Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0325606
Nº Convencional: JTRP00036429
Relator: FERNANDO SAMÕES
Descritores: PETIÇÃO INICIAL
INDEFERIMENTO LIMINAR
DÍVIDA
HOSPITAL
Nº do Documento: RP200311250325606
Data do Acordão: 11/25/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: T J CASTRO DAIRE 1J
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Área Temática: .
Sumário: I - No novo regime de cobrança de dívidas hospitalares (Decreto-Lei n.218/99 de 15 de Junho) o Hospital apenas necessita de alegar na petição inicial o facto gerador da responsabilidade pelos encargos e a prestação dos cuidados de saúde concretos.
II - Não tem que alegar o modo concreto como ocorre o acidente donde derivaram os ferimentos a que prestou os seus cuidados.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório

UNIDADE LOCAL DE SAÚDE DE....., com sede na Rua....., ....., instaurou, em 10/5/2002, no Tribunal Judicial daquela Comarca, depois distribuída ao -º Juízo Cível, acção declarativa com processo sumário, contra a COMPANHIA DE SEGUROS....., SA, pedindo que a ré seja condenada a pagar-lhe a quantia de 3.912,52 €, acrescida de juros de mora vincendos até integral pagamento.
Para tanto, alegou que:
Prestou assistência médica a José......, em virtude de lesões por este apresentadas, que “foram consequência directa e necessária de acidente de viação, por ele sofrido, a 25 de Abril de 1997, e provocado por veículo automóvel”, de que era proprietário Joaquim....., segurado na ré através de contrato titulado pela apólice n.º.......
Tal assistência consta da factura que juntou como documento 1 e que deu por reproduzido, importando os respectivos encargos em 554.800$00, montante a que acrescem juros desde 10 de Setembro de 1997.
A ré contestou excepcionando a prescrição, aceitando a ocorrência do acidente de viação e a existência de seguro, impugnando os encargos hospitalares e alegando factos tendentes a imputar a culpa da eclosão do sinistro ao assistido, concluindo pela improcedência da acção.
Por douto despacho de fls. 16 e 17, foi declarado nulo todo o processado por ineptidão da petição inicial e a ré absolvida da instância, em virtude de se ter entendido que a petição inicial é omissa quanto às circunstâncias em que o acidente ocorreu, à identificação dos intervenientes no mesmo, aos factos pelos quais a autora considera o segurado da ré responsável, a culpa deste, o nexo de causalidade entre o acidente e os prejuízos, enfim todos os factos caracterizadores da responsabilidade civil.
Não se conformando com essa decisão, a autora interpôs recurso de agravo e apresentou a respectiva alegação com as seguintes conclusões:
O DL n.º 218/99, de 15/6, exige, no seu art.º 5º, que a recorrente alegue o facto gerador da responsabilidade pelos encargos e prove a prestação dos cuidados de saúde;
O facto gerador da responsabilidade só pode ser, no caso concreto, de acordo com a lei e o espírito do legislador, o acidente de viação tout court;
Em caso algum, no conceito de facto gerador da responsabilidade pelos encargos diz a lei ou pretendeu o legislador que se incluíssem os elementos constitutivos do acidente: a forma como ocorreu, quando, como, onde;
Na verdade, em lado algum da lei se exige tal alegação;
E menos ainda se fizermos uma interpretação da lei de acordo com o art.º 9º do Código Civil;
É que, como decorre do preâmbulo do DL n.º 218/99, com o mesmo pretende-se “...simplificar os procedimentos...”;
Sendo certo que no anterior regime legal – DL n.º 194/92 -, as certidões de dívida pela prestação de cuidados de saúde hospitalares eram títulos executivos, o que implicava que sobre os devedores impendia o dever de alegar – e provar – todos os elementos constitutivos do facto gerador da responsabilidade pelos encargos, com vista a afastar a sua responsabilidade;
Por isso, se o novo regime jurídico, como diz o legislador, pretendeu simplificar procedimentos é lógico que não o conseguiria se aos hospitais fosse imposto o dever de alegar tais elementos;
Aliás, se a lei exigisse isso, a maioria das acções fundadas em dívidas decorrentes da prestação de cuidados de saúde hospitalares estariam votadas ao insucesso;
De onde resultaria uma evidente injustiça que o sentimento da comunidade repudiaria, uma vez que se estaria a beneficiar interesses privados em detrimento do erário público;
Acontece que, naturalmente, não foi isto que o legislador pretendeu nem escreveu no DL n.º 218/99;
Aliás, não faria sentido que a recorrente e todos os hospitais fossem obrigados a alegar aquilo que não têm de provar – os tais elementos constitutivos do facto gerador da responsabilidade pelos encargos;
Compete, por isso, à recorrida, se quiser eximir-se da responsabilidade pelos ditos encargos alegar e provar os elementos constitutivos do facto gerador capazes de afastarem a sua responsabilidade;
Decisão sufragada pela generalidade da jurisprudência.

Não foram apresentadas contra-alegações.

O M.mo Juiz “a quo” limitou-se a mandar subir os autos.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação

Sabido que o âmbito do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.ºs 684º, n.º 3, e 690º, n.º 1, do C.P.C.), a única questão a decidir consiste em saber se é ou não caso de ineptidão da petição inicial, por falta de indicação de causa de pedir, o que implica indagar sobre o que deve entender-se por “facto gerador da responsabilidade”.
Para dirimir esta questão, há que considerar provados os factos constantes do relatório supra exarado e aplicar-lhes o direito.
Dispõe o art.º 5º do DL n.º 218/99, de 15/6, que “Nas acções para cobrança das dívidas de que trata o presente diploma incumbe ao credor a alegação do facto gerador da responsabilidade pelos encargos e a prova da prestação de cuidados de saúde, devendo ainda, se for caso disso, indicar o número da apólice de seguro”.
Este preceito é aqui aplicável, visto que o caso sub judice não cabe na previsão do n.º 1 do art.º 9º do mesmo diploma (cfr. seu n.º 5).
No caso dos autos, a assistência hospitalar foi determinada por ferimentos ocorridos num acidente de viação.
Por isso, é este o facto gerador da responsabilidade pelos encargos hospitalares e que serve de fundamento à acção, constituindo parte da sua causa de pedir.
Sabe-se que a causa de pedir, como aliás decorre da definição legal constante do art.º 498º, n.º 4 do CPC, é o facto jurídico concreto donde o autor pretende ver derivado o direito a tutelar; o acto ou facto jurídico em que se baseia a pretensão deduzida em juízo; isto é, o facto ou conjunto de factos concretos alegados pelo autor e dos quais dimanarão o efeito ou efeitos jurídicos que, através do pedido formulado, pretende ver juridicamente reconhecidos (cfr., neste sentido, Prof. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 322; Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, vol. I, págs. 209 e 210; Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ed., pág. 245; e os Acs. do STJ de 10/5/83 e de 24/5/83, no BMJ n.º 327, págs. 461 e 653 e de 20/1/94, BMJ n.º 433, pág. 495).
Mas será que, neste caso, se exige a alegação de todos os factos que conduzam à responsabilização da demandada, ou seja, todos os factos subjacentes à responsabilidade civil do seu segurado ou do respectivo condutor?
O legislador inteligente e sabedor, como se deve presumir nos termos do n.º 3 do art.º 9º do C. Civil, não podia ignorar aquela definição legal, tal como não devia desconhecer que o art.º 495º do mesmo diploma já previa a obrigação de indemnização aos hospitais que tenham tratado a vítima e que nas relações directas entre eles e os assistidos tudo se passava como uma prestação de serviços. Também devia saber que, nesse regime geral, recaía sobre os hospitais o ónus de alegar e provar os elementos constitutivos do direito invocado nos temos dos art.ºs 467º, n.º 1, al. d) do CPC e 342º, n.º 1 do Código Civil.
Por isso, desde há muito, reconheceu a necessidade de estabelecer um regime processual específico para cobrança dos créditos referentes aos cuidados de saúde e, descontente com o consagrado no DL n.º 194/92,de 8/9, revogou-o e substituiu-o pelo citado DL n.º 218/99, “na perspectiva de simplificar os procedimentos”, procedendo à “alteração das regras processuais do regime de cobrança das dívida hospitalares”, embora “sem afastar os princípios gerais de direito relativamente ao reconhecimento e execução dos direitos”, como fez questão de explicitar no preâmbulo deste último diploma.
Daí que, como ali também frisou, tivesse consagrado, de novo, e como regra geral, a acção declarativa, com algumas especialidades.
O citado art.º 5º é uma norma processual, como resulta do seu teor e consta, desde logo, do título da secção onde está inserido.
Nele faz-se expressa distinção entre alegação e prova, impondo ao credor apenas o ónus de alegação do facto gerador da responsabilidade pelos encargos e, ainda, o ónus da prova da prestação dos cuidados de saúde.
É esta uma das anunciadas especialidades que o legislador quis introduzir neste tipo de acções.
Sabendo que estes dois ónus não são coincidentes, ao fazer esta distinção e ao impor ao credor o ónus da prova tão somente em relação à prestação dos cuidados de saúde, o legislador só pode ter querido dispensar o hospital de provar os factos que determinaram essa prestação, dando-se, relativamente a eles, uma inversão do ónus da prova nos termos do art.º 344º, n.º 1 do Código Civil.
Com esta inversão, ocorre uma alteração do tema a decidir, pois passa a ser o demandado que tem de alegar e provar que não é o responsável pelo pagamento que lhe é pedido (cfr., acerca da modificação do thema probandum, Miguel Teixeira de Sousa, em As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa, pág. 224).
Sendo assim, como se nos afigura que é, e embora se saiba que a inversão do ónus da prova não dispensa o ónus de alegação imposto à contra-parte, afigura-se-nos que, nestes casos, basta alegar o necessário para fazer funcionar essa dispensa/liberação do ónus da prova.
Para tanto, é suficiente alegar o facto concreto gerador da responsabilidade, no caso, o acidente, sem haver necessidade de enumerar toda a factualidade que conduza à responsabilização do segurado da demandada, isto é, todos os factos subjacentes à demonstração dos pressupostos da obrigação de indemnizar previstos no art.º 483º do Código Civil.
Tem sido este, aliás, o entendimento perfilhado por esta Relação, das poucas decisões que se conhecem sobre o assunto, conforme se pode ver nos acórdãos proferidos nos processos n.ºs 462/03 da 2ª Secção, 2806/02, 3206/02 e 124/03, da 3ª Secção e n.º 1356/03 da 2ª Secção, por nós relatado e decidido.
Nestes dois últimos que desenvolvem a argumentação do segundo e foram seguidos pelo primeiro, escreveu-se:
“(..) Não se torna, nesses casos, imperioso nem justificável, que se aleguem todos os factos que conduzam à responsabilização do demandado, todos os factos subjacentes, como verdadeira causa de pedir, à aplicação dos direitos conferidos no art.º 483º do CC.
Como facto gerador de tal responsabilidade, conjugado com a dispensa de ónus da prova e a correspondente inversão de tal ónus, basta, a nosso ver, que se invoque o concreto acidente (para nos atermos ao nosso caso específico), sem necessidade de enumerar toda a factualidade que conduza à responsabilização do segurado e da seguradora.
É suficiente que se aponte o acidente, os seus intervenientes, o seguro que conduz à demanda da seguradora e, claro, todos os serviços prestados.
Não faz sentido, a nosso ver, a exigência de fazer recair sobre o hospital a alegação de todo o circunstancialismo em que ocorreu o acidente quando está dispensado de provar a responsabilidade do demandado e é sobre este que recai o ónus de alegar e provar que não tem responsabilidade no evento.
Assim, o facto gerador para que aponta o art.º pode e deve ser visto como se bastando com a enumeração da factualidade necessária e suficiente para fazer funcionar a dispensa do ónus da prova, qual seja a já atrás apontada.
“...Facto gerador de responsabilidade ...” não deve ser visto como um conjunto de factos concretos, integradores da causa de pedir, vista esta dentro da bem conhecida teoria da substanciação, como os que se destinassem a ter de suportar o ónus da prova, para integrar o disposto no art.º 483º do CC.
Não foi, certamente, por mero acaso ou inadvertência que o legislador, bem conhecedor, como o devemos considerar, do que se vem entendendo por causa de pedir e da referida teoria da subtanciação que lhe vem impondo os contornos (conjunto de factos concretos que preenchem a norma jurídica que dá corpo ao direito invocado), bem conhecedor, ainda, de que o art. 498º, n.º 4 do CPC identifica causa de pedir quer com “facto jurídico” quer com “facto concreto”, bem conhecedor, por fim, do que se entende por facto jurídico relevante (ver M. Pinto, A. Varela, C. Fernandes e J. Castro Mendes, entre outros, sobre o seu conceito) para efeitos da causa de pedir, tenha fugido a essas expressões optando por introduzir “... a alegação do facto gerador da responsabilidade...”.
A nosso ver, com a escolha desta expressão “...facto gerador...”, sem mais, o legislador pretendeu precisamente afastar-se de tudo o que pudesse confundir-se com a exigência da causa de pedir nos termos em que ela vem sendo exigida, optando pelo que consideramos mais aparentado com a noção de “facto estático” de que nos dá conta o Prof. J. Castro Mendes na sua Teoria Geral, a pg.5/6.
Portanto, o legislador serviu-se (da expressão) "facto gerador" para frisar que não é necessário alegar o(s) facto(s) jurídico(s) concreto(s) típico(s) da causa de pedir, bastando o(s) facto(s) estático(s) gerador(es) da responsabilidade do demandado (o concreto contrato de prestação de serviços e/ou o concreto acidente de viação e a sua ligação até à seguradora(...)”.
A Relação de Lisboa, nos acórdãos proferidos nos processos identificados pelos serviços de informática com os n.ºs 0044511 e 0011156, sumariados na internet, também decidiu: no 1º, que a causa de pedir estava apenas dependente da alegação do facto gerador da responsabilidade pelos encargos e a prova da prestação dos cuidados de saúde, não sendo de exigir ao autor a prova cumulativa de como o acidente ocorreu, de quem nele interveio, da conduta dos agentes e do nexo de causalidade entre o facto e os danos; e no 2º, que neste tipo de acções, por força do citado art.º 5º, se dava uma inversão do ónus probatório no que tange à prova do facto gerador da responsabilidade, cabendo ao réu a prova de que o mesmo não procedeu de culpa sua.
Mas ainda que assim não se entendesse, jamais se poderia falar em ineptidão da petição inicial.
É que é entendimento corrente que a alínea a) do n.º 2 do art.º 193º do CPC previne apenas a falta absoluta, a total omissão de indicação da causa de pedir na petição inicial (cfr. Ac. do STJ de 12/11/2002, in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/proc. n.º 02A3379 e Castro Mendes, Direito Processual Civil, vol. III, ed. da AAFDL 1978/79, pág. 47).
E, no caso em análise, a causa de pedir existe e foi indicada de forma que reputamos suficiente.
Na verdade, a autora alegou na petição inicial que a assistência hospitalar foi prestada devido a lesões causadas ao assistido num acidente de viação, ocorrido em 25/04/97, em que interveio um veículo automóvel de que é proprietário Joaquim..... e que se encontra segurado na ré, através de seguro titulado pela apólice n.º ......
Saber se estes factos são ou não suficientes para determinar a responsabilidade da ré e a procedência da acção é questão de mérito que tem a ver com o fundo da causa e não com a aptidão ou ineptidão da petição inicial que é um mero pressuposto processual.
Neste momento, só podemos apreciar a questão da ineptidão da petição, por ausência de causa de pedir, única posta em causa no recurso, na sequência do despacho proferido nesse sentido.
E tal ineptidão não existe.
Aliás, no presente caso, nunca poderia falar-se em ineptidão, uma vez que se constata que a ré contestou e interpretou convenientemente a petição inicial, mostrando saber concretamente do que estava a defender-se, como provou com a contestação apresentada, referindo-se ao mesmo acidente e invocando a exclusão da sua responsabilidade por culpa do assistido, condutor do velocípede com motor nele interveniente.
Neste caso, o n.º 3 do citado art.º 193º impede a procedência da arguição da nulidade por ineptidão e, por maioria de razão, o seu conhecimento oficioso.
Por isso, não devia ter sido declarada a nulidade do processado, como foi, por ineptidão da petição inicial.
Quando muito, e a ter-se entendimento diferente do que se deixou acima expresso, poderia ter sido convidado a autora a suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando-se-lhe prazo para a apresentação de articulado em que se completasse ou corrigisse o inicialmente produzido, alegando todos os factos tendo em vista a demonstração dos pressupostos da responsabilidade civil por parte do segurado da ré, sem ofensa dos limites estabelecidos no art.º 273º, tudo nos termos do art.º 508º, n.º 1, al. b) e n.º 3 do CPC, na redacção actual, dada pela reforma de 1995/96, aqui aplicável (cfr. art.º 16º do DL n.º 329-A/95, de 12/12).
A menos que tal convite se considerasse desnecessário em face da excepção deduzida pela ré.
Mas, nessa hipótese, haveria lugar à apreciação do mérito da causa.
Tudo para dizer que não podia ter sido, como foi, reconhecida a nulidade por ineptidão da petição inicial, com a consequente absolvição da ré da instância.
O agravo merece, pois, provimento.

III. Decisão

Pelo exposto acordam os juízes desta Relação em conceder provimento ao agravo, pelo que revogam o despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro em que se dê o natural seguimento à acção.
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Sem custas (art.º 2º, n.º 1, al. o) do CCJ).
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Porto 25 de Novembro de 2003
Fernando Augusto Samões
Alziro Antunes Cardoso
Albino de Lemos Jorge