Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0612468
Nº Convencional: JTRP00039299
Relator: GUERRA BANHA
Descritores: SINAIS DE TRÂNSITO
Nº do Documento: RP200606140612468
Data do Acordão: 06/14/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: REVOGADA A DECISÃO.
Indicações Eventuais: LIVRO 447 - FLS 147.
Área Temática: .
Sumário: O desrespeito do sinal de STOP existente à entrada de um cruzamento não pode ser considerado como contra-ordenação, se não se prova que tal sinal foi ali colocado pela entidade competente ou com sua autorização.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam em audiência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto.

I
RELATÓRIO
1. Por decisão da autoridade administrativa competente (Delegação de Viação de Vila Real) de 5/05/2005, proferida nos autos de contra-ordenação nº ………, a fls. 8-9, foi aplicada ao arguido B………. a sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 60 dias (o arguido já havia pago voluntariamente a respectiva coima).
O arguido impugnou aquela decisão administrativa através de recurso para o Tribunal Judicial da comarca de Vila Real, que, por sentença de 14/03/2006, a fls. 78-85, julgou o recurso parcialmente procedente e suspendeu a execução daquela sanção acessória pelo período de 8 meses, condicionada à prestação de caução de boa conduta, no montante de € 750, a efectuar por depósito, no prazo de 10 dias, a contar do trânsito da dita decisão.
Ainda não conformado com esta segunda decisão, dela voltou a recorrer para esta Relação, tendo concluído a motivação do recurso com as conclusões seguintes:
a. A instalação de sinais de trânsito nas vias públicas só pode ser efectuada ou autorizada pelas entidades competentes, sendo que os sinais de trânsito devem obedecer a características pré-definidas no que respeita a formas, cores, inscrições, símbolos, dimensões, materiais e às regras de colocação.
b. Com respeito ao sinal de trânsito em discussão nos presentes autos, essa competência e ordenamento estradal pertencia à Câmara Municipal de Vila Real.
c. De acordo com as regras do ónus da prova, incumbia à entidade administrativa autuante fazer a prova de que o sinal que se diz desrespeitado foi legalmente colocado, na obediência estrita dos requisitos supra referidos.
d. Porém, da matéria de facto considerada provada não resulta demonstrado que tenha sido a Câmara Municipal de Vila Real quem procedeu à colocação do sinal e da al. q) dos factos provados consta que o dito sinal não se encontra registado no cadastro de sinalização da Câmara Municipal de Vila Real.
e. Para além disso, da matéria de facto provada descrita sob a alínea r) resultou demonstrado que o sinal em referência não dispõe da altura mínima entre o solo (ponto mais alto do pavimento) e o seu bordo inferior, assim violando de forma clara o preceituado no art. 13º do Decreto Regulamentar nº 22-A/98, de 1/10.
f. Pelo que, face à matéria de facto considerada provada, deveria ter sido declarado e exarado na sentença proferida que este sinal foi instalado de forma ilegal e que assim não lhe era devida obediência em 20 de Junho de 2004.
g. Não tendo assim decidido, a sentença recorrida violou o preceituado no art. 6º, nº 1, do Código da Estrada, nos arts. 3º, nº 1, 5º, nº 1, e 13º, do Decreto Regulamentar nº 22-A/98, de 1/10, e no art. 13º do Decreto-Lei nº 190/94, de 18 de Julho.
h. Por outro lado, para apreciação do grau de culpabilidade da conduta do recorrente, com respeito à contra-ordenação que se diz praticada, deverá ser primordialmente considerada a matéria de facto considerada provada na sentença proferida sob as alíneas a) a d) e p);
i. Perante esta matéria provada, a conduta do arguido, em bom rigor, é axiologicamente neutra, não contendendo minimamente com os valores essenciais e básicos da vida comunitária, sendo que o que no fundo está em causa, e de acordo com a matéria factual considerada e supra descrita, é a falta de consciência da ilicitude da contra-ordenação que se diz praticada.
j. No entanto, e tendo o arguido circulado em condições de segurança, com o que se preocupou, e sem criar o mínimo perigo para o trânsito que se processava, pensamos ser de concluir e aceitar que o erro com que por certo agiu não é censurável.
k. Pelo que, deveria ter sido decidido que o arguido procedeu na convicção séria de que nenhuma infracção cometia, só se lhe podendo censurar a falta de consciência de ilicitude com que agiu, sendo este erro desculpável e não censurável.
l. Porque não o fez, a sentença recorrida violou o preceituado nos arts. 1º, 2º, 8º e 9º do Decreto-Lei nº 433/82, de 27/10, com a redacção introduzida pela Lei nº 109/2001, de 24/12.
m. Por outro lado, sendo a contra-ordenação pela qual o arguido foi condenado classificada de “grave”, a decisão final proferida é severa, excessiva e manifestamente desproporcionada, considerando que o recorrente circulava em condições de segurança e sem criar o mínimo de perigo para o trânsito rodoviário.
n. E porque o recorrente procedeu ao pagamento voluntário da coima e como cidadão responsável que é, deveria merecer um voto de confiança, pelo que deveria ter-se decidido pela dispensa da aplicação da sanção acessória da inibição de conduzir.
o. Ou, pelo menos, ter decidido pela respectiva suspensão pelo período mínimo legal correspondente a seis meses, e sem a fixação de qualquer prestação de caução de boa conduta.
p. Não tendo assim decidido, foi violado o preceituado nos arts. 140º, 141º, nº 1 e 142º, todos do Código da Estrada.
Pretende, assim, que se revogue a decisão recorrida e se substitua por outra que absolva o arguido da sanção acessória que lhe foi aplicada ou, pelo menos, que lhe seja suspensa a execução da referida sanção pelo período de 6 meses, sem sujeição a caução de boa conduta.
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2. O ex.mo magistrado do Ministério Público junto daquela comarca respondeu à motivação deste recurso e concluiu pelo não provimento do recurso, considerando que nada nos autos permite concluir que o sinal que o arguido desrespeitou não tenha sido colocado pela entidade competente, que o arguido viu e percebeu o significado do sinal, que sabia que o referido sinal lhe impunha o dever de parar e não parou, desrespeitando esse dever com consciência da ilicitude da sua conduta.
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3. Nesta Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu o parecer que consta a fls. 140, em que, aderindo à resposta apresentada pelo Ministério Público na 1ª instância, concluiu que o recurso não merece provimento.
Notificado deste parecer, nos termos e para os fins do art. 417º nº 2 do Código de Processo Penal, o recorrente não respondeu.
Os autos foram a visto dos ex.mos Juízes adjuntos e, após, realizou-se a audiência.

II
FUNDAMENTOS DE FACTO
4. Na sentença recorrida foram considerados provados os factos seguintes:
1) No dia 20 de Junho de 2004, pelas 11h15m, no ………., em ………. - E. M., nesta comarca de Vila Real, o arguido conduzia o veículo ligeiro de mercadorias com a matrícula ..-..-OB e ao chegar ao cruzamento, onde se encontra implantado o sinal B2 "STOP", não parou junto ao mesmo.
2) No dia referido em a) era domingo e os agentes de autoridade (G.N.R.) encontravam-se apeados à frente do seu veículo, veículo este que se encontrava estacionado nas traseiras do sinal de trânsito, a cerca de seis/sete metros deste sinal.
3) O arguido viu o sinal em apreço (o qual, aliás, já conhecia naquele local há pelo menos um ano, uma vez que passa no aludido cruzamento três vezes por dia) e abrandou a sua marcha, olhando para a esquerda, a fim de se certificar se viria algum veículo daquela direcção.
4) Como não circulava nenhum veículo, o arguido prosseguiu a sua marcha, de forma lenta, sem oferecer o mínimo perigo para o trânsito que naquele momento não se verificava.
5) O arguido sabia da obrigatoriedade de parar junto do referido sinal "Stop" e que o não cumprimento desta obrigação era punido por lei.
6) Não obstante, por descuido seu, limitou-se a abrandar a sua marcha.
7) O arguido tem antecedentes rodoviários.
8) Admitiu que não parou no supra referido sinal de trânsito, tendo afirmado, a propósito da sua conduta, que agiu mal.
9) Admitiu igualmente que sabia da obrigatoriedade de parar no sinal "STOP" e que o não cumprimento desta obrigação era punido por lei.
10) Efectuou já o pagamento da coima que lhe foi cominada pela autoridade administrativa.
11) O arguido é funcionário do Hospital de .........., onde presta as funções de jardineiro, aí auferindo o vencimento mensal de cerca de 650 euros.
12) Executa serviços de jardinagem para outras pessoas e entidades, sempre que o seu horário laboral o permite, aqui incluídos sábados, domingos e feriados.
13) Vive com a irmã, em casa desta.
14) Tem necessidade de utilizar o seu veículo automóvel para deslocação diária para os seus locais de trabalho e, bem assim, para transporte de maquinaria e produtos inerentes aos trabalhos de jardinagem que executa.
15) Realizando, desta forma, os rendimentos mensais para o seu sustento.
16) É pessoa pacata, trabalhador, respeitado e respeitador.
17) O sinal de trânsito a que se alude na alínea a) não se encontra registado no cadastro de sinalização da Câmara Municipal de Vila Real.
18) Tal sinal não dispõe de altura de 220cm entre o seu bordo inferior e o ponto mais alto do pavimento.
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5. E foram considerados não provados os factos seguintes:
- que a colocação do sinal em causa não foi ordenada ou autorizada pela Câmara Municipal de Vila Real;
- que este sinal de trânsito foi colocado no decorrer do ano de 2003, tendo sido posteriormente retirado em data posterior a 20 de Junho de 2004 e novamente colocado em finais do ano de 2004;
- que os agentes da G.N.R. encontravam-se a cerca de dez metros do sinal de trânsito e tinham o seu veículo estacionado a não mais de um metro de distância do sinal de trânsito;
- que o arguido viu os agentes de autoridade;
- que o seu veículo ficou quase imobilizado;
- que o arguido estava seriamente convencido de que nenhuma infracção cometia.
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6. O tribunal motivou a sua decisão sobre a matéria de facto provada do seguinte modo:
«A convicção do tribunal assentou nos seguintes elementos de prova, conjugados com as regras de experiência comum:
― Depoimentos dos Soldados da G.N.R. C………. e D………., os quais presenciaram os factos que deram origem ao auto de contra-ordenação constante de fls. 4 deste processo, tendo sido o primeiro a proceder à elaboração do mesmo. Estes depoentes encontravam-se, à data dos factos, em operação de fiscalização do trânsito rodoviário que circulava no local supra referenciado, tendo relatado, de forma pormenorizada e objectiva, as circunstâncias que rodearam tal operação, designadamente o local onde se encontravam, o local onde estacionaram o seu veículo, as características da via, o facto de o sinal de trânsito em apreço ter uma altura entre 1,50m e 2m e a circunstância de o conhecerem colocado naquele local há vários anos;
― Declarações do arguido que admitiu que não parou no supra referido sinal de trânsito, que sabia da obrigatoriedade de parar no sinal "STOP" e que o não cumprimento desta obrigação era punido por lei; as declarações do arguido relevaram também no que concerne à sua situação sócio-económica;
― Depoimento de E…………, o qual seguia, à data dos factos, no veículo do arguido, tendo confirmado que o mesmo não parou no sinal em causa, mas que abrandou a sua marcha, a fim de se certificar se vinha algum veículo do lado esquerdo àquele em que seguia, não criando qualquer perigo para o trânsito que naquele momento não se verificava;
― Depoimentos de F………. e G………., respectivamente sobrinho e amigo do arguido, os quais, pelas relações de parentesco e amizade que com este mantêm, demonstraram ter conhecimento das suas condições de vida;
― Depoimento de H………., o qual exerce as funções de Vereador do Trânsito na Câmara Municipal de Vila Real e que confirmou o facto de o sinal de trânsito em apreço nestes autos não se encontrar registado no cadastro de sinalização da Câmara Municipal de Vila Real, tal como muitos outros, esclarecendo que só agora a empresa municipal "I……….", a qual prestou a informação de fls. 48 e que se mostra constituída apenas há cerca de dois/três anos, é que vai iniciar um levantamento cadastral de toda a sinalética colocada pela Câmara Municipal de Vila Real;
― Registo individual de condutor de fls. 7;
― Fotografia de fls. 16;
― Documento constante de fls. 48.
No que diz respeito à factualidade considerada não assente, não se fez prova bastante da sua verificação.
Com efeito, nenhuma das testemunhas ouvidas atribui a colocação do sinal de trânsito a uma entidade estranha à Câmara Municipal de Vila Real.
Nesta matéria, o arguido limita-se a insinuar a possibilidade de um "terceiro" ter procedido à colocação de tal sinal naquele preciso local, baseando esta sua insinuação no facto de não constar qualquer referência escrita na parte traseira do aludido sinal, como habitualmente se vê noutros sinais de trânsito.
Contudo, a este propósito, a testemunha H………., Vereador do Trânsito na Câmara Municipal de Vila Real, referiu que tal situação ocorria também com outros sinais, pelo facto de nem todos se encontrarem registados no cadastro de sinalização da Câmara e que, só agora, é que estavam a proceder a um levantamento cadastral para esse efeito e também com o objectivo de aferirem quais os sinais que se encontram desajustados da circulação rodoviária actual.
Referiu também esta testemunha que o sinal em apreço já se encontra no local há vários anos, o que se coaduna com a informação prestada a fls. 48 destes autos e, nesta medida, não ficou demonstrado que o mesmo tenha aí sido colocado no ano de 2003, referência esta que só é feita pelo arguido e não é confirmada por mais nenhum elemento probatório.
O arguido também menciona que, depois de ter sido autuado, o aludido sinal foi retirado e posteriormente foi novamente colocado no mesmo lugar, no que é corroborado pelo seu amigo E………., sem que ambos precisem datas concretas.
No entanto, questionado sobre este facto, a testemunha D………. afirmou peremptoriamente que, desde que se encontra em Vila Real, há cerca de 4 anos, sempre viu tal sinal no lugar onde se encontra, tanto mais que já integrou diversas patrulhas da G.N.R que, nesse mesmo local e por diversas vezes, efectuaram operações de fiscalização do trânsito rodoviário.
Esta testemunha não tem qualquer interesse em desvirtuar a verdade dos factos, razão pela qual valoramos o seu depoimento nesta matéria.
Ambos os soldados da G.N.R referiram que o local onde tinham estacionado o seu veículo se situava a cerca de 6/7 metros do sinal de trânsito e que se encontravam apeados à frente do seu veículo, o que não foi contrariado pelas restantes testemunhas, motivo pelo qual foi considerado não provado que os agentes da G.N.R. se encontravam a cerca de dez metros do sinal de trânsito e que tinham o seu veículo estacionado a não mais de um metro de distância do sinal de trânsito.
Pese embora o arguido tenha dito que viu os agentes de autoridade, não ficamos convencidos da veracidade desta declaração.
As regras de experiência comum contrariam cabalmente esta afirmação. Nenhum depoente faz qualquer alusão a que o veículo do arguido tenha ficado quase imobilizado, o que determinou a inclusão deste facto na matéria não apurada.
Por último, refira-se que as próprias declarações do arguido contrariam a sua alegação de que estava seriamente convencido de que nenhuma infracção cometia.
Ora, o arguido, em sede de audiência, não só profere a seguinte afirmação "sei que fiz mal”, como ainda admite ter conhecimento da obrigatoriedade de parar no sinal "STOP" e que o não cumprimento desta obrigação é punido por lei.
E, assim sendo, como é que poderia, na data dos factos, estar convencido de que não cometia nenhuma infracção?».

III
FUNDAMENTOS DE DIREITO
7. O presente recurso incide, apenas, sobre a decisão de direito e as conclusões formuladas compreendem as seguintes questões:
1ª Que o sinal “stop” referido nos autos era ilegal e, consequentemente, não havia o dever de lhe obedecer, por não ter ficado provado que o dito sinal foi colocado no local onde estava pela entidade competente e por não estar colocado à altura mínima do solo prevista da lei;
2ª Que, além disso, o arguido agiu sem a consciência de estar a cometer uma contra-ordenação;
3ª Que, em todo o caso, a entender-se que o arguido agiu com culpa, é uma culpa mínima, porque circulava em condições de segurança e sem criar o mínimo de perigo para o trânsito rodoviário, e, por isso, deveria ter-se decidido pela dispensa da sanção acessória da inibição de conduzir ou, ao menos, pela suspensão da sua execução por período não superior a 6 meses e sem sujeição à prestação de caução de boa conduta.
*

8. Quanto à primeira questão, diz o recorrente que o sinal de “stop”, que está na origem da contra-ordenação que lhe é imputada, é ilegal por dois motivos: por não se ter provado que fora ali colocado pela entidade competente, que era a Câmara Municipal de Vila Real, e ainda porque estava colocada a altura do solo inferior a 2,20 metros, que é a altura prevista na lei para este tipo de sinal. E sendo ilegal, não lhe era devida obediência. Assim concluindo que não cometeu a contra-ordenação que aqui lhe é imputada, requerendo, por isso, a sua absolvição.
A este argumento, o Ministério Público contrapõe dizendo que “desde sempre o arguido questionou que o sinal tivesse sido colocado no local pela Câmara Municipal de Vila Real, mas em momento algum demonstrou das razões da sua suspeita”, concluindo que “tais factos não impediram o arguido de ver o sinal e de o compreender”.
Também a sentença recorrida resolveu esta questão, então já posta pelo arguido no recurso de impugnação da decisão da autoridade administrativa, nos seguintes termos: quanto à menor altura do sinal, que esse facto não punha em causa a validade do sinal desde que este estivesse colocado de forma a garantir boas condições de legibilidade, como era o caso; e que também não contendia com a validade do sinal a circunstância de não se encontrar registado no cadastro de sinalização da Câmara Municipal de Vila Real.
Ora, antes de mais, impõe-se esclarecer que a posição do arguido, no processo penal, está a coberto do princípio da presunção de inocência, consagrado no art. 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa (e também no art. 11º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e no art. 6º, nº 2, da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos e Liberdades Fundamentais, também conhecida pela designação de Convenção Europeia dos Direitos do Homem, entre outros), de que emergem um conjunto de consequências relevantes sob o estatuto do arguido no âmbito do processo penal, designadamente os direitos enunciados no nº 1 do art. 61º do Código de Processo Penal, de que se pretende aqui destacar a inexistência de um ónus de prova imposto ao arguido para demonstrar a sua inocência e o direito ao silêncio (art. 343º, nº 1 do CPP), reveladores de que o arguido não é obrigado a servir de objecto de prova contra si, como não é obrigado a colaborar na actividade probatória da acusação contra si deduzida.
Se algum ónus de prova existe em processo penal, só poderá recair sobre o Ministério Público, na qualidade de representante da parte acusadora, a quem cabe realizar todas as diligências “que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas em ordem à decisão sobre a acusação” (art. 262º, nº 1 do CPP), e depois, decidindo acusar, cabe-lhe o ónus de indicar, sob pena de nulidade, as provas que, em audiência de julgamento, podem sustentar os factos descritos na acusação (art. 283º, nº 3, als. d), e) e f), do CPP).
Daí que não parece aceitável o argumento aduzido quer na sentença recorrida, quer na resposta do Ministério Público, no sentido de que o arguido não demonstrou que o sinal não tinha sido colocado pela entidade administrativa competente. Assim fazendo recair sobre o arguido o ónus de ter que provar a ilegalidade ou ilegitimidade do sinal, visando afastar um dos pressupostos objectivos da infracção que lhe é imputada, relativo ao dever de obediência ao dito sinal.
A questão tem que ser colocado em termos invertidos, como a coloca o recorrente. Ou seja, suscitando-se a dúvida sobre a legalidade ou a ilegitimidade do sinal, é o arguido que tem que ser convencido, através de prova adequada, que o sinal fora ali colocado pela entidade competente e era legal e vinculativo para todos os condutores, que lhe deviam obediência legítima.
As provas desse facto tinham que ser produzidas e examinadas, com sujeição ao contraditório, em audiência de julgamento (arts. 327º, nº 2, e 355º do CPP). Fossem apresentadas pela entidade administrativa que instaurou o auto de contra-ordenação, fossem requeridas pelo Ministério Público ou fossem investigadas oficiosamente pelo tribunal, nos termos do art. 340º, nº 1 do Código de Processo Penal. Nunca, porém, haveria de exigir-se a prova do contrário ao arguido.
Feita esta nota prévia, importa apreciar se, neste caso, a exigência feita pelo arguido, sobre a prova de que o sinal de trânsito por ele desrespeitado foi colocado pela entidade competente, interfere com o dever de obediência ao dito sinal pelos condutores e, consequentemente, com os pressupostos objectivos da infracção que lhe é imputada e por que foi condenado e, na afirmativa, se tal pressuposto se mostra, ou não, preenchido.
Prescreve o nº 1 do art. 5º do Código da Estrada: “Nos locais que possam oferecer perigo para o trânsito ou em que este deva estar sujeito a restrições especiais e ainda quando seja necessário dar indicações úteis, devem ser utilizados os respectivos sinais de trânsito”.
O nº 1 do art. 6º do mesmo Código dispõe que “os sinais de trânsito são fixados em regulamento onde, de harmonia com as convenções internacionais em vigor, se especificam as formas, as cores, as inscrições, os símbolos e as dimensões, bem como os respectivos significados e os sistemas de colocação”.
O regulamento dos sinais de trânsito para que remete este preceito do Código da Estrada é o aprovado pelo Decreto Regulamentar nº 22-A/98, de 1 de Outubro, alterado pelo Decreto Regulamentar nº 41/2002, de 20 de Agosto.
O art. 3º do Decreto Regulamentar nº 22-A/98 estabeleceu um período transitório, até ao dia 1 de Janeiro de 2002, para a substituição dos sinais então existentes que não fossem conformes à legislação em vigor àquela data (nº 1) e determinou que a partir de 1 de Janeiro de 1999 não podiam ser colocados sinais novos que não estivem conformes com o novo regulamento. O que quer dizer que, a partir de 1 de Janeiro de 2002, todos os sinais existentes nas vias públicas teriam que estar conformes com a legislação em vigor nesta data, incluindo com este regulamento.
Sobre a instalação dos sinais de trânsito nas vias públicas, dispõe o nº 1 do art. 3º deste regulamento que “só pode ser efectuada pelas entidades competentes para a sua sinalização ou mediante autorização destas entidades”.
A designação das entidades competentes para fazer ou autorizar a sinalização de carácter permanente nas vias públicas, a que se refere o nº 1 do art. 5º do Código da Estrada, consta do art. 13º do Decreto-Lei nº 190/94, de 18/07, segundo o qual compete à Junta Autónoma das Estradas (ou à entidade que, entretanto, lhe sucedeu) a sinalização das estradas nacionais e às câmaras municipais a sinalização das estradas, ruas e caminhos municipais, por iniciativa própria ou a solicitação da Direcção-Geral de Viação.
No caso aqui em apreciação trata-se de um via municipal, situada no interior de uma localidade do concelho de Vila Real. A competência para a sua sinalização era, pois, da Câmara Municipal de Vila Real, como foi considerado na sentença e também como diz o recorrente.
Era, pois, também esta entidade a competente para esclarecer se o dito sinal foi por si ou com a sua autorização ali colocado.
Compreende-se, assim, que, por ofícios que constam a fls. 36 e 37, o tribunal tenha solicitado à Câmara Municipal de Vila Real e à Delegação de Viação de Vila Real para juntarem aos autos “documentos comprovativos do registo, solicitação e autorização de colocação do sinal de trânsito de paragem obrigatória no cruzamento do ………., freguesia de ………., concelho de Vila Real”. Diligência que, aliás, foi feita a requerimento do arguido, ora recorrente, conforme consta de fls. 15.
Apenas foi obtida resposta de uma empresa municipal com a denominação de “I……….”, que consta a fls. 48, a informar que “não existe nos serviços qualquer registo de colocação do referido sinal”.
Para além disso, face ao que consta da motivação da matéria de facto (cfr. supra nº 6) e da acta de audiência a fls. 76, foi inquirida em audiência a testemunha H………., que se identificou como “vereador do trânsito na Câmara Municipal de Vila Real”, o qual apenas “confirmou o facto de o sinal de trânsito em apreço nestes autos não se encontrar registado no cadastro de sinalização da Câmara Municipal de Vila Real”, mas não consta que tenha confirmado ter sido esta Câmara Municipal quem colocou ou autorizou a colocar o dito sinal.
Foi de conformidade com a informação prestada pela empresa municipal “I……….” e com o depoimento prestado por esta testemunha, confirmativo daquela informação, que o sr. juiz do julgamento apenas considerou provado que “o sinal de trânsito não se encontra registado no cadastro de sinalização da Câmara Municipal de Vila Real” e considerou não provado que “a colocação do sinal em causa não foi ordenada ou autorizada pela Câmara Municipal de Vila Real”.
Embora não conste dos factos não provados, percebe-se, pela sua não inclusão nos factos provados e pelo que consta da motivação da matéria de facto, que também não ficou provado que tenha sido a Câmara Municipal de Vila Real a colocar ou a ordenar a colocação do sinal. Sendo este o facto (positivo) que relevava fazer constar, e não o seu inverso, descrito pela negativa.
Com efeito, ao fazer-se apenas constar como facto não provado que “a colocação do sinal não foi ordenada ou autorizada pela Câmara Municipal de Vila Real”, em vez do seu contrário, isto é que não se provou que “a colocação do sinal foi ordenada ou autorizada pela Câmara Municipal de Vila Real”, como deveria ter ficado a constar, resulta que se fez incidir sobre o arguido o ónus de provar que o sinal não era legal (o que, aliás, é dito de forma expressa na resposta apresentada pelo Ministério Público, como acima já ficou referido), quando o que estava em causa averiguar e interessava apurar, para se aferir da culpabilidade do arguido, era se tinha sido a Câmara Municipal de Vila Real a colocar ou a autorizar a colocação do dito sinal.
Se a própria entidade competente para colocar o sinal não conseguiu afirmar ter sido ela mesma quem o colocou e se o tribunal não conseguiu dar como provado ter sido essa entidade a colocar o dito sinal no local onde estava, a dúvida posta pelo arguido sobre a legalidade do sinal e o dever de lhe obedecer pelos condutores não é uma mera “insinuação”. É uma dúvida séria e pertinente, que não pode ser decidida contra os condutores que não respeitem o dito sinal e, neste caso concreto, contra este arguido.
Os sinais de trânsito de carácter impositivo, como são os que estabelecem prescrições e proibições, em que se enquadra o sinal de “stop” ou “paragem obrigatória no cruzamento ou entroncamento” (art. 21º do regulamento acima referido, ali identificado sob a designação de “B2”), contêm uma ordem legítima imposta aos condutores. No caso do sinal “stop”, uma ordem de parar. Sendo a desobediência a essa ordem que constitui a contra-ordenação prevista na al. a) do art. 23º do mesmo regulamento, aqui imputada ao ora recorrente.
É, com efeito, pressuposto objectivo do dever de obediência aos sinais de trânsito que estes sejam legítimos, isto é, que tenham sido colocados nas vias públicas pelas entidades competentes (art. 3º do regulamento citado). O que significa que a legitimidade do dever de obediência aos sinais de trânsito resulta da legitimidade da entidade competente que os colocou ou mandou colocar. Só estes são impositivos para os condutores, só a estes é devida obediência e só a desobediência a estes sinais constitui infracção.
Donde se conclui que, no caso do sinal de “stop” aqui em causa, não se provando que fora colocado pela entidade competente, também não pode exigir-se que o arguido tinha o dever de lhe obedecer e, consequentemente, que a desobediência ao dito sinal constitui contra-ordenação.
O que conduz à absolvição do arguido e inutiliza o conhecimento das demais questões postas pelo arguido.
Apenas importa acrescentar mais uma nota, sobre a colocação do sinal, também invocada pelo arguido, para esclarecer que o facto de o sinal não estar colocado à altura de 220cm do solo, como estabelece a al. b) do nº 8 do art. 13º do regulamento de sinalização citado, na redacção dada pelo Decreto Regulamentar nº 41/2002, de 20/08, não constitui justificação para o seu não cumprimento, já que, como se depreende da norma citada, esta altura apenas é imposta para as localidades (fora das localidades a altura estabelecida é de 150cm) e destina-se a proteger os peões, permitindo que circulem em segurança pelos passeios e bermas das estradas, onde normalmente estão colocados estes sinais, e sem perigo ou com o menor risco possível de neles embaterem.
O que releva para se imporem aos condutores é que os sinais sejam visíveis e sejam legíveis, como foi dito na sentença recorrida e consta do disposto no nº 1 do art. 13º do regulamento. Condições que no caso se provou existirem.

V
DECISÃO
Por tudo o exposto, decide-se conceder provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida e absolvendo-se o arguido da contra-ordenação que lhe era imputada.
Sem custas.
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Porto, 14 de Junho de 2006
António Guerra Banha
Jaime Paulo Tavares Valério
Joaquim Arménio Correia Gomes
José Manuel Baião Papão