Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0630901
Nº Convencional: JTRP00039116
Relator: DEOLINDA VARÃO
Descritores: REGISTO DA PROVA
DEFEITOS
NULIDADE
Nº do Documento: RP200604270630901
Data do Acordão: 04/27/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: ANULADA A SENTENÇA.
Indicações Eventuais: LIVRO 667 - FLS. 173.
Área Temática: .
Sumário: I- Omissão e/ou a imperceptibilidade do registo magnético dos depoimentos das testemunhas equivale à omissão de um acto que a lei prescreve e que tem influência no exame e na decisão da causa, na medida em que impede (ou, pelo menos, condiciona) o cumprimento do disposto no artº 690º-A do CPC. Produz, portanto, nulidade, face ao disposto no artº 201º, nº 1.
II- Essa nulidade está sujeita ao regime geral de arguição das nulidades previsto no artº 205º. Nos termos do nº 1 deste normativo, se a parte estiver presente, por si ou por mandatário, no momento em que foi cometida a nulidade, deve argui-la nesse acto; se não estiver, o prazo para a arguição conta-se a partir do dia em que, depois de cometida a nulidade, a parte interveio no processo, mas, neste último caso, só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou quando dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência.
III- Não é exigível ao mandatário que pretende impugnar a matéria de facto que proceda à audição das cassetes no prazo de 10 dias a contar da data em que as respectivas cópias lhe são entregues pelo Tribunal, pelo que o prazo de arguição da nulidade não começa a correr naquela data.
III- Além disso, como está em causa a impossibilidade de recurso, por motivo que não pode ser imputável às partes, a nulidade pode ser arguida nas próprias alegações de recurso, desde que não esteja demonstrada nos autos a data em que a parte teve conhecimento do conteúdo da gravação.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I.
B…… e mulher C….. deduziram oposição à execução por entrega de coisa certa que lhes move D…… .

Como fundamento, alegaram, em síntese, que parte do prédio por cuja entrega a exequente pugna, concretamente uma divisão destinada a corte de animais, não é sua propriedade nem foi abrangida pela escritura de partilhas que é título executivo. Tal divisão foi há muito adquirida por herança por antecessores do oponente marido, que lhes sucedeu no respectivo direito de propriedade, e na posse que sucessivamente tem mantido.
A exequente contestou, impugnando diversa factualidade e concluindo pela improcedência da oposição. Concretamente alegou que a utilização que o oponente marido e seus antecessores vêm fazendo do compartimento de corte em questão é baseada em comodato antigo e mera tolerância posterior.
Percorrida a tramitação normal, foi proferida sentença que julgou a oposição improcedente.

Inconformados, os executados interpuseram recurso, suscitando, nas suas conclusões, as seguintes questões:

1ª – Deficiência da gravação dos depoimentos das testemunhas.
2ª - Reapreciação da prova gravada que fundamentou as respostas aos quesitos 1º, 5º, 6º e 7º.
2ª - Procedência da oposição, face à matéria de facto provada.

A exequente contra-alegou, pugnando pela manutenção da sentença recorrida.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II.
A matéria de facto considerada provada pelo tribunal recorrido é a seguinte:

A exequente é titular da última inscrição de aquisição na CRP de Ribeira de Pena respeitante ao prédio urbano, composto de casa de habitação composta de rés-do-chão e 1.º andar, sito na freguesia de ….., concelho de Ribeira de Pena, com 61,92 m2 de superfície coberta, a confrontar a norte com caminho particular, a sul com E….., a nascente com F……, e a poente com G……, assim descrito na supra referida Conservatória sob o n.º 0296/090603, inscrito na matriz sob artigo 93º urbano. (A)
Por escritura pública de 14.11.01, exarada de fls. 9 a 12, do livro de notas para escrituras diversas n.º 86-D do Cartório Notarial de Vila Pouca de Aguiar, com certidão junta de fls. 13 a 26 dos autos principais, cujo conteúdo aqui se dá por reproduzido, H……, os oponentes, a exequente, I…… e marido, J……, intervindo ela por si e em representação de L……, M……, intervindo em representação de N…... e mulher, O……, e P……, invocando a qualidade de filhos, e respectivos cônjuges, de Q….., falecida em 25.09.1946, e de R…, que também usava o nome de R…….., falecido em 21.05.98, declararam nomeadamente adjudicar em partilhas à exequente um prédio urbano, denominado por casa de habitação composta de rés-do-chão e primeiro andar, sita na freguesia e lugar de ……, com 61,98 m2 de superfície coberta, a confrontar do norte com caminho particular, do sul com E……, do nascente com F……, e do poente com G……, não descrito na CRP, e inscrito na matriz predial sob o artº 93º. (B)
Os oponentes ocupam uma divisão destinada a arrumos e corte, situada por baixo do 1.º andar mencionado em A). (C)
Encontra-se inscrito na Repartição de Finanças do Concelho de Ribeira de Pena a favor de F……. como titular do rendimento, um prédio urbano, sito na freguesia de ……, composto de casa de habitação térrea de rés-do-chão, a confrontar a norte com caminho particular, a sul com E……., a nascente com o proprietário e outros herdeiros, e a poente com F……., com superfície coberta de 24,19 m2, inscrito sob o artº 92º, da matriz urbana. (D)
I…….. faleceu em 05.04.89, no estado de solteira. (E)
S…… faleceu em 28.08.52, no estado de viúva. (doc. de fls. 82)
T…….. faleceu em 18.10.92, no estado de solteiro. (doc. de fls. 83)
B……. é filho de T……. e de I…….. (doc. de fls. 84)
Antes da escritura referida em B), e durante mais de 40 e 50 anos até ao seu falecimento, R……. fruiu e utilizou o prédio aí referido, e permitiu a utilização por S……, depois por T……., e depois pelo oponente marido, do compartimento referido em C), agindo à vista de toda a gente, e na fé de exercer o correspondente direito de propriedade. (1º)
Em época anterior a 1937, existia em ….. uma casa com quinteiro interior, que abrangia os imóveis descritos em A) e D), e outros, incluindo o compartimento referido em C). (2º)
Em data anterior a 1937, F……. e S……., F……. e sua mulher E……. e seu marido, U……, e V…… e sua mulher, X……, acordaram oralmente entre si a divisão da casa referida no quesito 2º em quatro partes, para o que fizeram encerrar as portas de comunicação entre as partes da casa assim divididas, assegurando entradas autónomas para cada uma das partes para um quinteiro interior com acesso à via pública ou directamente para esta via pública. (3º)
Na sequência do acordo acima referido, S…… e F…… passaram a fruir uma das quatro partes da casa assim dividida, concretamente um compartimento que formava uma casa térrea de uma só divisão, que inscreveram na Repartição de Finanças no ano de 1937 sob o artº 92.º, e utilizavam também o compartimento descrito em C) para alojarem animais, com consentimento e por favor de T……, pessoa mencionada no quesito 3º. (4º)
Após o falecimento de S……, T….. e I……. passaram a fruir da casa térrea e da corte referidos no quesito 1º, até à sua morte, na convicção de serem proprietários da casa térrea e de actuarem a título de favor em relação à corte. (5º)
Após o falecimento de T…… e I……., os seus filhos acordaram verbalmente na partilha dos bens daqueles, tendo ficado estabelecido que o prédio e a corte referidos no quesito 1º seriam atribuídos ao oponente marido. (6º)
Após o acordo acima referido, os oponentes passaram a habitar a casa e a alojar os seus animais, curtir o esterco para os terrenos e guardar outros pertences na divisão referida em C), tudo fazendo na convicção de exercerem o correspondente direito de propriedade. (7º)
Por ocasião da escritura referida em B), os aí declarantes herdeiros chegaram a propor ao oponente marido a troca da corte referida em C) por uma horta que integrava a herança. (8º)
Desde o acordo referido no quesito 3º até à realização recente de obras pela exequente, o compartimento referido em C) esteve separado da divisão contígua, também situada debaixo do primeiro andar referido em A), por uma parede de pedra, que não permitia a passagem entre as duas divisões, mas que não estava edificada a toda a altura, deixando uma abertura entre a sua parte superior e o tecto, a todo o seu comprimento. (10º)
*
III.
O recurso é balizado pelas conclusões das alegações, estando vedado ao tribunal apreciar e conhecer de matérias que naquelas não se encontrem incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso (artºs 684º, nº 3 e 690º, nºs 1 e 3 do CPC), acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.

As questões a decidir no presente recurso são as que acima se enunciaram.

1 – Deficiência da gravação
Dispõe o artº 712º, nº 1, al. a) do CPC – Diploma a que pertencem todas as normas adiante citadas sem menção de origem - que a decisão sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação:
a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artº 690º-A, a decisão sobre a matéria de facto;
b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas.
c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou.
Nos termos do artº 690º-A, nº 1, quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Quais os concretos meios probatórios, constantes de processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
No caso previsto na al. b) do nº 1, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas, tenham sido gravados, incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, indicar os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na acta, nos termos do disposto no nº 2 do artº 522º-C (nº 2 do citado artº 690º-A).
Os oponentes deram cumprimento àquele duplo ónus, indicando os concretos pontos de facto que consideram incorrectamente provados e os depoimentos em que se funda o invocado erro na apreciação da prova.

Alegaram, no entanto, que não puderam referenciar parte dos depoimentos das duas primeiras testemunhas inquiridas – I……. e J…… – por algumas passagens serem imperceptíveis, nem o depoimento da terceira – Y…… – por não se encontrar gravado.

Iniciada a audição do registo magnético da prova, verificou-se o seguinte:
No lado A da cassete 1, onde está gravado o depoimento da testemunha I…….., apenas são perceptíveis a voz do Mº Juiz a quo e dos Ilustres Mandatários.
Das declarações da testemunha conseguimos apenas entender, com muita dificuldade, a sua identificação. A partir deste ponto, o depoimento é imperceptível.
A mesma situação se repetiu no depoimento da testemunha J……, gravado no lado A e no lado B da cassete 1.
Embora no depoimento desta testemunha se consigam entender algumas expressões, há muitas passagens que são inaudíveis, tornando o depoimento incompleto.
Na cassete 2, lado A, onde, segundo a acta de fls. 129 e seguintes, se encontra gravado o depoimento da testemunha Y……, ouve-se apenas o Mº Juiz a perguntar o nome à testemunha e esta a responder.
A partir daquele ponto, a cassete está totalmente em branco.
Do depoimento desta testemunha só ficou assim consignada a parte final, que está gravada na cassete 3, lado A.
Conforme consta das actas de audiência de julgamento (fls. 126 vº e 129) as referidas testemunhas foram inquiridas à matéria dos quesitos 1º, 5º, 6º e 7º, precisamente a matéria que foi impugnada pelos oponentes.

Visando a documentação da prova por meio de gravação garantir os poderes de reapreciação da matéria de facto pelo Tribunal da Relação, ou seja o segundo grau de jurisdição através do amplo recurso da decisão fáctica de primeira instância, como é óbvio só com a efectiva gravação dos elementos de prova pode ser sindicada a decisão da matéria de facto em causa.
Atento o fim em vista, a falta de gravação é imputável, não aos recorrentes, mas aos serviços judiciários que, dispondo de aparelhagem de registo fonográfico, devem garantir o seu bom funcionamento.
Como vem sendo pacificamente entendido pela jurisprudência, a omissão e/ou a imperceptibilidade do registo magnético dos depoimentos das testemunhas equivale à omissão de um acto que a lei prescreve e que tem influência no exame e na decisão da causa, na medida em que impede (ou, pelo menos, condiciona) o cumprimento do disposto no artº 690º-A do CPC. Produz, portanto, nulidade, face ao disposto no artº 201º, nº 1.
Essa nulidade está sujeita ao regime geral de arguição das nulidades previsto no artº 205º. Nos termos do nº 1 deste normativo, se a parte estiver presente, por si ou por mandatário, no momento em que foi cometida a nulidade, deve argui-la nesse acto; se não estiver, o prazo para a arguição conta-se a partir do dia em que, depois de cometida a nulidade, a parte interveio no processo, mas, neste último caso, só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou quando dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência.
Como se refere no Acórdão do STJ de 09.07.02 [CJ/STJ-II-153], não tendo a parte durante a audiência possibilidade de controlar uma questão meramente técnica como é o das boas ou más condições em que a gravação está a decorrer, não pode exigir-se a arguição imediata de tal nulidade.
Também no dia designado para a publicação da decisão sobre a matéria de facto não podem as partes aperceber-se de qualquer deficiência dos registos magnéticos.
Após alguma controvérsia, a jurisprudência uniformizou-se no sentido de que também não é exigível ao mandatário que pretende impugnar a matéria de facto que proceda à audição das cassetes no prazo de 10 dias a contar da data em que as respectivas cópias lhe são entregues pelo Tribunal, pelo que o prazo de arguição da nulidade não começa a correr naquela data [Damos como exemplo, por todos, o Ac. desta Relação de 29.09.03, www.dgsi.pt, nº conv. 36259.]

Sendo de 40 dias o prazo para apresentar as alegações de recurso (cfr. artº 698º, nºs 2 e 6), o mandatário dispõe de todo aquele tempo para ouvir as cassetes e, por isso, pode arguir a nulidade dentro do prazo de alegações, se só ao pretender elaborar a motivação do recurso se aperceber das anomalias técnicas da gravação.
Como se diz no Acórdão citado na nota 3, de outro modo, exigir-se-ia ao recorrente um comportamento que configuraria uma “super-diligência”: a parte teria de ouvir as cassetes em 10 dias após a entrega, mesmo que só passados, por exemplo, 15 ou 20 dias tivesse disponibilidade para minutar o recurso.
Além disso, como está em causa a impossibilidade de recurso, por motivo que não pode ser imputável às partes, a nulidade pode ser arguida nas próprias alegações de recurso, desde que não esteja demonstrada nos autos a data em que a parte teve conhecimento do conteúdo da gravação. [Neste sentido se pronunciou o Ac. citado na nota 2 e ainda o Ac. desta Relação de 12.10.04, base citada, nº conv. 37237.].

No caso em apreço, não existe nos autos qualquer referência temporal ao conhecimento do conteúdo das gravações pelos oponentes, pelo que estes estão em tempo ao arguírem a nulidade nas alegações de recurso.

A referida nulidade tem como consequência a anulação dos depoimentos omitidos ou deficientemente gravados, mantendo-se intocados os depoimentos das demais testemunhas.
É o que resulta da regra geral do artº 201º, nº 2, 2ª parte e também do disposto no artº 9º do DL 39/95 de 15.02.
Por aplicação da regra da 1ª parte do nº 2 do artº 201º, a anulação parcial da gravação acarreta a anulação da decisão proferida sobre a matéria de facto e os termos subsequentes, uma vez que a decisão sobre a matéria de facto depende em absoluto da totalidade da prova produzida e a sentença depende em absoluto da factualidade dada como provada [Ac. deste Relação citado na nota 4].

No caso, ouvimos a gravação dos restantes depoimentos e verificámos que não contém qualquer deficiência.
Há assim que anular os depoimentos das testemunhas I……, J…… e Y……, a decisão sobre a matéria de facto e a sentença, mantendo-se os depoimentos das demais testemunhas inquiridas.

A decisão da primeira questão colocada no recurso prejudica o conhecimento das restantes.
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IV.
Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação e, em consequência:
- Anula-se a gravação dos depoimentos das testemunhas I….., J….. e Y….., que deverão ser repetidos e novamente gravados em audiência de julgamento;
- Anula-se a decisão sobre a matéria de facto de fls. 136 a 140;
- Anula-se a sentença de fls. 143 a 150.

Custas pela parte vencida a final.
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Porto, 27 de Abril de 2006
Deolinda Maria Fazendas Borges Varão
Ana Paula Fonseca Lobo
António Domingos Ribeiro Coelho da Rocha