Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
771-H/2002.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: AUGUSTO DE CARVALHO
Descritores: IMPENHORABILIDADE DOS INSTRUMENTOS DE TRABALHO
Nº do Documento: RP20111205771-H/2002.P1
Data do Acordão: 12/05/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Havendo colisão entre o direito do credor/exequente a ver realizado o seu crédito e o direito do devedor/executado a não ser privado dos instrumentos do seu trabalho e dos objectos indispensáveis ao exercício da sua actividade profissional, o legislador optou pelo sacrifício do primeiro.
II - A impenhorabilidade relativa prevista no nº 2 do artigo 823º do C.P.C. apenas abrange os instrumentos de trabalho e os objectos estritamente indispensáveis ao exercício da actividade ou formação profissional do executado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Agravo nº 771-H/2002.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

Por apenso à execução para prestação de facto que lhe move B… veio o executado C… deduzir oposição à penhora que incidiu sobre os veículos identificados no artigo 1º do requerimento inicial.

Alega que exerce, em nome individual, a actividade de construção civil.
As viaturas penhoradas estão, todas elas, afectadas à actividade do oponente, sendo imprescindíveis, indispensáveis e absolutamente necessárias ao exercício dessa mesma actividade.
A imobilização dos veículos acarretará a inactividade do executado, que se verá obrigado a despedir os oito trabalhadores que lhe restam.
Conclui pelo levantamento da penhora, face ao disposto no artigo 823º, nº 2, do C.P.C.

A exequente contestou, alegando que os veículos não são instrumentos de trabalho, nem constituem objectos indispensáveis ao exercício da actividade, uma vez que os materiais destinados à construção de um edifício podem ser transportados para a obra pelo fornecedor dos mesmos ou em veículos alugados para o efeito, o mesmo sucedendo com os trabalhadores, os quais, em regra, se deslocam em meio de transporte próprio.

Procedeu-se a julgamento e, a final, foi proferida sentença, na qual a oposição foi julgada improcedente.

Inconformado, o executado/oponente recorreu para esta Relação, formulando as seguintes conclusões:
1.Na ponderação dos interesses do credor exequente (interesse na satisfação integral da prestação) e do executado (em não se ver privado dos instrumentos do seu trabalho e objectos indispensáveis ao exercício da sua actividade profissional), o ordenamento jurídico português deu preponderância ao interesse deste último.
2.O artigo 823º, nº 2, do C.P.C., tem subjacente razões económico-sociais, na medida em que o sistema jurídico entende que certos interesses vitais do executado ou de terceiros se devem sobrepor aos do credor exequente, pretendendo-se, assim, evitar que se retirem ao executado os meios necessários para garantir a sua subsistência e a do seu agregado familiar.
3.Está provado nos autos que o executado exerce, em nome individual, a actividade de construção civil; as viaturas penhoradas estão, todas elas, afectas à dita actividade; o executado não tem outros veículos que possam substituir os penhorados, nem tem meios que lhe permitam obter novos veículos; as viaturas em causa destinam-se ao transporte dos trabalhadores, das ferramentas e dos materiais para as obras.
4.Neste enquadramento fáctico, não há dúvida que os veículos em apreço têm de ser vistos, se não como instrumentos de trabalho – que também são –, pelo menos, como objectos indispensáveis ao exercício da actividade do oponente.
5.Acresce que os veículos em causa são, para além de indispensáveis à actividade, são também verdadeiros instrumentos de trabalho, ao contrário do vertido na decisão recorrida, pois, como resulta da factualidade provada, as aludidas viaturas destinam-se e são exclusivamente utilizadas no transporte de operários e materiais para as obras, pelo que, o seu único uso ocorre no trabalho do executado.
6.Nesta conformidade, o entendimento perfilhado na decisão agravada viola o preceituado no artigo 823º, nº 2, do C.P.C., na medida em que faz errada interpretação e aplicação da disposição legal nele vertida.

A apelada não apresentou contra-alegações.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

A sentença recorrida considerou assentes os seguintes factos:
1.No âmbito da acção executiva de a presente execução é apenso, foram penhorados os seguintes veículos do ora oponente: veículo ligeiro de mercadorias, matrícula ..-IJ-..; veículo ligeiro de mercadorias, marca Mitsubishi, modelo …, matrícula ..-..-PO; veículo pesado de mercadorias, marca Mercedes-Benz, modelo …, matrícula ..-..-ZL.
2.Sucede que o requerente exerce, em nome individual, a actividade de construção civil.
3.Sendo que as citadas viaturas estão, todas elas, afectadas à actividade do requerente.
4.As viaturas em causa destinam-se a transportar os trabalhadores para as obras que tem em curso nos concelhos de V.N. de Famalicão, Porto e Guimarães.
5.Bem como os materiais para aplicar nas obras e as ferramentas dos operários.
6.O executado não tem outros veículos que possam substituir os penhorados.
7.Nem tem, com a actual crise que assola a economia portuguesa e, em especial, a construção civil, meios que lhe permitam obter novos veículos.

São apenas as questões suscitadas pelos recorrentes e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar – artigos 684º, nº 3 e 690º, nº 1, do C.P.C.
A questão a decidir consiste em saber se, face ao disposto no artigo 823º, nº 2, do C.P.C., os veículos penhorados podem ser considerados instrumentos de trabalho indispensáveis ao exercício da actividade de construção civil do executado.

I. As viaturas penhoradas estão afectadas á actividade de construção civil que o executado exerce, em nome individual.
Dispõe o nº 2 do artigo 832º do C.P.C., na redacção introduzida pelo DL nº 38/2003, de 8 de Março, que estão também isentos de penhora os instrumentos de trabalho e os objectos indispensáveis ao exercício da actividade ou formação profissional do executado, salvo se: a) o executado os indicar para penhora; b) a execução se destinar ao pagamento do preço da sua aquisição ou do custo da sua reparação; c) forem penhorados como elementos corpóreos de um estabelecimento comercial.
Havendo colisão entre o direito do credor/exequente a ver realizado o seu crédito e o direito do devedor/executado a não ser privado dos instrumentos do seu trabalho e dos objectos indispensáveis ao exercício da sua actividade profissional, o legislador optou pelo sacrifício do primeiro.
Motivos de ordem humanitária e económica estão na base desta impenhorabilidade relativa.
Interpretando o nº 13 do artigo 822º do Código anterior, Alberto dos Reis refere que «o fim claro da lei foi obstar a que o executado ficasse privado dos meios indispensáveis para ganhar a vida». Processo de Execução, Volume I, pág. 379.
A impenhorabilidade «não resulta apenas da indisponibilidade (objectiva ou subjectiva) de certos bens ou de convenções negociais que especificamente a estipulem. Resulta Também da consideração de certos interesses gerais, de interesses vitais do executado ou do interesse de terceiros que o sistema jurídico entende deverem-se sobrepor aos do credor exequente.
(…) Impenhoráveis por estarem em causa interesses vitais do executado são aqueles bens que asseguram ao seu agregado familiar um mínimo de condições de vida (…) são indispensáveis ao exercício da profissão do executado (instrumentos de trabalho e objectos indispensáveis ao exercício da sua actividade ou à sua formação profissional: artigo 823º, nº 2)». José Lebre de Freitas, A Acção Executiva Depois da Reforma, págs. 218 e seguintes.
No mesmo sentido, Amâncio Ferreira afirma que «a impenhorabilidade processual relativa filia-se em motivos de interesse económico, matizados com considerações de humanidade.
Abrange os instrumentos de trabalho e os objectos indispensáveis ao exercício da actividade ou formação profissional do executado (artigo 823º, nº 2). Pense-se num barco que o executado utilize no exercício da pesca, num tractor que o executado empregue na sua profissão de tractorista ou na biblioteca jurídica dum advogado. A lei evita, assim, que se retirem ao executado os meios necessários para ganhar a vida e sustentar-se, bem como à sua família». Curso de Processo de Execução, pág. 204.
De acordo com a regra estabelecida pelo artigo 601º do C.C., todos os bens que constituem o património do devedor respondem pelo cumprimento da obrigação. Esta garantia geral torna-se efectiva por meio da execução – artigo 817º do mesmo diploma.
Mas, no citado artigo 601º prevêem-se duas limitações à regra da exequibilidade de todo o património do devedor: a de os bens serem insusceptíveis de penhora e a da autonomia patrimonial da separação de patrimónios.
O artigo 823º, nº 2, do C.P.C., prevê, precisamente, uma dessas limitações à regra da exequibilidade de todo o património do devedor, estabelecendo a referida impenhorabilidade relativa.
Estando garantido que só em casos excepcionais a regra da exequibilidade de todo o património do devedor será afastada, no caso concreto, importa demonstrar que sem as viaturas o executado fica impedido de continuar a exercer a actividade de construtor civil ou que a penhora delas põe gravemente em causa tal exercício.
Alberto dos Reis, a propósito do nº 13 do artigo 822º, referia que por este estava protegido tudo aquilo que fosse «estritamente indispensável ao exercício da função ou profissão». (…) «A isenção só abrange os objectos sem os quais é impossível ao executado exercer a sua actividade habitual». Ob. cit., págs. 379 e 380.
Correspondem estas afirmações à interpretação que entendemos ser a correcta do actual preceito legal.
Neste mesmo sentido se afirma que «por razões económico-sociais do executado são impenhoráveis os bens indispensáveis à formação profissional e ao exercício da sua actividade profissional, sendo certo que é preciso que sem esses bens o executado não possa continuar a exercer a sua profissão habitual ou que a penhora deles ponha gravemente em causa esse exercício». J. P. Remédio Marques, Curso de Processo executivo à Face do Código Revisto, págs. 117 e seguintes.
Sucede que o executado exerce, em nome individual, a actividade de construção civil e as viaturas estão, todas elas, afectadas a essa mesma actividade, destinando-se a transportar os trabalhadores, os materiais e as ferramentas dos operários para as obras que tem em curso nos concelhos de V.N. de Famalicão, Porto e Guimarães.
O executado não tem mais veículos que possam substituir os penhorados, nem meios que lhe permitam obter outros e, por isso, consideramos demonstrado que a penhora daqueles põe gravemente em causa o exercício da sua actividade profissional.
As viaturas penhoradas integram, deste modo, o estritamente indispensável ao exercício da actividade de construção civil, em nome individual, do executado. Não se concebe o exercício daquela actividade sem veículos de transporte.
Conclui-se, pois, que o exercício da actividade de construção civil pelo executado é posto gravemente em causa com a penhora dos veículos e, neste sentido, verificam-se os requisitos que o nº 2 do citado artigo 823º do C.P.C. prevê.
Procedem, deste modo, as conclusões das alegações e o recurso do executado.

Decisão:
Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção cível em conceder provimento ao agravo e, consequentemente, revogar a decisão recorrida.

Custas pela agravada.

Sumário:
I. Havendo colisão entre o direito do credor/exequente a ver realizado o seu crédito e o direito do devedor/executado a não ser privado dos instrumentos do seu trabalho e dos objectos indispensáveis ao exercício da sua actividade profissional, o legislador optou pelo sacrifício do primeiro.
II. A impenhorabilidade relativa prevista no nº 2 do artigo 823º do C.P.C. apenas abrange os instrumentos de trabalho e os objectos estritamente indispensáveis ao exercício da actividade ou formação profissional do executado.

Porto, 5.12.2011
António Augusto de Carvalho
Anabela Figueiredo Luna de Carvalho
Rui António Correia Moura