Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0554946
Nº Convencional: JTRP00038568
Relator: CUNHA BARBOSA
Descritores: ARBITRAMENTO DE REPARAÇÃO PROVISÓRIA
ACIDENTE DE VIAÇÃO
LESADO
Nº do Documento: RP200512050554946
Data do Acordão: 12/05/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: .
Sumário: Na providência cautelar de arbitramento de reparação provisória – sendo requerente pessoa lesada, em consequência de acidente de viação, que ficou a carecer da ajuda de terceira pessoa – não é de acolher a pretensão da requerida/seguradora em satisfazer essa prestação por si – ao invés de suportar o pagamento de renda mensal, inerente à contratação de pessoa que auxilie o lesado – por tal pretensão não se enquadrar no conceito de “restauração natural” a que a requerida estará sujeita, ao abrigo da obrigação provisória de indemnizar que, no contexto cautelar, sobre si impende.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam neste Tribunal da Relação do Porto:

1. Relatório:
No .º Juízo Cível/1.ª Secção do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, sob o nº ...../04.lTJPRT, B.......... instaurou providência cautelar de arbitramento para reparação provisória contra C.........., S.A., em que formula o seguinte requerimento:

«… a requerida ser condenada a pagar à requerente a renda mensal de € 573,86 (quinhentos e setenta e três euros e oitenta e seis cêntimos), a partir do dia 1 de Dezembro próximo, a título de reparação provisória do dano, …».

Fundamenta tal requerimento, alegando, em essência e síntese, que:
- No dia 30 de Maio de 2004, na .........., .........., ocorreu um acidente de viação em que intervieram o veículo automóvel de matrícula ..-..-JO, pertencente a ‘D.........., S.A.’ e conduzido por uma sua funcionária, e a requerente, que seguia a pé no referido local;
- O acidente consistiu no atropelamento da requerente e em virtude de a condutora do veículo ter procedido a uma manobra de marcha-atrás sem atentar na presença de pessoas ou viaturas na rectaguarda, em virtude do que foi embater na requerente que, nesse momento procedia à travessia da via pela parte de trás da viatura atropelante;
- Do acidente resultou para a requerente ‘fractura transtrocantérica direita’ (fractura do fémur direito), a que veio a ser assistida no Hospital ..........;
- A requerente, apesar da alta, passou a ter necessidade de assistência de uma terceira pessoa, para se vestir, despir e tratar dos cuidados de higiene, fazer todas as lides da casa (arrumar, lavar, limpar, cozinhar, ir às compras), que, até então e apesar da sua idade, fazia sozinha;
- O marido da requerente, com 87 anos de idade, está impossibilitado de ir às compras, cozinhar arrumar a casa ou fazer qualquer lide doméstica;
- Por isso, logo no mês de Junho de 2004, contratou uma empregada a quem passou a pagar, a título de remuneração por serviços prestados, a quantia € 473,86;
- A requerente remeteu à requerida o comprovativo de tal despesa, para esta, como vinha procedendo com outras despesas por aquela apresentadas, proceder ao pagamento daquela quantia, o que foi recusado com a informação de que o médico da seguradora havia considerado que a requerente já não necessitava da ajuda de terceira pessoa;
- A requerente aufere uma pensão de reforma no valor mensal de € 238,43;
- O rendimento médio mensal da requerente e marido é de € 880,00;
- Com a renda de casa, medicamentos, consultas médicas, tratamentos médicos, água, electricidade, telefone, transportes, alimentação e vestuário, a requerente não tem possibilidade de suportar o custo da remuneração a uma pessoa que lhe preste a assistência permanente.
Conclui pelo decretamento da providência.
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A requerida, após notificação para tanto, apresentou contestação em que alega, em essência e síntese, que:
- A requerente teve alta clínica, sem necessidade do auxílio de terceira pessoa, naquela mesma data, sendo que já antes do sinistro usava de canadianas para a auxiliar a caminhar;
- Se tal se mostrar necessário, a requerida opta por prestar directamente, através dos seus serviços, qualquer ajuda externa, em sua própria casa (da requerente), que a requerente demonstre ter necessidade.
Conclui pela improcedência da providência.
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Produzida a prova requerida, veio a ser elaborado despacho em que se proferiu a seguinte decisão:

«Pelo exposto, considera-se provada e procedente a presente providência cautelar de arbitramento para reparação provisória e, consequentemente, condena-se a requerida pagar à requerente a renda mensal de euros 573,86 (quinhentos e setenta e três euros e oitenta e seis cêntimos), a partir do dia 1 de Julho de 2005, a título de reparação provisória do dano».
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Não se conformando com tal decisão, dela a requerida interpôs o competente recurso de agravo e, tendo alegado, formulou as seguintes conclusões:
1ª - O tribunal recorrido condenou a agravante a pagar à agravada a renda mensal no valor de € 573,86 (quinhentos e setenta e três euros e setenta e seis cêntimos), mas mal, porquanto a agravante, na sua contestação, havia expressamente declarado que se tal fosse necessário ela própria prestaria esse auxílio;
2ª - Perante estas declaração e pedido, impunha-se ao tribunal decidir de acordo com o previsto no art. 566º/1 do CC, ou seja, devia o tribunal impor à agravante a obrigação de reparar provisoriamente, no caso, os danos da agravada de acordo, antes de mais, com o princípio da restauração natural, que se traduz na obrigação de reparar, numa obrigação de facere, ou seja, na obrigação de fazer aquilo que a agravada deixou de poder fazer;
3ª - O tribunal recorrido devia, pois, ter condenado aquela a prestar a assistência em causa conforme ela própria tinha aceitado fazer;
4ª - Por violar o citado princípio da restauração natural imposto pelo art. 566º do CC, e por se mostrar desnecessária para garantir a reparação provisória dos danos sofridos pela agravada, deverá concluir-se que a decisão em recurso violou aquele referido precito legal e ainda o disposto no art. 403º/2 do CPC, devendo, como tal, ser alterada por forma a condenar a agravante a prestar directamente, através dos seus serviços, e em casa da agravada a ajuda de que esta carece.
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A agravada apresentou contra-alegações em que, em essência e síntese, pugna pela manutenção do decidido.
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Mostram-se colhidos os vistos legais, cumprindo decidir.
Assim:
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2. Conhecendo do recurso (agravo):
2.1 – Dos factos assentes:
Não foi impugnada nem há lugar a qualquer alteração da matéria de facto, pelo que, nos termos do disposto no art. 713º, nº 6 do CPCivil, aplicável, no caso presente, por força do disposto no art. 749º do mesmo diploma legal, se remete para a decisão proferida pelo tribunal de 1ª instância e em que se fixou a matéria de facto provada.
2.2 – Dos fundamentos do recurso:
De acordo com as conclusões formuladas, as quais delimitam o âmbito do recurso – cfr arts. 684º, nº 3 e 690º do CPCivil, ter-se-á que a questão resolver é tão só a de saber se o tribunal podia fixar uma quantia em dinheiro, a título de reparação provisória, quando, tratando-se de serviços de assistência (doméstica e pessoal) à lesada, a obrigada à reparação se havia disposto a prestá-los directamente, pelos seus serviços, colocando á disposição daquela uma terceira pessoa.
Vejamos se assiste ou não razão à agravante.
Ora, como resulta da decisão sob recurso e as partes não questionam, a requerente/agravada, em consequência do acidente sofreu lesões que, apesar da alta clínica conferida, a impedem de realizar as tarefas de natureza doméstica e de cuidado pessoal, necessitando, para tanto, de uma terceira pessoa que lhe preste auxílio na realização das mesmas.
Com vista a colmatar tal necessidade e a título de reparação provisória, na decisão sob recurso condenou-se a agravante/requerida a satisfazer mensalmente à lesada (requerente/agravada) a quantia mensal de € 573,86 com vista a suportar ou minorar o custo que para esta resultaria da necessidade de contratação da mencionada terceira pessoa.
A agravante/requerida insurge-se contra tal decisão pretendendo que a mesma não teve em atenção a posição por si adoptada na contestação apresentada, para a hipótese de se vir a entender que havia lugar à prestação de serviços à lesada, isto é, de ela mesma se ter prontificado a prestar directamente tal assistência pelos seus serviços, através de uma terceira pessoa.
Fundamentando tal discordância, a agravante/requerida pretende que a prestação directa de assistência pelos seus serviços integra restauração natural, a que, prioritariamente e em função do disposto no art. 566º, nº 1 do CCivil, se encontra obrigada, pelo que a decisão sob recurso teria violado esta norma e o princípio da restauração natural nela consagrado.
Afigura-se-nos que, salvo o devido respeito, lhe não assistirá razão.
Efectivamente, no art. 566º, nº 1 do CCivil se dispõe que

«A indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor». (sublinhado nosso)

De tal normativo legal, sem dificuldade de monta, se haverá de concluir que o lesante se encontra obrigado, em primeira linha, a proceder à reconstituição natural, a qual só poderá ser arredada, fixando-se indemnização em dinheiro, no caso de não ser possível, não repare integralmente os danos ou se revele excessivamente onerosa para o devedor.
Assim, à primeira vista e sem questionarmos se a disponibilidade da agravante/requerente constitui ou não restauração natural, assistiria razão à agravante/requerente, uma vez que a fixação de indemnização em dinheiro, ainda que a título de reparação provisória, só seria susceptível de ocorrer perante a impossibilidade de reconstituição natural e nas situações referidas na segunda parte do normativo legal em causa.
Porém, a linearidade de tal raciocínio é afastada pelas circunstâncias do caso concreto, impondo-se que, antes de mais, se defina em que é que consiste a ‘reconstituição natural’, para, num momento posterior, averiguarmos se ela ocorre com a aceitação de prestação directa de serviços pela agravante/requerida.
A noção de ‘reconstituição natural’ haverá de colher-se no art. 562º do CCivil, onde se dispõe que

«Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação».

Neste normativo, como referem P. Lima e A. Varela [CCivil Anotado, vol. I, 4ª ed., nota 3 ao art. 562º, pág. 576], estabelece-se «… como princípio geral quanto à indemnização, o dever de se reconstituir a situação anterior à lesão, isto é, o dever de reposição das coisas no estado em que estariam, se não se tivesse produzido o dano (princípio da reposição natural)». (sublinhado nosso).
De forma bem mais esclarecedora, a propósito da noção do que seja ‘reconstituição natural’, afirma A. Varela [Das Obrigações em geral, vol. I, 9ª ed., pág. 933-934] que «O fim precípuo da lei nesta matéria é, por conseguinte, o de prover à directa remoção do dano real à custa do responsável, visto ser esse o meio mais eficaz de garantir o interesse capital da integridade das pessoas, dos bens ou dos direitos sobre estes. / Se o dano (real) consistiu na destruição ou no desaparecimento de certa coisa (veículo, quadro, jóia, etc.) ou em estragos nela produzidos, há que proceder à aquisição de uma coisa da mesma natureza e à sua entrega ao lesado, ou ao conserto, reparação, ou substituição da coisa por conta do agente. Se houve ferimentos ou doença em pessoas, haverá que curar da sua saúde, custeando o responsável as intervenções, tratamentos, internamentos, etc., a que haja lugar até ao restabelecimento do lesado. ...». (sublinhado nosso).
Daí que, no caso ‘sub judice’, a reconstituição natural consistirá em colocar a lesada (requerente/agravada) na situação de saúde em que (hipoteticamente) se encontraria caso não tivesse sido atropelada e padecido, em consequência do atropelamento, as lesões que lhe provocaram uma alteração no seu estado de saúde e a tornaram dependente de uma terceira pessoa para proceder às lides domésticas e ajudar na satisfação dos cuidados pessoais.
Por isso, a supra referida necessidade do auxílio de uma terceira pessoa, não se integrando directa e necessariamente na ‘reconstituição natural’ a que a lesante se encontra obrigada, constituirá um dano que ocorrerá enquanto se não verificar a reparação total da saúde e integridade da lesada, isto é, enquanto não ocorrer a cura das lesões para si resultantes do acidente em causa, repondo-se dessa forma a lesada na situação em que se encontrava antes do acidente (reconstituição natural).
Aliás, trata-se de um dano que, não acontecendo uma efectiva reposição natural, isto é, a reposição da integridade física (estado de saúde) da lesada na situação em que se encontraria se não tivesse ocorrido o acidente, poderá perdurar e determinar a fixação definitiva de uma indemnização em dinheiro.
Do exposto, crê-se poder afirmar que a ‘reconstituição natural’, a ocorrer no caso presente, afastará o dano cuja reparação provisória se pretende, não podendo, portanto, esta ser inserida, pelo menos e como já se deixou afirmado supra, de forma directa e necessária na restauração da integridade da lesada, tal como parece propugnar a agravante/requerida, antes se integrando no conjunto de danos que urge indemnizar até que aquela restauração ocorra.
Assim, não se integrando a ajuda de terceira pessoa na restauração natural da agravada/requerente, isto é, cura das lesões por ela padecidas em consequência do atropelamento, mas sim na reparação de um dano advindo de esta não ter ainda ocorrido, nada obsta a que a indemnização seja fixada em dinheiro.
Acresce que, no caso, tratando-se de prestação de serviços domésticos e cuidados pessoais, não será minimamente aconselhável que não seja a lesada a proceder à escolha e contratação da terceira pessoa que os há-de prestar, já que esta se introduzirá necessariamente na vida e domicílio privado da pessoa necessitada, devendo, por isso, merecer a sua plena confiança, o que exige que a contratação (escolha) seja por ela concretizada; a entender-se de outra forma, sempre se poderia introduzir um factor de instabilidade na reparação de tal dano, na medida em que podia vir a gerar-se uma situação de constante insatisfação da lesada perante a terceira pessoa colocada à sua disposição e, bem assim, dos serviços por ela prestados, dando lugar a constantes reclamações daquela perante a obrigada a reparar tal dano.
Diga-se, por último, que, a sufragar-se o entendimento da agravante, tornar-se-ia indescortinável a razão pela qual a terceira pessoa sendo escolhida pelo lesante havia de ser considerada ‘reconstituição natural’, enquanto que a ser escolhida pela lesada já o não seria, quando é certo que, no caso, à agravante se imporá tão só a remuneração de uma ou de outra.
Concluindo, em face de tudo quanto supra se deixou exposto, improcedem as razões invocadas pela agravante/requerida e, consequentemente, nenhuma censura merece a decisão recorrida, que deverá, por isso, manter-se.
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3. Decisão:
Nos termos supra expostos, acorda-se em:
a) - negar provimento ao agravo, mantendo-se a decisão recorrida;
b) - condenar a agravante nas custas do recurso.
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Porto, 5 de Dezembro de 2005
José da Cunha Barbosa
José Augusto Fernandes do Vale
António Manuel Martins Lopes