinar na esfera jurídica do requerido, seguindo o padrão referido no artº 387º, nº2, do CPC.
Apenas as lesões graves e irreparáveis ou de difícil recuperação merecem a tutela provisória que o procedimento cautelar comum contem.
Assim, ficam afastadas do círculo de interesses que os procedimentos cautelares visam proteger, ainda que irreparáveis ou de difícil reparação, as lesões sem gravidade ou de gravidade reduzida, bem assim as lesões graves mas facilmente reparáveis.

“Fundado receio”, é aquele que é apoiado em factos que permitam afirmar, com objectividade e distanciamento, a seriedade e actualidade da ameaça e a necessidade de serem adoptadas medidas tendentes a evitar o prejuízo, não bastando simples dúvidas, conjecturas ou receios meramente subjectivos ou precipitados, assentes numa apreciação ligeira da realidade[2] -- embora também é certo que o critério de aferição da expressão “fundado receio” não deve ser reconduzido à certeza inequívoca sobre a verificação in casu da situação de perigo.
Na apreciação do aludido justo receio” de grave lesão futura e dificilmente reparável, há que apreciar, de forma objectiva, todas as circunstâncias que rodearam a prática dos factos, tendo em consideração os interesses em jogo por ambas as partes, as condições económicas de ambas, as condutas anteriores e posteriores do requerido e sua projecção nos posteriores comportamentos, etc.

Entendeu-se na decisão recorrida que no caso sub judice não se verificava este requisito, qual seja, de que a conduta (omissiva-- não restituindo a viatura) da requerida causava à requerente "lesão grave ou dificilmente reparável" ao seu direito (de crédito).
Cremos que assim deve ser, de facto.

Efectivamente, não vêm alegados factos que permitam o preenchimento do aludido requisito.
O facto de ser normal que a continuação do uso do veículo pela recorrida lhe causa depreciação, só por si nada diz, até porque também é certo que a recorrida continua obrigada a pagar as prestações do aluguer durante o período de utilização—ou, pelo menos, as correspondentes indemnizações.
O risco de perda ou deterioração da viatura é um risco do próprio negócio, risco inerente ao próprio gozo da viatura. Nada se alega e demonstra que, in casu, se vá além do risco normal.
Mas veja-se que a eventual perda ou deterioração culposa do veículo locado (com mera negligência ou até dolo da requerida), está acautelada nos termos gerais (cfr. arts. 1043º e 1044º CC). Sendo certo, porém, que todas as coisas estão sujeitas à desvalorização, deterioração ou perda por causa do seu uso (em especial os veículo automóveis, por causa do risco especial que a circulação rodoviária envolve). E diga-se que tal risco… não impediu que a locadora locasse a viatura à locatária.

Alegou a requerente que o requerido continuará a usar o veículo, com a crescente desvalorização do mesmo, correndo o risco de ver o veículo fora do mercado, com muito reduzido valor.
É isto verdade, sem dúvida, e indicia a existência de prejuízos para a requerente.
Mas, por um lado, a normal depreciação do veículo resultante do uso pela requerida será sempre compensada pelos montantes correspondentes que esta continuará obrigada a pagar à requerente (seja a título de alugueres, seja a título de compensação, ut arts. 1038º, nº1, al. a) e 1045º, do CC); e por outro lado, o que a requerente tinha de alegar—e não alegou—era que a conduta da requerida ia tornar impossível ou muito difícil o ressarcimento pela requerente dos prejuízos havidos com a demora na entrega do veículo.

Repare-se que, sendo o prejuízo sofrido apenas de natureza patrimonial, naturalmente que, atenta a possibilidade de reconstituição natural ou em dinheiro (cfr. artº 566º do CC), sempre pode a requerente ser ressarcida daquele prejuízo com recurso a outros meios patrimoniais oferecidos pelo devedor /requerido.
Teria a requerente de alegar factos demonstrativos de que o facto de a locatária ter deixado de pagar as rendas contratadas indiciava fortemente que a sua capacidade para solver futuramente o crédito-- a título das prestações já vencidas ou a título de indemnização--, a que a locadora tem direito, era completamente inexistente, por inexistência de meios para solver a dívida.
A requerente lavra, porém, na sua douta alegação, em meras conjectura e conclusões. Só que, como dissemos supra—citando o Professor Alberto dos Reis e um Ac. da Rel. de Lisboa--, o “fundado receio” é algo mais: é aquele que “ é apoiado em factos que permitam afirmar, com objectividade e distanciamento, a seriedade e actualidade da ameaça e a necessidade de serem adoptadas medidas tendentes a evitar o prejuízo, não bastando simples dúvidas, conjecturas ou receios meramente subjectivos ou precipitados, assentes numa apreciação ligeira da realidade”.

Assim vistas as coisas, cremos que tem razão o Mmº juiz a quo ao referir que podem ser várias as razões pelas quais a requerida deixou de pagar os alugueres, as quais não têm necessariamente a ver com falta de fundos ou património para satisfazer tais obrigações-- a não ser que seja demonstrado o contrário, o que a requerente não alegou, sequer.
E, como tal, com vista a obter suficientes indícios da incapacidade da requerida em satisfazer as obrigações para com a requerente, tinha esta de alegar e provar que a requerida não tem outros meios com que pagar a dívida emergente do contrato de locação do veículo, ou que vem incumprindo para com outros credores as suas obrigações, delapidando ou escondendo património no intuito de se furtar ao pagamento da dívida à requerente.
Nada disto foi alegado, antes se remeteu para os próprios termos da lei, produzindo-se afirmações conclusivas, algumas emergentes de uma lógica que nem sempre é corroborada pela realidade factual.

Acrescente-se, ainda, o seguinte:
Diz a requerente que não pode assegurar a existência de seguro automóvel a cobrir a responsabilidade civil pelos danos causados pela viatura.
Ora, como se refere no despacho recorrido, trata-se de mera alegação conjectural ou hipotética, que por si só é insusceptível de fundar qualquer julgamento. Além de que a requerente sempre deveria ser diligente e assegurar-se da existência, ou não, de seguro automóvel-- o que não era difícil--, para, então, vir aos autos com dados seguros a tal propósito, e não limitar-se a produzir alegações fundadas em meras hipóteses.

Teme a requerente vir a ser responsabilizada pelos danos decorrentes da circulação da viatura com base no risco, enquanto a mesma permanecer na posse da requerida.
Ora, como bem anota no despacho recorrido, a responsabilidade pelo risco que emerge de um veículo de circulação terrestre tem como pressupostos que o responsável detenha a direcção efectiva do veículo e que o mesmo seja utilizado no seu interesse (artº 503º, nº1 CC). E tal situação não ocorre em relação à requerente.
Pressupõe-se, assim, uma relação de subordinação ou dependência[3].
Ora, parece-nos, com efeito, que o locatário, não obstante ser o detentor ou possuidor em nome alheio da coisa é, por virtude do contrato de locação, titular de uma relação jurídica que lhe atribui a disponibilidade material da coisa, na qual se inclui a faculdade de uso e fruição que, correspectivamente, são subtraídas da esfera jurídica do proprietário.
Por tal motivo, não vemos que a requerente/locadora deva ser responsabilizada em caso de sinistro sem que a locatária tenha feito seguro automóvel da viatura objecto da locação, pois que a locadora, mesmo sendo a proprietária da viatura à data de eventual sinistro, não detém a respectiva direcção efectiva e interessada da viatura.

Voltando atrás, dir-se-á que o que a requerente parece pretender, afinal, é, por via deste mecanismo processual, e no essencial, antecipar os efeitos da decisão a proferir na acção definitiva que virá certamente a instaurar. Ou seja, pretende antecipar a tutela que conseguiria com uma acção para obter a restituição do bem no seguimento da resolução do contrato: a entrega da viatura, mas sem invocar, concretamente, o perigo do seu desaparecimento e a consequente inviabilização de obtenção desse resultado-- ou seja, a impossibilidade de ressarcimento do dano correspondente à eventual perda da viatura.
Só que tal desiderato não lho permite a lei ( ut artº 381º, nº1 CPC).

Do exposto se conclui que, face aos factos alegados no requerimento inicial da agravante, não estão preenchidos todos os requisitos exigidos por lei para o decretamento da requerida providência cautelar, designadamente, o periculum in mora --isto é, que a conduta (omissiva) requerida cause à requerente “lesão grave ou dificilmente reparável ao seu direito” (ou, melhor dito, à expectativa jurídica que é a restituição do veículo locado).
Tratando-se de providência cautelar não especificada, para além da demonstração de que é inaplicável ao caso qualquer das providências nominadas previstas na lei (o preenchimento das condições relativas à subsidiariedade, ut artº 381º- 3), é imposto, também, o preenchimento do pressuposto específico do fundado receio de que outrem, antes de a acção ser proposta ou na dependência dela, cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito (arts. 381º-1 e 387º-1) e da adequação da providência concretamente requerida à efectivação do direito ameaçado (artº 381º-1).
Tais pressupostos, como visto supra, não se encontram integralmente assegurados na alegação que a requerente produziu no seu requerimento inicial.

Como tal, improcedem as conclusões das alegações da agravante.

CONCLUINDO:
- O “fundado receio” referido no artº 381º, nº1 CPC é aquele que é apoiado em factos que permitam afirmar, com objectividade e distanciamento, a seriedade e actualidade da ameaça e a necessidade de serem adoptadas medidas tendentes a evitar o prejuízo, não bastando simples dúvidas, conjecturas ou receios meramente subjectivos ou precipitados, assentes numa apreciação ligeira da realidade.
- O risco de perda ou deterioração da viatura, no contrato de locação de veículo automóvel sem condutor, é um risco do próprio negócio, inerente ao próprio gozo da viatura.
- Para que tal risco possa justificar o aludido “fundado receio”, integrando um dos pressupostos para o decretamento da providência cautelar, tem, não só de ir para além do risco normal, como se impõe a alegação de que a conduta da requerida/locatária tornara impossível ou muito difícil o ressarcimento pela requerente/locadora dos prejuízos havidos com a demora na entrega da viatura.
- A responsabilidade pelo risco que emerge de um veículo de circulação terrestre tem como pressupostos que o responsável detenha a direcção efectiva do veículo e que o mesmo seja utilizado no seu interesse (artº 503º, nº1 CC) -- pressupondo, assim, uma relação de subordinação ou dependência.
- O locatário do veículo, embora detentor ou possuidor em nome alheio da coisa é, por virtude do contrato de locação, titular de uma relação jurídica que lhe atribui a disponibilidade material da coisa, na qual se inclui a faculdade de uso e fruição que, correspectivamente, são subtraídas da esfera jurídica do proprietário. Daí que não deva a locadora ser responsabilizada em caso de sinistro sem que a locatária tenha feito seguro automóvel da viatura objecto da locação, pois que a locadora, mesmo sendo a proprietária da viatura à data de eventual sinistro, não detém a respectiva direcção efectiva e interessada da viatura.

IV. DECISÃO:

Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao agravo, confirmando o despacho recorrido.

Custas pela agravante.

Porto, 19 de Abril de 2007
Fernando Baptista Oliveira
José Manuel Carvalho Ferraz
Nuno Ângelo Rainho Ataíde das Neves

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[1] Ver o Ac. da Rel. de Évora, de 13.06.91, in BMJ nº 408º-673.
[2] Ver Alberto dos Reis, Cód. Proc. Civil Anotado, vol. I, pág. 684 e Ac. Rel. de Lisboa, de 26.05.83, in Col. Jur., 1983, tomo III, pág. 132.
[3] Cfr. Ac. STJ, de 20.06.1990, in BMJ nº 398, pág. 491.