Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
9920386
Nº Convencional: JTRP00030191
Relator: MARQUES DE CASTILHO
Descritores: CRÉDITO DOCUMENTÁRIO
PROCEDIMENTOS CAUTELARES
Nº do Documento: RP200012129920386
Data do Acordão: 12/12/2000
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: 3 J CIV MATOSINHOS
Processo no Tribunal Recorrido: 6-B/99
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: DIR PROC CIV - PROCED CAUT.
Legislação Nacional: CCIV66 ART405.
Jurisprudência Nacional: AC STJ DE 1997/04/17 IN CJSTJ T2 ANOV PAG53.
Sumário: É possível ao dador da ordem contida num crédito documentário recorrer a uma providência cautelar por forma a impedir ou sustar o pagamento independentemente da verificação e produção de prova líquida e inequívoca de fraude manifesta ou de abuso de confiança.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO
Tecidos ............ & ......, Ldª com os sinais dos autos requereu nos termos do artigo 381º do Código Processo Civil como serão todas as outras disposições legais infra citadas de que se não faça menção especial providência cautelar não especificada contra :
H. ........ Co. Ldª
Banco .......... SA;
T........ Public CO. Ldª,
através da qual peticiona que se decrete “a suspensão do pagamento à primeira requerida da quantia de USD 10 340 a efectuar por crédito documentário nº 15888080955 até ao trânsito em julgado da acção definitiva de que a providência cautelar é incidente preliminar e que a requerente vai instaurar“ e se ordene “a intimação das 2ª e 3ª requeridas para que se abstenham de por efeito daquela carta de crédito, pagarem à 1ª requerida aquela importância até ao trânsito em julgado da mencionada acção definitiva a propôr pela requerente”
Designado dia para produção de prova sem audiências dos requeridos, conforme solicitação feita para não por em risco a demanda foi proferida decisão que julgando procedente determinou a suspensão do pagamento à 1ª requerida por efeito do crédito documentário aludido e ordenando às instituições bancárias B...... SA e T. .... Public. Co. Ldº se abstenham de pagar a mencionada quantia até ao trânsito em julgado da acção definitiva a propôr pela requerente.
Inconformado com a decisão veio o Banco ....... SA, interpor recurso de agravo tendo nas alegações apresentadas para o efeito aduzido a seguinte matéria conclusiva, que se reproduz :
1. “Atenta a natureza autónoma do crédito documentário, as vicissitudes emergentes da relação subjacente não afectam a validade e a subsistência das obrigações assumidas perante o respectivo beneficiário, designadamente, pelo Banco Emitente do crédito.
2. Só assim não acontecerá se o Banco Emitente ou o ordenador do crédito dispuserem de prova de actuação do beneficiário com evidente má fé ou em fraude manifesta, como se aceita na jurisprudência internacional e na doutrina, como limites à autonomia do crédito documentário.
3. No âmbito da relação autónoma e independente estabelecida entre o Banco Emitente e o Beneficiário da carta de crédito, a falta de licença de exportação de mercadoria proveniente da Tailândia para Estado integrado na União Europeia não é imputável ao exportador, mas ao importador nacional que não previu como condição do crédito documentário o envio de tal documento, na falta de prova de que tal se ficou a dever a fraude do exportador .
4. Tendo o Banco assumido o compromisso firme de pagar contra os documentos exigidos na carta de crédito, não pode o Ordenador suspender ou impedir o pagamento do crédito irrevogável sem que produza prova líquida e inequívoca de fraude manifesta ou de abuso de direito evidente por banda do beneficiário do crédito, cumpridas que foram as condições estabelecidas na carta de crédito.
5. Ainda que o não envio da licença de exportação possa representar a não entrada da mercadoria na posse do comprador, tal omissão ( eventualmente verificável no âmbito das relações importador/exportador) não contende com a relação Banco Emitente / Banco Designado / Beneficiário do crédito documentário irrevogável.
6. Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo não fez interpretação e aplicação das disposições legais e convencionais aplicáveis, violando, por isso, o disposto no artigo 405° no Código Civil e nos artigos 3°-a), 9º-a) e 14°-a), das Regras Uniformes organizadas pela Câmara de Comércio Internacional (Publicação UCP 500)”.
Termina pedindo que deve ser revogada a decisão a quo e substituída por outra que julgue improcedente a providência cautelar em causa.
Foram apresentadas contra alegações através das quais se pugnou pela manutenção da decisão recorrida.
O Exmº Magistrado no Tribunal a quo proferiu despacho tabelar de sustentação em confirmação do decidido.
Remetidos os autos a este Tribunal foi em conformidade com o disposto no art. 700º nº 1 solicitado o envio das peças processuais em falta reputadas de relevância para a decisão a proferir que se encontram juntas sob a forma de certidão da fls. 93 a 133 inclusive.
Foram colhidos os vistos legais pelo que importa decidir.
THEMA DECIDENDUM
A questão subjacente, no âmbito do presente recurso de agravo, traduz-se em saber, perante as conclusões elencadas pelo recorrente, se:
a) a decretação da providencia cautelar inominada, impondo ao Banco requerido a abstenção e suspensão de pagamento da importância relativa a crédito documentário irrevogável ao seu beneficiário, é violadora do disposto no artigo 405º do Código Civil e artigos 3º a), 9º a) e 14º a) das Regras e Usos Uniformes relativas ao crédito documentário, organizadas pela Câmara de Comércio Internacional - Publicação UCP 500, adiante designada pela sigla “RUU”, bem como, designadamente, por não se verificar e produzir prova líquida e inequívoca de fraude manifesta ou de abuso de direito
DOS FACTOS E DO DIREITO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente em conformidade com o disposto nos arts. 684º nº 3 e 690º nº 1.
É a seguinte a matéria fáctica sobre a qual foi proferido o despacho ora submetido à apreciação deste Tribunal e que lhe serviu de suporte para a procedência da providência requerida:
1. A requerente é uma sociedade que se dedica nomeadamente ao comércio de artigos têxteis.
2. A 1ª requerida a H. ....... CO. Ldª dedica-se ao comércio e fabrico de tecidos e encontra-se sediada na Tailândia tendo em Portugal como agente a sociedade T........ & ........ Ldª.
3. Mediante acordo entre a requerente e a 1ª requerida esta emitiu a factura “proforma” nº HM/98/386 pela qual propôs entregar e vender à requerente 10 000 mts de tecido polycoton de cor branca pelo preço total de USD 9,400.00.
4. Tal quantia seria paga pela requerente mediante a emissão de carta de crédito documentário irrevogável a 90 dias contados do B/L ( conhecimento de embarque) 5. No dia 30/7/98 o Banco ......... SA a solicitação da requerente emitiu o Crédito documentário Irrevogável nº 15588080955 no valor USD 9, 400.00, tendo habilitado a T........ Public. CO .Ldª a pagar à 1ª requerida a quantia supra aludida.
6. Em 26/8/98 a 1ª requerida emitiu a factura nº A/ 98/0049 relativa não aos 10 000 mts da factura “proforma” mas a 11 000 mts que a requerente acabou por confirmar passando o montante da carta de crédito supra referida para USD 10,340.00.
7. Ao respectivo crédito irrevogável foi fixado o dia 30 de Novembro de 1998 para vencimento pagamento.
8. A mercadoria em questão embarcou no porto de Bangkok tendo chegado ao porto de Leixões sem que a 1ª requerida tenha entregue e mostre intenção de entregar, como devia a necessária licença de exportação.
9. Devido à falta de tal licença de exportação a requerente não tem qualquer acesso aos tecidos que permanecem na Alfândega.
10. O teor dos documentos traduzidos da fls. 1 a 23/35 a 49.
Importa antes do mais referir que, perante os termos da remissão operada no nº 10 de tal decisão, constituiu tal circunstância a razão determinante da solicitação operada por este Tribunal para o envio dos documentos a que o referido número se reporta não sendo de mais dizer, como vem sendo uniformemente decidido, que não constitui boa técnica processual tal procedimento.
Não se trata de formalismo rigoroso que entendemos dever ser banido dos nossos tribunais sobretudo, face às exigências hodiernas impostas de celeridade processual, que infelizmente são reclamadas por todos e por tudo, muitas vezes também em detrimento e prejuízo da ponderação, estudo criterioso bem como amadurecido que toda e qualquer questão por mais simples que o seja na importância da sua individualização deve merecer, mas que importa, dizíamos, minimamente estabelecer de molde a limitar o conteúdo relevante para a decisão que os mesmos documento encerram.
É sabido que os documentos não são factos em si mesmos, mas materializam outros factos que importa evidenciar, não sendo assim, como referimos, de boa técnica processual reproduzir todo o seu teor, devendo pelo contrário ser feita uma relevância detalhada a tais documentos, de molde a transcrever o que deles consta de importante para a resolução do pleito. [ Cfr. Acs. desta Relação e Secção Proc. 1243/00 de 21/11/00 e Proc. 212/00]
Assim, importa dos mesmos referir o que se tem de considerar igualmente provado:
A factura A/98/0049 com a data 26/8/98 na qual é requerente T ........ & ..... Ldª, e banco emissor Banco ...... SA consta a menção ao crédito nº 1588080955 com data de emissão 98/07/30, sendo a mercadoria posta a bordo em Bangkok, Tailand para Leixões através de mar na embarcação Mosel v.522.
A descrição dos bens é de 11.000 mts 65 PCT polyester 35 PCT algodão com 110 x 76/ 45 x45.
Como factura provisória ou “ proform” nº HM/98/386, datada de 18 de Junho 1998, onde igualmente se constata a menção de embarque e fim de negociação de 60 mais 15 dias para apresentação de documentos e como prazo de pagamento irrevogável D/C a 90 dias após data de B/L ( data de embarque ).
Mais consta no documento de crédito documentário como condições adicionais que os documentos da terceira parte sejam aceites e que as amostras da mercadoria sejam enviadas para o requerente antes de embarque por correio DHL e ainda que “todos as despesas fora de Portugal são da responsabilidade da conta do beneficiário” e “os documentos devem ser apresentados dentro de 15 dias após a data de emissão dos documentos de transporte, mas dentro da validade do crédito”
Carta de ........... Transitários, LDª do seguinte teor: “Vimos por este meio informar V.Exªs que a supra mercadoria carece de apresentação de licença de exportação para posterior emissão de licença importação sem a qual não é possível submeter a desalfandegamento, em virtude de ser mercadoria contigentada, pelo que deverá ser devolvida à origem”
Estes os elementos fácticos de relevância a reter.
Vejamos o direito.
O artigo 2º dispõe no seu nº 2 que :
“A todo o direito, excepto quando a lei determine o contrário, corresponde a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente, bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da acção”.
O direito de acção expresso no normativo citado que tem consagração constitucional no artigo 20º da CRP e seu nº 2 permite a quem se arrogue na titularidade de um direito solicitar a intervenção judicial no sentido de obter o seu reconhecimento ou de alcançar a sua realização coerciva.
Todavia em sede de análise dos pressupostos do procedimento cautelar pode afirmar-se que o direito de acção é independente do reconhecimento ou não do direito subjectivo.
O direito de acção e, designadamente, o direito de acção cautelar existe ainda que, a final, se conclua pela improcedência da pretensão ou por uma decisão de conteúdo puramente formal de indeferimento liminar ou de extinção da instancia.
Assim se mostra delineado na nossa ordem jurídica, tal como é sustentado, entre outros, por A. Varela [ª Varela, in R.L.J., 125º, pág. 358, e 126º, pág. 39, e L. de Freitas, in Introdução ao Processo Civil, pág. 78 e segs.] para quem esse direito se não deve confundir com o direito subjectivo.
O respectivo titular exerce um verdadeiro poder a que corresponde, da parte do tribunal, não um simples ónus ou estado de sujeição, mas um verdadeiro dever jurídico emergente da Lei Fundamental (art. 20 da C.R.P.), previsto no art. 6° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e concretizado no art. 2° do C.P.C. [ Focando a independência entre o direito de acção e o direito subjectivo e aludindo ao exercício abusivo daquele cfr. o Ac. da Rel. do Porto, de 19-5-94, in C.J., tomo III, pág.211.]
O direito de acção configura-se, pois, como um poder do autor contra o demandado, obrigatoriamente exercido sob fiscalização e com a cooperação do Estado.
Os procedimentos cautelares constituem um instrumento processual por excelência para a protecção eficaz de direitos subjectivos e de outros interesses juridicamente relevantes onde cumpre destacar os procedimentos cautelares preventivos, conservatórios ou antecipatórios, como meios destinados a tutelar eficazmente direitos ou interesses juridicamente protegidos ou a assegurar o efeito útil da actividade jurisdicional a desenvolver no âmbito do processo principal.
Representam uma antecipação ou garantia de eficácia relativamente ao resultado do processo principal e assentam numa análise sumária ("summaria cognitio") da situação de facto que permita concluir pela provável existência do direito ("fumus boni juris") e pelo receio de que tal direito seja seriamente afectado ou inutilizado se não for decretada uma determinada medida cautelar ("periculum in mora").
Em contraposição, sob o prisma processual das medidas cautelares, - Providências cautelares especificas - ligadas à especial forma que deve ser adoptada, ao conjunto de actos processuais que devem ser praticados, à sequência ou tramitação ou ao seu suporte material, o legislador utilizou a expressão "Procedimentos cautelares", sendo esta última designação a que serviu para demarcar a Secção que, no Código de Processo Civil, contém as normas regulamentadoras da matéria, definindo os pressupostos de cada uma das medidas cautelares e a tramitação processual que lhes compete. [ Surge, assim, de forma nítida o paralelismo que pode ser estabelecido entre os instrumentos jurídicos de natureza cautelar e o modo como no art.º 460º se estabelece a distinção entre processo comum e especial, pois também o legislador, no capítulo destinado aos procedimentos cautelares atribuiu à Secção I o título de “Procedimento Cautelar Comum” e à Secção II o título de “Procedimentos Cautelares Especificados”. In Ob. Cit. Pág.38]
Ora assim sendo necessariamente se tem de concluir que o procedimento cautelar comum é pois o instrumento processual próprio à dedução e apreciação de pretensões de natureza cautelar que não encontrem tutela em qualquer dos demais procedimentos cautelares referindo-se todavia que, a tramitação do procedimento cautelar comum serve de matriz aos demais, aplicando-se de forma subsidiária o regime do artigo 392º nº 1 em tudo o que naqueles não estiver especialmente regulado, como de igual modo se procede com o processo comum, relativamente aos processos especiais (veja-se neste sentido a obrigatoriedade da legalidade das formas procedimentais imposta pelo artigo 460º nº 2 com a sua manifestação no artigo 381º nº 3).
Importa ainda referir que a subsidiariedade, outro dos elementos tipificadores deste tipo processual, não se reporta tanto ao direito ameaçado, mas antes ao risco de lesão prevenido por cada uma das providências especificas pelo que se deve indicar, para além do direito, a existência de uma situação de perigo de lesão desse direito que não esteja abarcada no âmbito de aplicação de uma medida cautelar especifica, importando sobretudo averiguar os pressupostos que estiveram na mente do legislador ao consagrar uma determinada tutela cautelar [ Como refere Teixeira de Sousa, "a subsidiariedade pressupõe que nenhuma providência nominada seja abstractamente aplicável e não que a providência aplicável em abstracto deixe de o ser por motivos respeitantes ao caso concreto". In Estudos sobre o Novo Código Processo Civil, pág. 242]
Do que vem de ser referido retém-se necessariamente que cada forma de procedimento tem o âmbito de aplicação próprio ou especifico da providência ou providências a que se destina bem como que só é legitimo o recurso a procedimento cautelar não especificado se porventura, para a medida que se pretende, não existir procedimento próprio, e finalmente, que o apelo ou recurso impróprio a uma determinada providência cautelar não pode servir para ultrapassar obstáculos que a própria lei coloque a certas medidas especificas, pelo que, para se aplicar ou determinar a abrangência do campo de aplicação do procedimento cautelar para um providência atípica ou não especificada, torna-se necessário averiguar previamente qual a situação de perigo abstractamente prevista pelo legislador quando estratificou determinada providência especifica.
Ora, além do exposto, importa referir ainda que, o contrato que está em causa nos autos, é denominado de crédito documentário, que na variante que nos absorve, e resulta das RUU, se traduz numa operação bancária formal pela qual um banco (o banco emitente) agindo por mandato, ou instruções do seu cliente ( ordenador do crédito ) se obriga, mediante um seu negócio jurídico unilateral, - a carta de crédito -, a pagar ou a mandar pagar a terceiro (beneficiário ) uma quantia determinada, à vista, ou na data ou datas estipuladas; sob a condição de o beneficiário lhe entregar os documentos exigidos (representativos de mercadoria comprada pelo ordenador ao beneficiário e outros).
Ao compromisso do banco emitente, quando irrevogável, pode juntar-se o compromisso de outro banco, o banco confirmador, a confirmar o crédito documentário. Neste caso, o banco confirmador, também por um seu negócio jurídico unilateral, - a carta de confirmação - , obriga-se perante o beneficiário em termos idênticos aos do banco emitente.
O contrato de abertura de crédito documentário é atípico sendo ao abrigo do princípio da liberdade contratual, consagrado no nosso Código Civil no art. 405º, que se procede à sua celebração.
A Câmara de Comércio Internacional compilou e organizou as regras pertinentes, geralmente aceites no comércio jurídico internacional, sob a designação já aludida supra "Regras e Usos Uniformes relativos aos Créditos Documentários".
As partes, ao celebrarem uma abertura de crédito, fazem-no com expressa referência a estas regras integrando-as no contrato tendo sido o que ocorreu na espécie sub judicio em que o crédito documentário foi acordado com referência à última edição então publicada, a do ano de 1993, fotocopiada nos autos de fls. 14 a 42.
Quando irrevogável, o crédito documentário obriga o emitente para com o beneficiário, em termos "firmes", isto é, que não podem ser rompidos ainda que o ordenador, como mandante, queira instruir o banco emitente (ou o emitente e o confirmador seu submandatário) no sentido de não pagar (ou de não pagarem).
Por isto, o crédito documentário irrevogável constitui uma garantia "firme" de pagamento a favor do beneficiário.
Esta garantia é autónoma em relação ao contrato subjacente celebrado entre o ordenador e o beneficiário - arts. 3º e 4º das "RUU".
Além disso, a garantia apresenta a característica da literalidade pois que só vale o que está consignado nas cartas de crédito e confirmação ou acreditivos que são a forma pela qual a garantia é concedida.
Há que considerar, nesta operação, várias relações jurídicas.
Em primeiro lugar, temos a relação jurídica subjacente, em regra um contrato de compra e venda de mercadorias, celebrado entre pessoas situadas em diferentes países, no qual se insere a cláusula de o pagamento do preço ser feito com recurso a crédito documentário, podendo ser irrevogável e confirmado.
Em segundo lugar, um contrato, geralmente caracterizado como sendo de mandato sem representação ou de prestação de serviços, mediante o qual o comprador, devedor do preço, agora como mandante, encarrega um banco como mandatário de praticar certos actos jurídicos ou de lhe prestar certos serviços já acima caracterizados quanto à modalidade que na espécie importa considerar, o que o banco aceita.
Sendo o mandato conferido para a abertura de crédito irrevogável, o mandato é ele próprio irrevogável, salvo justa causa, visto que conferido também no interesse de um terceiro, no caso a ....... Co. Ldª, com quem o mandante, a requerente, havia celebrado o contrato de compra e venda que constitui a relação jurídica subjacente - art. 1170º nº 2, do C.Civil e 10º d), das "RUU" que no caso de denuncia pode incorrer em responsabilidade nos termos do art. 1172º do Código Civil.
Em terceiro lugar, temos o negócio jurídico unilateral praticado pelo banco, o da abertura do crédito documentário, mediante o qual o banco emitente, agindo em seu próprio nome, assume perante o beneficiário, na espécie que nos interessa do crédito documentário irrevogável, o compromisso firme de lhe efectuar o pagamento nas condições estipuladas na carta de crédito, contra documentos (e não a simples interpelação, como na garantia autónoma) - art. 10º, a) das "RUU".
Em quarto lugar, no caso de confirmação, temos a celebração de um contrato (melhor de subcontrato), de natureza idêntica ao acima apontado em segundo lugar, mediante o qual o banco emitente pede e encarrega outro banco (da praça do beneficiário, em regra situada noutro país) não apenas de notificar o beneficiário e (ou) de proceder ao pagamento mas de ele próprio juntar ao compromisso do emitente o seu próprio compromisso firme, irrevogável, de efectuar o pagamento (isto sempre na modalidade de crédito documentário a que nos vimos referindo) ao beneficiário nas condições da carta de crédito, e este segundo banco aceita.
A respeito deste contrato de mandato vale, "mutatis mutandis", o que acima se escreveu acerca da irrevogabilidade.
Em quinto lugar, temos o negócio jurídico unilateral deste segundo banco, agora banco confirmador, mediante o qual, agindo em seu próprio nome, este assume perante o beneficiário o compromisso firme de lhe efectuar o pagamento nas condições estipuladas, (art. 10º, al. b), das RUU) com emissão de uma carta de garantia.
A partir deste último momento, o beneficiário, além do seu direito de crédito do preço, como vendedor, na relação subjacente, tem a seu favor uma garantia constituída por uma obrigação disjunta, de quantia autónoma, irrevogável, assumida pessoal e directamente perante si, pelos bancos emitente e confirmador.
Estas obrigações dos bancos emitente e confirmador não são de pagamento do preço mas sim de cumprimento da garantia, da obrigação que surge com a abertura do crédito e a confirmação.
Em regra, o beneficiário dirigir-se-á ao banco confirmador a solicitar o pagamento pois que é o devedor da sua praça e confiança; aliás é para isso mesmo que no contrato subjacente se faz inserir a cláusula do pagamento por crédito documentário confirmado.
Quando seja o banco confirmador a satisfazer o crédito ao beneficiário, além de se extinguirem as restantes obrigações (a do banco emitente e a do ordenador) para com o beneficiário, nasce a obrigação de o banco emitente compensar o banco confirmador, como já se referiu supra.
Esta obrigação resulta directamente do disposto nos arts. 11º, al. d), e 16º, al. a), das "RUU".
"Ao (…) autorizar ou convidar um Banco a juntar a sua confirmação, o Banco emitente autoriza tal Banco a pagar (…) e compromete-se a reembolsar tal banco (…)" (art. 11º, d), das "RUU").
"Se um Banco para tal autorizado, efectuar um pagamento, ou se se comprometer a efectuar um pagamento diferido, (…) a parte que deu esta autorização deve reembolsar o Banco que tenha efectuado o pagamento ou se tenha comprometido a efectuar um pagamento diferido (…)" (art. 16º, a), das "RUU").
Os compromissos assumidos por uma carta de crédito irrevogável e confirmada só podem ser alterados ou anulados com o acordo dos dois bancos (emitente e confirmador) e do beneficiário - art. 10º, d), das "RUU".
Expostas as considerações legais e conceituais importa desde logo como primeira questão saber se perante um contrato estruturado nos aludidos termos é possível ao dador da ordem recorrer a qualquer das providências especificas legais do nosso ordenamento processual ou na eventualidade de nenhuma delas perfectibilizar os requisitos da tutela da sua pretensão recorrer, como o fez, à não especificada -procedimento cautelar comum - por forma a impedir ou sustar bem como solicitar a decretação judicial de abstenção de pagamento relativamente ao requerido.
E questiona-se como o faz o agravante porque como se afirma no artigo 3º al. a) “ os créditos são pela sua natureza distintos das vendas ou outros contratos em que se possam basear” bem como ainda ex vi artigo 9º al. a) que refere que : “ um crédito irrevogável constitui para o Banco emitente, desde que os documentos estipulados sejam apresentados ao banco designado ou ao banco emitente e respeitados os termos e condições de crédito, um compromisso firme”, no caso concreto de pagar na data de vencimento determinada de acordo com as condições.
Em suma poria a sua utilização em causa o principio da autonomia da garantia na medida em que por tal via se tornariam oponíveis as excepções da relação principal.
Apesar de tal regime jurídico é admitido, quer na doutrina, quer na jurisprudência internacional, que o ordenador no caso pode ter em seu poder prova liquida e inequívoca de fraude manifesta ou abuso evidente do beneficiário e consequentemente permite-se recorrer a procedimento cautelar destinado a impedir os garantes ( banco emitente e ordenador) de pagar ou o beneficiário receber. [ Cfr. neste sentido Ac. do STJ de 17/4/97 in CJ-STJ Vol. II-53 e ainda na Doutrina Francisco Cortez “ A garantia bancária autónoma” in Rev. Ordem dos Advogados 1992 tomo 2, pág. 595 a 604 e na mesma Rev. 1992 Jorge Duarte Pinheiro “ Garantia bancária autónoma” pág. 417
O Prof. Galvão Teles in “Garantia bancária autónoma” pág. 289-290 afirma que o banco pode recusar o pagamento no caso de o beneficiário, ao reclamar o pagamento, agir em desconformidade com os termos do título de garantia ou proceder com manifesta má-fé esclarecendo que é aquela que não oferece “a menor dúvida por decorrer em absoluta segurança de prova documental em poder do banco”.
Os Professores Almeida Costa e Pinto Monteiro [“ Garantias Bancárias” pág 20] igualmente defendem que o banco pode recusar-se a pagar a garantia “ em caso de fraude manifesta, de abuso evidente por parte do beneficiário ou seja quando forem inequívocos “ igualmente referindo que se o contrato ofender a ordem pública ou os bons costumes a ilicitude da causa acarreta a nulidade da garantia.
Por último o Prof. Ferrer Correia in “Notas para o estudo da garantia bancária” afirma que “valerão sempre ao garante os princípios gerais da boa fé e do abuso de direito” ainda que relativamente a este último com limitações.
Assim a afirmação contida nas alegações do agravante de que permitir-se ao ordenante a aplicação das regras gerais - utilização de providência - seria um acto abusivo de venire contra factum proprium, porque aquele sabia que estaria a requerer a assunção dum compromisso, só afastável em situações excepcionais, precisamente aquelas em que é possível identificar um acto de execução abusiva do beneficiário, ou de “pactum de non petendo”, (clausula expressa ou implícita no contrato de mandato, pela qual, o dador da ordem renuncia previamente a medidas cautelares ) não pode colher, pois teria sempre que ceder perante a fraude ou o abuso e ainda, igualmente, porque a mesma seria nula por contrária à ordem pública [Ver Decisão do Tribunal de apelação de Paris referido por Simões Patricio ob. Cit. 708].
“ Há princípios cogentes de todo e qualquer ordenamento jurídico, que devem ser respeitados, não podendo as garantias bancárias violarem grosseiramente os referidos princípios” princípios gerais que não podem deixar de ser os da “boa-fé e do abuso de direito” (Almeida Costa e Pinto Monteiro in Ob. Cit. pág. 32), encontrando-se no Direito comparado o fundamento positivo da excepção do garante “na boa-fé, nos usos honestos do comércio, abuso de direito, na “exceptio doli” ou na regra “fraus omnia corrumpit” da teoria dos deveres de protecção a favor de terceiros” [Simões P atricio “ Preliminares sobre a garantia on first demand “ R.AO.Vol. III- 709]
Assim, uma conclusão se tem de extrair, em face de tudo quanto vem de ser exposto, é que, o principio da autonomia de tal tipo de contrato não se coaduna em principio com o deferimento de providências cautelares senão em situações excepcionais, decalcadas dos casos de recusa legitima de pagamento, mas mesmo assim, todavia, contrariamente ao alegado pelo agravante, são admissíveis.
Defende-se também na doutrina que só quando há prova liquida do perigo de solicitação fraudulenta ou abuso de garantia é que se poderá fazer uso de tal meio processual.
Importa referir que estamos em sede de procedimento cautelar em que a nossa lei processual se contenta com a sumaria cognitio e que a este nível se demonstrou a facticidade retratada supra nos nº 8 e 9, isto é, que o aludido documento licença de exportação, ainda que não conste do elenco enunciado do crédito documentário celebrado, todavia, por força das regras do comércio internacional, e designadamente, tendo em consideração os países a que respeitam, Portugal e Tailândia, nas ordens económicas respectivas da União Europeia e outro que não a integra, o aludido documento é imprescindível, necessário e insusbstituível para que se possa obter o desalfandegamento da mercadoria, objecto do contrato subjacente, que o crédito documentário garante, ou seja, para que a mesma possa ser entregue ao seu adquirente, o ordenador, para posteriormente poder ser lançada no mercado nacional, sob pena de devolução, como se alude no documento junto aos autos a fls. 116.
Ora, tal documento, é inequívoco, apenas pode ser obtido pelo beneficiário, na Tailândia, facto que é conhecimento do banco emitente, bem como, que o mesmo se não disporá a enviá-lo, o que se evidencia, abusiva e manifestamente, lesivo da posição contratual assumida pela requerente.
Sobre o conceito de fraude manifesta entende-se hoje, conforme é referido na jurisprudência alemã, que “existe quando o recurso à garantia viola de forma evidente o equilíbrio de interesses efectivado pela operação comercial entre o mandante e o beneficiário” isto é, quando a interpelação do beneficiário for contrária ao equilíbrio da relação jurídica principal que a obrigação do garante visa garantir, o que in casu se evidencia (fumus boni iuris ) dado que, proceder ao pagamento de algo que não pode, em virtude do contrato inicial de compra e venda, entrar na esfera jurídica do adquirente, e que lhe não é imputável, mas sim ao próprio beneficiário, pelo menos de forma indiciária, facto que é do conhecimento inequívoco do garante e oponível por virtude da relação estabelecida com o banco indicado da residência do beneficiário, é na verdade, elemento bastante para se determinar e qualificar, além do mais, como abuso de direito em conformidade com o disposto n o art. 334º do Código Civil e contrário à boa-fé que deve impor-se na regras de comercio internacional.
Estão pois reunidos in casu os pressupostos determinantes da decretação do procedimento cautelar requerido na forma correspondente à tutela do invocado direito da requerente adequado a assegurar a efectividade do mesmo obstando ao risco de lesão que se encontra demonstrado improcedendo as conclusões do agravante.
Nestes termos decide-se negar provimento ao interposto recurso mantendo a decisão recorrida.
Custas pelo agravante.
Porto 12 de Dezembro de 2000
Augusto José Baptista Marques de Castilho
Maria Fernanda Pereira Soares
Manuel Gonçalves Vilar