Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
47/08.9IDPRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ CARRETO
Descritores: CRIME FISCAL
IMPUGNAÇÃO JUDICIAL DA LIQUIDAÇÃO
CAUSA PREJUDICIAL
EFEITOS
EFEITOS QUANTO AOS NÃO IMPUGNANTES
Nº do Documento: RP2013070347/08.9IDPRT-A.P1
Data do Acordão: 07/03/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Do art.º 47º do RGIT resulta que, ocorrendo impugnação judicial de determinada situação tributária, o processo penal tributário suspende-se até ao trânsito em julgado, constituindo essa decisão caso julgado material no processo penal tributário;
II - Tal situação só faz sentido havendo repercussão de um processo no outro - causa prejudicial -, pelo que o objecto de ambos tem de ser o mesmo ou estar numa relação de dependência directa e necessária;
III - Sendo a impugnação estritamente pessoal, não pode ela beneficiar ou prejudicar terceiros sob pena de, assim não acontecendo, se poder vir a responsabilizar outrem pela prática de factos alheios, o que, de todo em todo, é proibido no âmbito do direito penal e respectivo processo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Rec nº 47.08.9IDPRT-A.P1
TRP 1ª Secção Criminal

Acordam em conferencia os juízes no Tribunal da Relação do Porto

Na Instrução nº 47.08.9IDPRT as correr n o 3º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal do Porto, em que são arguidos
- B…,
- C…, Lda.
- D… e
- E…, Lda.

Na sequência da acusação do MºPº contra o arguidos, imputando-lhes a prática de um crime de fraude fiscal qualificada pp. pelos artºs 103º1 c) e 104º nºs 1 e 2, e artº 7º RGIT, foi requerida a abertura da instrução e foi declarado suspenso o processo por se haver constatado que a liquidação dos impostos em causa havia sido judicialmente impugnada;
Reavaliando a situação, veio o MºPº a requerer a cessação da suspensão do processo quanto aos não impugnantes.
Nessa sequência o Mº Juiz proferiu despacho indeferindo tal cessação de suspensão.

Recorre o MºPº, o qual no final da sua motivação apresenta conclusões das quais se suscita a seguinte questão:
-se deve cessar a suspensão do processo em relação aos arguidos que não impugnaram a liquidação dos impostos;

Apenas os arguidos B… e C…, Lda., responderam, ao recurso no sentido da sua improcedência;
O Mº Juiz manteve o seu despacho por não haver motivos para a separação dos processos por conexão;
Nesta Relação o ilustre PGA é de parecer que o recurso deve improceder, mantendo-se a suspensão;

Cumpridas as formalidades legais, procedeu-se á conferência
Cumpre apreciar.
È do seguinte teor o despacho recorrido:
“ Em face da conexão de processos não se mostra viável o prosseguimento dos autos apenas em relação aos arguidos que não impugnaram judicialmente a liquidação do imposto, uma vez que a apreciação da sua responsabilidade depende da apreciação dos factos da responsabilidade da impugnante. Logo a suspensão deve manter-se por mais seis meses.
Notifique o Ministério Publico.”
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É a seguinte a questão suscitada:
- se deve cessar a suspensão do processo em relação aos arguidos que não impugnaram a liquidação dos impostos;
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O âmbito dos recursos é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação (Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98), e são apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar (Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª ed., pág. 335), sem prejuízo das de conhecimento oficioso, que no caso não se suscitam nem ocorrem.
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Conhecendo:
Nos autos principais os arguidos foram acusados da pratica de um crime de fraude fiscal, por de comum acordo terem sido emitidas facturas falsas pela sociedade E… de que é sócio gerente o arguido D…, a favor da sociedade C…, Lda., de que é sócio gerente o arguido B… que as usou na sua contabilidade assim falseando a escrita e diminuindo os impostos a pagar de IRC, sendo que a parte relativa ao IVA foi arquivada por não constituir crime face ao valor previsto no artº 103º 2 RGIT;
A sociedade C…, Lda. veio a impugnara as liquidações adicionais de IVA e juros compensatórios (Proc. 2731/09.0BPRT – fls. 541), e a liquidação de IRC (proc 2429.09.0EPRT – fls. 507)

Verifica-se assim do confronto entre a acusação deduzida e os processos judicias em curso que apenas interessa o processo relativo á liquidação do IRC por terem o mesmo objecto: o IRC;
Dispõe o artº 47º RGIT:
“1 - Se estiver a correr processo de impugnação judicial ou tiver lugar oposição à execução, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, em que se discuta situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos imputados, o processo penal tributário suspende-se até que transitem em julgado as respectivas sentenças.
2 - Se o processo penal tributário for suspenso, nos termos do número anterior, o processo que deu causa à suspensão tem prioridade sobre todos os outros da mesma espécie.”
Resulta deste normativo que ocorrendo impugnação judicial sobre determinada situação tributária, o processo penal tributário suspende-se até ao trânsito em julgado, valendo a decisão caso julgado no processo penal tributário (artº 48 RGIT) constituindo assim como que causa prejudicial a resolver no processo administrativo fiscal contencioso;
Claro que tal situação só faz sentido havendo repercussão de um processo no outro / causa prejudicial, pelo que o objecto de ambos tem de ser o mesmo ou estar numa relação de dependência directa e necessária;
Já vimos que na acusação está apenas em causa o IRC, e as impugnações respeitam ao IRC e ao IVA, pelo que a impugnação respeitante ao IVA não tem efeito neste processo (ou deixou de ter efeito na suspensão - com a decisão de arquivamento) restando apenas o processo relativo ao IRC;
Existe assim fundamento para a suspensão do processo penal tributário até á decisão com trânsito da impugnação judicial relativa a esse imposto (IRC);
Tal imposto IRC é relativo á sociedade C…, Lda. e só ela o impugnou;
Como diversos são os arguidos importa saber se essa suspensão lhes é ou deve ser aplicável, o que constitui a questão central no recurso.
A resposta não é unânime nem única.
Temos seguido, e a ela é feita referência na motivação do recurso, a orientação de que a suspensão respeita apenas ao impugnante e ou apenas é extensiva aos arguidos directamente afectados com essa decisão.
E vai nesse sentido, para além da possibilidade de no mesmo um processo penal tributário ocorrerem diversas situações tributárias autónomas (envolvendo ou relativas a diferentes pessoas /sociedades, ou a diferentes impostos), o seguinte:
- O carácter individual e pessoal da acção judicial do impugnante, que apenas pode condicionar os efeitos da sua acção em relação a si mesmo, e não em relação a quem não é parte na impugnação, nem nela interveio, sendo esta uma característica intrínseca do efeito do caso julgado das decisões judiciais, que só produzem efeito, em regra, perante quem é parte na causa ou nela interveio;
E se da letra do artº 47ºRGIT (50º RJIFNA), poderia inferir-se o contrário, por se referir a todo “o processo penal fiscal”, o certo é que tal facto é desde logo contrariado pela referencia ás “ respectivas sentenças” o que inculca desde logo a existência ou possibilidade de existência de diversos arguidos e diversas impugnações ou oposições (pois o uso do plural, para significar outra coisa era desnecessário), e
por outro lado o artº 48º RGIT (e 51º RIJFNA) ao fixar os efeitos da decisão tributária, determina que “constituem caso julgado para o processo penal tributário apenas relativamente às questões nelas decididas e nos precisos termos em que o foram” do qual resulta a limitação do caso julgado apenas ás questões nele decididas e nos seus precisos termos, o que só pode entender-se como referindo-se apenas aos impugnantes perante os quais faz caso julgado e não perante quaisquer outros eventuais interessados / arguidos que nesse processo não intervieram, que não ficam por isso abrangidos pelo caso julgado.

O carácter individual da suspensão do processo ou prazo de investigação (que suspende de igual modo o prazo de prescrição (artº 21º RGIT e 15º RJIFNA) parece também emergir do disposto no artº 42º RGIT e 43º RJIFNA, ao impor a suspensão do prazo de conclusão dos actos de inquérito, enquanto não for proferida decisão sobre a situação tributária do investigado sendo também esta investigação de carácter individual.
Vão também neste sentido as correntes doutrinárias que defendem o carácter não automático da suspensão do processo penal fiscal, como o faz o Ac.R.P de 28/03/2012, processo 22/07.0IDAVR-A.P1, in www.dgsi.pt que:”A suspensão do processo penal fiscal (47º/1 RGIT) em consequência de uma impugnação judicial só reveste caráter obrigatório se a mesma for absolutamente necessária para a decisão da questão prejudicada (crime fiscal ou tributário), de modo que se lhe apresente como um antecedente lógico-jurídico, com caráter autónomo e condicionante do conhecimento da questão principal.” e também o Ac da RG de 9/1/2012, proc. 83/08.5IDPRT.G1, in www.dgsi.pt “I) Decorre do artº 47º, nº 1, do RGIT, que a suspensão do processo penal tributário não é automática e só pode ser decretada se no processo fiscal estiver em discussão situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos imputados no processo criminal.
II) In casu, ao contrário do defendido pela Recorrente, o que se discute em sede de impugnação judicial tributária não é decisivo para este processo de natureza criminal: nem para a definição da existência de fraude fiscal e sua configuração nem para a escolha e medida da pena a aplicar.”

Assim aderimos ao decidido no Ac. RP de 20/5/2009 www.dgsi.pt/jtrp nos termos do qual “Sendo vários os arguidos no mesmo processo, e tendo uns impugnado a liquidação tributária e outros não, a suspensão da prescrição prevista no art. 47º do RGIT não ocorre em relação aos arguidos que não impugnaram essa liquidação.”
O que foi reafirmado pelo Ac. RP 5/1/2011 www.dgsi.pt/jtrp
“I - O crime de fraude fiscal, realizando-se através da emissão de uma factura falsa entregue a outrem, que a incluiu na sua contabilidade, para reembolso do IVA respectivo, consuma-se na data da emissão dessa factura.
II - Havendo vários arguidos, a impugnação judicial prevista no art. 50º, nº 1, do RJIFNA só suspende o prazo de prescrição do procedimento criminal em relação aos impugnantes.” (e que retrata a situação dos autos)
E se tivermos em conta, que a suspensão do processo visa essencialmente solucionar questões de decurso do prazo de prescrição do procedimento criminal - como resulta do artº 21º4 RGIT, - e como se escreve no ac. de 20/5/2009 e “cumprindo o disposto no art. 47° do RGIT e as normas idênticas que o precederam, por um lado, a missão de garantir a receita fiscal do Estado e, por outro, a de obstaculizar a que a dedução da impugnação possa favorecer o surgimento da prescrição do procedimento criminal, dúvidas não restarão de que só poderá ser aplicável aos subscritores da impugnação e não as quaisquer outros que com eles possam ter tido uma ligação, ainda que incidental, como sejam os que lhes forneceram as facturas”, pois que a prescrição é inelutavelmente a nosso ver uma questão estritamente pessoal;
E assim sendo e sendo a impugnação estritamente pessoal, não pode ela beneficiar ou prejudicar terceiros sob pena de, assim não acontecendo, se poder vir a responsabilizar outrem pela prática de factos alheios, o que, de todo em todo é proibido no âmbito do direito penal e respectivo processo, e por só assim se encontrar legitimada, através da adequação e proporcionalidade, a restrição do direito do arguido á prescrição do procedimento criminal, pelo decurso do prazo previsto na lei penal;

Ora estando em causa apenas o IRC, da sociedade C… e apenas ela impugnou judicialmente a liquidação, apenas em relação a ela se suspenderia o processo.
Só que a responsabilidade do seu gerente emerge da responsabilidade da sociedade e por causa dela, e por isso estritamente ligada e inseparável dela. Deveria por isso seguir o mesmo regime.
Há que ponderar todavia quem pode impugnar a liquidação é a sociedade devedora e que esta apenas é do conhecimento desta e dos seus gerentes, pelo que obviamente os demais arguidos não têm nem podem ter conhecimento da liquidação e legitimidade para a impugnação, donde não podem ser impugnantes, e assim sendo também por esta via não pode o processo penal tributário ser, por via do disposto no artº 47º RGIT suspenso em relação a eles, não sendo afectados/ prejudicados pela decisão que vier a ser proferida na impugnação (apenas eventualmente beneficiados);
Assim a suspensão do processo apenas se deveria manter em relação á impugnante C… e seu gerente por lhe dizer directamente respeito face á directa relação de dependência entre uma responsabilidade, a sua, e a outra, a da sociedade, sendo ainda que por via de responsabilidade subsidiária e solidária (artº 8º RGIT) mesmo em caso de absolvição sua, tem o direito de estar presente e intervir, no julgamento da sociedade e seu, não podendo ocorrer esse julgamento sem a sua intervenção, em conformidade com o disposto no artº 49º RGIT.

Deveria por isso ser alterada a decisão recorrida, que deveria ser substituída por outra que fizesse cessar a suspensão em relação aos arguidos E…, Lda. e seu gerente D… e a mantivesse em relação aos arguidos C… e B….
Só que - e é por isso que as decisões judiciais incidem sobre casos concretos e não sobre construções abstractas, cheias de cambiantes - os presentes autos teriam de prosseguir com a instrução que foi requerida pelo arguido B…, conforme fls. 46 e por essa via da instrução esta também diz respeito a todos os arguidos (devendo o despacho de pronuncia ou não pronuncia dizer respeito a todos – artº 307º 4 CPP). Ora, essa fase processual não pode ser ultrapassada e não faz sentido, nem podem os autos prosseguir em instrução sem o seu requerente (isto é com o processo suspenso em relação a si).
Assim o adequado não será manter a suspensão do processo em relação a todos os arguidos (impugnantes e não impugnantes), nem mandar prosseguir, atenta a fase processual, em relação aos arguidos E…, Lda. e D… seu gerente, mas antes fazer cessar a suspensão também em relação ao gerente B…, de modo a que possa prosseguir a instrução que requereu.
Tem esta decisão um efeito pratico relevante, que é o de permitir o prosseguimento do processo e entretanto, face á fase em que se encontram as impugnações judiciais já decidias sem transito (em recurso) permitir que sejam decididas definitivamente estas impugnações.

Assim a impugnação judicial apenas determina a suspensão do processo penal fiscal em relação ao impugnante e em relação aos directamente afectados como seja o seu gerente, que responde com aquela e nos mesmos termos por força do artº 8º 7 RGIT, a não ser que circunstancias particulares imponham outra solução;

Assim e porque é o caso, deve prosseguir o processo penal em relação aos arguidos B… e E…, Lda. e D…, e ser mantida a suspensão em relação á impugnante C…, Lda.;
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Pelo exposto, o Tribunal da Relação do Porto decide:
- Julgar procedente o recurso interposto pelo MºPº e em consequência revoga o despacho recorrido que deve ser substituído por outro que determine o prosseguimento dos autos com a instrução requerida pelo arguido B…, e mantendo-se o processo suspenso apenas em relação á impugnante C…, Lda.
Sem custas
Notifique.
Dn
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Porto, 3/7/2013
José Alberto Vaz Carreto
Joaquim Arménio Correia Gomes