Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
801/06.6TPPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MOURAZ LOPES
Descritores: JOGO
JOGOS SOCIAIS
Nº do Documento: RP20111102801/06.6TPPRT.P1
Data do Acordão: 11/02/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO.
Área Temática: .
Sumário: É materialmente inconstitucional, por violação do direito a um processo equitativo, o regime normativo constante dos artigos 14º nº1 do DL 282/2003, em conjugação com a alínea j) do nº1 do artº 3º do Regulamento do Departamento de Jogos, aprovado pelo DL 322/91, nos termos do qual compete à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, através da Direção do «Departamento de Jogos» àquela anexo, a apreciação e aplicação de coimas ou outras sanções acessórias nos processos de contra-ordenação instaurados com vista à aplicação das penalidades previstas naquele primeiro diploma.
Reclamações:
Decisão Texto Integral:
Processo 801/06.6TPPRT.P1

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO.
Em processo de contra-ordenação instaurado pela B…, foi proferida decisão condenatória contra C… e D…, tendo sido condenada esta ultima na coima única de 75.000,00 € e a C… na coima única de 74.500,00 €, pela prática, em co-autoria das seguintes contraordenações: (i) de uma contra-ordenação de promoção, organização ou exploração, por via electrónica, dos jogos sociais do Estado, nomeadamente lotarias e apostas mútuas, com violação do regime de exclusivo, prevista e sancionada pelos arts. 1º, 2º, 11º, nº 1, als. a) e b) e 12º, nº 1 do Decreto-Lei n.º 282/2003, de 8 de Novembro; (ii) de uma contra-ordenação de publicitação da realização, por via electrónica, de sorteios dos jogos sociais do Estado, nomeadamente lotarias e apostas mútuas, com violação do regime de exclusivo, prevista e sancionada pelos arts. 1º, 2º, 11º, nº 1, als. a) e b) in fine e 12º, nº 1 do Decreto-Lei n.º 282/2003, de 8 de Novembro.
Inconformadas, as arguidas apresentaram recurso judicial das decisões, entretanto objecto de apensação.
Na sequência de requerimento apresentado por ambas as arguidas, foi decidido pelo tribunal proferir Decisão de Reenvio, nos termos do art. 177º do Tratado CE, colocando-se, essencialmente, a questão de saber se o referido regime de exclusivo concedido à B…, quando aplicado à C…, ou seja, a um prestador de serviços estabelecido noutro Estado-membro, onde efectua legalmente serviços análogos, sem que em Portugal tenha qualquer estabelecimento físico, constitui um entrave à livre prestação de serviços, violando os princípios da liberdade de prestação de serviços, da liberdade de estabelecimento e da liberdade de pagamentos, consagrados, respectivamente, nos arts. 49º, 43º e 56º do Tratado CE.
Em consequência de tal decisão de reenvio, foi declarada suspensa a instância até ser proferido Acórdão do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (Grande Secção) que, entretanto, decidiu sobre o pedido de decisão prejudicial supra referido no sentido de “o artigo 49º CE não se opõe à legislação de um Estado membro, como a que está em causa no processo principal, que proíbe que operadores como a C1…, com sede noutros Estados Membros, onde prestam legalmente serviços análogos, ofereçam jogos de fortuna e azar na Internet, no território do referido Estado-Membro”.
Efectuado julgamento foi então proferida decisão, na qual o recurso foi julgado parcialmente procedente e as arguidas, ora recorrentes, condenadas, cada uma, pela prática, em co-autoria, de uma contra-ordenação prevista e sancionada pelos arts. 11º, nº 1, al. a) e 12º, nº 1 do DL 282/2003, de 08/11, na coima de 30.000,00 € (trinta mil euros).
Inconformados com tal decisão, tanto as arguidas C… e D… como o Ministério Público recorreram para este Tribunal da Relação.
Na sua motivação concluíram:
A) Ministério Público
1. Por deliberação da B…, constante de fls. 203 a 218 destes autos, foram aplicadas à arguida D… as seguintes coimas:
40.000,00 € pela prática, em co-autoria, de uma contra—ordenação de promoção, organização ou exploração, por via electrónica, dos jogos sociais do Estado, nomeadamente lotarias e apostas mútuas, com violação do regime de exclusivo, prevista e sancionada pelos arts. 1 , 2°, 11 O n° 1, als. a) e b) e 12°, n° 1 do Decreto—Lei n.° 282/2003, de 8 de Novembro, com coima não inferior a € 2.000 nem superior ao triplo do presumível valor global angariado com a organização do jogo, quando mais elevado do que aquele limite, até ao máximo de € 44.890 para pessoas colectivas;
42.500,00 € pela prática, em co-autoria, de uma contra—ordenação de publícitação da realização, por via electrónica, de sorteios dos jogos sociais do Estado, nomeadamente lotarias e apostas mútuas, com violação do regime de exclusivo, prevista e sancionada pelos arts. 1 °, 2°, 11 °, n° 1, ais. a) e b) iri fine e 12°, n° 1 do Decreto—Lei n.° 282/2003, de 8 de Novembro, com coima não inferior a € 2.000 nem superior ao triplo do presumível valor global angariado com a organização do jogo, quando mais elevado do que aquele limite, até ao máximo de € 44.890 para pessoas colectivas;
Em cúmulo jurídico das coima parcelares supra referidas, foi aplicada à arguida D…, nos termos do art. 1 9° do RGCO, a coima única de 75.000,00 €.
2. Por deliberação da B…, constante de fls. 331 a 348 dos autos apensos, inicialmente pendentes no 30 Juízo deste Tribunal com o n° 802/06.4TPPRT, foram aplicadas à arguida C… as seguintes coimas:
44.890,00 € pela prática, em co-autoria, de uma contra—ordenação de promoção, organização ou exploração, por via electrónica, dos jogos sociais do Estado, nomeadamente lotarias e apostas mútuas, com violação do regime de exclusivo, prevista e sancionada pelos arts. 1 o 2°, o n° 1, ais. a) e b) e 1 2°, n° 1 do Decreto—Lei n.° 282/2003, de 8 de Novembro, com coima não inferior a € 2.000 nem superior ao triplo do presumível valor global angariado com a organização do jogo, quando mais elevado do que aquele limite, até ao máximo de € 44.890 para pessoas colectivas;
36.000,00 € pela prática, em co-autoria, de uma contra—ordenação de publicitação da realização, por via electrónica, de sorteios dos jogos sociais do Estado, nomeadamente lotarias e apostas mútuas, com violação do regime de exclusivo, prevista e sancionada pelos arts. 1 °, 2°, 11 O n° 1, als. a) e b) in fine e 12°, n° 1 do Decreto—Lei n.° 282/2003, de 8 de Novembro, com coima não inferior a € 2.000 nem superior ao triplo do presumível valor global angariado com a organização do jogo, quando mais elevado do que aquele limite, até ao máximo de € 44.890 para pessoas colectivas;
Em cúmulo jurídico das coima parcelares supra referidas, foi aplicada à arguida D…, nos termos do art. 1 9° do RGCO, a coima única de 74.500,00 €.
3. Em 9 de Novembro de 201 0, a Meritíssima Juiz de Direito a quo proferiu sentença parcial condenatória contra ambas as arguidas julgadas considerando, cada uma delas incursa pela prática, em co-autoria, de uma contra—ordenação prevista e sancionada pelos arts. 110, no 1, ai. a) e 12°, n° 1 do Decreto Lei n.º 282/2003, de 08/11, na coima de 30 000,00 € (trinta mil euros).
4. É aliás desta douta sentença que não se concorda e que dele se vem interpor o presente recurso, no que concerne a ambas as arguidas, somente quanto às seguintes questões de direito:
a) - dolo directo (e não dolo eventual);
b) - pluralidade de contra—ordenações (e não uma única contra—ordenação);
c) - agravamento do montante das coimas a aplicar a ambas as arguidas, excluindo as demais Questões dirimidas eia aliás douta sentença com as quais nos conformamos e fazemos nossas.
5. No ponto I da douta sentença sub judice, nos seus pontos 24 e 25, deu-se como provado, em suma, que as arguidas D… e C… agiram com dolo eventual.
6. O Tribunal fundou a sua convicção, em síntese, no facto de «…a B… deter o exclusivo da exploração dos jogos de lotarias e apostas mútuas em Portugal (...)» e no depoimento de uma testemunha nos termos do qual a Arguida C… só oferece «...jogos onde é permitido ou quando é permitido pela lei europeia (...)» e que a «…lei portuguesa (que atribui o exclusivo à B…) infringe a lei europeia (...)».
Porém,
7. As arguidas, D… e C…, conheciam e não podiam desconhecer o complexo normativo a que, em Portugal, obedecia e obedece a exploração dos jogos de fortuna ou azar.
Nomeadamente,
8. Conheciam e não podiam desconhecer que:
- o direito de explorar jogos de fortuna ou azar é reservado ao Estado (art.°9.° do, Decreto—Lei n.° 422/89, de 2 de Dezembro, na redacção dada pelo Decreto—Lei n.°10/95, de 19 de Janeiro);
- o direito de promover apostas mútuas é reservado ao Estado (art.° 1 .o, n.° 1, do Decreto Lei n.° 84/85, de 28 de Março, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto—Lei n.° 31 7/2002, de 27 de Dezembro);
— existia e existe uma disciplina normativa da exploração em suporte electrónico
dos jogos sociais Estado, vertido no Decreto—Lei n.° 282/2003, de 8 de Novembro;
— e que o Estado, soberanamente, atribuiu à B…
o direito exclusivo de explorar, em suporte electrónico ou por via electrónica, os
jogos sociais do Estado, nomeadamente lotarias e apostas mútuas. Assim,
9. As arguidas, D… e C…, conheciam e não podiam desconhecer o significado, o sentido e o alcance deste complexo normativo.
Aliás, 10. As arguidas, D… e C…, conheciam bem o significado da atribuição, pelo Estado, à B…, daquele direito exclusivo. Conheciam porque contrataram peritos legais (Advogados) portugueses e estrangeiros (austríacos) (ponto A)—lll da fundamentação).
Sem prescindir,
11. O desconhecimento ou a ignorância da lei portuguesa não aproveita às infractoras arguidas. (cf. art. 6.° do Código Civil).
12. As arguidas, D… e C…, quiseram e desejaram a promoção dos jogos on//ne de uma delas e, bem assim, a publicitação da realização dos respectivos sorteios enquanto actividades proibidas, como resultado da sua conduta, espelhada na teia de relações obrigacionais que estabeleceram entra ambas.
13. Ao estabelecer a teia de relações obrigacionais ou contratuais entre si, as arguidas D… e a C…, não se limitaram a conformar-se com a possível realização ilícita das referidas promoção e publicitação.
14. Elas quiseram como resultado da sua conduta, a promoção dos jogos on/ine e a publicitação dos respectivos sorteios, violando, repetidamente, a Lei portuguesa ao longo de três épocas desportivas.
Em conclusão,
15. As arguidas agiram com dolo directo
Por outro lado,
16. O Tribunal deu como provados factos que constituíram divulgação da mensagem «C2…» (factos n.°s 1 O a 1 6), constituindo tais condutas acto de publicitação da realização de jogos sociais do Estado por via electrónica que a lei portuguesa reserva em exclusivo à B…, acto este que é proibido e punido pela alínea a), in fine, do n.° 1 do art.° o do Decreto—Lei n.° 282/2003, de 8 de Novembro.
17. Mais deu o Tribunal como provados factos — o acesso directo pelo llnk da página Web da arguida D1… ao sítio «C2… cujo conteúdo são sorteios ou jogos proibidos — que consistem actos de promoção dos referidos jogos, previsto e punido, autonomamente, pela alínea a), primeira parte, do n.° 1 do art.° 11 0 do referido diploma legal. 8
18. Os factos constitutivos da promoção por via electrónica e da publicitação, ppj qualquer meio da realização dos sorteios proibidos são diferentes, são distintos e são conceptualmente autónomos, pelo que correspondem a duas infracções distintas.
Em consequência,
19. O Tribunal a quo também devia ter condenado as arguidas por esta infracção, em concurso real, em montante de 32.500,00 € não o fez.
E em cúmulo jurídico,
20. Aproximar o valor da coima a aplicar às arguidas em montante não inferior a 60.000,00 €.
Vossas Excelências Senhores Juízes Desembargadores decidindo conforme o proposto acima farão, como sempre, a sã e habitual

B) Arguidas C… e D….

1 - Por deliberação da B…, foram aplicadas, à Recorrente D… (doravante D1…) a coima única de 75.000,00 € e à C… (doravante C3…) a coima única de 74.500,00 €, pela prática, em co-autoria: (i) de uma contra-ordenação de promoção, organização ou exploração, por via electrónica, dos jogos sociais do Estado, nomeadamente lotarias e apostas mútuas, com violação do regime de exclusivo, prevista e sancionada pelos arts. 1º, 2º, 11º, nº 1, als. a) e b) e 12º, nº 1 do Decreto-Lei n.º 282/2003, de 8 de Novembro; (ii) de uma contra-ordenação de publicitação da realização, por via electrónica, de sorteios dos jogos sociais do Estado, nomeadamente lotarias e apostas mútuas, com violação do regime de exclusivo, prevista e sancionada pelos arts. 1º, 2º, 11º, nº 1, als. a) e b) in fine e 12º, nº 1 do Decreto-Lei n.º 282/2003, de 8 de Novembro.
2 - Após a realização do julgamento, foi proferida sentença nos termos da qual foi julgada improcedente a inconstitucionalidade invocada e parcialmente procedentes os recursos e, em consequência, condenar cada uma das arguidas, pela prática, em co-autoria, de uma contra-ordenação prevista e sancionada pelos arts. 11º, nº 1, al. a) e 12º, nº 1 do D.L. nº 282/2003, de 08/11, na coima de 30 000,00 € (trinta mil euros).
3 - O art. 14º, n° 1 do D.L. n° 282/2003, de 08 de Novembro, a al. j), do n° 1, do art. 3º do Regulamento do B…, aprovado pelo art. 1º do D.L. n° 322/91, de 26 de Agosto, e o nº 2 do mesmo Regulamento são inconstitucionais, por violação do disposto nos arts. 205° e 211º da Constituição da República Portuguesa, dado que a competência contra-ordenacional atribuída ao B…s traduz-se, na prática, na defesa de um interesse próprio - o exclusivo da exploração -, sendo a B1… directamente beneficiada pelo afastamento de potenciais concorrentes. A atribuição de uma jurisdição exclusiva ao B… de fiscalizar e impor sanções é uma restrição à liberdade de estabelecimento e à livre prestação de serviços proibida pelo Tratado CE. A competência da B1… no âmbito de processos de contra-ordenação apenas pode ser consultiva, e não punitiva (arts. 33º e 34º do D.L. nº 433/82, de 27 Outubro e art. 165º da Constituição da República Portuguesa), sendo, assim, materialmente incompetente para aplicar coimas, dado que a alínea j), do art. 3º, do Anexo II dos Estatutos da B1…, foi tacitamente revogada quando entrou em vigor o D.L. nº 10/95, de 19 de Janeiro.
4 - A Recorrente C4… não tem sede, nem direcção efectiva, nem estabelecimento estável em Portugal, não exercendo qualquer actividade no território nacional; a actividade de jogo na Internet é realizada através de um domínio internacional, em servidores registados e situados no estrangeiro. O comportamento da Recorrente C4… não é subsumível a qualquer das disposições penais que, em abstracto, regulam a matéria em questão – art. 108º da Lei do Jogo e art. 297º do Código Penal – por não se verificar o preenchimento dos seus elementos constitutivos: o contrato de patrocínio e os seus actos de execução não podem ser considerados como integrando exploração de jogo, fora dos locais legalmente autorizados, não criminalizando a lei portuguesa o jogo electrónico ilícito (Cfr. D.L. nº 282/2003, de 08 de Novembro) de forma a configurar-se a instigação à prática desse crime. Por outro lado, sempre estará excluída a aplicabilidade da lei penal portuguesa dado que, no estádio actual de regulamentação do jogo através da Internet, não se pode afirmar, na falta de estabelecimento do fornecedor do jogo em Portugal, estar-se perante ilícito cometido em território português.
5 - O facto do site da D1… ter um link para o site da C4… não tem a virtualidade de fazer com que a C4… passe a ter estabelecimento estável em Portugal, ou que os servidores se considerem localizados em Portugal.
6 - Da Directiva 2000/31/EC, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 08 de Junho de 2000, relativa a certos aspectos legais dos serviços da sociedade da informação, em especial do comércio electrónico, no mercado interno («Directiva sobre Comércio Electrónico»), decorre que o lugar da criação de uma empresa prestadora de serviços através de um sítio (site) na Internet não é o lugar em que a tecnologia de apoio ao sítio (site) está localizada ou o local em que seu site é acessível, mas o lugar onde exerce a sua actividade económica. Um prestador de serviços ao disponibilizar um serviço num sítio da Internet está a disponibilizá-lo, simultânea e automaticamente, em todos os outros Estados-Membros.
7 - O Decreto-lei n.º 7/2004, de 7 de Janeiro, dispõe no nº 2, do artigo 4.º que se considera estabelecido em Portugal um prestador de serviços que exerça uma actividade económica no país mediante um estabelecimento efectivo, seja qual for a localização da sua sede, referindo que a mera disponibilidade de meios técnicos adequados à prestação do serviço não configuram, só por si, um estabelecimento efectivo.
8 - No âmbito da Directiva 2000/31/CE, a presença de meios técnicos e de tecnologias necessários para prestar o serviço não constituem, em si mesmos, o estabelecimento do prestador. A conclusão a retirar do Considerando 19 é a de que o que é relevante é o local onde a actividade económica é exercida. Conforme matéria provada, a actividade económica exercida é a prestação de serviços de jogos on-line que é realizada em …. A actividade económica pertinente neste caso, é a prestação de serviços de jogos on-line, levada a cabo em …, conforme resulta dos pontos 3., 4., 5., e 27. dos factos provados.
9 - Mesmo que se entenda a actividade da D1…, em termos amplos, no sentido de ser o "suporte " às actividades da C4…., a verdade é que, em conformidade com a Directiva sobre Comércio Electrónico, a tecnologia ou outro apoio ao site da C4… não é suficiente para determinar o lugar onde decorre a actividade (Considerando o ponto 19 da Directiva sobre Comércio Electrónico 2000/31/CE).
10 – Uma vez que o link estabelece ligação apenas com a página inicial da C4…, é legitimo que as mesmas, regra geral, sejam livremente utilizadas. O link criado pela D1… para aceder ao site da C4… é uma conexão simples (surface linking), ou seja, permite o reenvio do utilizador para a página inicial de uma outra página da Internet (da C4…). A hiperligação criada pela D1… para o site da C4… efectua-se mediante um «clic» no símbolo da C4…, ou seja, há um acto voluntário do utilizador. A criação do link tem como função o exercício do direito à informação.
11 - O operador que criar um link para o site da C4… não está directamente a permitir o acesso a conteúdos ilícitos porque o acesso à página principal da C4… não permite que o utilizador aceda aos jogos, para isso tem que se registar no site da C4…. Os conteúdos do site da D1… são diferentes dos conteúdos do site da C4…; a criação do link visa dar informação sobre uma marca (C4…) que patrocina a D1…, não visa permitir ou incentivar o jogo; o link remete apenas para a página inicial do site da C4… e nessa página não é possível jogar; apenas se pode jogar no site da C4… se o utilizador se registar.
12 - O link para o site da C4… criado no site da D1… funciona no exercício do direito à informação, ou seja, a D1… com o link está a prestar informação sobre o patrocinador que é a C4… e não está a remeter para um site com conteúdo ilícito porque o link remete para a página inicial da C4…, a qual não é suficiente para o utilizador ter acesso ao jogo, tendo, para isso, que registar-se previamente no site da C4….
13 – Mesmo na hipótese de não ser considerado que o link foi criado pela D1… no exercício do direito à informação, a lei portuguesa responsabiliza o criador do link se o mesmo remeter para um site com um conteúdo ilícito, mas não o responsabiliza pelo conteúdo do site para o qual criou o link. Ou seja, nem assim, a D1… poderia ser considerada co-autora da infracção que lhe é imputada de publicitação dos jogos sociais.
14 - A punibilidade da participação e dos participantes é sempre acessória da prática, pelo autor, de um facto típico e ilícito. O Tribunal «a quo» considerou que se a C4… tivesse agido sozinha, não teria sido condenada. Ora, isto significa que o Tribunal «a quo» não vê nenhuma violação dos direitos exclusivos da B1… originada pela C4…. No entanto, o Tribunal «a quo» considerou que D1… é o "suporte", o que significa que a D1… é cúmplice e não co-autora. Ora, conforme supra referido, o cúmplice só é punível, se o principal "agente" for punível sozinho. Segundo o Tribunal «a quo», a C4… não é punível sozinha! A D1…, não pode ser condenada porque o agente principal C4… não pode ser condenado sozinho.
15 - O Tribunal «a quo» considerou que C4… e a D1… agiram em comunhão de esforços para oferecer/prestar serviços de jogo. Salvo o devido respeito, tal interpretação é errada por parte do Tribunal «a quo» porque a D1… nunca ofereceu serviços de jogo. Aliás, o link para o site da C4… conduzia apenas para a página inicial, não permitindo, directa e imediatamente, quaisquer operações de jogo, sendo necessário o prévio registo do utilizador.
16 - O facto causador do dano não foi criado pela D1… ao definir apenas o link. Ao definir o link nenhuma produção de conteúdo e, em particular, nenhuma oferta ou prestação de serviços de jogo pode ser criada ou produzida. Se a C4…, ao actuar de per se não está legalmente a causar danos (como foi considerado pelo Tribunal «a quo»), então, a simples configuração de um link pode causar ainda menos danos. A definição de um link refere-se a outro site que, de acordo com o Tribunal «a quo», é legítimo, não punível e – com um servidor externo – não causador de qualquer dano.
17 - A D1… não produziu ou ofereceu suporte para a prestação de serviços de jogo. A D1…, tecnicamente, não programou qualquer software de jogos, não colaborou ou apoiou na prestação de serviços de apostas e não teve qualquer benefício resultante das ofertas da C4…. A D1… não teve qualquer intenção dolosa de apoiar o fornecimento/oferta de serviços de jogo. Assim, a conclusão é a de que como o agente principal (C4…) agiu legalmente por si só e não causou um dano punível (como o Tribunal «a quo», aliás, reconhece), o possível apoio ao definir apenas um link leva à não responsabilização penal da D1….
18 - O Tribunal «a quo» não interpretou nem aplicou correctamente os procedimentos técnicos dos serviços de internet, já que, mesmo que os utilizadores portugueses acedessem a www.C3....com, usariam sempre um servidor Português (servidor de acesso). Além disso, este link não justifica a aplicação da responsabilidade criminal e sanções.
19 - Da matéria provada (pontos 5. e 6.) resulta que a C4… não oferece e/ou promove jogos sociais do Estado dado que as apostas desportivas oferecidas pela C4…: não são apostas mútuas, mas sim apostas com probabilidades fixas; possibilitam outros prognósticos que não apenas no resultado (vitória, empate ou derrota); abrangem jogos de futebol estrangeiros.
20 - O Estado Português não informou a Comissão Europeia sobre as regras técnicas constantes do D.L. nº 282/2003, de 08 de Novembro, na acepção conferida pela Directiva 98/34/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de Junho de 1998, conforme alterada pela Directiva 98/48/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de Julho de 1998, pelo que, não podem as mesmas ser aplicadas a entidades como as Recorentes.
21 - A omissão de notificação configura um problema jurídico relevante, com repercussões jurídicas quanto à susceptibilidade de aplicação a terceiros da legislação nacional de jogo, envolvendo, assim, directamente uma questão central para o objecto do litígio a ser decidido por este Douto Tribunal. Apesar de ter sido invocada esta questão na pendência do processo, o Tribunal «a quo» não conheceu da mesma.
22 - Sendo confirmada a sujeição da disciplina nacional em matéria de jogo às obrigações de notificação prévia impostas pela Directiva 98/34/CE e a manifesta falta de cumprimento dessa obrigação de notificação pela República Portuguesa, o Tribunal «a quo» deveria ter recusado a aplicação do regime nacional que prevê exclusivos para as actividades de jogo, designadamente em suporte electrónico. O simples facto do D.L. nº 282/2003 nunca ter sido notificado à Comissão Europeia torna obsoleto o procedimento donde emerge o presente recurso de acordo com a Directiva 98/34/EC.
23 – Da jurisprudência do Tribunal de Justiça, nomeadamente após os casos Gambelli e Lindman, decorre que as regulamentações nacionais que conferem direitos exclusivos a determinadas entidades para explorarem o jogo e, consequentemente, restringem a liberdade de prestação de serviços, só são compatíveis com as disposições do Tratado se forem: a) não discriminatórias; b) impostas como parte de uma política nacional consistente e proporcionada; c) justificadas por razões imperativas de interesse geral, nomeadamente para prevenir os malefícios individuais e sociais emergentes do jogo; e d) necessárias e proporcionais, no sentido de que as restrições nacionais têm de garantir o cumprimento do objectivo prosseguido e não podem ir além do estritamente necessário para tal efeito.
24 - A diminuição das receitas do Estado e o destino dos lucros, designadamente para fins sociais, têm natureza secundária, não podendo, por si só, nem sequer preponderantemente, justificar as medidas restritivas da liberdade de prestação de serviços, devendo o Estado-Membro que faz as restrições cumprir uma política de jogo consistente, que conduza a uma genuína diminuição das oportunidades de jogo - o que não sucede quando o Estado-Membro encoraja os consumidores a participar em lotarias e outros jogos para a obtenção de financiamento para o erário público – e observar os princípios da necessidade e da proporcionalidade.
25 - As Recorrentes são entidades sérias, idóneas e qualificadas, sendo que, a «C4…» possui licenças de operador de casino e apostas desportivas emitidas, entre outros locais da União Europeia, por e sob a supervisão permanente do Governo de …, pelo que, os argumentos usados no sentido de que o monopólio é justificado para combater o crime e a fraude não são adequados para impedir a «C4…» e outros operadores de jogo on-line de operar legitimamente em Portugal através da Internet.
26 - A fraude e a criminalidade têm a mesma definição em todos os ordenamentos jurídicos dos Estados-Membros, não podendo a Recorrente «C4…» ser considerada empresas fraudulenta, já que tem uma licença disponível e supervisionada no âmbito da União Europeia.
27 - A lei portuguesa não é compatível com o direito comunitário, nomeadamente quanto aos serviços de apostas desportivas, pelas seguintes razões: (i) publicidade agressiva pela B1…;(ii) não consistência no que diz respeito a outros (sub-)sectores de jogos. Outros jogos de azar com um risco muito maior de vício, em particular, slot machines e jogos de casino, estão abertos à concorrência, enquanto as apostas desportivas são mantidas no monopólio.
28 - Nos casos Markus Stoß, Carmen Media, Winner Wetten e Engelmann o TJUE, quanto à legitimidade dos monopólios, considera que: (i) o requisito da proporcionalidade no âmbito do monopólio está preenchido desde que, no que respeita ao objectivo de um alto nível de protecção dos consumidores, a instituição do monopólio seja acompanhada pela criação de um quadro normativo que garanta que o seu titular estará em posição de prosseguir, de maneira coerente e sistemática, tal objectivo através de uma oferta quantitativamente moderada e qualitativamente adequada em função desse objectivo e sujeita a um controlo estrito das autoridades públicas; (ii) as medidas de publicidade do titular do monopólio e relativas a outros tipos de jogos de fortuna e azar igualmente propostos por ele devem limitar-se ao necessário para canalizar os consumidores para a oferta desse titular, desviando-os de outros canais de jogo não autorizados, não podendo encorajar a propensão dos consumidores para o jogo e estimulá-los a participar activamente para efeitos de maximização das receitas dessas actividades; (iii) o monopólio não é adequado se podem ser explorados outros tipos de jogos de fortuna e azar por operadores privados que detenham uma autorização; (iv) o monopólio não é adequado se, no que respeita a outros tipos de jogos de fortuna e azar não abrangidos por esse monopólio e que apresentem ainda um potencial de risco de dependência superior aos jogos sujeitos a esse monopólio, as autoridades competentes levam a cabo ou toleram políticas de expansão da oferta susceptíveis de desenvolver ou estimular as actividades de jogo, nomeadamente para maximizar as receitas por ele geradas.
29 - O monopólio não pode anunciar para incentivar os consumidores a jogar. A publicidade deve ser moderada e estritamente limitada ao necessário para canalizar os consumidores para as redes de jogo autorizadas. Essa publicidade não pode ter nomeadamente por fim encorajar a propensão natural dos consumidores para o jogo, estimulando-os a participar activamente, nomeadamente banalizando o jogo ou dando uma sua imagem positiva ligada ao facto de as receitas recolhidas serem afectadas a actividades de interesse geral ou ainda aumentando o poder de atracção do jogo por meio de mensagens publicitárias cativantes anunciando grandes ganhos.
30 - A publicidade do monopólio deve ser estritamente limitada a canalizar a procura (o que, no caso de lotarias, significa que nenhuma publicidade é permitida porque não há nenhum mercado negro de lotarias). Em especial (mas sem limitação), a publicidade não pode (i) banalizar o jogo, (ii) dar-lhe uma imagem positiva, (iii) promover o facto de que as receitas são utilizadas para actividades de interesse público ou (iv) promover ganhos importantes. A publicidade da B1… não atende a esses padrões. Não se destina (pelo menos não apenas) à canalização da procura do consumidor mas sim a atrair novos clientes. Promove grandes ganhos, dá uma imagem positiva de jogos e constantemente sublinha o facto de que as receitas são utilizadas para actividades de interesse público. Nestas circunstâncias, o monopólio nacional não cumpre o teste de consistência e a legislação restritiva perde a sua justificação.
31 - Ainda de acordo com o Tribunal de Justiça, para exercer eficazmente a protecção dos consumidores, os produtos de jogo com igual ou maior risco de vício do que os jogos do monopolista também devem ser objecto de monopólio. Se o Estado-Membro permitem que casinos e slot machines sejam explorados por operadores privados ao abrigo de concessões e também toleram as políticas de expansão do fornecimento nesse sector, um monopólio de apostas desportivas já não pode ser justificado. Em tais circunstâncias, a política global de jogo desse Estado membro é inconsistente e carece de credibilidade.
32 - Caso os requisitos tivessem sido aplicados nos presentes autos, o monopólio da B… teria sido julgado desproporcional e não adequado a garantir a realização dos objectivos para cuja prossecução foi criado. De acordo com o TJUE nos casos Placanica, Gambelli, Winner Wetten, Engelmann, não podem ser aplicadas sanções, nem à C4… nem à D1….
33 - De acordo com a prova produzida apenas foram publicitados os dizeres «betandwin.com» que, conforme claramente reconhecido na decisão recorrida, consistiam (apenas) na publicitação de um site. Ora, tal site apenas permite o jogo após registo do utilizador. Da própria fundamentação da decisão decorre a conclusão inequivoca e única consentânea com os factos considerados provados de que com não foi feita a publicitação de qualquer jogo em particular, nem de quaisquer sorteios.
34 - Conforme resultou claramente provado, no estrito âmbito e em cumprimento do contrato de patrocínio, não foi feita qualquer publicitação do jogo, quer como actividade comercial, quer como actividade lúdica; a Recorrentre C4… fez, ao abrigo e no estrito âmbito do contrato de patrocínio, publicidade apenas a parte da sua denominação e marca (C4….com).
35 - A Inspecção-Geral de Jogos, já se pronunciou concretamente sobre a licitude da publicidade da C4… a propósito exactamente do E… realizado no … nos dias 15, 16 e 17 de Abril de 2005. Não obstante tal prova documental produzida, o Tribunal «a quo» não relevou, de todo, o entendimento adoptado pela Inspecção-Geral de Jogos no sentido de a inclusão em que do endereço electrónico «C2….com” trata-se de publicidade colateral, não sendo os jogos o objecto essencial da mensagem.
Por tudo isto, que são os fundamentos e conclusões do presente recurso, a douta decisão de fls… e recorrida, violou várias normas jurídicas, nomeadamente as constantes dos arts. 8º, 165º, 205° e 211º da Constituição da República Portuguesa, dos arts. 33º e 34º do D.L. nº 433/82, de 27 Outubro, do D.L. nº 10/95, de 19 de Janeiro, o art. 4º, al. a), do Regime Geral das Contra-Ordenações, o art. 26º do Código Penal, a Directiva 2000/31/EC, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 08 de Junho de 2000 («Directiva sobre comércio electrónico»), os arts. 4º, 12º e 19º do D.L. n.º 7/2004, de 7 de Janeiro, a Directiva 98/34/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de Junho de 1998, conforme alterada pela Directiva 98/48/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de Julho de 1998, pelo que, deve ser concedido provimento ao recurso, com as demais consequências legais, assim se fazendo,

O MP, nas suas alegações, quer na primeira instância quer através do Exmo. Senhor Procurador Geral-Adjunto nesta Relação, pronunciou-se pela improcedência do recurso interposto pelas arguidas C… e D… e estas, por sua vez, pronunciaram-se pela improcedência do recurso do MP.
Neste Tribunal da Relação o Exmo. Senhor Procurador Geral-Adjunto pronunciou-se pelo deferimento parcial do recurso do Ministério Público (quanto a duas questões suscitadas).
*
Tendo em conta o teor das conclusões efectuadas pelos recorrentes são as seguintes as questões em apreciação
- Recurso do MP: (i) existência de dolo eventual ou de dolo directo; (ii) unidade ou pluralidade de infracções; (iii) agravamento do montante das coimas.
- Recurso da C… e D…: (i) Inconstitucionalidade do art. 14°, n.° 1, do DL n.° 282/2003, de 03 de Novembro, da ai. j) do n.° 1, do art. 3.° do Regulamento do …, aprovado pelo art. 1.0 do DL n.° 322/91, de 26 de Agosto e o n.° 2 do mesmo Regulamento;(ii) Incompetência material do B1… para aplicar coimas; (iii) Não punibilidade da conduta da C4… por falta de conexão com o território nacional; (iv) A D…. enquanto cúmplice, não pode ser punida se o não puder o agente principal; (v) Insuficiência da mera existência de um Iink para responsabilizar a D…; (vi) Falta de informação do Estado Português à CE das regras técnicas do DL n.°282/2003, de 08 de Novembro, de que resulta a sua inaplicação às recorrentes (vii) Violação da Directiva 20001311EC do Parlamento e do Conselho, de 08 de Junho de 2000 - «Directiva sobre comércio electrónico», dos arts. 4•0, 12.° e 19.0 do DL n.° 7/2004, de 7 de Janeiro e da Directiva 98/34/CE do Parlamento e do Conselho, de 22 de Junho de 1998, alterada pela Directiva 98/48/CE do Parlamento e do Conselho, de 20 de Julho de 1998
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É do seguinte teor a decisão recorrida (apenas quanto à questão prévia e à fundamentação):
(...)
Cumpre, desde logo, conhecer da seguinte questão prévia.
Alegam ambas as arguidas, na Conclusão nº 35 dos respectivos recursos, que:
“O art. 14º, n° 1 do D.L. n° 282/2003, de 08 de Novembro, a al. j), do n° 1, do art. 3º do Regulamento do B…, aprovado pelo art. 1º do D.L. n° 322/91, de 26 de Agosto, e o nº 2 do mesmo Regulamento são inconstitucionais, por violação do disposto nos arts. 205° e 211º da Constituição da República Portuguesa, dado que a competência contra-ordenacional atribuída ao B… traduz-se, na prática, na defesa de um interesse próprio — o exclusivo da exploração — e não de um interesse público geral, sendo a B1… directamente beneficiada pelo afastamento de potenciais concorrentes, não sendo, assim, o B… uma autoridade administrativa isenta para proceder à aplicação de coimas”.
Cumpre decidir.
Neste, como na generalidade dos processos contra-ordenacionais, a entidade administrativa com competência para decidir, não é, nem tem que ser, uma entidade “isenta”, como referem as arguidas, ou seja, uma entidade que não tenha qualquer interesse no sentido da decisão a proferir.
Com efeito, o que se consagrou no art. 32º, nº 10 da Constituição da República Portuguesa (CRP) foi que “nos processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa”.
Ou seja, apenas aquelas garantias de defesa consideradas indissociáveis de um Estado de Direito Democrático, como é o caso do princípio da audiência e defesa do arguido antes da aplicação de qualquer sanção e do princípio do recurso aos tribunais quando a sanção seja aplicada por uma entidade administrativa, foram consideradas como inerentes a todos os processos sancionatórios, qualquer que seja a sua natureza, tendo por isso aplicação no processo de contra-ordenação (cfr. arts. 50º e 59º do RGCO).
Não ocorre, por isso, qualquer inconstitucionalidade pelo facto da investigação, neste tipo de processo, ser levada a cabo por uma entidade administrativa que no final decide pelo arquivamento ou aplicação de uma coima (art. 54º do RGCO).
Julga-se, assim, improcedente a inconstitucionalidade invocada.
Não foram suscitadas, em sede de recurso, outras questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer e que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
*
II – Fundamentação de facto.
Discutida a causa, mostram-se provados os seguintes factos:
1. A arguida D1… é uma pessoa colectiva de direito privado, com estrutura associativa e sem fim lucrativo, com o NIPC ……… e com sede na Rua …, n.º …., no Porto;
2. A arguida D1… exerce competências, como órgão autónomo da F…, no âmbito da organização e regulamentação das competições de futebol de natureza profissional, exercendo, do mesmo modo, competências nomeadamente no domínio da exploração comercial das competições por si organizadas;
3. A arguida C3…, também designada por “C5…” e por “C1…” é uma sociedade comercial registada em …, com sede na …, …, …;
4. A arguida C3… é uma empresa de apostas de jogos on-line, responsável pelo conteúdo e operação do sítio da Internet identificado pelo nome de domínio e sufixo final “C2….com”;
5. A C… é titular de uma licença («Gaming Licence No. …..»), emitida pelo Governo de … e, bem assim, de uma outra licença («Gaming Licence No. …..»), para a exploração on-line de um casino;
6. Com efeito, a C3… dispõe, de acordo com a licença número 5, de uma concessão anual prorrogável para a organização de apostas de desporto com odds (probabilidades) fixas;
7. Além disso, a C3… detém uma licença para a exploração de casinos on-line, com base na licença para a oferta e negociação de apostas de desporto concedida em 1999;
8. As arguidas D1… e C3… celebraram entre si um contrato de patrocínio, destinado a vigorar no decurso das épocas desportivas 2005/2006, 2006/2007, 2007/2008 e 2008/2009, contrato este no âmbito do qual a C3… assumia a condição de Patrocinador Institucional da “…”, designação que abarca a competição de futebol profissional correspondente à Primeira Divisão Nacional;
9. Como contraprestação dos direitos concedidos à C3…, esta obrigou-se a pagar à D1… os seguintes montantes:
• Época 2005/2006: EUR 3.000.000,00;
• Época 2006/2007: EUR 2.500.000,00;
• Época 2007/2008: EUR 2.500.000,00;
• Época 2008/2009: EUR 2.500.000,00;
• Em caso de, em cada uma das épocas desportivas, 20% dos lucros líquidos gerados pela C3…, em Portugal, corresponderem a uma quantia superior à contraprestação estabelecida para o patrocínio, naquelas épocas desportivas, a C3… assumiu a obrigação de pagar à D… um adicional especial ao patrocínio, no montante correspondente ao diferencial positivo entre aqueles dois montantes (cláusula segunda pontos 1. e 3. do referido contrato de patrocínio);
10. No entanto, por acordo entre as partes, o contrato em causa apenas vigorou efectivamente nas três primeiras épocas referidas no ponto anterior, sendo que na época de 2008/2009 a “…” passou a ser patrocinada por uma outra entidade;
11. Por força da celebração do referido contrato, o campeonato da “…” passou a denominar-se, a partir da época desportiva de 2005/2006 “G….com”;
12. Este facto mereceu, pelo menos a partir de 19/08/2005, uma ampla divulgação pública, nomeadamente através do sítio da Internet da própria D1…;
13. Nos termos do mesmo contrato, a C3… adquiriu direitos que lhe permitiam exibir os dizeres «C3….com» quer nos equipamentos desportivos envergados pelos jogadores dos Clubes/SAD cujas equipas participassem no campeonato da “…”, quer nos estádios dos Clubes/SAD cujas equipas participassem no campeonato de futebol da …;
14. Após a celebração deste contrato, os documentos emitidos pela própria D… passaram a incluir a inserção daqueles dizeres «C2….com»;
15. Em execução do referido contrato, nas épocas desportivas de 2005/2006, 2006/2007 e 2007/2008, os dizeres «C2….com» passaram a ser inseridos nos equipamentos desportivos dos jogadores que participavam na “…”;
16. Simultaneamente, em execução do mesmo contrato, os dizeres «C2….com» passaram a estar presentes nos estádios de futebol dos Clubes/SAD cujas equipas participavam no campeonato da “…”, presença essa que se traduzia em cartazes ou placards publicitários colocados junto de cada uma das balizas aí existentes;
17. Finalmente, e ainda em execução do mesmo contrato, o site na Internet da D1… passou a conter não só diversas referências aos dizeres «C2….com» como, também, um link que possibilita o acesso imediato ao site da Internet «C2….com», site este que surge essencialmente escrito em língua portuguesa para quem acede a partir do território nacional;
18. Este site, a partir da celebração do contrato referido, passou a possibilitar, designadamente, a realização de prognósticos sobre o resultado de jogos de futebol integrados nas competições de futebol profissional portuguesas;
19. Mais concretamente, este site permitia a realização, por via electrónica, de apostas desportivas nas quais, designadamente, se prognostica o resultado (vitória, empate ou derrota) dos diferentes jogos que integram cada uma das jornadas da “…”, bem como de outros jogos de futebol estrangeiros, com vista à obtenção, pelos respectivos participantes, do direito a prémios em dinheiro;
20. Com efeito, os jogadores podiam, através de um processo de registo on-line, prognosticar a vitória, o empate ou a derrota duma equipa da “…”, sendo a aposta efectuada em dinheiro, através de uma panóplia de meios electrónicos de pagamento (Visa, EuroCard, Diners Club, NETeler, transferência bancária);
21. O resultado desta actividade é a obtenção do direito ao recebimento pelo jogador de um determinado prémio em dinheiro, que por ele pode ser levantado, solicitando, para tanto, o respectivo crédito através dos mesmos meios utilizados para efectuar o pagamento (cartões de crédito, de débito, transferência bancária);
22. O mesmo site permitia, ainda, a realização, também por via electrónica, de jogos em que os participantes prognosticavam resultados de sorteios de números com vista à obtenção de prémios em dinheiro;
23. Com efeito, nos jogos denominados “Balls of Fire”, os participantes começavam por «…trocar quantias da sua conta de utilizador por créditos (1 Crédito equivale a 1 Euro)» e, após, seguindo os procedimentos indicados, previam um resultado de um sorteio de números. Para tanto, era realizado um sorteio todos os minutos, durante o qual seis bolas, de um total de 36, eram extraídas aleatoriamente, sendo que o jogador tinha que escolher 4 de 36 bolas, definir o montante da sua aposta e concluir a sua escolha, assistindo depois ao desenrolar da extracção e sabendo de imediato se havia ganho ou não;
24. Ambas as arguidas sabiam que a promoção, organização ou exploração, em suporte electrónico (incluindo a Internet), dos jogos sociais do Estado, nomeadamente lotarias e apostas mútuas, é efectuada em regime de exclusivo, para todo o território nacional, pela B…;
25. Sabiam ainda ambas as arguidas que a violação de tal regime de exclusivo, bem como a publicitação da realização dos respectivos sorteios, era proibida e sancionada por lei, apesar do que não se abstiveram de proceder da forma supra descrita, conformando-se com a eventual prática da correspondente contra-ordenação;
26. A “C2….com …” foi fundada em Dezembro de 1997, estando cotada, desde Março de 2000, na Bolsa de … (Código ID “C4…”, Código ID Reuters “C4….VI”);
27. Todos os negócios de jogo do grupo “C2…”, são efectuados pela C3…, empresa localizada e licenciada em …;
28. A C3… possui licenças de operador de casino e apostas desportivas emitidas pelo Governo de …, dispondo de apostas de desporto, de jogos de casino, de uma plataforma de poker e de outros jogos;
29. A Inspecção Geral de Jogos, entidade a que compete a superintendência, fiscalização e controlo das actividades relacionadas com a exploração e prática de jogos de fortuna ou azar em casinos e salas de jogo de bingo, pronunciou-se, a 22.03.2005, sobre a publicidade que a C2… realizou a propósito do E…, realizado no … nos dias 15 a 17 de Abril de 2005, esclarecendo que:
«a) - Os painéis em causa consubstanciam a publicidade a um E…, em …, não estando em causa nenhum procedimento a que alude o art. 115° do Decreto- Lei n° 422/89, de 2 de Dezembro, na redacção dada pelo Decreto-Lei n° 10/95, de 19 de Janeiro;
b) — É certo que os mesmos painéis aparecem encimados pela indicação do endereço electrónico «C2….com”, mas trata-se de publicidade colateral e, a propósito, o que o art. 21º do Decreto-Lei n° 330/90, de 23 de Outubro, proíbe é a publicidade aos jogos de fortuna ou azar «enquanto objecto essencial da mensagem», o que não é o caso.»;
30. Quer o “H…” quer o “I…”, já efectuaram publicidade no âmbito do futebol, o primeiro nas camisolas da equipa de futebol “J…” e o segundo nas camisolas das equipas da “K…” e “L…”;
31. A C3… não tem estabelecimento estável em Portugal, estando os respectivos servidores localizados em … e …;
32. Do Relatório de Contas do B…, relativo ao ano de 2003, resulta que:
a) os proveitos resultantes da exploração dos jogos sociais ascenderam a 834,5 milhões de Euros e os resultados líquidos a 278 milhões de Euros, sendo os custos de 556 milhões de Euros;
b) relativamente a estes custos, destacam-se os encargos com pagamentos de prémios de jogo (77,8%) e as comissões de mediadores (12,2%);
c) os custos com publicidade ascenderam a 11 milhões de euros e os custos com pessoal a 13 milhões de euros;
d) “em virtude das novas exigências do mercado, mantendo os actuais apostadores, captando o interesse de novos clientes, cujos interesses e expectativas são diferentes dos actuais, foi encetado um conjunto de acções na melhoria e rentabilização dos investimentos realizados, explorando as potencialidades da tecnologia instalada, e dos avanços na área dos sistemas de informação, tais como desenvolvimento do projecto “Plataforma de Acesso Multicanal de Jogos” que visa a diversificação nas formas de registo de apostas, utilizando a internet e o telemóvel (SMS e WAP), melhorando o serviço ao cliente em comodidade e rapidez, introduzindo uma imagem de modernidade e inovação.”
e) se previa já “a exploração do “M…” no final de 2004”, referindo-se que “para tal será necessário que o B… participe, como accionista, numa sociedade cooperativa de responsabilidade limitada de direito belga, sem fins lucrativos, denominada “Serviços às Lotarias na Europa” (SLE), tendo já recebido autorização dos respectivos Ministérios da Tutela”;
f) “no âmbito das competências que a Lei lhe atribui, o B… manteve uma intensa actividade de combate ao jogo ilegal, tendo instruído numerosos processos de contra-ordenação e aplicado as competentes coimas aos infractores”;
33. Do Relatório de Contas do B…, relativo ao ano de 2004, resulta que:
a) “a B… definiu como objectivos fundamentais a atingir no triénio 2002/2005, no quadro da revitalização dos Jogos Sociais, o combate ao jogo ilegal e o alargamento da base de apostadores nos B2…”;
b) “ a introdução, no dia 02.10.2004, do M… foi precedida da isenção, em sede de IRS, de tributação dos respectivos prémios (…), condição indispensável para a participação de Portugal neste jogo (…)”;
c) “O B… apresentou uma Nova Identidade da B… na área dos Jogos Sociais, associando as vertentes sorte e sonho às da solidariedade e altruísmo, e reforçando a ideia de que ao jogar nos B2… todos ganham, com a assinatura “…” (…);
d) “Como resultado do projecto do novo jogo M…, o B… obteve a certificação do seu Sistema de Segurança pela BSI – British Standart Institution, de acordo com o referencial normativo da World Lottery Association o qual assegura que o B1… organiza e explora os Jogos Sociais do Estado Português de acordo com as melhores regras e práticas aceites a nível mundial”;
e) “o lançamento do Portal …. www.B2....pt”, que permite jogar a través da internet e de SMS, foi também um reflexo do novo posicionamento dos Jogos Sociais e representa uma nova proposta de valor no acesso aos jogos, com características de conveniência e comodidade que vão de encontro dos apostadores mais inovadores”;
f) No âmbito da Revitalização dos Jogos, o B… procedeu, designadamente, à “promoção da nova identidade dos B2… na N… em … e no programa da O… “… (…)” e “adjudicou, em Agosto, a publicidade dos B2… às empresas P… e Q…, para um período de 12 meses (…);
g) No ano de 2004, o total dos proveitos dos Jogos Sociais ascendeu a 1.036.555.308 €, o total dos custos do exercício ascendeu a 684.463.424 € e os custos com publicidade ascenderam a 27.087.956 €;
34. Nenhuma das arguidas tem quaisquer antecedentes referentes à prática de contra-ordenações no âmbito da exploração ilícita dos jogos sociais do Estado;
35. No ano de 2005, o Grupo C2… intitulava-se “o maior fornecedor de produtos de jogo on-line, na Europa Continental”, referia ter mais de um milhão de clientes registados e ter estabelecido como objectivo tornar-se o endereço líder nas apostas desportivas, jogo e entretenimento na Internet;
36. No ano de 2005, o Grupo C2… operava com licenças emitidas na Áustria, Alemanha, Reino Unido e Gibraltar, tendo obtido recentemente licenças para operar em França (desde Maio de 2010) e na Itália (há cerca de ano e meio).
*
Com relevância para a decisão da causa, não se provou:
a) qual o benefício económico concreto que a arguida C3… retirou da prática dos factos que se deram como provados;
b) qual a situação económica da arguida D1….
*
O tribunal fundou a sua convicção:
A) quanto aos factos provados:
I - os factos constantes dos pontos 1. a 9., 11. a 23. e 34. não foram impugnados por qualquer das arguidas e resultam, designadamente, dos documentos juntos a fls. 8 a 31 destes autos e do contrato de patrocínio junto a fls. 3953 a 3963 destes autos;
II - relativamente ao ponto 10., considerou-se o depoimento da testemunha S…, Director de Marketing da D1… desde 2002, que afirmou, com conhecimento directo dos factos, que na 4ª época prevista de execução do contrato (2008/2009) a D… teve uma “proposta melhor” por parte da “T…” e houve acordo com a C2… no sentido desta deixar de patrocinar, nessa mesma época, a “…”, que passou a ter o patrocínio da T…;
III - no que se refere aos pontos 24. e 25., considerou-se que é do conhecimento da generalidade das pessoas que a B… detém o exclusivo da exploração dos jogos de lotaria e apostas mútuas em Portugal, facto que, como se refere na decisão administrativa, a D1…, até pelas suas próprias atribuições, não poderia desconhecer; no que se refere à arguida C3…, foi elucidativo o depoimento da testemunha W…, advogado na firma de advogados que representa a C3… desde a sua fundação, tendo referido que: “não podemos chegar a um país e dizer aqui estamos. Temos que estudar a lei, contactar com advogados locais e analisar em detalhe a lei nacional. Analisamos com os advogados locais e só oferecemos (os jogos on-line) onde é permitido ou quando é permitido pela lei europeia. A lei portuguesa (que atribui o exclusivo à B…) infringe a lei europeia”. Face ao supra referido relativamente à D1… e ao teor deste depoimento, não podemos deixar de concluir que ambas as arguidas conheciam o regime legal em causa e que, apesar disso, não se abstiveram de levar a cabo a conduta descrita nos nºs 8 a 23 dos factos provados, cientes de que a mesma infringia a lei portuguesa e conformando-se com a eventual prática da infracção; considerou-se ainda, neste aspecto, o teor do comunicado dirigido pela B1… à D1…, em 19.08.2005, que consta de fls. 94 e 95 destes autos;
IV – relativamente aos pontos 26. e 27, considerou-se os documentos de fls. 263 a 297 destes autos, cuja tradução consta dos autos;
V – relativamente ao ponto 28., considerou-se os documentos de fls. 306 a 317 destes autos, cuja tradução consta dos autos;
VI – relativamente ao ponto 29., considerou-se o documento de fls. 340 destes autos;
VII – relativamente ao ponto 30., considerou-se os documentos de fls. 349 a 351 destes autos;
VIII – relativamente ao ponto 31., considerou-se o documento de fls. 394 destes autos, cuja tradução consta dos autos;
IX – relativamente aos pontos 32. e 33. considerou-se, respectivamente, o documento de fls. 403 a 412 e o documento de fls. 413 a 427 destes autos;
X – no que se refere aos pontos 35. e 36., considerou-se o comunicado traduzido a fls. 1315 a 1329;

B) quanto aos factos não provados, assim os entendemos porque nenhuma prova, documental ou testemunhal, foi apresentada quanto aos mesmos, seja por parte da acusação ou da defesa.
*
III – Fundamentação de direito.
Vêm ambas as arguidas acusadas da prática, em co-autoria, de:
• uma contra-ordenação de promoção, organização ou exploração, por via electrónica, dos jogos sociais do Estado, nomeadamente lotarias e apostas mútuas, com violação do regime de exclusivo, prevista e sancionada pelos arts. 1º, 2º, 11º, nº 1, als. a) e b) e 12º, nº 1 do Decreto-Lei n.º 282/2003, de 8 de Novembro, com coima não inferior a € 2.000 nem superior ao triplo do presumível valor global angariado com a organização do jogo, quando mais elevado do que aquele limite, até ao máximo de € 44.890 para pessoas colectivas
e
• de uma contra-ordenação de publicitação da realização, por via electrónica, de sorteios dos jogos sociais do Estado, nomeadamente lotarias e apostas mútuas, com violação do regime de exclusivo, prevista e sancionada pelos arts. 1º, 2º, 11º, nº 1, als. a) e b) in fine e 12º, nº 1 do Decreto-Lei n.º 282/2003, de 8 de Novembro, com coima não inferior a € 2.000 nem superior ao triplo do presumível valor global angariado com a organização do jogo, quando mais elevado do que aquele limite, até ao máximo de € 44.890 para pessoas colectivas.

Refira-se, antes de mais, que as conclusões apresentadas nos recursos em apreço fixam o objecto da presente decisão.
Começam as arguidas por alegar que não praticaram qualquer facto ilícito e censurável susceptível de punição a título de responsabilidade contra-ordenacional, seja por dolo, seja com mera negligência, não existindo qualquer violação dos normativos legais referidos.
Vejamos.
Dispõe o art. 1º do DL 84/85, de 28/03, na redacção que lhe foi dada pelo DL 317/2002, de 27/12, que:
“ 1 – O direito de promover concursos de apostas mútuas é reservado ao Estado, que concede à B… a sua organização e exploração em regime de exclusivo para todo o território nacional.
2 – Consideram-se “concursos de apostas mútuas” todos aqueles em que os participantes prognostiquem ou prevejam resultados de uma ou mais competições ou de sorteios de números para obter o direito a prémios em dinheiro ou a quaisquer outras recompensas.”
Dispõe ainda o art. 2º do mesmo DL que:
“1 – Serão organizados e explorados ao abrigo deste diploma concursos denominados “U…” e “V…” e quaisquer outras modalidades de concursos de apostas mútuas a criar por diploma legal adequado.
2 – Constitui concurso de U… todo aquele em que os participantes prognostiquem resultados de uma ou mais competições desportivas com a finalidade prevista no artigo anterior.
3 – Constitui concurso de V… todo aquele em que os participantes prognostiquem resultados de sorteios de números com a finalidade prevista no artigo anterior.”
Importa ainda considerar o disposto no DL 282/2003, de 08/11, diploma que veio autorizar o B… a registar apostas e pagar prémios de lotarias e apostas mútuas nos canais de distribuição electrónica (internet, multibanco, telemóvel, telefone, televisão, etc), através de uma plataforma de acesso multicanal.
Dispõe o art. 1º deste DL que “ o presente diploma estabelece a disciplina normativa da exploração, em suporte electrónico, dos jogos sociais do Estado, nomeadamente lotarias e apostas mútuas, ou quaisquer outros jogos cuja exploração venha a ser atribuída à B…, nos termos do disposto no art. 1º do anexo II do DL nº 322/91, de 26 de Agosto, através de uma plataforma de acesso multicanal que inclui a utilização integrada do sistema informático do B…, dos terminais da rede informática interbancária denominada “multibanco”, da internet, telemóvel, telefone, televisão, incluindo por satélite e por cabo e televisão interactiva, entre outros meios.”
Acrescenta depois o art. 2º do mesmo diploma que “ a exploração referida no artigo anterior é efectuada em regime de exclusivo, para todo o território nacional, incluindo o espaço radioeléctrico, o espectro herteziano terrestre analógico e digital, a Internet, bem como quaisquer outras redes públicas de telecomunicações, pela B… através do seu …, nos termos dos diplomas que regulam cada um dos jogos e do DL 322/91, de 26/08.”
Finalmente, o art. 11º do mesmo diploma prevê as consequências da violação deste regime de exclusivo nos seguintes termos:
1 – Constituem contra-ordenações:
a) a promoção, organização ou exploração, por via electrónica, dos jogos sociais do Estado previstos no art. 1º, com violação do regime de exclusivo estabelecido no art. 2º, bem como a emissão, distribuição ou venda de bilhetes virtuais e a publicitação da realização dos sorteios respectivos, quer estes ocorram ou não em território nacional;
b) a promoção, organização ou exploração, por via electrónica, de lotarias ou outros sorteios similares à Lotaria … ou à Lotaria …, com violação do regime de exclusivo estabelecido no art. 2º, bem como a emissão, distribuição ou venda de bilhetes virtuais e a publicitação da realização dos sorteios respectivos, quer estes ocorram ou não em território nacional;
(…)”.
Referidas as normas legais que importa considerar, atentemos agora na actuação das arguidas.
Desde logo adiantaremos que, em nosso entender, resulta dos factos provados que ambas as arguidas, em conjugação de esforços e a partir do início da execução do contrato de patrocínio, passaram a promover, por via electrónica, os jogos sociais do Estado, referidos no art. 1º do DL 282/2003, com violação do regime de exclusivo estabelecido no art. 2º do mesmo DL.
Senão vejamos.
“Promover” significa, de acordo com a Infopédia (dicionário on-line de Língua Portuguesa, da Porto Editora):
1.fazer avançar
2.dar impulso a; diligenciar; propagar; difundir
3.originar; fomentar; desenvolver
4.Instituir
5.elevar a posto ou a dignidade superior
6.requerer, propondo a execução de certos actos

Ora, atentos os factos provados, podemos afirmar que as arguidas conjugaram esforços no sentido de difundir, por via electrónica, determinados jogos sociais do Estado, com violação do regime de exclusivo.
Efectivamente, por acordo entre ambas, consubstanciado no contrato de patrocínio que celebraram, o site da D1… (meio electrónico) passou, a partir do início da execução desse mesmo contrato, a conter um link que possibilitava o acesso imediato ao site da Internet “C2….com”, site este onde estavam à disposição dos consumidores determinados jogos sociais do Estado, com violação do regime de exclusivo.
Com efeito, como se refere no próprio art. 1º do DL 282/2003, os jogos sociais do Estado incluem, nomeadamente, os concursos de apostas mútuas, concursos estes que estão definidos na lei como sendo todos aqueles em que os participantes prognostiquem ou prevejam resultados de uma ou mais competições ou de sorteios de números para obter o direito a prémios em dinheiro ou a quaisquer outras recompensas.
Ora, era exactamente este tipo de jogos (apostas mútuas), entre outros, que os consumidores podiam encontrar no site “C2….com”, conforme resulta dos pontos 20. a 23. dos factos provados.
Acresce que esta promoção dos jogos sociais do Estado, com violação do regime de exclusivo, foi praticada em território português, já que o site da D1… onde o referido link, por acordo entre ambas as arguidas, passou a figurar, é proporcionado por servidor localizado em Portugal (cfr. art. 4º, al. a) do RGCO).
O mesmo já não se poderá dizer da actividade de organização e exploração, por via electrónica, dos jogos em causa, levada a cabo pela arguida C3….
Efectivamente, esta arguida não tem estabelecimento estável em Portugal e os respectivos servidores estão localizados em … e …, pela que a respectiva actividade de organização e exploração dos jogos sociais do Estado não se pode ter por praticada em território nacional, sendo por isso irrelevante à luz do direito contra-ordenacional português (cfr. art. 4º al. a) do RGCO).
Cabe ainda averiguar se a mensagem “C2….com”, que ambas as arguidas acordaram em publicitar, como publicitaram, nos termos que constam dos pontos 13. a 16. dos factos provados, poderá integrar o conceito de “publicitação da realização dos sorteios” dos jogos sociais do Estado, a que se refere o segmento final do art. 11º, nº 1, al. a) do DL 282/2003.
A este propósito parece-nos ser de considerar que:
• a arguida C3… proporciona jogo exclusivamente através da Internet e qualquer utilizador desta via electrónica saberá que o sufixo “.com”, que surge na mensagem publicitada, indica que se está perante um site, tanto mais que, a totalidade da mensagem está escrita em letra minúscula e sem espaços, características, também, dos endereços electrónicos;
• parecendo-nos legítima a conclusão de que se está perante a publicitação de um site, certo é que, uma vez acedendo ao mesmo, o consumidor encontrará, exclusivamente, jogos de fortuna e azar e, designadamente, apostas mútuas que implicam necessariamente a realização de sorteios ( no caso do jogo “Balls of Fire”, um sorteio cada minuto), sorteios estes que se reportam a jogos sociais do Estado, com violação do regime de exclusivo, como acima se demonstrou.
Assim, parece-nos que ambas as arguidas conjugaram esforços, também, no sentido de publicitarem, como publicitaram, a realização dos sorteios dos jogos em causa (cfr. pontos 13 a 16 dos factos provados).
No entanto, e ao contrário do que se considerou nas decisões recorridas, parece-nos que as arguidas praticaram, em co-autoria, uma única contra-ordenação, cuja acção típica abrange quer a actividade de promoção, por via electrónica, dos jogos sociais do Estado com violação do regime de exclusivo, quer a publicitação, por qualquer meio, da realização dos sorteios respectivos.
Com efeito, nada parece permitir a conclusão de que o legislador tenha querido tipificar, na alínea a) do nº 1 do art. 11º do DL 282/2003, duas infracções distintas, a sancionar autonomamente, como se considerou nas decisões recorridas.
Concluímos, por isso, que as arguidas, agindo em conjugação de esforços (co-autoria), preencheram, com a sua actuação, a tipicidade objectiva e subjectiva da contra-ordenação prevista e sancionada pelo art. 11º, nº 1, al. a) do DL 282/2003, sendo certo que a culpa de ambas reveste a forma de dolo eventual (cfr. pontos 24. e 25. dos factos provados).
Já não nos parece que a actuação das arguidas preencha a tipicidade objectiva da alínea b) do mesmo artigo, uma vez que não resulta dos factos provados que qualquer das arguidas promovesse, organizasse ou explorasse, por via electrónica, lotarias ou outros sorteios similares à Lotaria … ou à Lotaria …, sendo certo que a característica distintiva das lotarias é o facto do jogo se processar por meio de bilhetes numerados ou suas fracções, o que não sucede no caso dos jogos promovidos pelas arguidas.
Resulta, isso sim, dos factos provados, que estão em causa unicamente jogos de apostas mútuas em que se prognosticam resultados de competições ou de sorteios de números.
Aliás, caso as arguidas promovessem também lotarias, estaríamos, aí sim, perante a prática de duas infracções distintas (uma prevista na alínea a) do nº 1 do art. 11º e uma outra prevista na alínea b) do nº 1 do art. 11º) e não perante a prática de uma única infracção, com referência simultânea às duas alíneas, como se considerou nas decisões recorridas.
Aqui chegados, cumpre, no entanto, analisar se, como alegam as arguidas, a respectiva conduta poderá deixar de ser sancionada por aplicação das normas e jurisprudência comunitárias.
Neste aspecto seguiremos de perto o Acórdão do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (fls. 2844 a 2859 dos autos), que teve por objecto o pedido de decisão prejudicial apresentado por este Tribunal, onde essencialmente se colocava a questão de saber se o art. 49º CE se opõe à legislação portuguesa que proíbe que um operador como a C3…, com sede noutro Estado-Membro onde presta legalmente serviços análogos, ofereça jogos de fortuna ou azar em território português, através da Internet.
Tal como se refere no Acórdão do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (doravante TJCE), é ponto assente que a legislação de um Estado-Membro que proíbe que prestadores como a C4…, com sede noutros Estados-Membros, ofereçam serviços no território do referido Estado, na Internet, constitui uma restrição à livre prestação de serviços garantida pelo art. 49º CE.
É, por isso, ponto assente que a legislação em causa nestes autos constitui uma restrição à livre prestação de serviços garantida pelo art. 49º CE.
No entanto, o art. 46º CE (aplicável ex vi do art. 55º CE) admite restrições justificadas por razões de ordem pública, segurança pública ou saúde pública.
Na falta de harmonização comunitária na matéria, compete a cada Estado apreciar, segundo a sua própria escala de valores, o que é exigido para assegurar a protecção dos interesses em questão.
Ora, em matéria de jogo, a jurisprudência comunitária tem vindo a identificar um certo número de razões imperiosas de interesse geral, tais como a protecção dos consumidores, a prevenção da fraude e da incitação dos cidadãos a uma despesa excessiva ligada ao jogo, bem como a prevenção das perturbações da ordem social em geral.
Em Portugal, tendo em conta essencialmente a protecção dos consumidores de jogos de fortuna ou azar contra fraudes cometidas pelos operadores, estes jogos estão sujeitos a um princípio geral de proibição, tendo o Estado reservado para si a possibilidade de autorizar a exploração directa de um ou vários jogos por um organismo do Estado ou dele directamente dependente, ou de conceder a sua exploração a entidades privadas com fins lucrativos ou não.
No seguimento desta política, a exploração dos jogos sociais do estado, abrangendo rifas, lotarias e apostas mútuas, vem sendo sistematicamente confiada, em regime de exclusivo, à B1….
Vejamos, então, se a consagração deste exclusivo responde de forma proporcional, não discriminatória, coerente e sistemática ao referido objectivo de protecção dos consumidores de jogos de fortuna e azar.
Desde já se adianta que, em nosso entender, a resposta a esta questão é afirmativa, pelas seguintes razões:
• a B1… tem uma longa existência, de mais de 5 séculos, que demonstra a sua fiabilidade, sendo que o primeiro tipo de jogo cuja exploração lhe foi confiada, a Lotaria Nacional, foi criada por Carta Régia de 18.11.1783;
• a B1… funciona na estrita dependência do governo. Com efeito, trata-se de uma pessoa colectiva de utilidade pública administrativa e os seus órgãos de administração, o Provedor e os restantes membros da Mesa, são nomeados, respectivamente, por despacho do Primeiro-Ministro e por despacho dos membros do governo que exercem a tutela da B1… (arts. 1º, nº 1, 12º, nº 1 e 13º dos Estatutos da B…, aprovados pelo DL 322/91, de 26/08 e alterados pelo DL 469/99, de 06/11);
• mais concretamente, o sector da exploração dos jogos de fortuna ou azar é da competência do B…, regido pelo Regulamento do B…, aprovado pelo DL 322/91. O órgão de administração deste …, nos termos do art. 5º de tal Regulamento, é constituído pelo Provedor da B1…, que preside por inerência e por dois Administradores Delegados nomeados por despacho conjunto do Ministro do Trabalho e da Solidariedade e do Ministro da Saúde;
• cada jogo de fortuna ou azar confiado à B1… é criado separadamente por DL e toda a organização e exploração dos diferentes jogos oferecidos por esta, incluindo aspectos essenciais para protecção dos consumidores como sejam o preço da aposta, os planos de prémio, a frequência de sorteios e a percentagem concreta para prémios, são reguladas por Portaria do Governo;
• o regime de exclusivo da B1… aplica-se a todo o território nacional incluindo, designadamente, a Internet;
• à B1… foram confiadas missões específicas nas áreas da protecção à família, à maternidade e à infância, da assistência a menores desprotegidos e em situação de risco, de assistência a pessoas idosas, a situações sociais de carência grave e de prestação de cuidados de saúde primária e diferenciada (art. 20º, nº 1 dos mesmos Estatutos);
• as receitas geradas pela exploração dos jogos de fortuna ou azar são repartidas entre a B1… e outras instituições de utilidade pública ou áreas de intervenção social, tais como associações de bombeiros voluntários, instituições particulares de solidariedade social, estabelecimento de prevenção e reabilitação de deficientes e o Fundo de Fomento Cultural. Por outro lado, é também fixada por DL a percentagem das receitas que reverte a favor da própria B1… e a percentagem que reverte para estas instituições ou áreas de intervenção social;
• o caso dos autos tem a particularidade de dizer exclusivamente respeito a condutas relacionadas com jogos organizados por via electrónica. Importa, por isso, atender a que, como se refere nos pontos 70 e 71 do Acórdão do TJCE supra referido, “devido à falta de contacto directo entre o consumidor e o operador, os jogos de fortuna ou azar acessíveis na Internet comportam riscos de natureza diferente e de uma importância acrescida em relação aos mercados tradicionais desses jogos, no que se refere a eventuais fraudes cometidas pelos operadores contra os consumidores. Por outro lado, não se pode excluir a possibilidade de um operador, que patrocina certas competições desportivas sobre as quais aceita apostas e certas equipas que participam nessas competições, se encontrar numa situação que lhe permite influenciar, directa ou indirectamente, o resultado e, assim, aumentar os seus lucros”;
• não se ignora que a B1…, conforme resulta dos pontos 32. c) e 33. g) dos factos provados, despendeu em publicidade, no ano de 2003, 11 milhões de euros e, no ano de 2004, 27 milhões de euros; no entanto, esta circunstância, de per si, não significa que o objectivo da protecção dos consumidores não esteja a ser, entre nós, perseguido de forma sistemática e coerente. Em primeiro lugar, porque a própria publicidade tem o efeito desejável de canalizar os consumidores para o operador autorizado (no caso, a B1…), evitando que se desloquem para outros operadores não autorizados. Em segundo lugar, porque a publicidade aos Jogos Sociais do Estado, de uma forma geral, vinca esta mesma faceta de que se trata de jogo e de possibilidade de ganho mas também, simultaneamente, de uma contribuição para as causas sociais apoiadas pela B1… (cfr. als. c) e f) do ponto 33. dos factos provados).
Ponderados todos estes aspectos, não podemos deixar de concluir que o art. 49º CE não se opõe, atentas as particularidades do caso concreto, ao regime de exclusivo em causa.
Resta agora determinar a coima concreta a aplicar a cada uma das arguidas pela prática, em co-autoria, da contra-ordenação prevista e sancionada pelo art. 11º, nº 1, al. a) do DL 282/2003.
Dispõe o art. 12º, nº 1 deste mesmo DL que a contra-ordenação em causa é punida, quando praticada por pessoas colectivas, como é o caso, com “coima mínima não inferior a (euro) 2000, nem superior ao triplo do presumível valor global angariado com a organização do jogo, quando mais elevado que aquele limite, num montante máximo de (euro) 44.890”.
Assim, e relativamente a qualquer uma das arguidas, a moldura abstracta da coima será de 2.000,00 € a 44.890,00 €, uma vez que se desconhece o presumível valor global angariado com a organização do jogo.
Na determinação da medida concreta das coimas a aplicar a cada uma das arguidas cumpre ponderar, nos termos do art. 18º, nº 1 do RGCO, os seguintes aspectos:
• a gravidade da contra-ordenação, que nos parece elevada, atentos os interesses públicos que subjazem ao regime de exclusivo violado, bem como ao período temporal de tal violação (três anos);
• a culpa das arguidas, que reveste a forma de dolo eventual;
• a situação económica das arguidas, sendo certo que a arguida D1… não tem fins lucrativos (ponto 1. dos factos provados) e que, no ano de 2005, o Grupo C2… se intitulava “o maior fornecedor de produtos de jogo on-line, na Europa Continental”, referia ter mais de um milhão de clientes registados e ter estabelecido como objectivo tornar-se o endereço líder nas apostas desportivas, jogo e entretenimento na Internet (ponto 35. dos factos provados);
• o benefício económico retirado da prática da contra-ordenação por cada uma das arguidas, sendo certo que o nº 5 do art. 12º do DL 282/2003, estabelece ainda que “na determinação da medida da coima deve atender-se, nomeadamente, ao lucro que, directa ou indirectamente, o promotor do jogo esperava obter com o recurso ao mesmo, em termos de numerário arrecadado ou em termos de aumentos de vendas”. No presente caso, sabemos apenas que a D1… recebeu, pelos 3 anos de execução do contrato, 8 milhões de euros, desconhecendo-se o lucro que directa ou indirectamente, a arguida C3… terá arrecadado com a prática da infracção.
Tudo ponderado, temos por adequado aplicar a cada uma das arguidas uma coima no valor de 30.000,00 €.
(...)
*
Questão Prévia (documentos juntos).
C… e D…, vieram, primeiro a fls 4535 e, posteriormente, a fls. 4353, 4671 e 4689 juntar vários documentos, nomeadamente um (i) Acórdão proferido pelo TJUE, caso Ker-Optika; (ii) parecer jurídico; (iii) decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal Alemão em 18.11.2010; (iv) Portaria n.º 65/2011 de 4 de Fevereiro de 2011; (v) perguntas formuladas por um membro do Parlamento Europeu à comissão em 20.12.2010; (vi) respostas do Comissário, de 16.02.2011; (vii) Relatório elaborado pelo Grupo de Trabalho constituido pelo Despacho 13722/2010, de 18 de Agosto; (viii) Acórdão proferido em 24.11.2010 pelo Tribunal Federal Administrativo Alemão; (ix) perguntas formuladas por um membro do Parlamento Europeu à comissão em 19.05.2011; (x) respostas do Comissário, de 23.06.2011; (xi) Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia proferido em 30.6.2011 – caso “Zetrurf”.
O Ministério Público pronunciou-se, no respeitante a alguns documentos (parecer de jurisconsulto e decisões conhecidas) pela admissibilidade da sua junção e quanto aos restantes pela sua não atendibilidade.
A junção de documentos, no processo penal, obedece ao regime estatuído nos artigos 164º e 165º do CPP.
Tendo em conta o modelo processual vigente é admitida a junção de documentos nas fases preliminares (inquérito ou instrução) ou, não sendo isso possível até ao encerramento da audiência. A compreensibilidade deste regime normativo, que estatui essa condicionante, decorre do princípio processual penal de que toda a prova tem que ser produzida e analisada na audiência de julgamento.
Não se tratando de documentos probatórios, («entendendo-se, por tal, a declaração, sinal ou notação corporizada em escrito ou qualquer outro meio técnico, nos termos da lei»), decorre do artigo 165º 3 do CPP uma mais ampla possibilidade processual da sua admissibilidade, nomeadamente «para além» da fase de audiência. Admissibilidade que, assegurado que seja sempre o contraditório, é claramente compreensível face à dimensão não probatória, mas meramente argumentativa, de tal tipo de documentação.
É hoje também, igualmente pacifica a impossibilidade de juntar documentos de natureza probatória nas fases de recurso, tendo em conta quer o disposto na lei (citada) que mesmo a natureza que assume o recurso na ordem jurídica nacional (recurso como remédio e não como novo julgamento).
Daí que se perfilhe que não é possível juntar documentos probatórios na fase de recurso.
O que já não é inadmissível é a junção de documentos na fase recursiva, quando tais documentos, pela sua natureza, apenas corroboram argumentativamente as posições sustentadas no recurso, como são, em regra, os pareceres de jurisconsultos.
Não assumindo a natureza de prova e, por isso, valendo tão só como reforço argumentativo do recorrente nada impede a sua junção.
Efectuadas estas considerações, importa analisar os documentos juntos (11) e a pertinência da sua admissibilidade.
No caso do documento (ii) é certo que tratando-se de parecer de jurisconsulto, não coloca qualquer questão, face ao referido.
Quanto às decisões judiciais dos Tribunais estrangeiros que junta [(i), (iii), (viii) e (xi)] dir-se-á que sendo decisões públicas, e por isso do conhecimento geral, a sua junção é inócua. A junção pelo requerente, não sendo inútil, não pode considera-se proibida.
Idêntico raciocínio deverá ser efectuado quanto à Portaria (iv) e Relatório do Grupo de trabalho (vii) que igualmente junta.
Quanto às perguntas efectuadas por um deputado europeu e respostas da Comissão [(v), (vi), (ix) e (x)9 não podem considerar-se apenas e só como um reforço argumentativo do recorrente e, por isso, na mesma linha dos pareceres de jurisconsultos. Tratando-se de um facto (eventualmente com interesse para os autos) só pode considerar-se como prova. E nessa a medida não é admissível a sua junção nesta fase processual.
Daí que não se admita a junção dos mesmos documentos (perguntas efectuadas pelo um deputado europeu e respostas da Comissão) que, por consequência, deverão ser oportunamente retirados e entregues, não se levando em consideração, desde já, na decisão a proferir.
*
Não obstante a ordem de interposição dos recursos, conhece-se em primeiro lugar e por uma questão lógica, o recurso das recorrentes C… e D….

(i) Inconstitucionalidade do art. 14°, n.° 1, do DL n.° 282/2003, de 03 de Novembro, da alínea j) do n.° 1, do art. 3.° do Regulamento do …, aprovado pelo art. 1.º do Decreto Lei n.° 322/91, de 26 de Agosto e o n.° 2 do mesmo Regulamento;

Sobre esta questão dizem os recorrentes que o art. 14º, n° 1 do D.L. n° 282/2003, de 08 de Novembro, a al. j), do n° 1, do art. 3º do Regulamento do …, aprovado pelo art. 1º do D.L. n° 322/91, de 26 de Agosto, e o nº 2 do mesmo Regulamento são inconstitucionais, por violação do disposto nos arts. 205° e 211º da Constituição da República Portuguesa, dado que a competência contra-ordenacional atribuída ao … traduz-se, na prática, na defesa de um interesse próprio - o exclusivo da exploração -, sendo a B1… directamente beneficiada pelo afastamento de potenciais concorrentes.
O que está em causa é, segundo os recorrentes, a norma que atribui competência à B… para proceder à fiscalização e sanção das questões de jogo.

A) Importa antes de mais estabelecer adequadamente o quadro jurídico em que se move a situação em causa.
Estabeleceu o artigo 1º do Decreto-Lei nº.84/85, de 28 de Março, republicado em anexo ao Decreto-Lei nº 317/2002, de 27 de Dezembro, e alterado pelo Decreto-Lei n.º 37/2003, de 6 de Março que «O direito de promover concursos de apostas mútuas é reservado ao Estado, que concede à B… a sua organização e exploração em regime de exclusivo para todo o território nacional».
O direito de promover apostas mútuas é, à face da lei portuguesa, reservado ao Estado.
Estado que, no entanto, concedeu à B… (B1…), no domínio dos jogos «sociais», em regime de exclusivo para todo o território nacional, a sua organização e exploração (artigo 1º, n.º 1).
Trata-se de uma exclusividade «não absoluta», na medida em que existe uma excepção constituída pelas apostas mútuas hípicas, instituídas pelo Decreto-Lei n.º 268/92, de 28 de Novembro, cuja exploração, fora dos hipódromos, em regime de exclusivo extensivo a todo o território nacional, é, ao invés, objecto de concessão mediante concurso público.
Na concretização daquela concessão, o Decreto lei 282/2003, de 8 de Novembro, pretendeu disciplinar o registo de apostas nos jogos sociais do Estado, cuja exploração foi concedida à B…, como se referiu, através da criação de uma plataforma de acesso multicanal que inclui a utilização integrada do sistema informático do B…, dos terminais da rede informática interbancária denominada «Multibanco», da Internet, telemóvel, telefone, televisão, incluindo por satélite e por cabo e televisão interactiva, entre outros meios.
Estabeleceu tal diploma um conjunto de regras a que obedece o contrato de jogo, as funcionalidades da plataforma, o modo de pagamento das operações de compra e pagamento dos prémios, a exigência de um suporte material de operações de compra, a conservação dos registos informáticos e ainda o regime sancionatório.
Além da fixação das contra-ordenações e sanções decorrentes de normas estabelecidas em tal regime, estabeleceu-se no artigo 14º do 283/2003 de 8 de Novembro, que «Compete à B…, no âmbito das suas atribuições, a apreciação e aplicação de coimas ou outras sanções acessórias dos processos de contra-ordenação que vierem a ser instaurados com vista à aplicação das penalidades previstas no presente decreto-lei».
Ou seja, o Estado concessionou à B… o registo de apostas em jogos sociais e, simultaneamente, atribuiu-lhe competências reguladoras (de fiscalização e de sanção) para que o exercício dessa actividade decorresse de forma adequada ao cumprimento da lei nacional.
O regime sancionatório contra-ordenacional tem uma matriz diversa, como tipo sancionatório autónomo, da matriz sancionatória de natureza criminal.
Tal diferenciação substantiva (e não meramente formal) tem na sua dimensão processual também diferenciações inequívocas.
Assim, aos crimes corresponde uma matriz processual unicamente jurisdicional e às contra-ordenações uma matriz mista, de natureza administrativa e jurisdicional.
E nesse sentido, assegurado sempre a possibilidade de recurso das decisões para os Tribunais, como órgãos de soberania independentes, não se vê que a atribuição de competências para processar o regime contra-ordenacional a outras entidades que não os Tribunais, colidam com os artigos 205º e 211º da CRP.
Recorde-se que no artigo 205º estabelece o princípio geral da fundamentação das decisões e os princípios da obrigatoriedade das decisões dos tribunais, bem como a execução dessas decisões e o respectivo sancionamento pela sua inexecução.
Por outro lado estabelece o princípio da competência geral dos tribunais judiciais e admissibilidade da especialização de tribunais.
Não decorre daí qualquer proibição à existência de entidades com competências para processar outros regimes sancionatórios, nomeadamente de natureza contra-ordenacional.
Sendo procedimentos diferentes, consoante as fases que envolvem, impõem órgãos de tutela também diferentes.
No caso das contra-ordenações, desde que garantido o controlo jurisdicional do procedimento contra-ordenacional, através da intervenção dos Tribunais como entidade competência no domínio dos recurso, está salvaguardado sempre a garantia dos cidadãos aos Tribunais, como órgãos independentes e imparciais, para apreciarem e decidirem os conflitos.
Assim e em conformidade não se verifica, por aqueles motivos invocados pelo recorrentes e face às normas constitucionais invocadas, a inconstitucionalidade das normas referidas.

B) Questão diferente é a que resulta da coincidência ou «confusão» da entidade a quem o Estado Português concessionou, com exclusividade para todo o território nacional, a realização os jogos e apostas desportivas (vg. «jogos sociais»), com o facto de ser a mesma entidade que fiscaliza e assume poderes sancionatórios para a violação das regras que determinam a concessão.
Como se referiu supra, a competência da B1… no domínio contra-ordenacional decorre da concessão exclusiva mais genérica que o Estado fez àquela instituição no sentido de lhe ser atribuído o direito de promover concursos de apostas mútuas todo o território nacional (com excepção das apostas mútuas hípicas).
Importa antes de mais, para conhecimento da questão, atentar na natureza da instituição B… e no seu Estatuto
O actual Estatuto da B1… decorre foi aprovado pelo Decreto-Lei nº 235/2008, de 3 de Dezembro, que revogou o Decreto-lei n.º 322/91 de 26 de Agosto (diploma que é posto em causa pelos recorrentes, dado ser esse o vigente à data da contra-ordenação impugnada).
No actual Estatuto, a «B… é uma pessoa colectiva de direito privado e utilidade pública administrativa, sendo a tutela exercida pelo membro do Governo que superintende a área da segurança social».
A qualificação da natureza da B1… já era estabelecida no diploma de 1991 (Decreto lei n.º 322/91), quando no artigo 1º qualificava a dita B3… como pessoa colectiva de utilidade pública administrativa. Alterada foi, no entanto, a tutela da mesma, que até 2008 era da competência dos membros do Governo da área da saúde e da segurança social, passando desde então a ser da competência do membro do Governo da área da segurança social.
Importa referir que o âmbito da tutela abrange, além dos poderes especialmente previstos nos estatutos, «a definição das orientações gerais de gestão, a fiscalização da actividade da B… e a sua coordenação com os organismos do Estado ou dele dependentes».
No Estatuto de 1991 a B1… para cumprimento dos seus fins estatutários, assegurava «nos termos do artigo 3º, como meio de obtenção de receitas, e sem prejuízo da parte que nestas a lei destinar a outras instituições ou entidades, a exploração de … e de … e …, em regime de exclusividade para todo o território nacional, podendo, de igual modo, explorar quaisquer jogos autorizados ou concedidos nos termos da lei» (artigo 2º alínea h).
O artigo 3º citado referia que para tal efeito [a referida alínea h)] a B3… integra um …, os quais se regem pelos regulamentos anexos ao Estatuto.
Na versão Estatutária de 1991, o B… tinha por objecto a exploração de lotarias, apostas mútuas e quaisquer outros dos jogos autorizados que, a qualquer título, sejam cometidos à B1… e bem assim controlar e fiscalizar o integral cumprimento das disposições legais que os regulamentam (artigo 1º do Regulamento).
Trata-se de um … que dispõe de orçamento e conta próprios, anexos ao orçamento e à conta da B1….
No âmbito das suas atribuições o … assume variadíssimas competência nomeadamente [para o que interessa aos autos], a) «gerir os jogos sociais a que respeita este diploma, designadamente as lotarias e os concursos de prognósticos ou aposta» e [alínea j)] «apreciar os processos de contra-ordenação que vierem a ser instaurados e respeitantes a exploração ilícitas de lotarias, de apostas mútuas ou outros jogos e actividades similares, com vista à aplicação de penalidades previstas na lei».
Este … tem uma direcção autónoma da direcção da B1…, estabelecendo ainda o Regulamento do … a composição dos júris dos vários concursos dos jogos sociais e apostas mutuas que são efectuado, dos júris das extracções destinadas ao apuramento dos números com direito a prémios e, finalmente, dos júris das reclamações.
Como se constata, são essencialmente competências na área da exploração de jogos que estão definidas no Regulamento e que, nalguns casos, assumem uma precisão e detalhada regulamentação (como nos caos dos vários júris), que se compreende, tendo em conta que está em causa regulamentação de actividade que envolve a recolha e distribuição avultada de quantias monetárias, nomeadamente na distribuição aleatória de prémios dos jogos.
A estrutura referida manteve-se na sua essência com o estatuto de 2008, nomeadamente no que à matéria importa, pese embora algumas alterações decorrentes do alargamento as suas competência no âmbito do jogo social, para além da área do município de …, para todo o território nacional.
Assim no âmbito e para a realização dos seus fins, a B1…, entre outros «Assegura a exploração dos jogos sociais do Estado, referidos no artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 56/2006, de 15 de Março, em regime de exclusividade para todo o território nacional, e a consequente distribuição dos resultados líquidos, podendo, de igual modo, explorar outros jogos que venham a ser criados».
No que respeita ás competências na área do jogo, os estatutos da B1… continuam a estabelecer um …, que tem como por objecto a exploração dos jogos sociais do Estado e de quaisquer outros jogos autorizados que sejam cometidos à B1…, igualmente com orçamento e conta próprios, anexos ao orçamento e à conta da B1….
Especificamente diz-se no artigo 27º do Decreto lei n.º 235/2008, de 3 de Dezembro que, sem prejuízo de exercer as demais competências atribuídas por lei e as que lhe sejam delegadas pelo provedor e pela mesa, são, nomeadamente, competências do …: a) Elaborar o plano de actividades e o orçamento; b) Elaborar o relatório e as contas resultantes da sua actividade; c) Explorar os jogos sociais do Estado, designadamente as lotarias e os concursos de prognósticos ou apostas mútuas; d) Estabelecer as condições essenciais a que deve obedecer a habilitação aos prémios das extracções das lotarias ou a participação nas apostas mútuas ou concursos de prognósticos e outros jogos sociais, a aprovar pela tutela através de portaria; e) Aprovar os planos para cada uma das extracções das lotarias fixando o número de bilhetes a emitir, o valor da venda de cada fracção, as categorias de prémios, o número dos mesmos, de cada categoria, bem como o valor a atribuir a cada um deles; f) Definir as regras a que deve obedecer a exploração dos concursos de prognósticos, apostas mútuas e outros jogos sociais, e designadamente fixar o preço da aposta de cada uma das modalidades em exploração, bem como o valor percentual para prémios a retirar da receita ilíquida apurada em cada concurso, a aprovar pela tutela através de portaria; g) Estabelecer o número de prémios a vigorar para cada modalidade de aposta mútua ou jogo social em exploração, a aprovar pela tutela através de portaria; h) Estruturar organicamente os serviços de modo a conseguir um normal funcionamento técnico –administrativo das diferentes operações respeitantes às extracções das lotarias e aos concursos; i) Elaborar para cada modalidade de lotarias, de apostas mútuas e demais jogos sociais do Estado, o respectivo regulamento geral, a aprovar pela tutela através de portaria; j) Determinar as modalidades desportivas a incluir nos concursos de apostas mútuas desportivas; l) Definir a rede de postos de venda a estabelecer em todo o País para os jogos sociais do Estado, regulamentando a sua actividade e fixando as respectivas remunerações; m) Habilitar a mesa com as informações e pareceres sobre qualquer modalidade de jogos cuja exploração venha a ser proposta à B1…; n) Apreciar os processos de contra -ordenação que vierem a ser instaurados respeitantes à exploração ilícita de lotarias e apostas mútuas ou outros jogos e actividades similares com vista à aplicação das penalidades previstas na lei; o) Propor à mesa a filiação em organismos internacionais de lotarias e outros jogos sociais.
Como se constata, são essencialmente semelhantes às competências já atribuídas em 1991, ou seja gestão e organização da exploração de jogos e procedimento para sancionamento de infracções exploração ilícita de lotarias e apostas mútuas ou outros jogos e actividades similares.
Por sua vez a estrutura do … também é semelhante, embora a anterior «direcção» do … tenha sido substituída por um «administrador executivo», conforme disposto no artigo 28º.

Efectuado este excurso factual e descritivo sobre o regime jurídico posto em causa pelos recorrentes, importa atentar na sua compatibilização com as normas constitucionais vigentes, partindo da questão essencial: ou seja é ou não compatível com o quadro constitucional português a existência de uma entidade a quem o Estado atribui a concessão de uma actividade especifica, em regime de monopólio, e simultaneamente tenha essa mesma entidade a competência para fiscalizar e sancionar os comportamento que violem o quadro normativo que rege a concessão e, por via disso tenha competência para aplicar coimas?
Importa antes de mais enfatizar o que já foi referido sobre o regime contra-ordenacional que está em causa nos autos, e que, como é sabido assume uma natureza diferente em relação ao domínio penal, nomeadamente uma menor ressonância ética, e, por isso onde «o peso do regime garantístico é menor», conforme tem vido a ser defendido pelo Tribunal Constitucional, na sua jurisprudência (vidé Acórdão n.º 659/2006, muito recentemente reafirmado no Acórdão n.º 461/2011, de 11 de Outubro).
Diferença que é naturalmente assinalada pela dogmática, tanto quando da justificação inicial para o estabelecimento deste regime sancionatório (cf. neste sentido, Figueiredo Dias, “O movimento de descriminalização e o ilícito de mera ordenação social”, Jornadas de Direito Criminal, C.E.J., 1983, p. 323), como posteriormente quando se começou a sedimentar na doutrina a natureza das contra-ordenações como regime sancionatório (cf., por todos, recentemente, António Leones Dantas, «Os direitos de audição e defesa no processo das contra-ordenações», Revista do CEJ, XIV, 2011, p 294. )
Conforme se refere nos Acórdãos n.º 469/97 e n.º 278/99, reconhece-se que a «inexigibilidade de estrita equiparação entre processo contra-ordenacional e processo criminal é conciliável com a necessidade de serem observados determinados princípios comuns que o legislador contra-ordenacional será chamado a concretizar dentro de um poder de conformação mais aberto do que aquele que lhe caberá em matéria de processo penal”.
O regime garantistico «menor» que referimos, com relevância em determinados actos processuais, como tem sustentado o TC, não invalida no entanto que a estrutura fundamental que preside ao regime das contraordenações não tenha que garantir os mínimos de um processo equitativo, conforme este processo é actualmente entendido pela Constituição no seu artigo 20º n.º 4.
Questão que o TC tem reafirmado, na fase jurisdicional, de forma inequívoca quando se diz que «gozam os mesmos das genéricas garantias constitucionais dos processos judiciais, quer directamente referidas naquele artigo 20.º (direito a decisão em prazo razoável e garantia de processo equitativo), quer dimanados do princípio do Estado de direito democrático (artigo 2.º da CRP)» - assim o Ac. 659/2006, citado.
Recorde-se, aliás, que desde 1989 a Constituição da República, no seu artigo 32º nº 10, no âmbito das garantias do processo criminal estabelece que «nos processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de defesa e audiência».
O processo equitativo é hoje inequivocamente um direito fundamental transnacional aplicável no âmbito da União Europeia por via do artigo 47º da Carta Europeia dos Direitos Fundamentais (CEDF) que expressamente estabelece que «toda a pessoa tem direito a que a sua causa seja julgada de forma equitativa, publicamente e num prazo razoável, por um tribunal independente e imparcial, previamente estabelecido na lei».
Recorde-se que a CEDF tem a mesma força jurídica dos Tratados da União, por via do artigo 6º n.º 1 do Tratado de Lisboa.
É actualmente inequívoco, tanto na jurisprudência como na dogmática que «a noção de tribunal independente», no sentido de uma entidade completamente independente dos sujeitos processuais envolvidos no litigio, para efeitos de garantia de um processo equitativo, impõe-se às entidades ou autoridades que têm o poder de aplicar contra-ordenações.
Um tribunal, para este efeito, caracteriza-se, no sentido material, pelo papel jurisdicional de decidir de acordo com as normas de direito e no âmbito de um processo organizado, todas as questões que estejam no âmbito da sua competência [cf. neste sentido os Acórdãos Demicoli c. Malta, de 27 de Agosto de 1991 §39, Belilos c. Suiça de 29 de Abril de 1988, §64 e H. c. Belgique, de 30 de Novembro de 1987, §50, todos do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH)].
O TEDH, tem sido muito claro e exigente nessa interpretação que faz do artigo 6º da CEDH, que, como se sabe, coincide com o artigo 47º da CEDF, nomeadamente sublinhando as exigências contidas naquele normativo para validar processos de natureza contra-ordenacional, (“Ordnungswidrigkeit”, na terminologia alemã). Especificamente assim é referido nos acórdãos Ozturk v. Alemanha (1984) e Lutz v. Alemanha (1987) – neste sentido, veja-se o Ac Relação de Évora de 28.10.2008, Gomes de Sousa)
Mas, para além disso, o TEDH vem afirmando que a garantia de um processo equitativo estende-se desde a primeira instância até ao Tribunal de ultima instância.
Ou seja, não basta, para garantir a exigência do processo equitativo, que a independência do Tribunal seja garantida na fase recursiva. No domínio sancionatório é exigido a independência a todos os órgãos com poderes de sanção. Como referem Jean Claude Soyer e Michel Salvya, «um Estado contratante pode admitir um único grau de jurisdição. Mas se admitir a existência de vários, todos devem estar de acordo com o artigo 6º» - cf. La Convention Européenne des Droits de l’Homme, Commentaire article par article, (sous la direction Louis-Edmon Pettiti), Económica, Paris 1995, p. 263.
Não é outra, aliás a posição da doutrina nacional suportada por Gomes Canotilho e Vital Moreira quando referem que «todo o processo - desde o momento de impulso a acção até o momento de execução – deve estar informado pelo princípio da equitatividadae, através da exigência do proceso equitativo» - cf. Constituição da República Portuguesa, Anotada, Volume I, Coimbra, 2007, p.415.
Assente pois que a aplicação de uma contra-ordenação exige, pelo menos por parte da entidade que a aplica, a existência de uma estrutura independente, em relação as entidades/sujeitos objecto de sancionamento, de modo a assegurar a garantia do direito ao processo equitativo.
Estrutura que, por regra, em toda a organização jurídico normativa vigente em Portugal tem sido respeitada (vidé, a título de exemplo, a estrutura e competências das Autoridades Reguladores da Concorrência, do Mercado de Valores Mobiliários, do Banco de Portugal, do IMTT, no que respeita ao regime estradal, à Entidade Reguladora da Saúde, no que respeita à saúde, etc.)
Estrutura que também existe e está garantida no ordenamento jurídico nacional no que respeita ao regime jurídico do jogo, nomeadamente por via das competências da Inspecção Geral de Jogos, actualmente integrada no Turismo de Portugal IP, com autonomia técnica e financeira, de acordo com o Decreto-lei n.º 208/2006, de 27 de Outubro, que assume em relação aos concessionários de jogo noutros domínios que não o chamado «jogo social» atribuído, em exclusivo, à B1…, a fiscalização da exploração dos jogos de fortuna e azar concessionados pelo Estado.
Finalmente essa é a estrutura que vigora no domínio do regime jurídico das apostas mútuas hípicas, reguladas pelo Decreto-lei n.º 268/92, de 28 de Novembro, em que a competência de fiscalização do regime e de aplicação de sanções foi atribuída igualmente ao Inspector Geral de Jogos, nos termos do artigo 24º daquele decreto lei, mantendo-se actualmente na Inspecção Geral de Jogos, após a reformulação efectuada naquela estrutura pelo Decreto-lei n.º 208/206, citado.
Tal estrutura é aliás absolutamente compreensível se se tiver presente que nas contra ordenações estamos no domínio de uma actividade de natureza sancionatória prosseguida pela Administração «fazendo parte, tal como o direito penal e o direito disciplinar, do direito sancionatório de natureza pública», conforme refere António Leones Dantas, ob. cit. p. 328.
A exigência de uma estrutura jurídica normativa que respeita o processo equitativo, como vem sendo referida, no caso em apreciação nos autos, não foi de todo respeitada na matéria de «jogos sociais». Nomeadamente pelos artigos 14°, n.° 1, do Decreto Lei n.° 282/2003, de 03 de Novembro, em conjugação com a alínea j) do n.° 1, do art. 3.° do Regulamento do B…, aprovado pelo art. 1.º do Decreto Lei n.° 322/91, de 26 de Agosto, que atribui à B1…, através da B… daquela instituição, a apreciação e aplicação de coimas ou outras sanções acessórias dos processos de contra-ordenação que vierem a ser instaurados com vista à aplicação das penalidades previstas no presente decreto-lei.
É certo que a lei atribui essas competências a um «…» que funciona na B….
Embora o B… tenha, nos termos estatutários, alguma autonomia formal em relação aos órgãos da …, porquanto se trata de um departamento anexo, as funções da direcção daquele … englobam, no entanto, amplas funções de gestão e administração da exploração do jogo e cumulativamente funções de aplicação de sanções, nomeadamente apreciação e aplicação de coimas ou outras sanções acessórias dos processos de contra-ordenações que vierem a ser instaurados com vista à aplicação das penalidades previstas na lei.
Ou seja as funções de interveniente («player») na gestão da actividade do jogo, da competência do B…, não têm qualquer autonomia em relação às funções de fiscalização e sancionamento dessa mesma actividade que envolvem, naturalmente, terceiros.
Do que vem sendo dito importa pois concluir que estando atribuída à B1… a concessão da exploração dos jogos sociais, nos termos referidos e, simultaneamente, sendo esta entidade que tem a competência para aplicar sanções (coimas) por via da infracção às regras que aquele regime de jogo estabelece, através do seu …, viola-se o princípio constitucional do direito ao processo equitativo.
Encontrando-se tal regime, por isso, em colisão clara e flagrante com a norma constitucional que garante a todos o direito a um processo equitativo, nomeadamente o artigo 20º n.º 4 da Constituição da República Portuguesa, no sentido único que decorre do artigo 47º da Carta Europeia dos Direitos Fundamentais, não pode deixar de declarar-se as normas dos artigos 14°, n.° 1, do Decreto Lei n.° 282/2003, de 03 de Novembro, em conjugação com a alínea j) do n.° 1, do art. 3.° do Regulamento do …, aprovado pelo art. 1.º do Decreto Lei n.° 322/91, de 26 de Agosto, como inconstitucionais. E, nessa medida, embora por outras razões, dar razão aos recorrentes no seu recurso.
Assim sendo e em conformidade com o juízo de inconstitucionalidade referido não resta outra decisão que a absolvição pura e simples das arguidas pelas contra-ordenações aplicadas nos presentes autos.
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Face à decisão agora proferida, ficam prejudicadas as restantes questões suscitadas pelos recorrentes bem como o recurso interposto pelo Ministério Público.

III. DISPOSITIVO.
Nesta conformidade acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso interposto por C… e D…, recusando a aplicação do regime normativo constante nos artigos 14°, n.° 1, do Decreto Lei n.° 282/2003, de 03 de Novembro, em conjugação com a alínea j) do n.° 1, do art. 3.° do Regulamento do …., aprovado pelo art. 1.º do Decreto Lei n.° 322/91, de 26 de Agosto, com fundamento em inconstitucionalidade material, decidindo absolver as arguidas das contra-ordenações pelas quais foram condenadas em primeira instância.
Sem tributação.
Notifique.
Processado por computador e revisto pelo primeiro signatário (artigo 94º nº 2 CPP).

Porto, 2 de Novembro de 2011
José António Mouraz Lopes
Maria Deolinda Gaudêncio Gomes Dionísio