Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0644242
Nº Convencional: JTRP00039956
Relator: CUSTÓDIO SILVA
Descritores: INSTRUMENTO DO CRIME
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTE
Nº do Documento: RP200701170644242
Data do Acordão: 01/17/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: LIVRO 244 - FLS. 139.
Área Temática: .
Sumário: Só se pode concluir que um automóvel serviu para a prática de um crime de tráfico de estupefacientes se, sem a sua utilização, os factos não teriam sido praticados ou tê-lo-iam sido de modo diferente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acórdão elaborado no processo n.º 4242/06 (4ª Secção do Tribunal da Relação de Porto)
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1. Relatório
Consta do acórdão de 15 de Julho de 2005 o seguinte dispositivo:
“Assim, acordam os Juízes do Tribunal Colectivo em:
a) Julgar provada e procedente a acusação deduzida nos presentes autos contra os arguidos B………….. e C……….. pela autoria material da prática do crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art. 25º, n.º 1, do Dec.-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro ( após convolação do art. 21º, n.º 1, do Dec.-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro ), e, consequentemente, condenar cada um dos arguidos na pena de vinte e seis meses de prisão;
...
c) Declararem-se perdidos a favor do Estado os objectos apreendidos ...;
...”.
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D……………., L.da, veio interpor recurso, tendo terminado a motivação pela formulação das seguintes conclusões:
“1ª - Com a declaração expressa de resolução por parte de E…………., a ora recorrente tinha – e tem – direito a reaver a viatura.
2ª - O Meritíssimo Juiz a quo, no apenso, relegou a decisão para momento posterior e assumiu a provisoriedade dessa decisão, ao referir: ‘... indefere-se, por ora, o requerido ...’.
3ª - O Juiz a quo não decidiu, então, nem depois, no apenso.
4ª - Não conheceu, como deveria, dos invocados fundamentos oportuna e atempadamente exarados no incidente.
5ª - Tal configura omissão de pronúncia, nos termos do art. 379º, n.º 1, al. a), do C. de Processo Penal, pelo que é nula a sentença.
6ª - A invocada nulidade não contamina toda a decisão, mas somente a parte da mesma que decretou a perda do veículo apreendido a favor do Estado.
7ª - Para além da míngua de factos, o que consubstancia insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (art. 410º do CPP), e da falta de fundamentação de direito, o que configura uma contradição insanável entre a fundamentação e a decisão (o mesmo artigo do mesmo normativo), situações geradoras de nulidade de decisão, o acórdão em apreço não poderia ter decretado o perdimento do veículo.
8ª - E, por maioria de razão, face à já ocorrida e prévia resolução do contrato que esteve na génese da aquisição do veículo em causa à ora recorrente.
9ª - Impondo-se, deste modo, a reformulação do acórdão recorrido, nessa parte, dando-se sem efeito o decretado perdimento do veículo e a sua entrega à ora recorrente, sua legítima e pacífica possuidora, com inquestionável boa fé”.
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2. Fundamentação
O objecto do recurso é parametrizado pelas conclusões (resumo das razões do pedido) formuladas quando termina a motivação, isto em conformidade com o que dispõe o art. 412º, n.º 1, de C. de Processo Penal – v., ainda, o ac. de S. T. J., de 15 de Dezembro de 2004, in C. J., Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, n.º 179, ano XII, t. III/2004, Agosto/Setembro/Outubro/Novembro/Dezembro, pág. 246.
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Há que, então, definir qual a questão que se coloca para apreciação e que é a seguinte:
A declaração de perdimento a favor de Estado de um automóvel (ligeiro de mercadorias, marca Mazda e matrícula ..-..-HL) observou o determinado no art. 35º, n.º 1, do Dec.-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro?
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Consta do acórdão sob recurso, em termos de enumeração dos factos provados e dos factos não provados, bem como da exposição dos motivos de facto que fundamentaram a decisão e da indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, o seguinte:
“Instruída e discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos:
...
1. Na sequência de uma denúncia anónima recebida na P. S. P. de Vila do Conde de que no Café F……….., sito na R. ……….., …………., em Vila do Conde, se transaccionavam produtos de natureza estupefaciente, veio a ser montada uma operação de vigilância sobre as actividades dos arguidos.
2. Em virtude de tais diligências veio a apurar-se que os referidos locais eram diariamente procurados por consumidores de estupefacientes.
3. Os dois primeiros arguidos (B………….. e C…………..) dirigiram-se ao referido Café F………… numa carrinha Mazda, de cor cinzenta e matrícula ..-..-HL.
4. No âmbito desta actividade, G………….. contactava o arguido B……….. e encomendava-lhe a heroína pretendida, combinavam o local da transacção – Café F……….. ou outra rua da cidade de Vila do Conde – e encontravam-se para efectuar tal operação.
5. Do mesmo modo, os arguidos B………. e C…………, contactados por H………, dirigiam-se no veículo apreendido, até junto da ponte do Rio Ave e ali vendiam a este indivíduo ‘pacos’ de heroína ao preço já mencionado.
6. Para além disso, os dois primeiros arguidos vendiam heroína a outros indivíduos referenciados pela entidade policial como toxicodependentes.
7. No decurso da vigilância policial, no dia 12 de Novembro de 2004, foi apurado que, pelas 10 horas e 15 minutos, os arguidos B…………… e C…………. chegaram à residência sita na …………, ……., n.º ….. .
8. Os arguidos fizeram-se transportar no veículo marca Mazda (tipo pick up), cinzento, matrícula ..-..-HL, propriedade de E……….., esposa do primeiro arguido e mãe do segundo.
9. Os arguidos B………. e C………… seguiram na descrita vaitura Mazda até à Av. …….., em Vila do Conde, onde, depois de pararem o veículo, foram abordados por um número indeterminado de indivíduos referenciados como consumidores de drogas – entre os quais encontrava-se G………., que pretendiam ser abastecidos pelos arguidos.
10. Em consequência dessa intervenção policial foram apreendidas, na posse do arguido C…………., 10 embalagens de plástico de um produto sólido, com o peso líquido de 0,613 g, que era cocaína, 10 embalagens de plástico de um pó, com o peso líquido de 0,525 g, que era heroína, e uma bolsa, em cabedal, preta.
11. Na posse do arguido B…………: € 25, em notas do Banco Central Europeu, um telemóvel, marca Siemens, modelo C 55, azul, com o IMEI 352253005760912 (apreendido), com bateria e cartão TMN, o veículo automóvel da marca Mazda, modelo B 2500, ligeiro de mercadorias, cinzento, matrícula ..-..-HL (apreendido ...), respectiva chave, título de registo de propriedade, livrete e demais documentação, uma bolsa, em cabedal, preta.
12. Foi ainda realizada uma busca domiciliária à residência destes dois arguidos, tendo ali sido apreendidos os plásticos recortados transparentes (constantes de fls. 40/45), próprios para acondicionar estupefacientes em doses individuais ( ‘paços’ ).
13. Os produtos estupefecientes apreendidos na posse dos arguidos B………… e C…………. (quando estavam no veículo apreendido), destinavam-se a ser por eles vendidos aos consumidores que se lhes dirigissem.
14. As notas do BCE que foram apreendidas aos arguidos eram provenientes de anteriores vendas de heroína e cocaína por eles realizadas.
15. Os plásticos recortados que estavam na posse dos dois arguidos destinavam-se a ser utilizados para embalar doses individuais de heroína para venda ( ‘paços’ ).
...
17. Todos os arguidos eram referenciados pela entidade policial como ligados à venda de produtos de natureza estupefaciente.
18. Os arguidos B……….. e C……………., durante o período de 6 meses que antecedeu a sua detenção, não desenvolveram nenhuma actividade profissional de forma estável, utilizando, por isso, os lucros obtidos com a venda de produtos estupefacientes para financiar as despesas inerentes aos seus gastos pessoais.
19. O arguido B……….. tem uma condenação anterior pela prática de crimes de furto, tendo sido condenado na pena única de 4 anos e meio de prisão.
20. O arguido C………… tem uma condenação anterior pela prática de crimes de furto, tendo sido condenado na pena única de 3 anos e 8 meses de prisão.
21. Os arguidos B……….. e C……………. actuaram em comunhão de esforços, com o intuito de, através da venda de estupefacientes, lograr obter benefícios pessoais e lucros em dinheiro.
22. Bem sabiam que a detenção e comercialização de heroína e cocaína eram actividades proibidas por lei e estavam cientes das características estupefacientes deste produto.
23. O arguido B…………… não sabe ler nem escrever e é trolha de profissão, ainda que sem exercer a sua actividade profissional desde tempo não concretamente apurado.
24. O arguido C……….. tem o 6º ano de escolaridade e é canalizador, também sem exercer regularmente esta sua actividade profissional desde um período não apurado em concreto.
...
Não se provou que:
...
2. Os arguidos ( e I…………), no dia da intervenção policial, provinham da cidade de Porto, Bairro ………., onde haviam adquirido produtos estupefacientes a um indivíduo de identidade desconhecida, chamado J………. .
3. Naquele local, onde chegaram neste veículo, o arguido C…………. abordou ... I……….., que ali se encontrava à espera, a quem veio a entregar um número indeterminado de embalagens de plástico, contendo um produto estupefaciente, para que ele o distribuísse a troco de dinheiro pelos consumidores que o abordassem.
4. Os arguidos ( e I………… ) elaboraram um plano, através do qual, em conjugação de esforços, os arguidos B………… e C…………, pai e filho, após receberem, via telemóvel, uma encomenda para venda de produto estupefaciente, ( entregavam-no a I……….. para que o fizesse chegar ao respectivo destino ). Como meio de pagamento de tal actividade, ... I………. recebia dos dois ... arguidos heroína para seu consumo pessoal diário.
5. O produto das vendas de heroína realizadas por ... I………… era por este entregue aos ... arguidos, em cumprimento do acordo estabelecido entre eles.
6. Esta actividade de venda de heroína, que era desenvolvida pelos arguidos e I……….., iniciou-se em data não apurada, mas cerca de 6 meses antes de 12 de Novembro de 2004, e só terminou nessa data.
7. Durante esse período de tempo, os arguidos e I………… venderam heroína e cocaína todos os dias úteis, de segunda a quinta-feira, pelas 9 horas, e à sexta-feira, entre as 8 horas e 30 minutos e as 9 horas, no supra identificado estabelecimento comercial ou nas imediações deste e em várias outras ruas da cidade de Vila do Conde, à razão, no que respeita à heroína, de 90 doses individuais por dia, ao preço de € 5 cada uma, não tendo sido, contudo, apurada qual era a quantidade diária de cocaína vendida.
8. A heroína que se encontrava guardada na residência destes arguidos não chegou a ser apreendida, dado que ... I……….. logrou atirá-la a um riacho, antes da intervenção policial.
9. Os demais factos indicados na acusação.
IV. Fundamentação fáctica:
A convicção do tribunal colectivo, para operar a deliberação da matéria de facto, assentou, basicamente, no exame crítico das provas produzidas na audiência de julgamento e, de um modo específico, ( no ) depoimento da testemunha L……….., que viu vários consumidores a ir ao encontro do veículo automóvel dos ... arguidos. Esta testemunha revelou ter conhecimento directo dos factos, nomeadamente (tendo visto) a testemunha G………. a entregar aos ... arguidos dinheiro e a receber, em troca, um pacote. O depoimento da testemunha M……… – também agente da PSP, que ... cooperou na mesma diligência, realçando-se o facto de, no dia anterior, haverem sido montadas vigilâncias nas imediações do local sito em …….. .
Para as referidas testemunhas intervenientes nesta operação, ... I………… estava junto ao portão dos arguidos! O arguido C……….. tinha uns pacotes na mão e tinha uma bolsinha preta e umas doses de pacotes! Mas nenhum deles viu qualquer dos arguidos ou I………… a atirar estupefacientes para o riacho. Neste sentido, intui-se que as testemunhas evidenciaram o seu conhecimento directo dos factos, em face da própria percepção imediata, mostrando-se, assim, o seu depoimento bastante credível, na parte em que se deram como provados os factos ( n.ºs 1 a 17 ).
O depoimento da testemunha H…….. – alcunha H1……….. -, que, por ter sido prestado com grande espontaneidade, também se mostrou credível, essencialmente na parte em que refere ter sido toxicodependente e, por isso, adquirira, no Café F…………., heroína, cerca de duas dúzias de vezes ao arguido C……….., sendo que este, regularmente, andava acompanhado do primeiro arguido (seu pai) quando ia ao café vender a droga. A heroína custava € 10 o ‘paco’ e viu o arguido C…………. vender drogas à testemunha G……….. .
Os arguidos não quiseram prestar declarações ...
Em suma: a fixação da matéria de facto resultou, assim, não só do depoimento das testemunhas que atrás se evidenciou, mas, ainda, do seu confronto com o teor dos documentos juntos aos autos, nomeadamente dos autos de apreensão, relatos de vigilância, exames directos e perícia feita à heroína.
Os antecedentes criminais foram comprovados pelo teor dos certificados juntos.
O comportamento moral, social e económico resulta da percepção dos relatórios juntos aos autos, também em confrontação com o depoimento das testemunhas de defesa ouvidas na audiência”.
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Antes de entramos na abordagem das questões que o presente recurso convoca, há que consignar, por uma questão de clareza, que, não houve impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto ( nos termos do art. 412º, n.ºs 3, als. a), b) e c), e 4, do C. de Processo Penal ) e não se lobriga a existência de qualquer dos vícios indicados no art. 410º, n.º 2, als. a), b) e c), do C. de Processo Penal ( a invocação que D……….. ... fez dos vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, para lá de vaga, isto é, sem concretização, por mínima que fosse, não é “recolhida”, desde logo, como é indispensável, no texto da decisão recorrida; isto para não falarmos na certeza de que a sua pretensão encontra sustentação ao nível do direito: a de, nas circunstâncias de facto conhecidas, não ser de manter o decretado perdimento que pôs em destaque ... ).
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Abordemos, agora, a questão pelo recurso de D………… ... convocada [ a declaração de perdimento a favor de Estado de um automóvel ( ligeiro de mercadorias, marca Mazda e matrícula ..-..-HL ) observou o determinado no art. 35º, n.º 1, do Dec.-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro? ].
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O art. 374º, n.º 3, al. c), do C. de Processo Penal, impõe que o dispositivo do acórdão contenha a indicação do destino a dar a coisas ou objectos relacionados com crime.
Ora, e aqui, como o crime em causa é o de tráfico de menor gravidade (arts. 21º, n.º 1, e 25º, al. a), do Dec.-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro), essa indicação, como é bom de ver, tinha de se reportar às coisas ou objectos relacionados com este mesmo crime.
Mas para isso era indispensável atentar na norma, substantiva, ajustada para o efeito, que é a que se contém no art. 35º, n.º 1, do Dec.-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, que é do seguinte teor:
« São declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de uma infracção prevista no presente diploma ... ».
Sucede que, neste âmbito, o acórdão sob recurso, se é certo que cumpriu aquela primeira norma, não procedeu (como temos, ressalvando o devido respeito por diverso entendimento, que nunca, sendo o caso, se porá em crise, por necessário, face ao que defendemos ser algo não automático, como se vai ver ... ) à explicitação das razões ou fundamentos pelos quais considerou que o objecto em causa tinha servido para a prática do indicado crime. Mas como cumpriu essa primeira norma, e porque não podia ter deixado de atentar na segunda delas, ao fazê-lo como o fez, relativamente ao dito objecto, teve que o considerar como tendo servido para a prática do aludido crime, cabendo notar que o facto de o objecto ser de terceiro não tem, nesta sede, qualquer relevância ou destaque negativo – v. o ac. de S. T. J., de 27 de Setembro de 2000, in C. J., Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano VIII, t. III – 2000, págs. 177/178.
Quando é que, então, se pode dizer que um objecto serviu para a prática de um crime?
É evidente que se a resposta passasse pela mera utilização a resposta seria sempre, o que redundaria na efectiva automaticidade da afirmação de que o objecto tinha servido para a prática do crime.
Mas parece-nos que não pode ser assim.
Na verdade, torna-se necessário recorrer à noção de instrumentalidade ou à demonstração da existência de um nexo de instrumentalidade entre a utilização do objecto e a prática do crime, «noção esclarecida pela invocação da causalidade adequada, pois se basta que os objectos possam considerar-se instrumentos do crime, no sentido de que tenham servido ... para a prática de uma infracção prevista no referido diploma. Mas para que assim seja não se afigura necessário que os objectos tenham essa aplicação exclusiva, embora seja exigível que a sua relação com a prática do crime se revista de um carácter significativo, numa relação de causalidade adequada, para que a infracção se verifique em si mesma ou na forma de que se revestiu » - ac. de S. T. J., de 14 de Março de 2000, in C. J., Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano X, T. I – 2002, pág. 237.
E não só, também se tem de fazer interceder o princípio da proporcionalidade.
« A perda dos instrumenta sceleris, não estando submetida ao princípio da culpa, terá de ser equacionada com o princípio da proporcionalidade relativamente à importância do facto ».
« A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
Um dos pressupostos materiais para a restrição legítima de direitos, liberdades e garantias consiste no princípio da proporcionalidade (princípio da proibição do excesso), que se desdobra nos princípios da adequação: as medidas restritivas devem ser o meio adequado para a prossecução dos fins visados pela lei, da exigibilidade: as medidas restritivas devem revelar-se necessárias, e da proporcionalidade: os meios legais restritivos e os fins obtidos devem situar-se numa “justa medida”, não devendo ser as medidas restritivas desproporcionadas, excessivas em relação aos fins obtidos» - ac. de S. T. J., de 14 de Março de 2000, in C. J., Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano X, T. I – 2002, pág. 238.
Também no ac. do S. T. J., de 25 de Novembro de 2004, in C. J., Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, n.º 179, ano XII, t. III/2004, Agosto/Setembro/Outubro/Novembro/Dezembro, pág. 239, se expendeu o mesmo essencial entendimento: « a perda de objectos que tiverem servido para a prática de infracção relacionada com estupefacientes tem como fundamento a existência ou a preexistência de uma ligação funcional e instrumental entre o objecto e a infracção, de sorte que a prática desta tenha sido especificadamente conformada pela utilização do objecto. Na especificidade de execução dos diversos e amplos casos de factualidade típica dos crimes ditos de “tráfico de estupefacientes” a possibilidade, concreta e determinada, da utilização de certos objectos depende muito do tipo de actuação que estiver em causa. O objecto há-de ser apto à execução, ou para contribuir e condicionar de modo específico ou modelar os termos da execução, de tal sorte que sem o auxílio ou o uso do objecto os factos que constituem a infracção não teriam sido praticados, ou apenas teriam sido praticados de modo diferente, independente ou autónomo, ou com neutralidade executiva do objecto. A mera alusão genérica, abrangendo o veículo B, de que o arguido procedia ao transporte, após as compras, para as vendas, nos veículos apreendidos, não se afigura suficiente para considerar que estão preenchidos os pressupostos de que a lei faz depender a declaração de perda, no caso, do veículo B, pois não ficou descrito nem o processo executivo, nem a função ou o relevo instrumental do veículo no processo de execução ».
Voltemos ao caso.
E temos, porque assentes, os seguintes factos específicos: os arguidos, que vendiam heroína e cocaína em Vila do Conde, dirigiam-se para os locais de venda, vindos da sua residência, situada em localidade diversa (…….) no automóvel em referência; quando vendiam essas substâncias, encontravam-se no interior do mesmo automóvel; quando foram detidos, encontravam-se nesse automóvel, mas tendo as ditas substâncias na sua posse.
Ou seja, em termos de síntese: o indicado automóvel era utilizado pelos arguidos para se deslocarem da sua residência, em ……., até Vila do Conde, para a venda das mencionadas substâncias; nele se encontravam quando efectuavam os atinentes “negócios”.
Daqui se vê, com palmar evidência, e só, que o automóvel era utilizado como meio de transporte (deslocação) dos vendedores daquelas substâncias, não que a sua utilização tivesse algo a ver com a actividade de tráfico, de forma a que esta (tal como conhecida), sem aquele, não pudesse (ou com muita dificuldade pudesse) ter acontecido (basta pensar em que essa deslocação podia, naturalmente, ter lugar por outro meio ...; assim, o que acontecia, também naturalmente, é que ele facilitava essa deslocação ).
Dito de outro modo: a venda daquelas substâncias, em Vila do Conde, por arguidos provenientes de …….., estava votada ao fracasso ou apresentava exigências de tal maneira onerosas que quase implicavam a sua não efectivação, se não fosse utilizado o dito automóvel para os mesmos fazerem essa deslocação (e é só disso que se trata, não nos podemos esquecer ... )?
Não vemos como (e sustentado em que factos ... ) podemos responder afirmativamente ...
Daí que tenhamos de concluir no sentido de que o automóvel em destaque não serviu para a prática, pelos arguidos, do crime de tráfico de menor gravidade ( arts. 21º, n.º 1, e 25º, al. a), do Dec.-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro ).
O que acarreta, nos termos, claros, do art. 186º, n.º 2, do C. de Processo Penal, a sua restituição « a quem de direito » (a executar, como nos parece dever ser – o tribunal da relação funcionou, neste caso, como tribunal de recurso – pelo tribunal de 1ª instância; ademais, porque, de acordo com os factos enumerados como provados no acórdão sob recurso, se consagrou ser da titularidade de E………… – esposa do primeiro arguido e mãe do segundo – o pertinente direito de propriedade, e no apenso relativo ao incidente de defesa de direitos dos terceiros de boa fé, suscitado por D……… ..., consta que foi, em relação a esse automóvel, celebrado um contrato de compra e venda a prestações entre D…………. ... e E………… e B…………, mas com o pertinente registo feito, unicamente, a favor de E…………, tendo esta, somente, em momento posterior, declarado, expressamente, aceitar a resolução de mesmo contrato, pode ser necessário proferir decisão no sentido de identificar, definitivamente, quem tem direito à mencionada restituição ).
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3. Dispositivo
Concede-se provimento ao recurso e, em consequência, revoga-se o acórdão em causa na parte em que decretou o perdimento do automóvel ligeiro de mercadorias (Mazda) de matrícula ..-..-HL a favor do Estado, sendo que, por isso, nos termos do art. 186º, n.º 2, do C. de Processo Penal, tem o mesmo de ser restituído a quem de direito (a identificar, pela razões sobreditas, na 1ª instância ).

Porto, 17 de Janeiro de 2007
Custódio Abel Ferreira de Sousa Silva
Arlindo Martins Oliveira
Jorge Manuel Miranda Natividade Jacob
Arlindo Manuel Teixeira Pinto