Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
9577/08.1TBVNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA CECÍLIA AGANTE
Descritores: ARRENDAMENTO
CADUCIDADE
DEMOLIÇÃO DO IMÓVEL
DEMOLIÇÃO DO IMÓVEL CLANDESTINO
CAUSA IMPUTÁVEL AO LOCATÁRIO
Nº do Documento: RP201107059577/08.1TBVNG.P1
Data do Acordão: 07/05/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO.
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Mesmo não tendo ocorrido a perda do locado no sentido naturalístico, no momento em que o seu estado de degradação tornou inviável o fim do contrato, ela ocorre juridicamente.
II - A partir do momento em que a Câmara Municipal ordena a demolição do imóvel por ser clandestino e a notifica ao locador, verifica-se uma impossibilidade superveniente objectiva de continuação da relação contratual, que é causa de caducidade do contrato.
III - A demolição do imóvel arrendado, ainda que por causa imputável ao locador, não deixa de implicar a extinção do arrendamento por perda da coisa locada, dada a impossibilidade de prestação de gozo da coisa, restando ao locatário direito a indemnização pelos prejuízos sofridos com a privação do locado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação 9577/08.1TBVNG.P1
Acção Sumária n.º 9577/08.1TBVNG, 2º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia

Acórdão

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório
1. B…, residente na Rua …, n.º …., em …, Vila Nova de Gaia, demandou, nesta acção declarativa constitutiva, sob a forma de processo sumário, C… e esposa, D…[1], também residentes na Rua …, n.º …., em …, Vila Nova de Gaia, pedindo que se declare a caducidade ou a resolução do contrato de arrendamento com eles celebrado e, por via disso, sejam estes condenados a entregar-lhe o arrendado, livre de pessoas e bens, e a pagar-lhe a sanção pecuniária compulsória de 20,00 euros por cada dia de atraso na referida entrega do locado.
Para tanto alegou que foi notificado pela Câmara Municipal … para, em 30 dias, proceder à desocupação do locado, por haver risco para a saúde e segurança dos locatários e por o imóvel constituir construção clandestina. Não se justificam obras de reabilitação quer sob o ponto de vista técnico quer económico. Os réus recusam-se a sair e rejeitam uma habitação camarária oferecida pela E….
Juntaram documentos.

2. Citados os réus, contestaram alegando que são arrendatários do imóvel desde há mais de 43 anos, quando o mesmo lhes foi dado de arrendamento pelo pai do autor, sem que tenham sido realizadas quaisquer obras. A casa nunca veio abaixo por terem conservado minimamente o arrendado mesmo contra a vontade do autor, que não permite a realização de quaisquer obras. Não receberam qualquer proposta concreta de realojamento, desde logo porque não havia realojamento na área da sua residência e não lhes era garantido que o realojamento fosse feito em condições análogas às do actual arrendado, o que era imprescindível tendo em conta, designadamente, que o réu marido tem grandes e graves dificuldades de locomoção. Imputaram ao autor litigância de má fé. Deduziram reconvenção, pedindo a condenação do autor a efectuar as obras de conservação de que o locado careça e se mostrem necessárias à manutenção da sua habitabilidade. Alegaram que o locado precisa de obras ao nível do telhado, de reparação dos tectos, de impermeabilização de todas as paredes e pintura em todo o arrendado.

3. Respondeu o autor, opondo que são inviáveis as obras de reabilitação num imóvel cuja demolição está imposta pela Câmara Municipal. Mesmo que fossem realizadas obras, nunca os réus teriam condições para suportar a renda actualizada em função das obras. Pediu a condenação dos réus como litigantes de má fé.

4. Realizada tentativa de conciliação que se frustrou, considerando não terem os réus contrariado o auto de vistoria junto parcialmente aos autos a fls. 14 e, posteriormente complementado, por iniciativa do tribunal, a fls. 114, reputou o tribunal a quo disporem os autos de todos os elementos necessários à prolação da decisão de mérito, conhecendo dos pedidos, principal e reconvencional, no despacho saneador. Foi proferido despacho saneador-sentença que julgou a acção parcialmente procedente e declarou a caducidade do contrato de arrendamento com a condenação dos réus a proceder à entrega imediata do locado ao autor e improcedente a reconvenção com a consequente absolvição do autor do pedido.

5. Irresignados, apelaram os réus assim finalizando a sua alegação:
5.1. Salvo a devida vénia, os recorrentes discordam em absoluto, quer da prova dada como assente, que das subsequentes conclusões de direito, tanto mais que a decisão é dada com o saneador sem qualquer hipótese de ter havido produção de prova sustentável.
5.2. Desde logo está em causa a vistoria camarária que os recorrentes impugnaram em 7º, 12º, 13º e 14º da sua contestação e que põe em causa os factos considerados provados em 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8 e 9.
5.3. Sucede que o prédio arrendado não é clandestino, é uma construção anterior a 1951 e como tal não foi passível de licenciamento camarário.
5.4. Por outro lado, não se compreende, nem se aceita, que a justificação dada na vistoria para a não realização de obras seja “o ponto de vista técnico e económico”.
5.5. É que do ponto de vista técnico tanto é possível realizar a reabilitação que, em reconvenção, é junto orçamento para a realização dessas mesmas obras.
5.6. E do ponto de vista económico o valor orçamentado de 18.000,00 euros para a realização de obras num prédio que não tem qualquer obra de conservação há mais de 50 anos é absolutamente acessível e até irrisório.
5.7. Acresce que o oficio camarário é datado de 8-7-2003, pelo que o respectivo procedimento se encontra prescrito, conforme alegado em 14º da contestação.
5.8. Tal prescrição que aqui se invoca para os devidos efeitos legais, afecta todo o processo administrativo, incluindo a dita vistoria, pelo que a invocação do mesmo deve ser considerada nula e sem qualquer efeito.
5.9. Aliás, nos termos do actual Regulamento Municipal de Taxas e Compensações Urbanísticas (in Diário da Republica, 2ª Série, nº 196, de 8/10/2010), artigo 67º, nº 1, alínea f) a substituição da cobertura e respectiva estrutura não é passível de licenciamento, pelo que as obras de conservação necessárias não são passíveis que qualquer prévia fiscalização.
5.10. Acresce que os recorrentes não tiveram hipóteses ou sequer oportunidade de carrear para os autos prova que sustentasse as suas teses, tanto mais que a decisão é dada no saneador, pelo que existe uma manifesta violação do princípio do contraditório.
5.11. Por outro lado, salvo melhor opinião, não existe a caducidade do contrato de arrendamento, porquanto não existe a perda da coisa locada.
5.12. Pois “a caducidade do arrendamento por perda (total) da coisa arrendada apenas se verifica se esta desaparecer por facto natural (incêndio, terramoto, inundação ou outro facto idêntico) ou por facto legítimo do homem”;
5.13. “A obrigação do senhorio de assegurar o gozo da coisa locada ao arrendatário só se extingue, conduzindo à caducidade do contrato, quando a prestação se torne impossível por causa que lhe não seja imputável” (vg Ac. do STJ, in BMJ, nº 489, de 1999, pag. 311).
5.14. Ora, a coisa locada existe e só não proporciona todos os seus cómodos por absoluta incúria do senhorio ao longo de mais de 50 anos, aliás conforme reconhece a douta decisão ora em recurso.
5.15. E, como já ficou demonstrado, as obras de conservação necessárias são viáveis, de pouca monta financeira e até não necessitam de licença camarária.
5.16. Pelo que existe um patente abuso de direito do recorrido, que litiga em venire contra factum proprium, pois está contratual e legalmente obrigado a fazer obras de conservação no arrendado que nunca fez e pretende tirar vantagem disso.
5.17. Assim, deverão os recorrentes ser absolvidos do pedido e o senhorio/recorrido ser condenado a realizar as obras peticionadas na competente reconvenção dos recorrentes.
Nestes termos e nos mais de Direito, deve ser dado provimento à presente apelação e, consequentemente, a sentença recorrida deve ser substituída por decisão que absolva os réus/recorrentes do pedido, e que condene no pedido reconvencional o autor/recorrido, ou em alternativa que mande prosseguir os autos para julgamento, com as demais consequências legais.

6. Não consta dos autos a resposta do apelado.

II. Âmbito do recurso
São as conclusões da alegação do recorrente que delimitam o âmbito do recurso (artigos 684º e 685º-A do Código de Processo Civil[2]). Assim, exceptuadas as questões conhecimento oficioso, só das que se contêm nas ditas conclusões pode ocupar-se o tribunal ad quem, estando aqui o thema decidendum limitado à caducidade do contrato de arrendamento para a habitação por perda do locado.

III. Fundamentação de facto
1. O pai do autor deu, verbalmente, de arrendamento aos réus, para sua habitação, com início no dia 1-05-1965, a sua casa n.º ., sita à Rua …, n.º …., em …, Vila Nova de Gaia, mediante o pagamento de uma renda que é actualmente de 25,00 euros mensais.
2. Os serviços da Câmara Municipal …, em vistoria que efectuaram à referida casa em Dezembro de 2002, a solicitação dos réus, constataram que a mesma é uma casa térrea, de construção antiga, tipo anexo, em alvenaria simples, de tijolo, com reboco hidráulico, pintado, pavimento em betonilha, tectos em platex, caixilharia em madeira, e armação do telhado em madeira com cobertura a telha, e é formada por cozinha e banho com comunicação directa, sala interior sem luz e ventilação directa, com ligação à cozinha.
3. Os compartimentos da cozinha e do banho constituem uma ampliação indevida das instalações, apresentando um aspecto abarracado.
4. Nenhum dos compartimentos dispõe de pé direito e dimensões mínimas regulamentares.
5. Parte do telhado sofreu um abatimento na sequência do apodrecimento do respectivo travejamento, tendo os réus colocado um plástico sobre o telhado para evitar o elevado grau de infiltração de águas pluviais para o interior da habitação.
6. Todo o interior da habitação mostra-se afectado por um elevado grau de humidade resultante de infiltrações através da envolvente e especialmente através da cobertura e por humidade de condensação resultante da deficiente natureza da construção.
7. Os técnicos que elaboraram uma tal vistoria concluíram que as anomalias constatadas, e que são as que supra se mostram melhor identificadas, constituem um factor de insalubridade e de falta de solidez nomeadamente ao nível da cobertura, oferecendo consequente perigo para a saúde e segurança dos locatários.
8. Mais concluíram tais técnicos não se justificar, dado o carácter clandestino da construção em causa e o facto da eventual realização de obras de reabilitação não se justificar sob o ponto de vista técnico e económico, a realização de quaisquer obras por parte do senhorio, pelo que emitiram parecer no sentido de ser ordenada ao proprietário do imóvel a sua demolição.
9. Por ofício datado de 8-07-2003, a Câmara Municipal … procedeu à notificação do autor para, no prazo máximo de 30 dias após a desocupação do actual arrendatário, proceder à demolição da construção melhor identificada supra, remoção e limpeza dos escombros para local apropriado.

IV. Fundamentação de direito
A sentença impugnada reputou verificada a perda da coisa locada e a consequente caducidade do contrato de arrendamento, segmento decisório que os apelantes refutam, atendo-se à obrigação de o senhorio realizar as obras necessárias a assegurar o gozo do locado.
O contrato de locação caduca pela perda da coisa locada, de harmonia com o estatuído na alínea e), do n.º1, do artigo 1051º do Código Civil. Situação que corresponde a uma verdadeira impossibilidade superveniente quanto ao objecto do contrato[3]. Com efeito, a perda da coisa locada impõe necessariamente a caducidade do contrato, nos termos gerais do art. 790º, n.º 1, do Código Civil. Se a perda é total, a obrigação do locador extingue-se desde logo; sendo parcial e devida a causa que lhe não seja imputável, rege o disposto no artigo 793º do mesmo diploma[4].
É a própria essência do contrato de arrendamento que justifica a extinção da relação contratual. O arrendamento é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de um imóvel, mediante retribuição (artigos 1022º e 1023º do Código Civil). Assim, sendo impossível o uso e fruição do imóvel arrendado, não podem subsistir os efeitos do contrato e, tornando-se impossível ao senhorio assegurar a sua obrigação de proporcionar ao arrendatário o gozo do imóvel, só resta a sua extinção. Continua a ser possível a obrigação do arrendatário de pagar a renda, mas o contrato caduca, porque o evento que exonerou o senhorio do seu débito, priva este, simultânea e necessariamente, do seu crédito, em atenção ao princípio da interdependência das obrigações sinalagmáticas[5].
É apodíctico que a caducidade do arrendamento por perda da coisa locada se reconduz à impossibilidade objectiva da prestação como causa de extinção das obrigações, sendo a predita norma uma aplicação particular do princípio geral das obrigações ínsito àquele artigo 790º[6].
Caducidade que opera ope legis, sem necessidade de denúncia ou de qualquer declaração das partes do contrato[7].
O quadro factual admitido pelas partes revela que a perda da coisa deriva de acto administrativo. Ao contrário do alegado pelos réus em sede recursiva, os mesmos não impugnaram as conclusões da edilidade acerca do estado do locado. Acresce que a circunstância de, eventualmente, ser desnecessário licenciamento camarário para a execução das obras de reparação do imóvel não afecta a decisão administrativa de demolição já decretada, sem qualquer oportuna impugnação.
A Câmara Municipal … procedeu à notificação do autor, através de ofício datado de 8-07-2003, para, no prazo máximo de 30 dias após a desocupação, proceder à demolição da construção dada de arrendamento ao réu e à remoção e limpeza dos escombros para local apropriado. Situação que, prima facie, parece ainda não integrar a perda da coisa locada, porque, em rigor, o seu sumiço só ocorre com a demolição. Tanto assim é que, apesar da notificação da edilidade ter sido efectivada em 2003, durante um lapso de tempo aproximado a oito anos, o locado continua a estar ocupado pelos réus. Porém, como regista a sentença apelada, a ordem de demolição advém do carácter clandestino da construção dada em locação aos réus e de ser injustificada a realização de obras de reabilitação, quer ponto de vista técnico quer do ponto de vista económico, a querer significar que, embora ainda não esteja efectuada a demolição, o locado não reúne condições físicas e materiais bastantes para assegurar aos réus o seu gozo em condições de saúde e segurança. A vistoria realizada pela Câmara Municipal … atesta esse facto de modo bem impressivo, assinalando o abatimento do telhado devido ao apodrecimento do respectivo travejamento, o que permite um elevado grau de infiltração de águas pluviais para o interior da habitação, a que os réus procuraram obviar colocando plástico sobre a cobertura. Todo o interior da habitação se mostra afectado por um elevado grau de humidade resultante de infiltrações, especialmente através da cobertura, e por condensação, esta inerente à deficiente natureza da construção, tudo a constituir um factor de insalubridade e de falta de solidez, nomeadamente ao nível da cobertura, oferecendo consequente perigo para a saúde e segurança dos locatários.
Podemos afirmar que há uma impossibilidade objectiva da prestação do senhorio que torna impossível a execução do contrato e o gozo da coisa locada, que se reconduz à sua perda, ao menos, para conferir as utilidades que lhe são próprias.
Sabemos que o princípio geral da impossibilidade objectiva de cumprimento só comporta a extinção da obrigação quando a prestação se torna impossível por causa não imputável ao devedor (artigo 790º, 1, do Código Civil). E, ao contrário da doutrina alemã, que admite que ao devedor, em caso de a prestação se tornar excessivamente onerosa, se exija somente a realização de esforços e despesas que, segundo os princípios da boa fé, lhe possam ser exigidos, entre nós defende-se que essa impossibilidade tem de ser absoluta[8].
Estes princípios, quando convocados para o arrendamento habitacional, têm de ser aplicados com razoabilidade e à luz da boa fé que deve presidir à relação contratual. O imóvel está num estado que impossibilita o seu uso para o fim convencionado – a habitação dos réus – criando risco para a sua saúde e segurança e ao locador não resta outra opção que não a de obedecer ao comando camarário que lhe foi dirigido.
Os órgãos administrativos podem tomar resoluções obrigatórias para os particulares e que, em caso de não observância, são impostas coercivamente. É o poder da administração pública que costuma apelidar-se de privilégio de execução prévia, a querer significar que a execução pode ser anterior à discussão contenciosa e à decisão jurisdicional que a determine[9]. O acto administrativo é obrigatório para o autor e está em condições de ser imediatamente executado, ou seja, reveste-se de executoriedade. É um acto definitivo e executório que, no exercício do poder público da autarquia, para prossecução dos interesses que estão a seu cargo, define, com força obrigatória e coerciva, a situação jurídica deste caso concreto[10]. Notificado o acto administrativo ao administrado, este ou acata o imperativo do acto ou determina à execução forçada do mesmo. O locador está, pois, adstrito à observância do acto administrativo que determina a demolição do locado e dá mostras de pretender dar-lhe observância, mas só pode executá-lo se obtiver a sua desocupação. Como a mesma não foi voluntariamente acatada pelos réus, só lhe resta a obtenção de ordem judicial no sentido do seu despejo.
Nesta contextualidade, é irrazoável exigir a demolição do locado para considerar verificada a sua perda, antes se nos afigurando conforme ao princípio da boa fé reputar a situação física do imóvel recondutível a uma impossibilidade absoluta da prestação por motivo não imputável ao devedor, já que a ordem demolição lhe é imposta por entidade administrativa. Embora ainda não tenha tido lugar a perda da coisa no sentido naturalístico, ela já ocorreu para o mundo do direito, no momento em que o estado de degradação do prédio tornou inviável o fim do contrato, verificando-se uma impossibilidade superveniente objectiva de continuação da relação contratual, a partir do momento em que a Câmara Municipal o certifica, a dar causa à caducidade do contrato[11].
Uma outra via de análise conforta essa solução. Quando ocorre somente o perecimento parcial do locado podemos argumentar que ele traduz apenas uma deterioração do imóvel que confere ao locatário o direito a exigir do senhorio a reparação dos danos. A doutrina nacional propende para apelar ao critério funcional, considerando a perda do prédio arrendado quanto todo ele esteja materialmente destruído, mas ainda, quando deteriorado apenas em parte, a perda sofrida seja tão significativa que determine a impossibilidade de aplicação desse espaço ao fim para que foi arrendado[12]. No caso, está comprometida a habitabilidade do prédio, que não tem condições para ser recuperado e cujo destino é a demolição, a justificar a convocação das regras da perda total da coisa locada. Ainda que se considere a sua perda parcial, a verdade é que os danos de que padece impossibilitam o seu uso para a habitação, equiparável à sua destruição.
Contrapõem os réus que esta situação é imputável ao autor, que nunca realizou obras de conservação do imóvel. Sabemos, porém, que cabia ao arrendatário, através dos meios que a lei lhe faculta, obrigar o senhorio, em tempo oportuno, a realizar as obras necessárias à conservação do prédio. Ora, só muito tardiamente accionou junto da Câmara Municipal os mecanismos para determinar o senhorio à feitura das obras, quando o locado apresentava risco de desmoronamento e justificava apenas a sua demolição. Foi, aliás, essa sua comunicação à edilidade que deu origem à ordem de demolição.
Quando o contrato de locação caduca por impossibilidade superveniente importa averiguar se há ou não culpa do locador. Havendo culpa, como nos casos em que a sua actuação levou à perda da coisa locada, sobre ele recai a responsabilidade de indemnizar o locatário pelos danos causados. De todo o modo, nestas situações particulares da caducidade do arrendamento por perda da coisa locada, a extinção do contrato ocorre haja ou não culpa do senhorio, mas sobre ele impende a obrigação de indemnizar a contraparte se tiver havido culpa da sua parte no que respeita à produção do facto que desencadeou a caducidade[13]. Por isso, mesmo que a destruição do imóvel, ou a sua degradação ao ponto de o tornar inutilizável para os fins que lhe são próprios, resulte de acção ou inacção culposa do senhorio, maxime por não efectuar as obras necessárias para evitar a sua ruína, nem por isso deixa de se verificar a caducidade do arrendamento[14]. A culpa do senhorio só releva para efeitos de indemnização a favor do arrendatário. Não obstante lhe conferir o direito a eventual indemnização, não contende com a caducidade do contrato. Vale por dizer que o contrato sempre caduca, impendendo sobre o locador uma obrigação de indemnizar a contraparte se tiver havido culpa da sua parte e não havendo culpa não existirá essa obrigação[15].
Não ignoramos haver uma ou outra decisão que propugna pela inverificação da caducidade do contrato de arrendamento quando a perda da coisa locada é imputável ao senhorio, propugnando-se “que, se assim não fosse, estaria encontrada a forma de tornear, por via da acção directa, os problemas legais decorrentes dos arrendamentos vinculísticos, que a lei não permite”[16]. Entendem que a norma da alínea e) do artigo 1051º visa o caso da coisa locada desaparecer, quer por facto natural, quer por acção legítima do homem e esta acção só é legítima quando seja imposta por lei ou encontre na lei a sua justificação. O devedor só ficará desobrigado quando a perda da coisa resultar de facto que não lhe é imputável, a título de culpa, assim remetendo para a noção geral expressa pelo nº 1 do artigo 790º do Código Civil. Donde defendam que o arrendamento caduca quando, sem culpa do locador, a coisa locada se deteriorou e tem de ser demolida. Se houver culpa do locador no facto de o prédio atingir o estado de degradação que inviabiliza o seu uso ou a sua demolição, o contrato não caduca. No fundo, constrói-se a tese de que o senhorio, ao prevalecer-se da caducidade do contrato de arrendamento, por si próprio gerada, incorre numa forma de abuso do direito na modalidade de venire contra factum proprium[17].
Sem embargo da posição recursiva dos apelantes não ser normativamente muito expressiva, ela parece sustentar-se na tese exposta, a qual, no entanto, não tem encontrado guarida na recente doutrina e jurisprudência, conforme assinalámos. Tem sido advogado que a demolição de imóvel arrendado, ainda que por causa imputável ao proprietário/locador, não deixa de implicar a extinção do arrendamento por perda total da coisa locada, dada a impossibilidade de prestação de gozo da coisa (artigo 1051º, e), do Código Civil) e ao locatário resta pedir ao senhorio indemnização correspondente aos prejuízos sofridos com a privação do locado[18]. A caducidade, como extinção automática do contrato, ocorre por mera consequência do evento a que a lei atribui esse efeito[19]. Posição que sufragamos por ser mais consentânea com a natureza do contrato de arrendamento, que supõe o gozo do imóvel locado de modo a que a sua inexistência física inviabiliza o traço específico da obrigação principal do locador: assegurar ao locatário o gozo do locado para os fins a que se destina (artigo 1031º, b), do Código Civil).
Posta a questão nestes moldes, se o locado deixou de ter condições de salubridade e segurança porque o locador não fez as necessárias obras de conservação, o contrato caduca, mas sobre ele impende o ónus de indemnizar o locatário. Ora, nesta acção, embora deduzindo pedido reconvencional, os réus não formulam qualquer pretensão indemnizatória, reduzindo o seu pedido à condenação do senhorio na feitura das obras destinadas a repor o imóvel em condições de habitabilidade. Ora, é a edilidade, entidade dotada de poderes legais para o efeito, que conclui inexistirem condições técnicas e económicas bastantes para realizar tais obras, desde logo face ao carácter clandestino da construção. Nem sequer podemos afirmar que a inviabilidade de subsistência do prédio tem a sua génese somente em aspectos técnicos ou económicos, a poder fundar antes a denúncia do contrato (artigo 1101º, b), do Código Civil) e a afastar a enunciada caducidade. As partes não aproximaram esse enquadramento factual e jurídico, nem os réus, a quem poderia aproveitar essa defesa, abordaram sequer essa questão. Os poderes do tribunal ad quem limitam-se ao controlo da sentença recorrida, pois o direito português segue o modelo de recurso de revisão ou reponderação[20]. Daí que a nossa jurisprudência venha afirmando que os recursos são meios para obter o reexame das questões já submetidas à apreciação dos tribunais inferiores e não para criar matéria nova, não submetida ao exame do tribunal recorrido[21]. Donde deflua a impossibilidade de afrontar essa matéria em sede recursiva.
Ante o exposto, ao contrário do que propugnam os apelantes, é desnecessária a produção de prova acerca do contributo do senhorio para o estádio de degradação a que chegou o locado e, por conseguinte, o prosseguimento dos autos com a elaboração da base instrutória. Esse apuramento só relevaria se pudesse obstar à caducidade do contrato ou se os demandados tivessem deduzido pretensão indemnizatória. Não se verificando qualquer dessas condicionantes, não assiste razão aos apelantes na sua pretensão de fazerem avançar a acção para a fase da audiência de discussão e julgamento.
Argumentam ainda os réus, sem apelo a qualquer normativo, que se encontra prescrito o acto administrativo em causa, incluindo a vistoria realizada pela Câmara, que deve ser considerada nula.
A respeito da utilização e conservação dos edifícios, o artigo 89º do Regime Jurídico da Edificação e Urbanização[22] prescreve que as edificações devem ser objecto de obras de conservação pelo menos uma vez em cada período de oito anos, sem prejuízo de a câmara municipal poder a todo o tempo, oficiosamente ou a requerimento de qualquer interessado, determinar a execução de obras de conservação necessárias à correcção de más condições de segurança ou de salubridade. Para além disso, a câmara municipal pode, oficiosamente ou a requerimento de qualquer interessado, ordenar a demolição total ou parcial das construções que ameacem ruína ou ofereçam perigo para a saúde pública e para a segurança das pessoas. Estes actos são eficazes a partir da sua notificação ao proprietário. No caso em apreço, a
Câmara Municipal …, no uso dos seus poderes, proferiu decisão administrativa a ordenar a demolição do imóvel ao seu proprietário, o aqui autor, e dessa decisão o notificou em 8-07-2003. Foram observadas as regras procedimentais e substantivas do direito administrativo, pelo que, naquela data, essa ordem se consolidou na ordem jurídica administrativa. Aquele acto administrativo não foi objecto de impugnação administrativa ou de recurso contencioso (artigos 114º e 115º do Regime Jurídico da Edificação e Urbanização), assistindo à edilidade o direito a impor a demolição. O regime jurídico em causa não estabelece a possibilidade ou prazo para a prescrição do direito da autarquia a executar a demolição por si ordenada ou a exigir a demolição de uma obra clandestina. Esse direito é imprescritível e a Câmara Municipal está legitimada a agir em conformidade com o teor dos actos administrativos de si emanados no âmbito do poder administrativo e autoritário que lhe é imanente.
Igualmente insignificante é a construção do prédio poder datar anteriormente a 1951, o que apenas releva, à luz daquele regime jurídico, para a dispensa de licença de habitabilidade.
Aliás, similarmente, já foi entendido que o contrato de arrendamento caduca quando o seu objecto é demolido por ordem da Câmara Municipal e a caducidade reporta-se não ao acto da demolição mas à declaração de irrecuperabilidade do prédio, tendo a sentença efeito meramente declarativo[23].
O autor propugna igualmente pela resolução contratual, a qual está prejudicada pela solução alcançada. Contudo, o autor não atribuiu ao réu locatário qualquer conduta que, pela sua gravidade ou consequências, lhe torne inexigível a manutenção do arrendamento, designadamente a violação reiterada e grave de regras de higiene, de sossego, de boa vizinhança ou de normas constantes do regulamento do condomínio, a utilização do prédio contrária à lei, aos bons costumes ou à ordem pública, o uso do prédio para fim diverso daquele a que se destina, o não uso do locado por mais de um ano, salvo nos casos previstos no n.º 2 do artigo 1072.º do Código Civil, a cessão, total ou parcial, temporária ou permanente e onerosa ou gratuita, quando ilícita, inválida ou ineficaz perante o senhorio, e a falta de pagamento de rendas (artigo 1083º do Código Civil[24]). Por isso, sempre estaria arredado qualquer fundamento resolutivo.
Em síntese conclusiva:
1. Mesmo não tendo ocorrido a perda do locado no sentido naturalístico, no momento em que o seu estado de degradação tornou inviável o fim do contrato, ela ocorre para o mundo do direito.
2. Verifica-se, a partir do momento em que a Câmara Municipal ordena a demolição do imóvel e a notifica ao locador, uma impossibilidade superveniente objectiva de continuação da relação contratual, que é causa de caducidade do contrato.
3. A demolição do imóvel arrendado, ainda que por causa imputável ao locador, não deixa de implicar a extinção do arrendamento por perda da coisa locada, dada a impossibilidade de prestação de gozo da coisa, restando ao locatário direito a indemnização pelos prejuízos sofridos com a privação do locado.

V. Decisão
Perante o argumentado, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente a apelação e, por conseguinte, confirmar a sentença sindicada.

Custas da apelação a cargo dos apelantes, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficiam (artigo 446º, 1, do Código de Processo Civil).
*
Porto, 5 de Julho de 2011
Maria Cecília de Oliveira Agante dos Reis Pancas
José Bernardino de Carvalho
Eduardo Manuel B. Martins Rodrigues Pires
_________________
[1] Litigam com benefício de apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos do processo.
[2] Na redacção dada pelo Decreto-Lei 303/2007, de 24 de Agosto.
[3] Pedro Romano Martinez, “Direito das Obrigações (Parte Especial) – Contratos”, 2000, pág. 208.
[4] Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil”, Anotado, II, 3ª ed., pág. 414.
[5] Cunha de Sá, in “Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal”, I, pág. 282.
[6] Pinto Furtado, “Curso de Direito dos Arrendamentos Vinculísticos”, 2ª ed., pág. 454.
[7] Ac. STJ de 26-06-2008, in C.J. STJ, tomo 2, pág. 131.
[8] Pires de Lima e Antunes Varela, ibidem, pág. 43.
[9] Marcello Caetano, “Manual de Direito Administrativo”, Tomo 1, 8ª ed., pág. 408.
[10] Marcello Caetano, ibidem, pág. 421.
[11] Ac. STJ de 4-03-2008, in www.dgsi.pt, ref. 07A4347.
[12] Pinto Furtado, “Manual de Arrendamento Urbano”, II, 4ª ed. actualizada, pág. 876.
[13] Pedro Romano Martinez, ibidem, pág. 210; Aragão Seia, “Arrendamento Urbano”, 7ª ed. revista e actualizada, pág. 490.
[14] Ac. STJ de 26-06-2008, in C.J. STJ, tomo 2, pág. 131.
[15] Ac. STJ de 9-03-2010, in www.dgsi.pt, processo 440/07.4TVPRT.S1.
[16] Ac. STJ de 7-07-1999, in www.dgsi.pt, ref. 99A533.
[17] Ac. STJ de 7-07-1999, in www.dgsi.pt, ref. 99A533.
[18] Acs. STJ de 7-07-2009 e 9-03-2010, in www.dgsi.pt, processos 360/09.8YFLSB e 440/07.4TVPRT.S1, respectivamente.
[19] Aragão Seia, ibidem, pág. 488.
[20] Amâncio Ferreira, “Manual de Processo Civil”, 8ª ed., pág. 147.
[21] Ac. STJ de 13-01-2010, 9-09-2009, in www.dgsi.pt, processo 388/09.8YFLSB e ref. 09S0225, respectivamente.
[22] Aprovado pelo Decreto-Lei 555/1999, de 16 de Dezembro, na versão introduzida pelo Decreto-Lei 177/2001, de 4 de Junho, vigente à data da data da realização da vistoria, em 6-12-2002, de acordo com o princípio tempus regit actum.
[23] Acs. R. L. de 16-04-1996, in CJ, tomo 2, pág. 92; R. C. de 18-05-1999, in CJ, tomo 3, pág. 20; Ac. R. Ev. de 18-01-2001, in CJ, tomo 2, pág. 259..
[24] Aqui convocável por força do estatuído no Novo Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pela Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro, cujo regime se aplica às relações contratuais anteriores que subsistiam nessa data (artigo 59º, 1).