Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
18/05.7FABGC.P1
Nº Convencional: JTRP00042823
Relator: EDUARDA LOBO
Descritores: JOGO DE FORTUNA E AZAR
Nº do Documento: RP2009071518/05.7FABGC.P1
Data do Acordão: 07/15/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO - LIVRO 588 - FLS. 92.
Área Temática: .
Sumário: I - Apenas se podem considerar jogos de fortuna ou azar, integradores do crime de exploração ilícita de jogo, os enunciados no art. 4º do DL nº 422/89, de 2 de Dezembro.
II - Não desenvolve tema próprio dos jogos de fortuna ou azar a máquina que proporciona, mediante a introdução de uma moeda de € 1, a atribuição de brindes, previamente fixados em catálogo e mediante indicação, através de números ou letras, em senhas existentes nos invólucros proporcionados pela máquina.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 18/05.7FABGC.P1
1ª secção

Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto

I – RELATÓRIO

No Tribunal Judicial de Torre de Moncorvo, em processo comum com intervenção do tribunal singular, foram submetidos a julgamento os arguidos B………. e C………., tendo no final sido proferida sentença que decidiu absolver o arguido B………. e condenar o arguido C………. pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime exploração ilícita de jogo, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 1º, 3º, n.º 1, 4º e 108º, nºs. 1 e 2, todos do D.L. n.º 422/89, de 02 de Dezembro (Lei do Jogo), na redacção dada pelo D.L. n.º 10/95, de 19.01, que lhe era imputado pela acusação pública, na pena de 3 (três) meses de prisão, substituída por 90 (noventa) dias de multa à razão diária de € 4,00 (quatro euros) e na pena de 100 (cem) dias de multa, à mesma razão diária.
Inconformado com a referida decisão, dela veio o arguido C………. interpor o presente recurso, extraindo das respectivas motivações as seguintes conclusões:
1. A douta sentença recorrida, para além da absolvição de outro arguido, condenou o recorrente pela prática de um crime de exploração ilícita de jogo, da previsão do artº 108º nº1 do Dec-Lei nº 422/89, na redacção introduzida pelo Dec-Lei nº 10/95 de 19 de Janeiro, na pena de três meses de prisão, substituídos pela pena de multa de € 360,00 e na pena de 100 dias de multa à razão diária de € 4,00, num montante de € 400,00.
2. Para motivação da decisão de facto, fundamentou-se o tribunal a quo na prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento, no teor dos autos de notícia e apreensão de bens, termo de abertura de máquina de jogo (fls. 3 a 7), exame pericial de fls. 37 a 42, declarações dos arguidos e considerou para o enquadramento legal dos factos que, perante a descrição do modo de funcionamento da máquina apreendida nos autos, senhas que dão direito a prémios expostos em cartazes/expositores, o resultado do jogo em nada podia ser influenciado pelos respectivos jogadores, por isso mesmo, totalmente dependente da sorte do jogo, motivo pelo qual, segundo o tribunal a quo, o jogo por ela proporcionado, deve ser classificado como de fortuna ou azar. Mais deu o tribunal a quo por provado que “o arguido C………. sabia que não era permitido, por lei, explorar jogos do tipo acima descrito e assim obter vantagens pecuniárias, sem autorização ou licença para o efeito e que agiu livre, deliberada e conscientemente, sabendo que as referidas máquinas desenvolviam jogos de fortuna ou azar e que, nas condições descritas era proibida a sua exploração…”;
3. Atento o depoimento dos arguidos, em especial do arguido B………. (cfr. registo de declarações, de volta 4.16 até à volta 26.05 da cassete 1, lado A), que o tribunal julgou credível, resulta que não poderia ter sido dado por provado o ponto 5 da matéria de facto da douta sentença, nomeadamente que “…se o número ou letra corresponder, de acordo com o plano de prémios e brindes, a um objecto de valor económico superior ao valor introduzido, o jogador tem direito ao respectivo prémio, por exemplo, o copo grande. Caso o número ou a letra corresponda a um objecto de valor económico inferior ao valor introduzido, o jogador tem direito a um brinde, por exemplo, uma esferográfica”, uma vez que, na verdade, a caneca saía sempre àquele que adquirisse a última bola, independentemente do valor do objecto que constasse da referida bola, nada tendo a ver com o factor sorte ou com o valor económico do objecto que saísse na letra ou número inserta na última bola adquirida!!
4. Com o devido respeito e salvo melhor opinião, atenta a análise global e conjugada das declarações dos arguidos e de todas as testemunhas ouvidas em sede de audiência de julgamento [cfr. depoimento do arguido B………., registado a voltas 4.16 a 16.56 da cassete 1, lado A; declarações do arguido/recorrente, de voltas 4.16 até volta 26.05 da prova gravada, cassete 1, lado A; declarações da testemunha D………, depoimento gravado de voltas 011 a 099 da cassete 1, lado B (e não A, como certamente por lapso consta da acta de julgamento de 26.05.2008); depoimento da testemunha E………., depoimento gravado de voltas 100 a 345 da cassete 1, lado B; depoimento da testemunha F………., agente da Brigada Fiscal em Bragança, gravada de voltas 346 a 529 da cassete 1, lado B; depoimento da testemunha I………., gravado de volta 00 até volta 4.93 da cassete 2, lado A; depoimento da testemunha G………., gravado de volta 04.93 até volta 06.86 do lado A, cassete 2] entende o recorrente que decidiu mal o tribunal a quo, ao não considerar em pé de igualdade com o decidido relativamente ao arguido B………., que o arguido C………. agiu sem ter consciência da (alegada) ilicitude, ou seja, não deveria o tribunal a quo ter dado por provado que “… o arguido/recorrente agiu livre, deliberada e conscientemente, sabendo que as referidas máquinas desenvolviam jogos de fortuna ou azar e que, nas condições descritas, era proibida a sua exploração…”;
5. Apenas se podem considerar jogos de fortuna ou azar, integradores do crime de exploração de jogo ilícito previsto no artº 108º nº 1 do DL nº 422/89 de 19 de Janeiro, os enunciados no artº 4º do mesmo diploma;
6. Não se enquadra na al. g) do nº 1 deste último preceito a máquina (como a dos autos) que, mediante a introdução de uma moeda de € 1, proporciona a atribuição de brindes previamente fixados em catálogo, ou expostos em mostruário e indicados por número ou letra;
7. Só pode afirmar-se a verificação de um jogo de fortuna ou azar quando se está perante um acto de jogar fundamentalmente dependente da sorte e em que há total indefinição e desproporção entre aquilo que se arrisca e o resultado que se pode obter, o que não acontece in casu;
8. A máquina objecto dos autos não pagava directamente ou indirectamente prémios em fichas ou moedas nem desenvolvia temas próprios dos jogos de fortuna e azar (alíneas f) e g) do artº 4º do Dec-Lei nº 422/89, na redacção introduzida pelo Dec-Lei nº 10/95 de 19 de Janeiro), pelo que está excluída da tipologia própria dos jogos de fortuna ou azar, não preenchendo a conduta criminosa prevista pelo artº 108º da Lei do Jogo, pelo qual o recorrente vinha condenado;
9. Não estão pois preenchidos os elementos objectivo e subjectivo do crime previsto no artº 108º da Lei do Jogo, ao contrário do que foi entendimento da douta sentença recorrida;
10. Ao decidir pela condenação do arguido/recorrente relativamente ao crime de exploração de jogo de fortuna e azar, violou a douta sentença recorrida o princípio in dubio pro reo, consagrado no artº 32º nº 2 da CRP, bem como o disposto nos artºs. 1º, 4º nº 1 e 108º do Dec-Lei nº 422/89, na redacção introduzida pelo Dec-Lei nº 10/95, quando não interpretou correctamente os factos que lhe são subsumíveis e que levam a decisão inversa da proferida.
Conclui pela revogação da sentença e consequente absolvição do crime por que foi condenado.
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A Srª Procuradora-Adjunta na 1ª instância respondeu ao recurso, concluindo que o mesmo deve ser rejeitado, uma vez que o recorrente pretende discutir a valoração da prova, isto é, o princípio da livre apreciação da prova consagrado no artº 127º do C.P.P, sendo certo que a decisão recorrida se encontra suficientemente fundamentada, nomeadamente quanto aos pontos de discordância, sobressaindo da mesma um raciocínio lógico e coerente, de acordo com a experiência comum.
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Neste Tribunal da Relação, o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer concordante com a posição assumida pelo Mº Pº na 1ª instância, entendendo em suma que a lei não pretende que, em sede de recurso da matéria de facto, o tribunal superior aprecie todo o objecto do recurso, impondo que o recorrente especifique as provas que devem ser renovadas, com indicação dos factos que as mesmas visam esclarecer e as razões que justificam a sua renovação, o que o recorrente não fez.
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Cumprido o disposto no artº 417º nº 2 do C.P.P., não foi apresentada resposta.
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Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
A sentença recorrida considerou provada a seguinte matéria de facto:
1. No dia 11 de Agosto de 2005, pelas 16h, no decurso de uma acção de fiscalização encetada pela Brigada Fiscal da GNR, os agentes E………. e F………. dirigiram-se ao Café "H……….", sito na ………., em ………., nesta comarca o qual, à data, pertencia a B………. .
2. No referido estabelecimento encontrava-se uma máquina de jogos, que na parte frontal inferior da máquina extractora apresenta um mecanismo para introdução de moedas de €1,00 (um euro) e extracção de cápsulas ovais e um receptor de cápsulas extraídas. Na parte frontal superior constituída por acrílico transparente no qual está colado um documento onde consta "Sai sempre brinde" e um autocolante com os dizeres "sólo 1€", são visíveis, no seu interior, um número indeterminado de cápsulas ovais em plástico. No interior de cada cápsula existe uma senha que pode apresentar um número ou uma letra do alfabeto. 3. Na parte superior da máquina encontra-se uma fechadura que permite o acesso ao cofre onde ficam guardadas as moedas introduzidas, onde foram encontrados e posteriormente apreendidos à ordem dos autos €260,00 em moedas de 1€.
4. A acompanhar a referida máquina encontrava-se um cartaz alusivo aos clubes de futebol que, para além de outros dizeres, apresentava a inscrição "sai sempre um brinde". O cartaz que corresponde ao "Plano de Prémios e Brindes", continha diversos objectos, cabendo a cada um deles, uma letra de A a J, inclusive, ou um número de 1 a 10, inclusive. Para além destes objectos, no cartaz são ainda visíveis 3 copos de balão, de tamanho grande, com a inscrição "escolha o seu clube", o que na lógica do jogo significa que quem adquirir a última senha ganha por esse facto, o respectivo copo balão. Trata-se do prémio final.
5. Esta máquina desenvolve o jogo da seguinte forma: o jogador insere uma moeda de €1,00 na ranhura da máquina onde se encontra o mecanismo de introdução de moedas e, ao dar uma volta completa com o manípulo rotativo, situado no mesmo mecanismo, cai no receptor uma bola que contém no seu interior uma senha com um número ou uma letra. Se o número ou letra constante da senha corresponder, de acordo com o plano de prémios e brindes, a um objecto de valor económico superior ao valor introduzido, o jogador tem direito ao respectivo prémio, por exemplo, o copo grande. Caso o numero ou a letra corresponda a um objecto de valor económico inferior ao valor introduzido, o jogador tem direito a um brinde, por exemplo, uma esferográfica.
6. O referido jogo pertence ao arguido C………. que, mediante um acordo celebrado com o arguido B………., colocou as referidas máquinas no estabelecimento deste recebendo em troca uma percentagem que não logrou apurar-se.
7. No jogo em apreço a perícia do jogador não interfere no seu desempenho, ficando ao arbítrio da sorte a obtenção do prémio.
8. O arguido B………. não tinha autorização para explorar tal jogo no seu estabelecimento.
9. Sabia o arguido C………. que não era permitido, por lei, explorar jogos do tipo acima descrito e assim obter vantagens pecuniárias, sem autorização ou licença para o efeito.
10. O arguido C………. agiu livre, deliberada e conscientemente, sabendo que as referidas máquinas desenvolviam jogos de fortuna ou azar e que, nas condições descritas era proibida a sua exploração.
Mais considerou provado que:
11. O arguido B………. explora o café “H………”, há cerca de 8/9 anos, auferindo um rendimento mensal de €3.000,00.
12. Vive com a mãe e não comparticipa nas despesas domésticas.
13. Contraiu vários empréstimos o que importa o dispêndio da quantia mensal de cerca de € 2.000,00.
14. O arguido C………. é produtor agrícola, auferindo o rendimento mensal de €500,00.
15. Vive com a esposa, que é funcionária pública e aufere cerca de €600,00 mensais, e com dois filhos menores (de 2 e 11 anos de idade).
16. Vive em casa própria.
17. Contraiu um empréstimo pelo qual paga a mensalidade de €400,00.
18. O arguido C………. é tido pelos amigos como uma pessoa disponível para ajudar, sendo respeitado pelas pessoas do meio em que se encontra inserido.
19. É trabalhador e honesto.
20. O arguido C………. não tem antecedentes criminais.
21. O arguido B………. foi condenado por sentença proferida em 30.10.2001, no processo comum singular n.º ../01, do Tribunal Judicial de Torre de Moncorvo, pela prática de um crime de dano qualificado, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de 1.000$00.
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O tribunal recorrido considerou não provados os seguintes factos:
22. Que, o arguido B………. sabia que não era permitido, por lei, explorar jogos do tipo acima descrito e assim obter vantagens pecuniárias, sem autorização ou licença para o efeito.
23. Que, o arguido B………. agiu livre, deliberada e conscientemente, sabendo que as referidas máquinas desenvolviam jogos de fortuna ou azar e que, nas condições descritas era proibida a sua exploração.
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O tribunal recorrido motivou a decisão de facto nos seguintes termos:
O Tribunal formou a sua convicção com base na apreciação crítica do conjunto das provas examinadas e/ou produzidas em audiência de julgamento e com recurso a juízos de experiência comum.
Assim, atendeu-se, desde logo, ao teor dos autos de notícia e de apreensão de bem assim como ao termo de abertura de máquina de jogo, que esclarecem o dia, hora e local onde os factos ocorreram, o tipo de máquina apreendida e o dinheiro que se encontrava no interior da mesma (fls. 3 a 7). Além do mais, atendeu-se ao teor do relatório de exame pericial, de fls. 37 a 42, nomeadamente no que concerne ao tipo de máquina apreendida e ao modo de funcionamento do jogo.
Consideraram-se ainda as declarações do arguido B………., que afirmou de forma convicta desconhecer a ilegalidade do jogo, afirmando que o mesmo tinha sido colocado no estabelecimento comercial pelo arguido C………. e que teve a preocupação de lhe perguntar sobre a legalidade do jogo, tendo este garantido que a sua exploração era licita e que não necessitava de adquirir qualquer tipo de licença. Esta conversa foi presenciada pelo seu empregado I………. e por um cliente habitual, G………. . Disse também que porque conhecia o arguido C………. há 4/5 anos e porque a máquina não dava prémios em dinheiro acreditou que o jogo era legal. Mais referiu ter ficado acordado entre ambos que receberia uma percentagem dos rendimentos obtidos com a máquina mas que não se recorda com precisão se seria de 10%, 20% ou 25%. Embora já tenha ouvido falar de jogos de fortuna e de azar sempre pensou que se tratavam de máquinas que atribuíam prémios em dinheiro. Na altura em que foi fiscalizado pela G.N.R. contactou, por telemóvel e na presença dos agentes, o arguido C………. relatando-lhe o que estava a suceder, tendo aquele referido que iria levantar a máquina e que não havia qualquer problema. Segundo julga o arguido C………. sabia da ilegalidade do jogo, porque já estava habituado a lidar com este tipo de máquinas.
O arguido C………., por seu turno, admitiu ter sido ele quem colocou a máquina no café do arguido B………. e que a mesma pertencia a uma empresa denominada “J………”, da qual foi sócio até início do ano de 2008. Segundo o seu entendimento a máquina em causa nestes autos não era uma máquina de fortuna e de azar era uma máquina de venda de produtos. Instado sobre o que a seu modo de ver seria uma máquina de jogo de fortuna e azar referiu que são máquinas em que o jogador faz uma aposta e pode ganhar ou perder. Ao invés na máquina dos autos o jogador ganha sempre um prémio. Mais referiu que não se recorda se o arguido B………. lhe perguntou se era necessária licença para a exploração daquele jogo nem tão pouco se lhe telefonou no dia da acção de fiscalização. Porém, segundo pensa não há licença para estas máquinas. Disse também que acordou com o arguido B………. que a distribuição dos lucros era de 50% para cada um.
Foram ainda considerados os depoimentos das testemunhas E………. e F………., agentes da GNR da Brigada Fiscal de Bragança, que confirmaram a matéria constante da acusação e dada como provada, nomeadamente no que concerne ao que fizeram constar dos autos de notícia e de apreensão e bem assim como do termo de abertura de máquina de jogo de fls. 3 a 7. É de salientar o facto de ambas as testemunhas terem referido que, atenta a sua experiência em situações como a dos autos, ficaram com a impressão de que o arguido B………. desconhecia a ilegalidade do jogo em causa.
A testemunha D………., pai do arguido C………., esclareceu que já comercializou o mesmo tipo de máquinas que a dos autos e que, no seu entendimento, não se trata de um jogo ilegal porque a cápsula é visível e o cliente sabe sempre o prémio que sai.
A testemunha K………., por ser amigo próximo do arguido C………., depôs sobre os factos atinentes à sua personalidade e condição sócio-familiar.
As testemunhas de defesa I……… e G………., que depuseram com credibilidade, confirmaram o teor das declarações do arguido B………. no que toca à conversa mantida com o arguido C………. no dia em que este lhe entregou a máquina dos autos para exploração. Assim, referiram ter ouvido o arguido B………. perguntar ao arguido C………. se o jogo era legal tendo este respondido que não havia qualquer problema.
Quanto aos factos atinentes à situação pessoal, social e económica dos arguidos atendeu-se às declarações dos próprios, sem prejuízo do supra referido.
Quanto aos antecedentes criminais dos arguidos considerou-se os Certificados do Registo Criminal de fls. 143 e 154.
Em suma, coligida a prova o tribunal ficou com dúvidas sobre se o arguido B………. tinha efectivamente consciência da ilicitude da sua conduta quando aceitou explorar no seu café a máquina em causa nos autos. Veja-se para além das declarações deste, o depoimento dos agentes da brigada fiscal e das testemunhas de defesa, que foram no sentido do desconhecimento por este da ilegalidade do jogo em causa nos autos.
Já não assim no que se refere ao arguido C…….. que para além de se dedicar à distribuição de máquinas de jogo, nomeadamente do mesmo tipo da apreendida nos autos. Ou seja, sem embargo de ter tentado passar a ideia de que estava certo e seguro da legalidade do jogo em causa as suas declarações não se mostraram credíveis e nem foram corroboradas por qualquer outra prova.
Assim, quanto ao arguido B……… ficou instalada a dúvida no tribunal, o que tem necessariamente de ser valorada em seu abono. Pelo que perante tal cenário e sendo certo que em processo penal não merecem relevância palpites ou hipóteses, o Tribunal não ousou sair do referido estado de dúvida insuperável, razão pela qual, fazendo uso do princípio processual basilar do in dubio pro reo, considerou a factualidade pertinente (constante da acusação pública), como não provada.
Essa mesma conclusão impõe o princípio, com dignidade constitucional, da presunção de inocência do arguido (vide artigo 32º, nº2, da Constituição da República Portuguesa).
Nas palavras de Cavaleiro Ferreira, a certeza não está sempre ao alcance da inteligência humana, nem os meios de que se serve a justiça, os meios de prova, facultam, em todos os casos a possibilidade de a obter (Curso de Processo Penal, Vol. II, reimpressão, Lisboa, 1981, p.303).
E prossegue, em processo penal, a justiça perante a impossibilidade de uma certeza, encontra-se na alternativa de aceitar, com base em uma probabilidade ou possibilidade, o risco de absolver um culpado e o risco de condenar um inocente. A solução jurídica e moral só pode ser uma: deve aceitar o risco da absolvição do culpado e nunca o de condenação de um inocente (Curso de Processo Penal, Vol. I, 1986. p.216).
Como afirmava Pio XII, o juiz humano, antes de pronunciar a sentença judicial deve formar uma certeza moral que exclua toda a dúvida razoável e séria sobre o acto externo e a culpabilidade interna. Se apesar de todas as diligências permanece alguma dúvida importante e séria, nenhum juiz consciente pronunciará uma sentença de condenação (apud Cruz Bucho, Notas sobre o princípio “in dubio pro reo”, CEJ, comunicação apresentada em 06 de Maio de 1998, numa sessão de Direito Judiciário, subordinada ao tema “A produção e valoração da prova”).
No caso dos autos, por funcionamento do princípio processual do in dubio pro reo, não se conseguiu apurar o circunstancialismo concreto em que a conduta do arguido B………. se verificou, o que tem de ser tomado em abono do mesmo.
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III – O DIREITO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P.[2].
Assim, as questões suscitadas pelo recorrente prendem-se com a impugnação da matéria de facto provada, mais precisamente com o ponto 5 dos factos provados, para além do enquadramento jurídico-penal dos factos imputados ao arguido/recorrente.
O arguido foi condenado pela prática de um crime de exploração ilícita de jogo, conduta p. e p. pelo artigo 108º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de Dezembro, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 10/95, de 19 de Janeiro[3].
O crime de exploração ilícita de jogo, previsto no art. 108.º, n.º 1 do Dec.-Lei n.º 422/89, na redacção introduzida pelo Dec.-Lei n.º 10/95, designada por Lei do Jogo, pune “Quem, por qualquer forma, fizer a exploração ilícita de jogos de fortuna ou azar fora dos locais legalmente autorizados …”.
A definição legal de jogos de fortuna ou azar encontra-se no art. 1.º desta Lei do Jogo, considerando-se como tal “aqueles cujo resultado é contingente por assentar exclusiva ou fundamentalmente na sorte”.
Mediante este ilícito pretende-se acautelar a integridade das explorações dos jogos de fortuna e azar, circunscrevendo-as a zonas devidamente autorizadas.
Trata-se de um tipo totalmente aberto, cujo núcleo central corresponde a uma autêntica cláusula geral, que tem vindo a suscitar sérias dificuldades interpretativas, quando se pretende distinguir este ilícito criminal dos ilícitos contra-ordenacionais que correspondem a modalidades afins dos jogos de fortuna ou azar e outras formas de jogo quando estas não se encontrem autorizadas, da previsão do art. 159.º e 160.º.
Para o efeito, convém ter presente que neste art. 159.º, consideram-se como modalidades afins “as operações oferecidas ao público em que a esperança de ganho reside conjuntamente na sorte e perícia do jogador, ou somente na sorte, e que atribuem como prémios coisas com valor económico”.
Como se refere no Ac. desta Relação do Porto de 21.05.2008[4], a jurisprudência não tem sido uniforme ao estabelecer os critérios diferenciadores destes ilícitos criminal e contra-ordencional, os quais passariam:
a) pelo carácter totalmente aleatório do resultado, considerando-se como exploração ilícita de jogo de fortuna ou azar, partindo-se essencialmente da definição legal do art. 1.º, todo aquele que dependa essencialmente do acaso e da sorte do jogador, de modo que este não tem qualquer possibilidade de influenciar ou condicionar o correspondente resultado – Ac. R. E. de 1999/Out./12 [CJ IV/296], Ac. R. P. de 1995/Mai./24 [CJ III/259], 2000/Mar./13 [CJ I/249, II/244] e mais recentemente os de 2007/Fev./21, 2007/Set./26 e 2008/Fev./27;
b) pela natureza pecuniária dos prémios atribuídos, de modo que, atento o preceituado no art. 4.º, n.º 1, al. g) e 161.º, n.º 3, parte final, da Lei do Jogo, quando tais prémios consistissem em dinheiro ou em fichas convertíveis em moeda corrente, estar-se-ia perante um ilícito criminal, ao passo que se apenas houvesse a atribuição de prémios de outra natureza, já haveria um ilícito de mera ordenação social – Ac. da R. E. de 2007/Fev./13 [CJ I/258], R. L. de 2007/Fev./07, R. C. de 2008/Abr./09;
c) pelo tipo das operações oferecidas ao público, considerando-se como modalidades afins, atento o disposto no art. 159.º, n.º 1 e a enumeração exemplificativa do seu n.º 2, aquelas que correspondem a uma interpelação ou promoção directa junto do público, enquanto que no crime de jogo de fortuna ou azar este é colocado em estabelecimentos pré-determinados – Ac. R. Porto de 1997/Fev./05 [CJ I/249], 2000/Abr./26 [CJ II/240].
d) pela pré-determinação do subsequente prémio, considerando-se como modalidades afins aquelas operações em que o prémio está pré-fixado e se dirija a um número indeterminado de pessoas, pois caso contrário tratar-se-á de uma exploração ilícita de jogo de fortuna ou azar – Ac. R. E de 1990/Nov./06 [CJ V/276], Ac. R. L. de 1990/Nov./06 [CJ V/276] Ac. R. C de 2007/Mai./16;
e) pela temática do jogo ou pela natureza dos prémios, considerando-se crime a exploração de máquinas que desenvolvam temas próprios de jogos de fortuna ou azar, independentemente do pagamento de qualquer prémio ou então aquelas que não desenvolvendo jogos com esses temas atribuem prémios em dinheiro ou convertíveis em dinheiro, situando-se fora desta descrição as modalidades de jogo afins, ainda que o seu resultado dependa exclusiva ou fundamentalmente da sorte – Ac. R. L. de 2007/Out./10; Ac. STJ de 2007/Nov./28 [CJ III/256].
f) pela temática do jogo, considerando-se apenas como jogos de fortuna ou azar aqueles cuja exploração está reservada aos casinos, pelo que apenas haveria crime de exploração desses jogos quando os mesmos fossem efectuados fora das zonas concessionadas – Ac. R. L. de 2005/Out./26 [CJ IV/147].
Naturalmente que a estes posicionamentos não é estranha toda a evolução histórica do crime de exploração ilícita de jogo de fortuna ou azar, que no Código Penal de 1886, se encontrava tipificado nos arts. 265.º, e 266.º, sem que contudo se definisse o que se considerava como tal.
No primeiro punia-se “O que for achado, jogando jogo de fortuna ou azar, …”, enquanto no segundo seriam “Aqueles que em qualquer lugar derem tavolagem de jogo de fortuna ou azar, e os que forem encarregados da direcção do jogo, posto que o não exerçam habitualmente, e bem assim qualquer administrador, proposto ou agente, …”.
Todo o regime penal relativo aos jogos de fortuna ou azar foi revogado pelo Dec. n.º 14.643 de 1927/Dez./03, mais concretamente pelo seu art. 63.º, passando o regime de exploração de jogos de fortuna ou azar a ser regulado pelo Dec.-Lei n.º 48.912, de 1969/Mar./18.
Para o efeito, considerava-se no art. 1.º, deste último diploma, que “Denominam-se de fortuna ou azar os jogos cujos resultados são contingentes, por dependerem exclusivamente da sorte”, sendo a sua prática apenas “permitida nos casinos existentes nas zonas de jogo e nas épocas estabelecidas para o seu funcionamento” [n.º 2].
Por sua vez, modalidades afins seriam, segundo o subsequente art. 43.º, “As operações oferecidas ao público em que a esperança de ganho reside essencialmente na sorte …”, acrescentando-se no seu § 1 que “São especialmente abrangidos por este artigo as rifas, tômbolas, sorteios, assim como quaisquer máquinas automáticas cujo funcionamento não dependa da utilização, nem origine a atribuição de fichas e para cujos resultados não influa a perícia e, ainda, os concursos de publicidade, ou outros em que se verifique a atribuição de prémios.”
Assim, enquanto os jogos de fortuna ou azar se centram na exclusividade da sorte, as modalidades afins assentam essencialmente na sorte das “operações oferecidas ao público”.
O Dec.-Lei n.º 22/85, veio no entanto alterar este regime, modificando a redacção daquele § 1.º, do art. 43.º, restringindo o carácter exemplificativo das modalidades afins às “…rifas, tômbolas, sorteios e concursos de publicidade ou outros em que se verifique a atribuição de prémios”.
Tal alteração foi, a dado momento, abonada no seu preâmbulo do seguinte modo: “2. São muitas e sofisticadas as modalidades de máquinas automáticas, mecânicas, eléctricas ou electrónicas, que, embora não pagando directamente prémios em dinheiro ou em fichas, se têm revelado meios apropriados para a prática ilegal de jogos de fortuna ou azar, na medida em que favorecem a aposta de dinheiro sobre os créditos representados nas pontuações em que se traduzem os seus resultados, dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte. 3. A solução legal até agora adoptada, consistente na qualificação de tais máquinas como de diversão e na sua sujeição ao regime instituído para as máquinas de tipo flipper, tem-se revelado ineficaz para prevenir e reprimir o seu emprego na aludida prática de jogo ilícito.
4. Justifica-se, assim, a revisão do enquadramento legal daquelas máquinas, qualificando-se as mesmas como verdadeiros jogos de fortuna ou azar e, consequentemente, restringindo-se o seu uso aos casinos das zonas de jogo autorizadas. 5. Permanecem fora deste regime, embora sujeitas a uma regulamentação própria, as máquinas de mera diversão, cujos resultados, por dependerem exclusiva ou fundamentalmente da perícia, como sucede com as do tipo flipper, não favorecem as apostas ilícitas.”
Mediante esta alteração e sem se proceder a qualquer modificação dos critérios operativos enunciados nos art. 1.º e 43.º, do Dec.-Lei n.º 48.912, teve-se o propósito explícito de passar-se a enquadrar como jogos de fortuna ou azar as máquinas automáticas, mecânicas, eléctricas ou electrónicas, que, embora não pagando directamente prémios em dinheiro ou em fichas, favorecem a aposta de dinheiro sobre os créditos representados nas pontuações em que se traduzem os seus resultados, dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte.
Nesta conformidade, o critério da exclusividade ou da essencialidade da sorte, deixou de ser distintivo entre os jogos de fortuna ou azar das suas modalidades afins, de modo que o posicionamento jurisprudencial enunciado em a) não pode ter qualquer sustentabilidade.
Por outro lado, podemos também daqui concluir que o legislador passou a dar prevalência, na descrição do tipo legal de crime, às exemplificações dos jogos de fortuna ou azar ou das suas modalidades afins, em detrimento das cláusulas gerais enunciativas daquele ilícito criminal.
Com o Dec.-Lei n.º 422/89, de 02/Dez., passou a instituir-se um novo quadro normativo que relativamente à definição do que seria o jogo de fortuna ou azar passou a ser essencialmente o mesmo.
E isto porque no seu art. 1.º, a que já fizemos referência, o jogo de fortuna ou azar continuava a consistir naquele cujo resultado é contingente por assentar exclusiva ou fundamentalmente na sorte, mantendo-se em vigor o capítulo VI do Decreto-Lei n.º 48912, de 18 de Março de 1969, com a redacção do § 1.º do artigo 43.º dada pelo artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 22/85, de 17/Jan. – para além do corpo do artigo 59.º e seus §§ 1.º e 2.º.
Este regime jurídico foi alterado com o Dec.-Lei n.º 10/95, de 19/Jan., em cujo preâmbulo se pode ler: “Neste contexto, tendo não só em conta essas mutações mas também a resposta que, em países de tradição cultural próxima da portuguesa, lhes vem sendo dada a nível legislativo, importa encontrar novas soluções que, não pondo em causa os interesses de ordem pública cuja tutela sempre foi assumida neste domínio, criem um enquadramento susceptível de melhorar as condições de exploração da actividade e de assegurar uma efectiva repressão das infracções, através do reforço da responsabilidade das concessionárias, dos seus administradores, trabalhadores e frequentadores. Por outro lado, opta-se por regular no âmbito do Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de Dezembro, a matéria relativa às modalidades afins dos jogos de fortuna ou azar, revogando-se assim por completo o Decreto-Lei n.º 48912, de 18 de Março de 1969, diploma onde tal matéria se encontra presentemente disciplinada, por razões que se prendem não tanto com a necessidade de alterar o regime vigente, cujas soluções se mantêm no essencial, mas antes com a conveniência de disciplinar unitariamente uma realidade próxima da que já é regulada pelo referido Decreto-Lei n.º 422/89”.
Convém, porém, precisar quais são as condutas que integram o crime de exploração ilícita de jogo, sob pena da sua indeterminabilidade poder violar o princípio da legalidade, violando-se assim o art. 29.º, n.º 1 da C. Rep. e o art. 1.º do Código Penal.
Tal questão já foi abordada no Ac. n.º 93/2001, do Tribunal Constitucional[5], onde se concluiu que “o eixo sintagmático por qualquer forma, contido no n.º 1 do art. 108.º, mesmo quando se entenda este artigo integrado pela definição de jogos de fortuna ou azar feita pelo artigo 1.º – não obstante a expressão adverbial fundamentalmente – respeita os parâmetros constitucionais do princípio da tipicidade, não se surpreendendo, …, qualquer imprevisibilidade, verificando-se uma subsunção à previsão normativa que retira sentido seja a uma interpretação extensiva seja, muito menos, a uma interpretação analógica”.
No entanto logo acrescenta, que “Com efeito, a exemplificação do art. 4.º integra a definição do tipo, apenas na medida em que os jogos referidos nas suas alíneas são, todos eles, subsumíveis ao conceito de jogos de fortuna ou azar, sem pôr em questão a determinação do tipo”.
Aqui chegados e perante a cláusula geral do art. 108.º, n.º 1, deverá a mesma ser integrada pelos exemplos-padrão dos jogos de fortuna ou azar do art. 4.º, surgindo os mesmos como sub-tipos orientadores daquele tipo legal de crime.
Só assim e perante o grau de ambiguidade daquele art. 108.º, n.º 1, é que se poderá observar o princípio da legalidade, aqui na vertente de “nullum crimen sine lege certa” segundo o qual todo o crime deve ser claro e preciso quanto às condutas aí anunciadas, adoptando-se uma interpretação constitucionalmente correctiva.
Nesta conformidade, apenas podemos considerar como jogos de fortuna ou azar, integradores do crime de exploração ilícita de jogo, os enunciados no catálogo do art. 4.º da Lei do Jogo.
No caso em apreço, apenas poderiam estar em causa, os jogos descritos nas als. f) e g), do n.º 1 do citado art. 4.º, da Lei do Jogo.
Para o efeito, importa que se trate de uma máquina, considerando-se como tal qualquer aparelho, automático, mecânico, eléctrico ou electrónico, não sendo integrável neste conceito os painéis expositores de produtos, como é o caso daqueles que correspondem à exposição de chocolates ou cujos brindes estejam aí fixados.
Por sua vez, o funcionamento desse aparelho, enquanto jogo de fortuna ou azar, deverá corresponder a um acto de jogar fundamentalmente dependente da sorte, em que existe uma total indefinição e desproporção entre aquilo que se arrisca e o resultado que se pode vir a obter (prémio).
No que concerne à máquina referenciada na al. f) o seu prémio deverá corresponder a moedas ou a fichas que possam ser cambiadas por dinheiro, o que não se verifica no caso em apreço, como facilmente resulta da matéria de facto provada.
Relativamente à máquina descrita sob a al. b), a mesma deverá desenvolver um tema próprio dos jogos de fortuna ou azar ou seja, deverá corresponder a um acto de jogar, tal como o definimos anteriormente.
Como se pode constatar, através da descrição constante do relatório pericial de fls. 37 a 42, a máquina aqui em causa, que proporciona, mediante a introdução de uma moeda de 1 €, a atribuição de brindes, previamente fixados em catálogo e mediante indicação, por número ou letras, constante nas senhas existentes nos invólucros proporcionados por esse aparelho, quase que se assemelha ou se situa no mesmo plano de uma tômbola ou mesmo de uma rifa, pelo que o seu funcionamento não traduz qualquer acto de jogar, no sentido de que não representa tema próprio dos jogos de fortuna ou azar, sendo antes uma modalidade afim destes jogos.
Aliás e para sermos mais impressivos, podemos afirmar que este tipo de máquinas não tem qualquer correspondência com nenhuma existente nos casinos, antes pelo contrário.
A intenção do legislador, passa pelo entendimento de se considerar que os jogos que dependem essencialmente do acaso e da sorte do jogador, são aqueles em que este não tem qualquer possibilidade de influenciar ou condicionar o resultado do respectivo jogo.
Poder-se-á definir um jogo de fortuna ou azar como aquele em que o domínio de um evento desencadeado ou induzido pela acção humana escapa à capacidade de controle e de previsão muito provável de que a uma causa sucede um determinado efeito desde que cumpridos e induzidos factores certos e conjugados. Isto é, a uma causa objectivamente estruturada com factores e elementos pré-determinados e empiristicamente testados não se segue necessária e inevitavelmente o efeito pretendido e motivado.
A conceptualização bipolar utilizada pelo legislador, “fortuna ou azar”, colhe o seu fio identificador e a argamassa uniformizadora dos conceitos na definição de acaso. Afinal tanto para a fortuna como para o azar experienciados na álea do jogo intervém o factor acaso ou uma probabilidade indeterminada e não controlada da parte de quem introduz o elemento desencadeador, no caso das máquinas utilizados neste tipo de jogos, uma moeda ou peça equivalente.
Retomando o caso que nos ocupa, e considerando a matéria de facto que o tribunal recorrido considerou provada, verifica-se que, introduzida uma moeda com o valor facial de 1 (um) euro a máquina retribui sempre o agente com “uma senha contendo um determinado número, a que corresponde um prémio retratado no cartaz onde estão numerados e exibidos todos os prémios existentes, obtendo, assim, o jogador, sempre que joga, um prémio de valor económico”. A máquina desenvolve um mecanismo de retribuição, em espécie, correspondente, ou não, ao valor da moeda introduzida. Isto é, confere sempre um prémio, que só varia em função do número contido na cápsula que é expelida pela máquina.
Poder-se-á questionar se o valor do prémio é correspondente ao valor da moeda introduzida. Certamente não será. Mas não é questionável que a máquina corresponde com uma retribuição constante ao estímulo ou impulso desencadeador do jogo. A incerteza no resultado ou na obtenção de um prémio aleatório, no sentido de descontinuado e ponteado de hiatos no desenvolvimento normal do jogo, e com uma distribuição aleatória não compõe a característica estrutural da máquina em questão. A máquina é constante e contínua na atribuição de um prémio, ou como se diria na gíria “sai sempre”. Esta continuidade na atribuição de um prémio, apenas variando a qualidade e a natureza do mesmo, retira à máquina apreendida a natureza de “fortuna e azar”, tal como, em nossa opinião, deve ser interpretado o conceito ínsito no artigo 1º do Decreto Lei nº 422/89, de 2.12.
Como se refere no Ac.R.Coimbra de 16.05.2007[6], não ressalta da matéria de facto provada a existência de uma factor contingente ou aleatório, isto é, algo de incontrolável pela verificação de um evento ocasional, imprevisto e fora do controle da vontade do jogador. A máquina não está programada para aleatoriamente, isto é, de forma não prevista e controlada atribuir ao jogador um prémio incerto e imprevisto, antes quando posta em funcionamento confere ao agente um resultado certo, apenas variável em razão da qualidade.
Porque assim, concluímos pela falta do elemento “acaso” definidor dos jogos de fortuna ou azar, para considerarmos que as máquinas em questão não desenvolvem jogos em que esteja involucrada uma componente de fortuna ou azar.
Por outro lado, há que considerar que uma máquina é todo o dispositivo mecânico ou orgânico que executa ou ajuda no desempenho das tarefas precisando para isso de uma fonte de energia, podendo ser divididas em automáticas e não-automáticas ou manuais: as máquinas não automáticas ou manuais são todas as máquinas que precisam da energia do operador para executar o trabalho.
As máquinas de jogos de fortuna ou azar exploradas nos casinos são máquinas automáticas, como resulta da Portaria n.º 817/2005.
Passando agora à análise dos factos constantes da acusação, tendo por base as considerações supra tecidas, verifica-se que, salvo o devido respeito por opinião diversa, a máquina descrita na acusação não se enquadra no conceito de máquina automática.
Com efeito, trata-se de uma máquina em que o jogador introduz uma moeda na ranhura própria, roda o manípulo no sentido dos ponteiros do relógio, sai uma bola plástica, contendo no seu interior uma senha, sendo cada senha corresponde a um determinado prémio mencionado no plano de prémios, sendo que o resultado é independe da perícia do jogador.
Assim, o funcionamento da referida máquina depende apenas da energia do utilizador-jogador, aproximando-se mais das operações oferecidas ao público através de rifas, em que há um ou vários prémios previamente definidos, determinados ou “oferecidos”, a que concorre um número indeterminado de interessados., sendo certo que é sempre atribuído um prémio.
Além disso, a oferta de operações não carece de ser feita através de publicidade, podendo resultar da colocação do jogo em “lugar visível” de um qualquer estabelecimento comercial.
Convém ainda realçar que, exceptuados os casos de pura diversão – a incluir no conceito de “máquinas de diversão” ou de convívio pessoal, familiar ou social (ou seja, fora da esfera “pública”) – o que está em causa nos “jogos de fortuna ou azar” é a aposta, o ganho, o prémio. A perspectiva de, apostando pouco, ganhar muito. Por isso se chamam “jogos de fortuna ou azar”. Fortuna para o ganho (existência de prémio). Azar para a perda (ausência de prémio).
Não é, pois, compaginável um “jogo de fortuna ou azar” sem que se perspective a possibilidade de ganho. Este só tem significado se reportado à natureza do prémio. Sem o prémio não há apelo à aposta e ao jogo.
Quanto à natureza do prémio, verifica-se – e o relatório não põe em causa a sua existência e natureza – que são atribuíveis, sempre: esferográficas, copos, canecas, etc., sendo que a pessoa que viesse a extrair as últimas cápsulas, teria direito aos copos balão (prémio final), como se refere no relatório pericial a fls. 40.
Daqui resulta que o prémio tem valor económico, entendido este como o valor atribuível a um objecto pela generalidade das pessoas como correspondente a uma determinada utilidade, mesmo que subjectiva, e pode ser expresso em valor monetário correspondente.
Ou seja: apesar de o jogo em causa depender exclusivamente da sorte (consoante a senha que estivesse no interior da cápsula que viesse a sair - de que o “jogador” apenas tomava conhecimento quando abrisse a cápsula e procedesse à leitura da respectiva senha), o certo é que, também previamente, o jogador sabia que o prémio em espécie que iria receber era necessariamente um daqueles que estava exposto no cartaz (o que tornava relativa ou até afastava a contingência[7] do resultado, uma vez que havia sempre prémio em espécie, que era um dos que estava exposto no cartaz).
A única senha (que aqui pode ser classificada como “rifa”) que estava no interior da cápsula, que saía aleatoriamente, só tinha um número (portanto, nem cada cápsula tinha várias senhas, nem tinha várias séries de números como, por exemplo, sucede com outras cápsulas extraídas de diferentes máquinas, mas que ainda assim podem ser consideradas como “modalidades afins”[8]), correspondente a um dos prémios em espécie expostos no cartaz dos prémios.
Nem aquele “jogo” se assemelha ao promovido noutra espécie de máquinas que desenvolvem temas próprios dos jogos de fortuna ou azar (cf. art. 4 nº 1-g) do citado diploma legal), nem o prémio pago era em “fichas ou moedas” (cf. art. 4 nº 1-f) do mesmo diploma legal)[9].
Esse tipo de máquina e cartaz com exposição de prémios em espécie, bem como “jogo” que desenvolvia da forma descrita (uma forma que poderíamos classificar de “básica” e “simples”) - cujo resultado dependia exclusivamente da sorte nos termos acima indicados e não da perícia do jogador - como é claro não se integra em qualquer dos tipos de “jogos de fortuna ou azar” previstos no artigo 4º do cit. DL nº 422/89 (nem a qualquer deles se equipara).
Logo, por aí, se percebe que o “jogo” desenvolvido naquela máquina não pode ser classificado como “jogo de fortuna ou azar”, razão pela qual a sua exploração não é susceptível de integrar o crime imputado ao arguido, nem qualquer outro crime previsto na dita “Lei do Jogo”.
Considerando o seu modo de funcionamento, tipo de jogo e prémios que atribuía fácil (por nítido) se torna concluir que se está perante máquina que desenvolve uma “modalidade afim”, tal como definida no art. 163º nº 1, por referência aos arts. 159º, 160º nº 1 e 161º do cit. DL nº 422/89, pelo que a sua exploração nos moldes descritos na decisão recorrida, não integra a prática do crime imputado ao arguido.
Assim sendo, é manifesto que da matéria de facto provada se deverá retirar o facto constante do ponto 10, na parte em que refere que “(…) sabendo que as referidas máquinas desenvolviam jogos de fortuna ou azar e que, nas condições descritas era proibida a sua exploração”.
Conclui-se, assim que, fazendo apelo aos dois critérios distintivos atrás referidos, a natureza do prémio e a natureza do jogo, os factos praticados pelo arguido integram uma “modalidade afim de jogo de fortuna ou azar e outras formas de jogo”. Como tal corresponde a um ilícito contra-ordenacional, p. e p. pelo artigo 159º do Decreto-Lei n.º 422/89, de 02 de Dezembro.
*

Tendo chegado à conclusão de que a actividade ilícita do arguido consubstancia, não um crime, mas um ilícito de mera ordenação social, poder-se-ia pensar que o arguido deveria ser sancionado por essa infracção.
Acontece, porém, que o procedimento contra-ordenacional se encontra extinto por prescrição.
Na verdade, não excedendo o limite máximo da coima aplicável o valor previsto no n.º 1 do artigo 17º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, o prazo de prescrição do procedimento era de 1 ano (artigo 27º, alínea b), por referência ao n.º 1 do artigo 17º do referido diploma).
Ora, mesmo considerando as causas e prazos máximos da suspensão e os fundamentos e limites da interrupção da prescrição desse procedimento à luz da lei então vigente, interpretada de acordo com os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça n.º 6/2001 e n.º 2/2002, não se pode deixar de chegar à conclusão de que, atenta a data da prática dos factos, tal procedimento se encontra inexoravelmente extinto por prescrição, uma vez que o prazo máximo da prescrição corresponde a dois anos [um ano de prescrição + seis meses (metade daquele prazo) + seis meses (prazo máximo da suspensão)].
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*
IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogam a decisão recorrida, absolvendo o arguido/recorrente C………. do crime que lhe era imputado.
Sem custas.
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Porto, 15 de Julho de 2009
(Elaborado e revisto pela 1ª signatária)
Eduarda Maria de Pinto e Lobo
Manuel Joaquim Braz

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[1] Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).
[2] Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95.
[3] Diploma, entretanto, alterado pela Lei n.º 28/2004, de 16 de Julho, e pelo Decreto-Lei n.º 40/2005, de 2 de Dezembro.
[4] Relatado pelo Sr. Desemb. Joaquim Gomes, disponível em www.dgsi.pt e que aqui seguiremos de perto.
[5] Cfr. DR. II, de 05.06.2001.
[6] De que foi relator o Sr. Desemb. Gabriel Catarino, disponível em www.dgsi.pt
[7] Contingência entendida como “facto possível, mas incerto”.
[8] Ver, também, Ac. do STJ de 28/11/2007, proferido no processo nº 07P3186 (relatado pelo Sr. Cons. Henriques Gaspar), consultado em www.dgsi.pt.
[9] Ibidem.