Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0845208
Nº Convencional: JTRP00041903
Relator: PINTO DE MONTEIRO
Descritores: SEGREDO DE JUSTIÇA
Nº do Documento: RP200811260845208
Data do Acordão: 11/26/2008
Votação: MAIORIA COM 1 VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 342 - FLS 291.
Área Temática: .
Sumário: Com vista à validação da decisão em que determina a aplicação do segredo de justiça no inquérito, nos termos do nº 3 do art. 86º do Código de Processo Penal, o Ministério Público tem de indicar naquela decisão os elementos concretos que, em seu entender, justificam a aplicação do segredo de justiça.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: P.º n.º 5208/08 – 4

Acordam, em conferência, na 4.ª sec. (2.ª sec. criminal) do Tribunal da Relação do Porto:

Inconformado com a decisão do senhor juiz de instrução do Tribunal Judicial de Santo Tirso de não validar o seu despacho em que determinou a aplicação do segredo de justiça a um inquérito a correr seus termos nos Serviços do Ministério Público junto daquele tribunal, dele interpôs recurso o M.º P.º, cuja motivação concluiu nos termos que se passam a transcrever ipsis verbis:
1.Tratando-se de um inquérito por eventual crime de maus-tratos, em que o Ministério Público, na sequência da Directiva do Procurador-Geral da República, determinou a aplicação do segredo de justiça, não pode nem deve o Juiz de Instrução Criminal, sem mais, não validar essa determinação;
2.O Juiz de Instrução Criminal não pode ignorar as indicações sobre política criminal constantes das Leis Lei n.º 17/2006 de 23 de Maio e as funções que nesse âmbito atribui ao Ministério Público e ao Procurador-Geral da República e os objectivos, prioridades e orientações de política criminal para o biénio de 2007-2009 (Lei n.º 51/2007), entre os quais se situa a prioridade e eficácia na investigação dos crimes de maus tratos e da promoção das vítimas especialmente frágeis;
3.A Directiva invocada pelo Ministério Público no despacho de aplicação do segredo de justiça, apresenta-se também, face às dificuldades criadas pela Lei n.º 48/2007, como instrumento de concretização dos objectivos da política criminal, estabelecidos para este biénio e não como um acto voluntarista, infundamentado e desproporcional, que a decisão recorrida pudesse ignorar, apesar do papel que desempenhara no falado despacho não validado;
4.A Directiva teve em conta as alterações introduzidas pela Lei n.º 48/2007 em fase de investigação, que justificam, pelas implicações na forma como o Ministério Público deverá dirigir o inquérito e exercer a acção penal, a adopção de orientações adequadas a garantir uma actuação uniforme desta magistratura, tendo em conta o seu carácter unitário e hierarquizado, designadamente quanto ao segredo de justiça quando visam, como no caso, crimes cuja investigação eficaz é prioritária, não só pelo perigo de reincidência que significam, como pelas lesões das vítimas vulneráveis, cuja protecção foi tida igualmente como prioritária;
5.O Juiz de Instrução Criminal, ao validar ou não o segredo de justiça cuja aplicação foi determinada pelo Ministério Público, não pode deixar de ter presente que se trata exactamente de “validar” e não de “determinar” (o que já foi feito) o que postula atitudes e competências diferentes;
6.Ao Ministério Público compete, apreciando os parâmetros legais e tendo presente que está num domínio e numa fase de investigação cuja condução lhe pertence, determinar se a aplicação do segredo de justiça é necessária à investigação, à protecção da vítima ou do arguido, e não é excessivamente onerosa;
7.Ao Juiz de Instrução não compete, ao validar essa determinação, substituir-se ao Ministério Público no juízo que a este cabe, mas com bom senso e parcimónia, verificar se do seu ponto de vista de juiz das liberdades, existem elementos concretos que permitam afirmar o carácter excessivamente gravoso, desproporcionado daquela determinação;
8.A decisão recorrida extravasa esse controlo, substituindo-se à apreciação do Ministério Público, no seu próprio campo, sem tomar em consideração a Directiva invocada por este e os objectivos da política criminal;
9.A responsabilidade indeclinável do Juiz de Instrução tem a ver com o equilíbrio e a ponderação entre as exigências da investigação (aceitando, à partida, que essas exigências são como o Ministério Público as configura), por um lado, e o direito de defesa do arguido, por outro lado; e não o juízo e ponderação a respeito dos interesses da investigação, por si só;
10.Nessa ponderação entre os interesses da investigação encabeçados pelo Ministério Público e os direitos de defesa do arguido, deve ter em conta se está perante situações reais de perigo de lesão grave destes direitos, como acontece no caso de aplicação de medida de coacção de prisão preventiva, ou se não o sendo, os direitos de defesa do arguido têm um peso menor, por não comprometidos por espera por fases ulteriores do processo, essas sim já dominadas pelo princípio do contraditório;
11.A decisão recorrida mostra-se insuficientemente fundamentada, pois que, mesmo na sua óptica, não esclarece quais são os outros meios de reacção e de protecção aos interesses da vítima que não contendem com a possibilidade de defesa por parte do arguido; em que é que a possibilidade de defesa por parte do arguido é significativamente contundida pelo segredo de justiça determinado pelo Ministério Público;
12.E, quando sustenta que não está concretizado porque motivo interessa à investigação que os autos se mantenham em segredo de justiça, viola os conhecimentos da experiência comum que indicam que, neste tipo de situações em que frequentemente a vítima reside com o agente e é dele dependente, aquela corre graves riscos quanto este se apercebe que foi apresentada queixa e decorre um inquérito;
13.Com esse conhecimento o agente, para além do risco de repetição dos eventos, está em condições de fazer pressão sobre a vítima e muitas vezes sobre as testemunhas, podem facilmente perturbar a eficácia do inquérito, além de perturbar a vítima, normalmente muito frágil neste tipo de crimes;
14.Por todas estas razões deveria o M. Juiz a quo ter validado a determinação do Ministério Público de aplicar ao presente inquérito o segredo de justiça;
15.Deve o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que valide a determinação de sujeição do presente processo a segredo de justiça.
X X X
Na 1.ª instância não houve resposta ao recurso.
Pelo Exmo. juiz que proferiu o despacho recorrido foi proferido despacho de sustentação do mesmo, nos termos que se passam a transcrever na parte que interessa a esta decisão:
Cumpre, agora, proferir despacho a sustentar ou reparar o agravo, nos termos do disposto no art.º 414.º, n.º 4, parte final, do Código de Processo Penal.
Sustentaremos o agravo, por entendermos que a decisão recorrida não merece censura, de resto, como foi já decidido no âmbito de quatro outros recursos interpostos de decisões essencial e praticamente idênticas em vários Inquéritos desta comarca e apreciados pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto – vide os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 07-05-2008, 28-05-2008, 04-06-2008, 11-06-2008 e 25-06-2008 in www.dgsi.pt/jtrp, fazendo-se consignar que se desconhece qualquer decisão em sentido contrário.
Sustentaremos o agravo, por entendermos que a decisão recorrida não merece censura.
Os argumentos apresentados pelo Ministério Público recorrente não merecem o nosso acolhimento e, em nosso entendimento, não abalam minimamente as razões da decisão recorrida.
Apreciando, então:
I.
A primeira questão que se impõe apreciar é a de que o despacho recorrido nem sequer abordaria a questão da temática contida na invocada Circular.
Desde logo importa ponderar que uma Circular do Ministério Público tem validade para o próprio Ministério Público e não para os Magistrados Judiciais; evidentemente que o conteúdo das mesmas até pode aproveitar à prática judiciária dos magistrados judiciais, mas não pode ter a pretensão de ter qualquer validade e/ou eficácia para a magistratura judicial, aliás, nem sequer sendo comunicada aos magistrados judiciais; para abordarmos a temática inserida numa Circular, necessário se tornaria que o Ministério Público fizesse verter para o seu despacho ou para qualquer promoção o conteúdo da mesma, tanto mais que dos muitos ramos do Direito que conhecemos, confessadamente temos que assumir que não conhecemos o ramo do Direito Circulatório.
Assim, se não abordamos a temática de tal Circular, tal deve-se ao facto de não sermos obrigados a conhecê-la e o Ministério Público não ter vertido para o respectivo despacho o conteúdo da mesma, limitando-se a invocá-la.
II
Quanto ao segundo argumento invocado pelo Ministério Público, aludindo, então, ao conteúdo e temática da mesma Circular, resultaria que a mesma se integraria no contexto da política criminal e prioridades ao nível da prevenção criminal, designadamente no que respeita a certo tipo de crimes, especificamente no que tange a crimes como a violência doméstica e os maus-tratos, sendo de promover a protecção de vítimas especialmente indefesas, o que não teria sido considerado no despacho recorrido.
Estamos cientes das políticas criminais vigentes e prioridades estabelecidas ao nível da prevenção criminal, no que tange a certos tipos de crimes, como os crimes de maus-tratos e de violência doméstica; simplesmente aderir ao entendimento preconizado pelo Ministério Público significa que sempre que se esteja perante aquele tipo de crimes, então, será determinado sempre o segredo de justiça; ou seja, em abstracto estabelece-se a regra do segredo de justiça sempre que o objecto dos autos seja um crime de catálogo elencado pelo Ministério Público, independentemente de, em concreto, haver necessidade e adequação para tal estatuição; não podemos concordar com tal entendimento; será caso a caso, numa análise casuística que se ponderará e determinará a necessidade de sujeição deste ou daquele Inquérito a segredo de justiça; também não é verdade que não se tenha tido em consideração os interesses da vítima; necessário se torna é averiguar qual o concreto interesse da vítima, pela análise mais uma vez específica e concreta do caso de cada Inquérito, para se concluir ou não por tal necessidade; o que o Ministério Público faz é presumir que o interesse da vítima é sempre o mesmo: o de que se trata de uma pessoa frágil e indefesa e de que a mesma não pretende que, quer o arguido, quer terceiros, tomem conhecimento da existência do Inquérito e dos termos do mesmo; tal presunção não se nos afigura correcta, tanto mais que a mesma pode constituir, precisamente, a antítese, o oposto daquilo que a vítima poderá querer: basta pensar que muitas vezes, a vítima até pretende que haja conhecimento da pendência do Inquérito, precisamente para, por tal via, exercer pressão sobre o autor dos factos, no sentido de afastá-lo da continuação ou renovação da actividade criminosa; da mesma forma pode até ter interesse na publicidade dos autos, para que outras situações reportadas a outras vítimas sejam reveladas.
III.
O terceiro argumento sustentado pelo Ministério Público é o de que o despacho recorrido não pode sindicar a tomada de posição por parte do Ministério Público, já que não se trata de uma forma de controlo da actividade e opções do Ministério Público, não podendo ser posta em causa a fundamentação do Ministério Público, não podendo o JIC optar pela não validação da determinação do Ministério Público.
Pois bem, apreciando este argumento:
Não pode ser posto em causa o despacho do Ministério Público?
Então qual é a intervenção que o Juiz de Instrução Criminal tem ao nível do art.º 86.º, n.º 3, parte final, do Código de Processo Penal? Será que na sequência do despacho do Ministério Público que determina a sujeição dos autos a segredo de justiça a única possibilidade que existe ao JIC, é a de julgar válido tal despacho? Não existe a opção de não julgar o mesmo inválido? Cremos que exigindo-se a intervenção do JIC, aquilo que se pretende, precisamente, é que este pondere da validade ou invalidade de tal despacho, sob pena de tornar a intervenção do JIC num mero autómato que se limita a apor um carimbo, com os dizeres: “Válido” e a rubricar por cima; cremos, evidentemente, que não existe qualquer limitação quanto à possibilidade de validação ou declaração de invalidade do despacho do Ministério Público.
IV.
Por referência ao despacho recorrido propriamente dito, veio o Ministério Público sustentar que o mesmo não teve em consideração que houve fundamentação concreta no despacho do Ministério Público, já que o Ministério Público teve em consideração o tipo de crime objecto dos autos, sendo de ponderar à dificuldade, melindre e possibilidade de interferência e até reincidência dos agentes deste tipo de crime, o que é de conhecimento comum;
Quanto a este argumento, conforme já referido, o entendimento que o tribunal tem vindo a adoptar é o de que não basta uma mera alegação genérica e abstracta por referência ao tipo de crime; se assim fosse, enuncia-se um catálogo de crimes e estabelece-se a regra genérica e abstracta, não se analisando o caso concreto; quanto à alegada dificuldade, melindre e possibilidade de interferência e até reincidência dos agentes deste tipo de crime, nada nos autos nos permite tal conclusão, sendo certo que a nossa experiência leva-nos, precisamente, à conclusão contrária: conforme já supra mencionado, é muitas e frequentes vezes o conhecimento por parte do arguido da pendência e dos termos do Inquérito que faz cessar a continuação criminosa, sendo muitas e frequentes as vezes em que inclusivamente é apresentada queixa apenas para impor receio no agente e fazê-lo cessar com tal actividade; assim se compreende, de resto, o número de despachos de suspensões provisórias que no âmbito deste género de crimes, se verifica constituir uma opção por parte do Ministério Público no termo dos Inquéritos respectivos.
Mas, veio o Ministério Público sustentar, ainda, que o despacho recorrido, ao referir que por referência aos interesses da vítima existem outros meios de reacção e de protecção que não contendem com a possibilidade de defesa do arguido, o despacho recorrido não especifica que meios são esses: não os referimos por se entender que são tão notórios que dispensavam necessidade de citação: basta pensar na realização de interrogatório judicial de arguido e na sujeição do mesmo a um estatuto coactivo para proteger a vítima (proibindo, por exemplo o arguido, de frequentar a mesma habitação e de contactar com a ofendida).
V.
Quanto aos demais argumentos invocados pelo Ministério Público nas respectivas alegações de recurso, designadamente de que é também do conhecimento comum que neste tipo de situações, em que frequentemente a vítima encontra-se dependente do autor dos factos, a mesma corre riscos, quando o arguido se apercebe da pendência da queixa e do Inquérito, sendo o JIC o garante dos direitos não só do arguido, mas também da vítima.
Sobre este argumento já nos pronunciamos supra: é precisamente a circunstância de por vezes o autor dos factos saber que está a ser alvo de investigação que, não poucas vezes, faz cessar a reiteração da actividade criminosa, sendo certo que não será de olvidar, também, um eventual interesse da vítima em publicitar este tipo de situações para que outras sejam denunciadas; o que sucede é que nada nos autos nos permite concluir que o interesse da vítima tal como o Ministério Público o definiu – ou presumiu – é aquele que se verifica efectivamente; aliás, se o interesse da vítima for o de que os autos fiquem sujeitos a segredo de justiça pode sempre em qualquer momento do Inquérito formular requerimento em tal sentido, conforme previsto no art.º 86.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, salientando-se que aí se prevê a legitimidade para tal requerimento não só ao assistente, mas também ao ofendido, ainda que não constituído assistente; presumir, como o Ministério Público o faz, que o interesse da vítima é um, sem se saber se é ou não e quando a mesma tem meios processuais ao seu dispor para o efeito, afigura-se-nos excessivo e desadequado.
Impõe-se uma outra consideração: para concluirmos que estamos perante apenas considerações abstractas e teóricas por parte do Ministério Público, teremos de consignar, a par do que já efectuamos supra, que até ao momento e estando-se perante, então, uma situação alegadamente tão grave para os interesses da vítima, nada efectuou, ainda, o Ministério Público quanto a esses interesses, como promover a realização de interrogatório judicial do arguido, tendo em vista a definição do respectivo estatuto coactivo, mediante a aplicação de uma medida de coacção como a proibição de contactos com a vítima e a obrigação de se ausentar (ou proibição de permanecer) na residência do casal, tudo a revelar que o Ministério Público sustenta argumentos que, em concreto e por referência ao caso dos autos, não encontra ressonância real, impondo-se a conclusão de que o Ministério Público fala de conceitos e políticas genéricas e abstractas, desligando-se do caso dos autos; não se pode, pois, presumir seja o que for, sendo necessário analisar caso a caso e nada nos autos nos permite concluir no mesmo sentido do Ministério Público.
O Ministério Público veio alegar, ainda, que o despacho recorrido sustentaria, ainda, que não se vislumbraria qualquer possível lesão para a investigação decorrente da publicidade dos autos, o que não corresponderia à realidade: o tipo de crime, o nível de reincidência, a pressão que o agente é susceptível de exercer sobre a vítima e até sobre as testemunhas, é susceptível de interferir no andamento da investigação.
Quanto a este argumento, conforme se referiu, estamos, também aqui, perante uma alegação do Ministério Público genérica e vaga, não concretizada: os interesses da investigação existirão quando, por exemplo, existem diligências em curso, cujo conhecimento pelo arguido e/ou por terceiros poderão colocar em risco o seu êxito: referirmo-nos aos casos em que se encontram promovidas/autorizadas intercepções telefónicas ou, para dar um exemplo muito concreto por referência ao tipo de crimes idênticos ao caso dos autos, como já o fizemos ainda recentemente no âmbito de um outro Inquérito pendente nesta comarca: bastará pensar numa promoção/autorização de busca domiciliária para apreensão de uma arma com a qual os maus-tratos ou a violência doméstica se faz sentir; conforme referido, é da análise do caso concreto que se deve retirar a necessidade e adequação da sujeição dos autos a segredo de justiça; in casu, o Ministério Público efectua uma alegação genérica e não fundamentada no caso concreto, sendo que por referência à possível interferência do autor dos factos, já nos pronunciamos supra, quanto à possibilidade de protecção/tutela de vítima e de testemunhas; mais, no seu recurso, o Ministério Público nem sequer é capaz de adiantar quais as diligências de Inquérito em curso cujo sucesso esteja dependente da sujeição dos autos a segredo de justiça e não o faz porque, evidentemente, as mesmas inexistem, pois caso contrário não deixaria de argumentar nesse sentido.
Uma outra consideração se impõe, já que o Ministério Público veio sustentar que resultaria ilógico aguardar pelas diligências de Inquérito, sob a égide da publicidade, para subsequentemente se concluir pela necessidade de se sujeitar a segredo aquilo que já se investigara; não é assim: primeiro nada obriga (a não ser, como é alegado pelo Ministério Público, a invocada Circular) a que o segredo de justiça seja declarado no início do Inquérito; pode ser declarado em qualquer momento do Inquérito, conforme se nos afigura que fluí do art.º 86.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, pelo que um Inquérito pode decorrer sob a égide da publicidade e, a partir de tal momento, ser declarado sob sujeição a segredo de justiça, em virtude de ser necessário, por exemplo e como já referido, em dado ponto da investigação, realizar uma busca para apreensão de objectos; a própria alegação do Ministério Público – invocando a mencionada Circular – de que é no início do Inquérito que deve ser declarado o segredo de justiça revela que o Ministério Público parte de considerações teóricas e abstractas, desligando-se de cada caso concreto, em matéria de segredo de justiça.
Em síntese:
Não se pode partir de certas situações de crime catálogo e de considerações abstractas e genéricas, teóricas mesmo, para se sujeitar a segredo de justiça um Inquérito e, em específico o presente Inquérito, devendo proceder-se a uma análise casuística; efectuada tal análise no caso dos autos, nada nos permite concluir pela necessidade ou adequação do despacho do Ministério Público, não estando o JIC limitado no despacho a proferir nos termos do art.º 86.º, n.º 3, parte final do Código de Processo Penal.
Este o nosso entendimento, motivo pelo qual mantemos o despacho recorrido.
Decidindo, porém, Vossas Excelências farão, como sempre, Justiça.”
X X X
Neste tribunal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto apôs um visto nos autos.
Pela Exma. Desembargadora desta secção a quem o processo foi distribuído foi elaborado projecto de acórdão que, em conferência, não logrou vencimento, pelo que o processo foi concluso ao ora relator, na qualidade de 1.º adjunto, para elaboração do acórdão.
Cumpre decidir.
Tendo em conta as conclusões da motivação do recurso e que estas delimitam o seu objecto, são duas as questões nele suscitadas que importa decidir, que se enunciam pela ordem por que devem ser conhecidas: a) o despacho recorrido encontra-se deficientemente fundamentado; b) a decisão recorrida extravasa o controlo permitido ao juiz de instrução, no n.º 3 do art. 86.º do C. P. Penal, da decisão do M.º P.º de determinar a aplicação do segredo de justiça.
Dos autos, com interesse para a decisão das questões supra enunciadas, constam os seguintes elementos:
Os factos denunciados integram a prática de um crime de violência doméstica p.p. nos termos do art. 152.º, n.1, al. a), do Código Penal.
Na certidão com que foi instruído o presente processo foi consignado que não há conhecimento de arguido constituído nos autos.
É do seguinte teor o despacho do M.º P.º a decretar o segredo de justiça:
“Atenta a determinação efectuada na Directiva de 09/01/2008, definida por sua Excelência o Conselheiro Procurador-Geral da República (remetida com o Ofício-Circular n.º 5/2008 de 15/012008) no sentido de que “Sempre que esteja em causa investigação relativa aos crimes previstos no artigo 1.º, alíneas j) a m) do Código de Processo Penal (…) o Ministério Público determinará, no início do Inquérito, a sujeição deste a segredo de justiça…”, nos termos do art.º 86.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, dado que o crime em investigação nos presentes autos - cfr. o art.º 152.º do Código Penal - é punível com pena de prisão até 5 anos, tratando-se, pois, atenta ainda a natureza dos bens jurídicos protegidos pela incriminação, da “criminalidade violenta” a que alude o art.º 1.º, j), do Código de Processo Penal, a publicidade destes autos seria, em concreto, lesiva para os interesse da investigação e do ofendido, determino a aplicação a estes do segredo de justiça – cfr. artigo 86.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
Para os efeitos previstos na parte final desse número, apresente os autos ao Meritíssimo JIC no prazo aí previsto”.
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E é do seguinte teor o despacho recorrido:
“Não valido o despacho proferido pelo Ministério Público a fls. 10, nos termos do art.º 86.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
Efectivamente, o Ministério Público limita-se a invocar uma Circular do Ministério Público e a fundamentar o seu despacho na mesma e no tipo de crime objecto dos autos, teorizando que, em face de tal Circular e do tipo de crime, não se olvidando a natureza dos bens jurídicos protegidos, a publicidade dos autos seria lesiva, em concreto, para os interesses da investigação e do ofendido.
Sustenta tal carácter lesivo, afirmando: “em concreto”, mas não especifica, não concretiza, não obstante o alegado, limitando-se o Ministério Público a retirar tal consequência da invocada Circular (que desconhecemos e não temos de conhecer), do tipo legal e dos bens protegidos: ou seja, parte de pressupostos abstractos que terão aplicação a todas as situações idênticas e não refere qualquer elemento concreto da situação objecto dos autos.
Em conformidade com o exposto, não se valida o referido despacho.”
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a) Segundo o Ministério Público, o despacho recorrido mostra-se deficientemente fundamentado por, mesmo na sua óptica, não esclarecer quais os outros meios de reacção e de protecção dos interesses da vítima que não contendem com a possibilidade de defesa por parte do arguido e em que medida é que a possibilidade de defesa do arguido é significativamente afectada pelo segredo de justiça por si determinado.
Estabelece o n.º 1 do art. 205.º da CRP que as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.
O despacho recorrido, na medida em que não validou a decisão do M.º P.º de sujeitar o inquérito em causa a segredo de justiça, não é de mero expediente, mas sim um acto decisório. Como tal, tinha de ser fundamentado na forma prevista na lei, ou seja nos termos estabelecidos no n.º 5 do artigo 97.º do C. P. Penal, segundo o qual os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.
A decisão recorrida foi fundamentada nos termos que constam do seu texto, acima integralmente transcrito. Dele constam os fundamentos de facto e de direito da decisão. Com efeito, como fundamento de facto invocou o senhor juiz que o proferiu a circunstância de o M.º P.º não ter indicado as concretas razões pelas quais considera que ao inquérito em causa deve ser aplicado o segredo de justiça, tendo-se limitado a considerações de ordem genérica; e como fundamento de direito a circunstância de ter estribado a sua decisão, essencialmente, numa circular do Procurador-Geral da República, que não conhece nem tem obrigação de conhecer e, embora de forma implícita, a que não está vinculado.
Ao contrário do que parece ser o entendimento do M.º P.º expresso na conclusão n.º 11 da motivação do recurso, ao senhor juiz que proferiu o despacho recorrido não incumbia indicar-lhe quais os meios de reacção e de protecção dos interesses da vítima que não contendem com a possibilidade de defesa por parte do arguido e em que medida é que a possibilidade de defesa por parte deste é significativamente afectada pelo segredo de justiça determinado. Apenas tinha de verificar se, no caso concreto, eram válidos os fundamentos invocados pelo Ministério Público para a determinação da aplicação do segredo de justiça, ou seja se se verificavam os pressupostos para que fosse proferida decisão no sentido em que o foi. A avaliação desses pressupostos cabia, em primeira linha, ao Ministério Público, a fim de decidir pela declaração ou não do segredo de justiça.
Mas ainda que o despacho estivesse deficientemente fundamentado, sempre a possibilidade de reacção do Ministério Público quanto a tal questão, nesta fase, estaria precludida. Com efeito, a não fundamentação dos despachos na forma prevista na lei não é cominada como nulidade no Código de Processo Penal, constituindo uma mera irregularidade, a arguir nos termos do art. 123.º daquele código. Sendo certo que, quando interpôs recurso da decisão recorrida já se havia esgotado o prazo para arguir a eventual irregularidade. Razão pela qual ficou sanada.
b) Todas as decisões, por banda desta Relação, dos recursos em que foram apreciadas questões exactamente iguais à agora em apreciação, praticamente todas elas suscitadas no Tribuna Judicial de Santo Tirso, têm sido no sentido de negar provimento aos recursos. Não se trata, porém, de uma questão pacífica, a justificar uma decisão sumária, nos termos da al. d) do n.º 6 do art. 417.º do C. P. Penal. Com efeito, no acórdão deste tribunal de 28/05/08, publicado em www.dgsi.pt., houve um voto de vencido e, no presente processo, como já acima foi referido, o projecto de acórdão elaborado pela Exma. Desembargadora a quem o processo foi distribuído não logrou vencimento, por o ora relator, na qualidade de 1.º adjunto, e o Exmo. Presidente da Secção terem discordado da decisão proposta.
Estabelece o n.º 1 do art. 86.º do C. P. Penal que o processo penal é, sob pena de nulidade, público, ressalvadas as excepções previstas na lei. Significa isto que a regra é a da publicidade, só havendo lugar à aplicação do segredo de justiça em casos excepcionais, previstos na lei. Os números 2, 3 e 7 do mesmo artigo estabelecem as excepções à regra geral da publicidade do processo penal, e que se justificam essencialmente quando a publicidade prejudique os interesses da investigação ou os direitos dos sujeitos ou participantes processuais, ou então quando estejam em causa dados relativos à reserva da vida privada que não constituam meios de prova.
Nos termos da parte final do n.º 3 daquele artigo, a decisão do M.º P.º de determinar a aplicação do segredo de justiça ao processo, durante a fase do inquérito – sempre que entender que o interesses da investigação ou os direitos dos sujeitos processuais o justifiquem – fica sujeita a validação pelo juiz de instrução.
No caso, o Ministério Público fundamentou a sua decisão na Directiva de uma Circular do Exmo. Procurador-Geral da República e na circunstância de entender que a publicidade seria, em concreto, lesiva dos interesses da investigação e dos direitos da ofendida.
No que diz respeito à Circular do Exmo. Procurador-Geral da República, entendemos, tal como já foi decidido em vários dos acórdãos deste tribunal, de que se cita a título de exemplo o Ac. de 24 de Setembro de 2008, publicado em www.dgsi.pt, a mesma, ao contrário do que parece ser o entendimento do M.º P.º expresso nas conclusões da motivação do recurso, não só não é fonte de direito, como também não vincula os juízes, não lhe devendo estes obediência; apenas vincula os magistrados do M.º P.º. Com efeito, do teor das conclusões da motivação do recurso, nomeadamente das constantes dos n.ºs 1 a 5, fica-se com a sensação de que o Ministério Público defende que os juízes devem obediência à Directiva constante daquela Circular e que a mesma tem força de lei, indo até mais além, pois tal Circular visaria contornar as dificuldades criadas pela Lei n.º 48/2007, ou seja, se bem entendemos o que o M.º P.º quis dizer, uma vez que a Lei n.º 48/2007, ao disciplinar o segredo de justiça nos termos em que o fez, criou dificuldades à investigação, estas contornam-se através das instruções emanadas da Procuradoria-Geral da República. Na prática, a Circular em causa visaria derrogar as disposições do Código de Processo Penal que disciplinam a matéria do segredo de justiça.
Como é óbvio, as coisas não funcionam assim.
Relativamente ao tipo legal de crime que se investiga no inquérito em causa – violência doméstica -, também como já foi decidido em acórdãos deste tribunal, não existindo quaisquer crimes de catálogo a impor a obrigatoriedade legal de sujeição do inquérito a segredo de justiça, o decretamento deste tem de ser feito caso a caso e devidamente fundamentado, não bastando para tanto a circunstância de o crime se inserir no contexto da criminalidade violenta.
O dizer-se que a publicidade dos autos é, em concreto, lesiva para os interesses da investigação e da ofendida e não se dizer nada, em termos de facto, para o efeito pretendido, é exactamente a mesma coisa. A publicidade é lesiva para os interesses da investigação e da ofendida porquê?
Repare-se que, tendo até em conta a forma verbal utilizada – seria – nem sequer se pode dizer que o M.º P.º considerou que a publicidade é efectivamente lesiva dos referidos interesses. Trata-se-ia apenas de uma mera probabilidade.
A validação do despacho do Ministério Público por parte do senhor juiz de instrução criminal, nos termos em que foi proferido, equivaleria à aposição, por este, de uma mera chancela no mesmo.
O juiz de instrução, para poder validar o despacho do Ministério Público, tem de saber, em concreto, as razões pelas quais a publicidade é lesiva para os interesses da investigação e da ofendida, razões essas que devem ser devidamente especificadas. É que se o legislador entendeu, bem ou mal, não está agora em causa, que o despacho do Ministério Público deve ser validado pelo juiz de instrução criminal, a decisão de validação não pode constituir o cumprimento de uma mera formalidade, pois certamente que não foi essa a intenção do legislador. A decisão do juiz de validar o despacho do Ministério Público tem de ter algo por trás, tem de ter substrato.
Aliás, o próprio Ministério Público reconhece que para validar a decisão de submeter o processo a segredo de justiça o juiz de instrução criminal necessita de elementos concretos para o fazer. Com efeito, refere na conclusão n.º 7 que ao juiz de instrução cabe “…verificar se do seu ponto de vista de juiz das liberdades, existem elementos concretos que permitam afirmar o carácter excessivamente gravoso, desproporcionado daquela determinação”. Do despacho do Ministério Público não constam elementos concretos que permitam uma decisão conscienciosa da sua validação.
X X X
Deste modo, nega-se provimento ao recurso.
Sem tributação.
X X X

Porto, 2008/11/26
David Pinto Monteiro
Arlindo Manuel Teixeira Pinto
Isabel Celeste Alves Pais Martins (vencido conforme declaração de voto que junto)

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DECLARAÇÃO DE VOTO

No projecto de acórdão que, oportunamente, elaborei e não logrou obter vencimento, sustentei a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro, de validação da decisão do Ministério Público de sujeitar o inquérito a segredo de justiça.
Com os seguintes fundamentos, que, agora, reafirmo:
1. Na versão inicial do Código de Processo Penal (CPP), o segredo de justiça constituía um regime legal das fases preliminares do processo - do inquérito e da instrução embora, findo o inquérito, se quebrasse o segredo interno e passasse a existir um acesso pleno aos autos pelos sujeitos processuais.
No actual regime, introduzido pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, o segredo de justiça aparece como uma excepção à regra geral da publicidade (externa e interna) do processo penal, proclamada no n.º 1 do artigo 86.º do CPP, mesmo nas fases preliminares do processo.
O legislador quis romper com o modelo anterior. Fê-lo de surpresa, com alterações de última hora [1], sem elucidar «os aplicadores do Direito sobre os fundamentos do concreto regime que criou, sobre a arquitectura jurídica do mesmo, nem as vantagens que visa atingir com as novas soluções legais e o que está disposto a sacrificar para o efeito por decisão sua»[2].
Não obstante, o segredo de justiça está previsto no artigo 20.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa e reclama adequada tutela enquanto visa garantir aspectos essenciais do processo penal: interesses públicos e interesses particulares associados à realização da justiça penal. Com o segredo de justiça não é só a eficácia da investigação que se quer salvaguardar mas, através dele, alcança-se, também, a protecção de interesses de particulares (v.g. das vítimas) e da própria presunção de inocência do arguido e dos suspeitos que não chegam, sequer, a ser constituídos arguidos.
«A consagração de um regime de segredo de justiça que o subverte, o coloca como excepção onde anteriormente representava a regra e praticamente o suprime, não pode deixar de ser considerada uma protecção “desadequada” do segredo de justiça.»[3]
2. A Lei n.º 48/2007 fixa inequivocamente a regra da publicidade - interna e externa - do inquérito[4].
Resulta do artigo 86.°, n.º 2, que o inquérito é, em regra, público e só quando o juiz de instrução entenda que a publicidade prejudica os direitos dos sujeitos ou participantes processuais é que ele pode ser declarado secreto.
Também o Ministério Público pode afastar a regra da publicidade do inquérito se entender que os interesses da investigação ou os direitos dos sujeitos processuais o justificam.
O n.º 3 do artigo 86.° contempla a hipótese de a sujeição do inquérito a segredo ser decidida pelo Ministério Público, por sua iniciativa, sem requerimento dos sujeitos processuais, nesse sentido. A decisão do Ministério Público carece, no entanto, de ser validada pelo juiz de instrução, no prazo máximo de setenta e duas horas.
Ou seja, a lei criou um regime em que o titular do inquérito (artigo 263.º, n.º 1, do CPP) não pode decidir por si só da sujeição do inquérito a segredo.
São tais e tantos os problemas originados pela exigência de validação pelo juiz de instrução da decisão do Ministério Público de sujeitar o inquérito a segredo de justiça que a sua eliminação numa próxima revisão do CPP já foi sugerida.
FREDERICO COSTA PINTOS [5], depois de se debruçar sobre dificuldades que a exigência de validação contida no artigo 86.º, n.º 3, suscita e demonstrar que, para elas, dificilmente se alcançam soluções satisfatórias e isentas de dúvidas, afirma:
«Tudo ponderado, só se pode concluir que a exigência de validação pelo JIC no artigo 86.º, n.º 3, do CPP, é um corpo estranho no inquérito dirigido pelo MP, constitui uma solução desnecessária perante o regime de levantamento do segredo e acesso aos autos com controlo judicial (arts. 86.º, n.º 5, e 89.º, do CPP) e pode vir a ser uma fonte de litigância e de problemas jurídicos complexos, nomeadamente em sede de recursos. Deveria por isso ser eliminada numa próxima revisão do CPP.»
3. Na intervenção prevista no n.º 2 do artigo 86.º, o juiz de instrução decide (por despacho irrecorrível) da sujeição do processo, durante a fase de inquérito, a segredo de justiça, mediante requerimento do arguido, do assistente ou do ofendido. Os requerentes devem, portanto, indicar as razões por que os seus direitos são prejudicados com a publicidade do inquérito, cabendo ao juiz de instrução, depois de ouvir o Ministério Público, apreciar se as razões invocadas fundamentam a sujeição do inquérito a segredo de justiça e decidir, em conformidade.
Já na intervenção prevista no n.º 3, ao juiz de instrução não compete a decisão. A decisão de sujeitar o processo, na fase de inquérito, a segredo de justiça é do Ministério Público, ao juiz de instrução é reservado o papel de validar, ou não, essa decisão.
Na decisão de validação, ou não, da decisão do Ministério Público de sujeitar o inquérito a segredo de justiça, o juiz de instrução terá de compreender o poder que lhe é conferido de "controlar" a decisão do Ministério Público, no quadro das regras constitucionais e processuais em que ele se enxerta.
O juiz de instrução não pode desconsiderar a função constitucional do Ministério Público de exercício da acção penal da qual decorre o monopólio da direcção do inquérito.
Por isso, «a decisão de validação (ou não) da decisão do MP dificilmente pode ter um conteúdo material e decisório autónomo em relação à avaliação feita pelo MP sobre os interesses em causa, num inquérito a cuja orientação táctica e estratégica o JIC é completamente estranhos»[6].
«Serão normalmente os interesses da investigação a justificar a posição do Ministério Público no sentido da sujeição do processo a segredo de justiça (interno e externo, pois estes interesses reclamam estas duas facetas deste regime). O Ministério Público é o dominus desta fase processual, é ele quem dirige o inquérito e é responsável pela investigação. Seria insólito que o juiz de instrução sobrepusesse o seu critério a respeito dos interesses da investigação ao critério do Ministério Público a esse respeito (estaria a “meter a foice em seara alheia”). A função do juiz de instrução, no nosso sistema, é garantista (o “juiz das liberdades”), não de concorrência ou sobreposição em relação às funções do Ministério Público no inquérito. A responsabilidade indeclinável do juiz de instrução prende-se, antes, com o balanço e a ponderação entre as exigências da investigação (aceitando, à partida, que essas exigências são como o Ministério Público as configura), por um lado, e os direitos de defesa do arguido, por outro lado. São este tipo de juízo e de ponderação (não o juízo e ponderação a respeito dos interesses da investigação, por si só) que são específicos da função do juiz de instrução. Portanto, o que pode levar o juiz a divergir do Ministério Público não é uma sua divergência a respeito dos interesses da investigação, como se devesse ajuizar a respeito desses interesses, mas uma ponderação entre esses interesses (aceitando-os como o Ministério Público os configura) e os direitos de defesa do arguido.»[7]
4. Não resulta da lei (n.º 3 do artigo 86.º) que o juízo do Ministério Público sobre a necessidade de sujeição do inquérito a segredo de justiça tenha necessária e exclusivamente de se basear numa específica e concreta avaliação dos interesses da investigação ou dos direitos dos sujeitos processuais, no caso.
Ou, dito de outro modo, não resulta da lei que sempre que o Ministério Público entender que os interesses da investigação ou os direitos processuais em concreto o justificam, pode determinar a aplicação ao processo, durante a fase de inquérito, do segredo de justiça.
O que a lei afirma é que «sempre que o Ministério Público entender que os interesses da investigação ou os direitos dos sujeitos processuais o justifiquem, pode determinar a aplicação ao processo, durante a fase de inquérito, do segredo de justiça».
Não decorre da lei, portanto, que ao Ministério Público se imponha uma ponderação, em concreto, sobre a necessidade do segredo de justiça (se, em concreto, se justificar ...).
O que bem se compreende se se tiver em consideração que o Ministério Público raramente disporá, na fase inicial do inquérito, de elementos que lhe permitam efectuar uma valoração concreta da necessidade do segredo de justiça para salvaguarda dos interesses da investigação ou mesmo dos direitos dos sujeitos processuais.
O juízo sobre a aplicação do segredo de justiça, pelo menos durante a fase inicial do inquérito, terá de basear-se, as mais das vezes, na natureza do crime a investigar, ou seja, afinal, numa avaliação abstracta dos inconvenientes para os interesses da investigação que a publicidade comporta.
Sendo certo, por outro lado, que tais inconvenientes já não poderão ser eliminados com o decretamento, numa fase ulterior do procedimento, do segredo de justiça. Depois de iniciado um inquérito público (publicidade externa e interna), o efeito da publicidade torna-se praticamente irreversível. Os interesses públicos e os interesses particulares associados à realização da justiça penal, servidos pelo segredo de justiça, já não poderão ser convenientemente defendidos pelo posterior decretamento do segredo de justiça.
Enquanto que o contrário já não é verdadeiro.
O segredo de justiça pode, a qualquer momento do inquérito, ser levantado (n.ºS 4 e 5 do artigo 86.°). O Ministério Público, oficiosamente, e já sem necessidade de obter o “aval” do juiz de instrução, pode, a qualquer momento do inquérito, determinar o levantamento do segredo de justiça. Também o juiz de instrução pode, a requerimento do arguido, do assistente ou do ofendido, decidir do levantamento do segredo de justiça (por despacho irrecorrível).
5. Daí que não se apresente ilegítima ou desrazoável a Directiva de 09/01/2008, do Procurador-Geral da República (remetida com o Ofício-Circular n.º 5/2008, de 15/01/2008)[8], no sentido de que «sempre que esteja em causa investigação relativa aos crimes previstos no artigo 1.°, alíneas j) a m) do Código de Processo Penal, na Lei n.º 36/94, de 29 de Setembro, e na Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro, o Ministério Público determinará, no início do inquérito, a sujeição do mesmo a segredo de justiça, nos termos do artigo 86.º, n.º 3, do Código de Processo Penal».
De notar, ainda, que a Lei n.º 51/2007, de 31 de Agosto, ao definir os objectivos, prioridades e orientações de política criminal para o biénio de 2007-2009, considerou, entre os crimes de prevenção e investigação prioritária, os crimes de violência doméstica e de maus tratos, atribuindo competência ao Procurador-Geral da República para aprovar directivas e instruções genéricas destinadas a fazer cumprir aquelas prioridades, as quais, nos termos do respectivo Estatuto, vinculam os Magistrados do Ministério Público.
Na investigação desses crimes, o Ministério Público procede, automaticamente e logo no início do inquérito, à determinação da sujeição a segredo de justiça do inquérito.
O que reflecte, com efeito, uma ponderação abstracta da necessidade do segredo de justiça, em função da natureza do crime. Dito de outro modo, um juízo sobre os interesses da investigação justificarem a aplicação ao inquérito do segredo de justiça alicerçado, exclusivamente, na natureza do crime a investigar.
É a natureza do crime que justifica a derrogação do princípio da publicidade, assegurando-se uma investigação da notícia do crime que não corra o risco de ser perturbada ou mesmo irremediavelmente prejudicada por factores exteriores, ao mesmo tempo que se tutela, de forma efectiva, a dignidade das pessoas, especialmente, das vítimas mas, ainda, do arguido, pela efectiva protecção que o segredo de justiça confere à presunção de inocência do arguido, o que é também uma forma de lhe garantir o direito ao bom nome e reputação.
Recorde-se que o que está em causa na decisão do Ministério Público, proferida nos termos do n.º 3 do artigo 86.º do CPP, é a publicidade externa do inquérito, ou seja, aquela que se estende à generalidade das pessoas, àquelas que são exteriores à relação processual.
O segredo interno não é uma consequência necessária ou automática decorrência do segredo externo. Há várias situações de quebra parcial de segredo, ou seja, em que se mantém o segredo externo mas já não o segredo interno.
Mantendo-se o segredo externo, o segredo interno é derrogado:
- no caso de requerimentos do arguido, do assistente, do ofendido, do lesado e do responsável civil de acesso aos autos, deferidos pelo Ministério Público (artigo 89.°, n.º 1);
- por decisão (irrecorrível) do juiz, favorável ao requerente, quando o Ministério Público se tenha oposto ao acesso (artigo 89.°, n.º 2);
- no caso de decurso do prazo do inquérito sem prorrogação judicial do segredo ou esgotadas as prorrogações judiciais do mesmo (artigo 89.°, n.º 6);
- por decisão do Ministério Público, em casos específicos (artigo 86.°, n.ºs 9 e 10).
6. O interesse público na transparência da justiça e o escrutínio público do funcionamento da justiça compadece-se com a sujeição a segredo de justiça - sempre limitada no tempo - duma fase processual essencialmente investigatória[9].
Na realização da tarefa de concordância prática das finalidades irremediavelmente conflituantes apontadas ao processo penal[10], a decisão do Ministério Público de sujeitar a segredo de justiça, ab initio, um inquérito, numa avaliação dos interesses da investigação que são dados pela natureza do crime a investigar, não representa uma solução desequilibrada nem, como vimos, legalmente rejeitada.
O juiz de instrução, para não validar a decisão do Ministério Público de afastar a regra da publicidade do inquérito, nos termos do n.º 3 do artigo 86.º do CPP, terá de dispor de elementos que o levem a rejeitar essa solução por outros interesses juridicamente relevantes ditarem diferente resolução do conflito. Não basta escudar-se, sem mais, na regra geral da publicidade do processo, como valor absoluto que lhe caiba sempre defender.
7. Neste entendimento [11], ainda que por dever de obediência hierárquica, a decisão do Ministério Público de sujeitar ab initio o inquérito a segredo de justiça, com explicitação do crime a investigar - o qual implica uma especial relação existencial entre agressor e vítima -, e o juízo sobre o carácter lesivo para os interesses da investigação e do ofendido que alicerça na natureza dos bens jurídicos protegidos e violados, não padece de falta de fundamentação por forma a que, nessa base, não seja validada pelo juiz de instrução.

Isabel Celeste Alves Pais Martins

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[1] Surgiu na lei algo que não constava nem do Anteprojecto da Unidade de Missão, apresentado publicamente em Julho de 2007, nem da Proposta de Lei (Proposta de Lei n.º 109/X) apresentada pelo Governo à Assembleia da República. Sobre as diferenças da versão aprovada relativamente ao que constava do Anteprojecto e da Proposta, cfr. PEDRO MARIA GODINHO VAZ PATTO, «O Regime do Segredo de Justiça no Código de Processo Penal Revisto», Jornadas Sobre a Revisão do Código de Processo Pena', Revista do CEJ, número 9 (especial), pp. 45-46.
[2] FREDERICO DE LACERDA DA COSTA PINTO, «Publicidade e Segredo na Última Revisão do Código de Processo Penal», Jornadas cit., p. 11.
[3] PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2.ª edição actualizada, p. 241.
[4] Sobre os problemas de compatibilidade, ou antes, de incompatibilidade desta opção legislativa com o ordenamento constitucional, cfr. AUTOR citado na nota anterior, anotações aos artigos 86.º e 89.º.
[5] Ob. cit., especialmente pp. 24 a 26.
[6] FREDERICO COSTA PINTO, ob. cit., pp. 25-26, que questiona a natureza verdadeiramente decisória do despacho judicial de validação, ou não, da decisão do Ministério Público.
[7] PEDRO VAZ PATTO, ob. cit., pp.48-49, também neste ponto citado no recurso.
[8] Relativamente à qual o Exm.º Juiz subscritor do despacho recorrido assume a atitude de desconhecer, podendo, todavia, sem que disso, antes pelo contrário, resulte desprestígio, dela tomar conhecimento na anotação 7. ao artigo 86.º do Comentário cit., p. 241, onde é transcrita.
[9] De notar que, nos termos do n.º 13 do artigo 86.º, mesmo mantendo-se o inquérito sujeito a segredo de justiça externo, o Ministério Público pode prestar esclarecimentos públicos quando forem necessários ao restabelecimento da verdade e não prejudicarem a investigação, a pedido de pessoas publicamente postas em causa ou para garantir a segurança de pessoas e bens ou a tranquilidade pública.
[10] Sobre o tema, embora numa perspectiva à luz do regime anterior, cfr., v. g., MARIA JOÃO ANTUNES, «O segredo de justiça e o direito de defesa do arguido sujeito a medida de coacção», Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, p. 1237 e ss.
[11] Sem ignorar que não acolhe a corrente jurisprudencial que tem vindo a ser afirmada, neste tribunal.