Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0150255
Nº Convencional: JTRP00029284
Relator: COUTO PEREIRA
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
OBRAS
FALTA
LOCADOR
LOCATÁRIO
RENDA
PAGAMENTO
RESIDÊNCIA PERMANENTE
RECUSA
Nº do Documento: RP200104230150255
Data do Acordão: 04/23/2001
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: 3 J CIV V CONDE
Processo no Tribunal Recorrido: 366/98
Data Dec. Recorrida: 07/13/2000
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO.
Área Temática: DIR CIV - DIR CONTRAT.
Legislação Nacional: CCIV66 ART428 ART429 ART430 ART431 ART1031 B.
Sumário: Enquanto o locador não fizer as obras indispensáveis à habitabilidade do arrendado e de sua inteira responsabilidade, os locatários podem recusar quer o pagamento das rendas, quer a manutenção, aí, da sua residência permanente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

I.
No ..º Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Vila de Conde, Albino... e esposa intentaram contra Albino Ferreira..., a quem oportunamente foi concedido o benefício de apoio judiciário na modalidade de dispensa total de pagamento de preparos e custas, acção de despejo, sob a forma sumária (nº. .../..), pedindo a resolução do contrato de arrendamento celebrado em 1 de Janeiro de 1974, entre os AA. e RR., e a condenação destes a despejarem o locado deixando-o livre de pessoas e coisas, bem como ao pagamento das rendas vencidas no montante de esc. 20.000$00 e as vincendas desde Novembro até efectiva desocupação do locado.
Alegou, em síntese, que por contrato verbal celebrado com os RR. no dia 1 de Janeiro de 1974 deram de arrendamento o seu prédio urbano, sito na Rua..., nº. .., da freguesia de..., da comarca de Vila do Conde, inscrito na respectiva matriz urbana sob o artigo .... O contrato foi celebrado pelo prazo de um ano, renovável, mediante o pagamento de uma renda mensal, actualmente no valor de esc. 2.000$00, a pagar no primeiro dia útil do mês anterior ao que dissesse respeito, em casa do senhorio.
Sustentaram, para tanto, que tiveram conhecimento que desde há cerca de dois anos, os RR. têm o locado em manifesto estado de abandono, indo viver para Vilar do Pinheiro. Desde aquela data que os RR. não habitam o arrendado, nele deixando de dormir, de tomar as refeições e aí receber a correspondência, os seus familiares e amigos. Além disso, desde Fevereiro de 1998 que os RR. deixaram de pagar a renda.
Contestou o R., por excepção, com o fundamento na ilegitimidade passiva, já que a acção deveria ter sido proposta contra ambos os cônjuges, apenas assim ficando assegurada a legitimidade dos Réus. Por impugnação, alega que a sua mulher se mudou para a casa da mãe desta por ela se encontrar doente. No locado onda habita o Réu e o filho chove numa das dependências, não tem água, nem luz, não tendo, portanto, condições de habitabilidade. O Réu, no entanto, e o seu filho dormem no arrendado todas as noites, nele fazendo as suas vidas. Era usual os AA. deixarem acumular 3 meses de renda e pagarem depois as rendas todas juntas contra recebido. Entretanto fizeram o depósito das rendas em atraso acrescidas de 50% conforme a guia que juntaram aos autos.
Responderam os AA. à contestação impugnando a matéria fáctica alegada pelo Réu e referindo que o depósito efectuado não era liberatório já que não incluía todas as rendas em dívida desde Fevereiro a Outubro, e a que se venceu após aquela data até à contestação, acrescidas da correspondente indemnização.
Através de requerimento junto aos autos os AA. requereram a intervenção principal provocada da Ré, a qual foi admitida.
II.
Procedeu-se à realização de audiência preliminar na qual se considerou assente a matéria de facto aceite pelas partes ou provada documentalmente e incluiu-se na base instrutória os factos pertinentes à causa, da qual não houve reclamação.
Procedeu-se a julgamento com observância das formalidades legais e foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente, condenando os RR. a pagarem aos AA. as rendas em singelo, em dívida desde Fevereiro de 1998 até Outubro de 1998, bem como as posteriormente vencidas nos termos contratualmente definidos.
III.
Inconformada com a sentença, vieram os AA. interpor recurso de apelação e, para tal, formulou as seguintes conclusões:
1. Não tendo resultado provado, depois da audiência de discussão e julgamento, a factualidade em que se baseava a excepção da mora do credor, única excepção que os RR. invocaram especificadamente em sua defesa e, bem assim, não tendo o depósito efectuado das rendas em dívida até à contestação, o desejado carácter liberatório – tal muito bem considerou o julgador – é manifesto que se verifica a causa de resolução contratual prevista na alínea a) do art. 64º do RAU que a sentença deveria Ter reconhecido, sem mais, julgando procedente o pedido.
2. Ao entender verificar-se a excepção de não cumprimento do contrato, que não tinha sido invocada especificadamente em defesa pelos RR. – tal como obriga o art. 488º do CPC – o Mmo. Juiz “a quo” ocupou-se de uma questão que não tinha sido suscitada pelas partes e, cujo conhecimento, como tal, lhe estava vedado pela disposição do art. 660º, conjugada com a do nº. 3 do art. 3º, ambos do CPC.
3. A sentença em crise, porque conheceu de questão que não tinha sido submetida à sua apreciação, configurando uma verdadeira «decisão-surpresa», para a qual a outra parte não pôde sequer alegar factos e produzir prova em contrário, padece da nulidade prevista no art. 668º, nº. 1, al. d) do CPC que se invoca expressamente.
4. Sem prescindir: Não se verificam, sequer, os pressupostos factuais da excepção do não cumprimento, pois não ficou provado, após audiência de discussão e julgamento que os RR. Se encontrem privados (total ou parcialmente) do gozo do locado; Bem pelo contrário, ficou provado que lá habitam diariamente o filho dos RR. E o R. marido.
5. Acresce que muito menos ficou provado que tal hipotética privação fosse imputável ao senhorio.
6. Da matéria factual provada, nomeadamente de que o locado continua a ser utilizado para o seu fim habitacional, é manifesto que não se encontra incumprida a obrigação dos AA. De garantirem o gozo do locado, não podendo proceder a excepção de não cumprimento, por falta de verificação dos seus pressupostos factuais.
7. Também se não verificam, nos autos, os pressupostos legais daquela excepção, previstos no art. 428º do Cód. Civil, uma vez que as prestações de AA. e RR. têm prazos diferentes, não lhe sendo, por isso, aplicável aquele normativo.
8. A sentença violou o disposto no art. 428º do Cód. Civil.
Contra-alegaram os RR., pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
IV.
Colhidos os vistos cumpre decidir:
*
São os seguintes os factos provados:
1. Em 01 de Janeiro de 1974, os AA. deram de arrendamento aos Réus, por contrato escrito, o seu prédio urbano, sito na Rua...., nº. .., da freguesia de..., desta comarca, inscrito na respectiva matriz urbana sob o art. ... (cfr. al. A).
2. O arrendamento teve o seu início em 01.01.1974, e foi celebrado pelo prazo de um ano, renovável nos termos da lei, mediante o pagamento da renda acordada no primeiro dia útil do mês anterior ao que dissesse respeito, na casa do senhorio, destinando-se o locado à habitação exclusiva dos Réus e do seu agregado familiar.
3. A renda mensal vigente é actualmente, e por via das actualizações, de esc. 2.000$00 (cfr. al. C).
4. No dia 23 de Outubro de 1998, o Réu marido depositou na Caixa Geral de Depósitos o quantitativo de esc. 27.000$00, com a menção na guia que tal quantitativo se refere à renda de Fevereiro de 1998 e às rendas em atraso do arrendado, acrescidas de 50% (cfr. guia des. 20).
5. Em 5 de Novembro de 1998, o Réu marido depositou na Caixa Geral de Depósitos a quantia de 2.000$00, com a menção de que respeita à renda do mês de Novembro de 1998 (cfr. guia de fls. 22).
6. Mostram-se, do mesmo modo, depositadas as rendas relativas aos meses de Dezembro de 1998 (cfr. fls. 29); Janeiro de 1999 (cfr. fls. 31); Fevereiro (cfr. fls. 43); Março (cfr. fls. 46); Abril (cfr. fls. 54); Maio (cfr. fls. 55); Junho (cfr. fls. 56); Julho (cfr. fls. 59); Agosto (cfr. fls. 69); Setembro (cfr. fls. 70); Outubro (cfr. fls. 76); e Dezembro ao ano de 1999 (cfr. fls. 82); Janeiro do ano 2000 (cfr. fls. 83); Fevereiro (cfr. fls. 85); Março (cfr. fls. 90); Abril (cfr. fls. 91).
7. A Ré esposa, desde há cerca de dois anos a esta parte deixou de dormir no locado e de nele tomar as suas refeições para prestar auxílio aos seus pais que residem na freguesia de Vilar do Pinheiro, ainda que nele permanecessem o seu marido e um filho (cfr. respostas aos quesitos 1, 2 e 3).
8. Desde Fevereiro do ano de 1998, os Réus deixaram de pagar aos Autores as rendas respeitantes ao locado (cfr. resposta ao quesito 8).
9. A Ré mulher, há cerca de um ano para cá, tem vindo a dormir e a fazer as suas refeições em casa da mãe, situada em Vilar do Pinheiro, por esta Ter adoecido e não ter ninguém para cuidar dela (cfr. resposta ao quesito 8).
10. O Réu marido e o filho do casal continuam a residir no locado, no qual chove numa das dependências, não tendo água, nem luz eléctrica (cfr. resposta ao quesito 9).
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São as conclusões de recurso que, em princípio, delimitam o seu objecto – arts. 684º, nº. 3 e 690º, nº. 1 do CPC – e as questões que se colocam são:
- Nulidade da sentença – violação dos arts. 3º, nº. 3, 488º, 660º e 668º, nº. 1, al. d), todos do CPC; e
- Excepção do não cumprimento do contrato – violação do art. 428º do C. Civil.
1ª Questão
Da nulidade da sentença.
Alegam os recorrentes que o Sr. Juiz ao tomar conhecimento da excepção de não cumprimento se ocupou de uma questão que não tinha sido suscitada pelas partes e cujo conhecimento lhe estava vedado pela disposição do art. 660º, conjugada com a do nº. 3 do art. 3º, ambos do CPC.
Prescreve o nº. 2 do art. 660º, 2ª parte, que o Juiz não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
Contudo, resulta da Contestação, e dos factos dados como provados, que os apelados alegaram que chove numa das dependências do locado e não têm água nem luz.
É certo que não individualizaram tal matéria excepcional nem a qualificaram como tal, art. 488º do CPC.
Todavia, mesmo que não formulado o pedido de procedência de uma excepção deve a mesma ser conhecida se ela resulta dos factos. Como não se trata de excepção de conhecimento oficioso, o Tribunal pode tomar conhecimento dela uma vez que os Réus invocaram os factos e tanto basta. Assim, o Sr. Juiz bem andou ao atribuir-lhe os devidos efeitos uma vez que a intenção das partes não tem que ser explícita, sendo suficiente a sua exteriorização por estar de acordo com o interesse normal dos Réus. Neste sentido Ac. da RC de 11/4/89, CJ de 1989, Tomo II, pág. 69.
Quanto à qualificação de tais factos como excepção de não cumprimento esta compete ao Juiz. Assim, dispõe o art. 664º do CPC que o Juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à aplicação das regras de direito.
Também não violou a decisão recorrida o disposto no art. 3º, nº. 3 do CPC. O princípio do contraditório foi efectivamente respeitado porque os factos foram alegados na Contestação, articulado ao qual os Autores responderam a fls. 24 dos autos.
Alegam ainda os apelantes que a sentença ao conhecer de questão que não tinha sido submetida à sua apreciação, configurando uma verdadeira decisão-surpresa, para a qual a outra parte não pôde sequer alegar factos e produzir prova em contrário, padece da nulidade prevista no art. 668º, nº. 1, al. d) do CPC.
Dispõe este dispositivo legal que é nula a sentença quando o Juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. Pelo que ficou dito supra não estamos perante uma sentença nula. Os factos foram alegados pelos Réus, os Autores deduziram resposta à Contestação, os factos foram levados à Base Instrutória e dados como provados, logo o Juiz podia e devia deles ter tomado conhecimento.
Não têm, deste modo, razão os apelantes.
2ª Questão
Da excepção de não cumprimento.
Esta excepção traduz-se no direito que tem qualquer das partes de uma relação sinalagmática de recusar o cumprimento enquanto a outra não efectuar a prestação correspondente a que se encontra vinculada (Almeida Costa, RLJ Ano 119º, pág. 143.
A nossa lei disciplina o instituto a propósito dos contratos, arts. 428º a 431º do Código Civil.
Pressuposto expresso do nº. 1 do art. 428º do CC é o de que não existam prazos diferentes para o cumprimento das prestações. Esta exigência carece de interpretação exacta. Com efeito, o seu verdadeiro sentido reconduz-se à imposição de que o excepcionante não se encontre obrigado a cumprir antes da contraparte. Assim, a diversidade de prazos obsta à invocação da exceptio pela parte que primeiro tenha de efectuar a sua prestação, mas nada impede a outra de opô-la (Almeida Costa, loc. citado e Ac. do STJ de 19/11/71, BMJ 211 - 297).
No caso dos autos estamos perante o problema geral da aplicação da excepção de incumprimento nos contratos de execução continuada ou periódica.
E continua o ilustre professor mencionado que a exceptio opera sempre que exista correspectividade entre a prestação que o locador ou o locatário pretenda recusar e aquela cuja falta se invoca. Se o locatário ficar privado do gozo da coisa, no todo ou em parte, por facto imputável ao locador, pode ele suspender, numa medida proporcional, a sua contraprestação. A exceptio é, assim, uma causa justificativa do incumprimento. Mas, a boa-fé exige que, por um lado, a falta assuma relevo significativo e, por outro lado, que se observe a ideia de proporcionalidade ou adequação entre essa falta e a recusa do excipiente.
No sentido de que é admissível no contrato de locação o uso da excepção do não cumprimento veja-se o Acórdão desta Relação de 4/3/96, CJ, Tomo II, pág. 177. O que se exige é a existência de correspectividade entre a prestação que se pretende recusar e aquela cuja falta se invoca.
Na locação existe correspectividade entre as obrigações do senhorio de entregar ao locatário a coisa locada e de lhe assegurar o respectivo gozo, por um lado, e a obrigação de pagamento da renda, por outro. Assim, o arrendatário tem a faculdade de recusar o pagamento da renda enquanto o senhorio não cumprir a obrigação de lhe assegurar o gozo da coisa, desde que a falta assuma relevo significativo e que se observe a proporcionalidade e a adequação supra referidas.
No mesmo sentido o Ac. da RL de 6/4/95, CJ, Tomo II, pág. 111, que vai mais longe e prescreve que enquanto o locador não fizer as obras indispensáveis à habitabilidade do arrendado e de sua inteira responsabilidade os locatários podem recusar quer o pagamento das rendas, quer a manutenção, aí, da sua residência permanente.
Assim, como bem decidiu a sentença recorrida, “na outorga do contrato as partes acordaram que as instalações de água e de luz pertenciam ao senhorio e deveriam ser mantidas em bom estado (cfr. cláusula 6ª do documento de fls. 17) e as obras exteriores eram a cargo do senhorio (cláusula 4ª, in fine). Nos termos do art. 1031º, al. b) do Código Civil, ao locador compete assegurar o gozo da coisa locada para os fins a que ela se destina... Neste contexto, enquanto os AA. não procederem à realização das obras necessárias à reparação do telhado e à colocação ou recolocação da água e da luz no arrendado, os RR. estão a coberto de uma «exceptio non adimpleti contractus», havendo, portanto, «mora creditoris»”.
Não têm, também aqui, razão os apelantes.
Assim, face ao exposto, acorda-se em negar provimento à apelação, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas pelos apelantes.
Porto, 23 de Abril de 2001
Bernardino Cenão Couto Pereira
António Augusto Pinto dos Santos Carvalho
José Ferreira de Sousa