Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0842298
Nº Convencional: JTRP00041443
Relator: OLGA MAURÍCIO
Descritores: LEGITIMIDADE PARA RECORRER
ASSISTENTE
Nº do Documento: RP200806110842298
Data do Acordão: 06/11/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 320 - FLS 74.
Área Temática: .
Sumário: O Instituto da Segurança Social não tem legitimidade para recorrer da decisão instrutória que, apreciando acusação deduzida apenas pelo Ministério Público, não pronunciou o arguido por crime de abuso de confiança contra a segurança social, se o Ministério Público não recorreu.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 2298/08
…./05.3TDLSB – º juízo do TIC do Porto
Relatora: Olga Maurício


Acordam na 2ª secção criminal (4ª secção judicial) do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO

1.
O Ministério Público junto do tribunal de Matosinhos deduziu acusação contra B………. e contra “C………., LDª.”, imputando-lhes a prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punível pelos art. 107º e 105º do RGIT, quanto ao primeiro, e naqueles e no art. 7º do mesmo diploma, quanto à segunda.

O Instituto da Segurança Social, I.P., deduziu pedido de indemnização civil, pedindo a condenação dos arguidos a pagarem-lhe as quantias descontadas e não entregues.

2.
A arguida “C………., Ldª.” requereu a abertura de instrução e pediu, a final, que:
I – fosse ordenada a abertura de instrução;
II – fosse proferido despacho de não pronúncia; ou
III – fosse proferido despacho de arquivamento no que respeita ao período de Maio a Agosto de 1999;
IV – fosse o processo arquivado relativamente aos demais períodos, excepto quanto aos períodos de 12/2000 a 11/2001 e 6/2002 a 3/2005;
V – fosse declarada a suspensão provisória do processo, ao abrigo do art. 281º do C.P.P.

O pedido foi atendido e a instrução foi declarada aberta.

3.
Entretanto o Instituto de Segurança Social, I.P., requereu a sua admissão como assistente, pedido ao qual a arguida “C………., Ldª.” se opôs.

Não obstante a oposição foi aquele instituto admitido a intervir nos autos na qualidade de assistente.

4.
O processo prosseguiu os seus termos e em 27-11-2007 foi proferida a seguinte decisão instrutória:
«…
O Ministério Público deduziu acusação contra “C………., Lda.” e B………., melhor identificados nos autos, imputando-lhes a prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social p. e p. nos artigos 107º e 105º, nº 1 do RGIT.
Inconformados com esta acusação os arguidos requereram a abertura da instrução e colocaram as seguintes questões:
- aos presentes autos concernem a cotizações desde Maio de 1999 a Março de 2005, pelo que a lei aplicável ao caso dos autos é o regime do RJIFNA e não o regime do RGIT como se refere na acusação; ainda que se entenda ser o RGIT o diploma aplicável, o artigo 105º está ferido de inconstitucionalidade material pelo facto de que se basta com a mera não entrega da prestação tributária ao Estado;
- sendo a apropriação um elemento do tipo legal do crime de abuso de confiança fiscal, tal não se verifica nos presentes autos uma vez que haveria um acordo prestacional celebrado entre a arguida e a Segurança Social, pelo que a falta de entrega foi consentida por esta.
- foram feitos pagamentos não tomados em conta na acusação;
- as cotizações dos membros dos órgãos estatutários referentes aos períodos de Maio a Agosto de 1999 foram praticados na vigência do RJTFNA e é hoje jurisprudência firme que a falta de entrega dessas cotizações não constituía ilícito penal à luz do art. 27º-B do RJIFNA.

De acordo com o disposto no artigo 308º do C. P. Penal chegou o momento de analisar o processo e verificar se foram recolhidos indícios suficientes que apontem para uma possibilidade razoável dos arguidos, em sede de julgamento, serem condenados pela prática do crime que lhes é imputado.
O artigo 24º, nº 1 do RJIFNA (DL 394/93 de 14/01, entrado em vigor em 1/1/2004) dispunha que “Quem se apropriar, total ou parcialmente, de prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar ao credor tributário será punido com pena de prisão até três anos ou multa não inferior ao valor da prestação em falta nem superior ao dobro sem que possa ultrapassar o limite máximo abstractamente estabelecido.”
Mais se consagra em tal preceito legal que se considera também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja - cfr. nº 2 do art. 24º.
Por seu turno, o artigo 27º-B do mesmo diploma (aditado pelo D.L. nº 140/95, de 14.06), estabelece que “as entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações pagas aos trabalhadores o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entregarem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, no período de 90 dias, do mesmo se apropriando, serão punidas com as penas previstas no artigo 24º” - crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social.
Nos termos do artigo 105º do Regime Geral das Infracções Tributárias publicado pela Lei nº 15/200 1 de 5 de Junho “Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.”
Para efeitos deste número, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja - v. nº 2 do citado art. 105º.
E, segundo esse novo diploma, passaram a ser punidas pela prática do crime abuso de confiança contra a Segurança Social as entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social - cfr. art. 107º, nº 1.
Como se viu esses tipos legais pressupõem uma conduta ou acção omissiva.
De facto, o crime de abuso de confiança fiscal consuma-se quando o agente não entrega, total ou parcialmente, a prestação tributária ao Fisco, fazendo-a sua, integrando-a na sua esfera patrimonial.
No crime de abuso de confiança fiscal em relação à Segurança Social a conduta consiste na falta de entrega à Segurança Social dos valores descontados nas remunerações dos trabalhadores e a ela destinados.
Deste modo, as referidas infracções têm como requisitos a apropriação total ou parcial da prestação tributária, que a mesma tenha sido deduzida pelo agente nos termos legais e que o mesmo esteja obrigado a entregá-la ao credor tributário, pressupondo, assim, a existência de um prejuízo patrimonial para o Fisco/Segurança Social, que deixa de receber as prestações não entregues, retidas pelo agente, que delas se apropria, visando-se tutelar a confiança do Estado em relação a quem a lei impõe a obrigação de receber o imposto ou descontar a contribuição.
É necessária igualmente a existência de dolo, uma vez que a punição por negligência não está especialmente prevista - cfr. arts. 13º e 14º do Código Penal.
O elemento objectivo que maior controvérsia suscita é, sem dúvida, o da apropriação.
Entende-se que a apropriação consiste na integração na esfera patrimonial dos agentes dos valores correspondentes ao imposto retido ou recebido ou das contribuições deduzidas e não entregues à Segurança Social, os quais, ao inverter o título da posse, passam a dispor de tais quantitativos para satisfazer compromissos de outra ordem, independentemente da existência ou não de lucro daí directa ou indirectamente resultante.
A apropriação, para efeitos do tipo de abuso de confiança (fiscal e em relação à Segurança Social), consiste, portanto, na inversão do título de posse ou detenção, implicando essa inversão que o agente passe a comportar-se em relação à coisa recebida por título não translativo de propriedade, “uti dominus”.
Igualmente se aceita que esse “animus” tem necessariamente de se exteriorizar “através de um comportamento que o revele e o execute”, isto é, através de “actos objectivamente idóneos e concludentes, nos termos gerais”.
Numa outra perspectiva, interessa realçar que a apropriação que releva não é a apropriação em benefício daquele que actua em representação de outrem, no caso a apropriação em benefício dos arguidos.
Efectivamente, os crimes em apreço são crimes específicos próprios em que o círculo de autores é constituído, não pelo contribuinte originário mas pelo substituto, que é investido na qualidade de depositário da contribuição e é colocado temporariamente na detenção desta, com vista à sua entrega ao Fisco ou à Segurança Social.
Por conseguinte, trata-se de crimes cujo sujeito activo é, necessariamente, o transmitente de bens ou prestador de serviços que liquidou ao respectivo adquirente o imposto e o devedor de rendimentos de trabalho, ou seja, o substituto do contribuinte originário.
Tal não afasta, porém, a responsabilidade criminal dos gerentes, sócios, ou de qualquer outro titular de um órgão de uma pessoa colectiva, bem como de quem actua em representação legal ou voluntária de outrem, já que aqueles, actuando em nome da sociedade, apesar de não terem as qualidades exigidas pelo tipo, são punidos pelos artigos 24º e 27º-B, em conjugação com o disposto no art. 12º do Cód. Penal, cujo princípio é reafirmado pelo art. 6º, nº 1, do Dec. Lei nº 20-A/90 de 15/01.
E tal punição verificar-se-á ainda que o tipo legal de crime exija que o agente pratique o facto no seu próprio interesse e o representante actue no interesse do representado - cfr. alínea b) do nº 1 do citado art. 6-.
Serve isto dizer que a apropriação a que se refere os arts. 24- e 27--B é aquela que é efectuada a favor do sujeito activo do crime - o substituto do contribuinte originário.
Sendo esse sujeito activo uma pessoa colectiva, para que quem actua em nome desta seja punido bastará que o representante efectue a apropriação não para si mesmo mas a favor da sua representada, sendo, por isso, irrelevante que o representante de nada se tenha apropriado no seu próprio interesse.
“Muito embora no actual RGIT (art. 105º, nº 2) - e ao contrário do que sucedia com o anterior RJIFNA (art. 24º) - não se faça expressa referência à apropriação, todavia, ela está contida pelo menos de forma implícita no espírito do texto normativo, sendo ela uma consequência lógica do desvio do destino das prestações tributárias retidas, não se podendo dizer que a apropriação que antes falava o legislador visava tão só o enriquecimento do património pessoal do agente e já não o desvio das prestações para fins de gestão da empresa (pagamento a fornecedores ou empregados) pois a lei não faz essa distinção, além de que a ideia fulcral do crime de abuso de confiança, seja ele fiscal ou não, é sempre a de que se dá a valores licitamente recebidos um rumo diferente daquele a que se está obrigado” - v. Ac. STJ de 03/04/2003.
Com efeito, o crime de abuso fiscal previsto nas citadas disposições legais consuma-se com a apropriação, que pode traduzir-se na simples fruição ou na disposição pelo devedor, de cada uma das prestações tributárias deduzidas ou retidas (caso do IRS) ou liquidadas com obrigação de as entregar ao credor tributário (caso do IVA) - v. Ac. Rel Porto de 17/01/2007 para além de inúmeros arestos desta Relação e do Supremo Tribunal de Justiça sobre esta questão in www.trp.pt.
Tendo em conta esta noção de “apropriação” relativa às duas disposições legais previstas no RJIFNA e RJIT, não se pode considerar que o regime deste último diploma é mais gravoso para o agente e, consequentemente, o seu artigo l05º não está ferido de inconstitucionalidade material.
Concluindo, este ilícito criminal consuma-se independentemente de qualquer apropriação efectiva por parte do agente dos valores recebidos e que estava obrigado a entregar à Administração Fiscal.
Daqui decorre que a lei nova é menos exigente quanto ao preenchimento destes ilícitos, pelo que a conduta que for subsumível ao preceituado nos arts. 24º e 27º-B, do D.L. nº 20-A/90, de 15.01, é necessariamente subsumível aos mesmos tipos de ilícito actualmente contemplados pela lei nova (R.G.I.T.).
As penas são determinadas pela lei vigente à data da prática dos factos ou do preenchimento dos pressupostos de que dependem - art. 2º, nº 1, do Código Penal.
Quando as disposições penais vigentes à data da prática dos factos forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, será sempre aplicável o regime que em concreto se mostre mais favorável ao agente - art. 2º, nº 4 do citado Código.
Para efeito de aplicação deste último normativo legal, o juiz tem que fazer o cômputo da situação do arguido perante cada uma das leis que se sucederam no tempo, optando depois por aplicar, em bloco, a lei que lhe for mais favorável.
Como já analisámos, e tendo em atenção os factos praticados antes da entrada em vigor do RJIT, o crime de abuso de confiança fiscal em relação à Segurança Social cometido pelos arguidos era punido com pena de prisão de um até cinco anos - cfr. art. 24º, nº 5 e 27º-B, do Dec. Lei nº 20-A/90, de 15.01.
Actualmente é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias - cfr. art. 105º, nº 1, do R.G.I.T.
A suspensão está prevista num e noutro diploma, sempre condicionada ao pagamento da contribuição e acréscimos legais - cfr. actual art. 14º, nº 1, do R.G.I.T.
A diferença essencial corresponde ao alargamento do prazo limite para satisfação de tal condição de dois para cinco anos (cfr. anterior art. 11º, nºs 7 e 8, do D.L. nº 20-A/90 e actual art. 14º, nº 1, do RGIT).
Assim sendo, resulta manifesto que em ambos os crimes praticados pelos arguidos, o diploma actualmente em vigor confere um regime global mais favorável, desde logo porque quer o limite mínimo (10 dias) da pena de multa quer o limite máximo (três anos) da pena de prisão prevista no art. 105º, nº 1, do RGIT permite fixar uma pena concreta mais favorável aos arguidos, sendo certo que o actual regime de suspensão desta pena de prisão é igualmente mais favorável para os arguidos, atendendo ao facto de permitir a fixação de um prazo mais alargado para a suspensão.
Por conseguinte, neste particular, concorda-se com o enquadramento jurídico-penal dos factos que foi feito na acusação.
No que concerne ao acordo prestacional, tal circunstância não exclui a ilicitude da conduta do agente, nem a sua culpa; apenas tinha relevância para lhe dar oportunidade de regularizar a sua situação e de poder ser extinto o procedimento criminal caso se verificassem os pressupostos estabelecidos no artigo 22º “ex vi” art. 44º, nº 2 do RGIT.
Relativamente aos pagamentos parciais efectuados pelos arguidos, importa salientar que esse facto também não exclui a ilicitude da conduta e terá eventualmente relevância para a medida da pena.
Dos factos indiciados nos autos resulta que os arguidos não entregaram à Segurança Social, como o deviam ter feito determinadas importâncias relativas aos descontos nos salários dos trabalhadores, valores esses que integraram no património daquela sociedade.
Consequentemente, tem de concluir-se que se verificam todos os elementos, tanto objectivos corno subjectivos, que a lei exige para a verificação da infracção que é imputada aos arguidos.
Quanto à questão da retenção das quotizações dos membros dos órgãos estatutários referentes aos períodos de Maio a Agosto de 1999, assiste razão à arguida uma vez que o artigo 27º-B do RIFNA, diploma aplicável atenta a data dos factos, não criminalizava tal conduta - v. neste sentido Ac. da Rel. Porto de 15/11/2006 citado, e bem, pela arguida no seu requerimento.
Ora, face aos indícios acima descritos, afigura-se-nos evidente que o processo deverá prosseguir para julgamento.
Assim, e tendo em conta os elementos constantes dos autos, pronuncio os arguidos “C………., Lda.” e B………., pelos factos constantes da acusação de fls. 379 a 383, que aqui se dão por reproduzidos, à excepção dos valores referentes aos descontos dos órgãos estatutários de Maio de 1999 a Agosto desse ano e que procederam ao pagamento das quantias constantes do documento de fls. 615 a 617, que se dá por reproduzido, factos aqueles que integram a prática pelos arguidos de um crime de abuso de confiança fiscal p. e p. pelo artigo 105º, nº1 e 107º do RGIT aprovado pela Lei nº 15/2001 de 05 de Junho …».

5.
O Instituto da Segurança Social recorreu da decisão instrutória, retirando da motivação as seguintes conclusões:
1ª - «O Meritíssimo Juiz a quo não pronunciou os Arguidos por não terem procedido à entrega junto da Segurança Social das deduções efectuadas nas remunerações pagas aos membros dos órgãos estatutários da sociedade arguida durante os meses de Maio a Agosto de 1999, proferido a fls. (...), considerando que as retenções das cotizações pagas aos órgãos estatutários da empresa arguida não constituíam ilícito criminal, até à entrada em vigor da nova lei (RGIT - Lei nº15/2001, de 5-Junho), porquanto não estavam abrangidas pelo preceituado no Art. 27º-B do J RJIFNA, em vigor à data dos factos respeitantes ao período compreendido entre Maio a Agosto de 1999».
2ª - «É desta parte da decisão que o Recorrente discorda em absoluto, não podendo conformar-se, nem aderir a tal entendimento».
3ª - «O facto da lei, na redacção vigente ao tempo dos factos (Art.27º do RJIFNA), mencionar apenas as remunerações dos trabalhadores não quer dizer que excluísse as remunerações dos membros dos órgãos de gestão, às quais eram e foram deduzidas as quantias devidas à Segurança Social. Tanto estas como aquelas faziam parte do respectivo tipo legal de crime».
4ª - «Por outro lado, o facto de a nova lei (Art. 107º do RGIT) agora incluir explicitamente as remunerações dos membros dos órgãos sociais também não significa que se tenha acrescentado ao tipo legal um novo elemento, por virtude do qual o tipo tenha sido alargado. O que significa é que o legislador, face a uma polémica interpretativa, quis expressamente dizer que as remunerações pagas aos membros dos órgãos sociais, em relação às quais fossem deduzidas quantias para a Segurança Social, também faziam parte do tipo, e não que passavam a fazer parte do tipo, pois esse era já o sentido da lei anterior».
5ª - «Existem algumas particularidades quanto aos sujeitos da relação contributiva. No regime dos trabalhadores por conta de outrem, há dois obrigados perante uma entidade credora, isto é, de um lado a entidade empregadora, representada pelos membros dos órgãos sociais e o trabalhador e doutro lado a instituição de Segurança Social. A obrigação do cumprimento da relação jurídica contributiva é da exclusiva responsabilidade da entidade empregadora (Art 5º nº 1 e 2 do D.L. nº 103/80 de 9.Maio) que surge então como o único sujeito passivo daquela relação jurídica. A entidade empregadora está obrigada a efectuar o pagamento às instituições de Segurança Social através da retenção na fonte».
6ª - «No caso dos trabalhadores por conta de outrem, a relação jurídica contributiva nasce com o pagamento de remunerações (cfr. com o nº 1 do Art. 5º do diploma acima citado) “...percentagens que se encontrem legalmente estabelecidas sobre as remunerações pagas e recebidas”. Logo, a obrigação contributiva nasce, por imperativo legal, com o pagamento de remunerações. Este será pois, um pressuposto da liquidação (cfr. com os nº 2 e 3 do artigo acima referido)».
7ª - «A referida obrigação contributiva efectiva-se mediante a entrega das declarações de remunerações, documento onde é o próprio contribuinte que declara entre outros, quem são os seus membros de órgãos estatutários e/ou o número de trabalhadores que tem ao seu serviço, o número de dias de trabalho prestado no mês e a remunerações efectivamente pagas a cada trabalhador ou membros de órgãos sociais, declarações estas que se presumem verdadeiras e de boa fé (Art. 75º nº 1 da Lei Geral Tributária)».
8ª - «Tais “folhas de férias” espelham a realidade laboral da empresa quanto aos recursos humanos nela empregues e dão legitimidade à Segurança Social para definir a carreira contributiva dos respectivos beneficiários e os direitos e regalias dos mesmos, numa base de boa fé da actuação do contribuinte (nº 2 do Art. 59º da Lei Geral Tributária), pelo que a folha de remunerações é também fundamental para, através das remunerações pagas aos seus membros de órgãos sociais e trabalhadores pela entidade empregadora e por esta referidas à Segurança Social, efectuar a abertura do direito às prestações de Segurança Social e o cálculo do montante das mesmas prestações».
9ª - «Salvo o devido respeito pela opinião contrária, as quantias deduzidas aos membros dos órgãos sociais integram o conceito de remunerações pagas aos trabalhadores exigido pelo respectivo tipo legal de crime ao tempo dos factos (Art.27º do RJIFNA)».
10ª - «Se os membros dos órgãos sociais são remunerados e recebem salário mensal pelo seu trabalho são-no e recebem-no a título de trabalhadores, como quaisquer outros, embora com funções e estatuto distintos dos demais trabalhadores, ou seja, daqueles a que classicamente nos habituamos a considerar como trabalhadores em sentido estrito, por apenas terem de seu a sua força de trabalho. Essa concepção, porém, está ultrapassada há muito, como, aliás, resulta da noção de trabalhador para efeitos de Segurança Social».
11ª - «Por conseguinte, os Arguidos, enquanto membros dos órgãos de gestão, eram remunerados como trabalhadores e, como tal, efectuavam legalmente e, ilegalmente, descontos para a Segurança Social, de cujos benefícios usufruíam e usufruíram (subsídio de doença ou reforma). A Sociedade Arguida e os Arguidos estavam, pois, no período em causa, obrigados a entregar à Segurança Social as quantias assim deduzidas, que não lhes pertenciam — quantias essas que constam, aliás, das respectivas folhas de remunerações enviadas a este Instituto, sob o código 669 (sócios gerentes)».
12ª - «Sendo assim, como não pode deixar de ser, a actividade delituosa dos Arguidos abrange, pois, as quantias deduzidas aos membros dos órgãos sociais, as quais não tendo sido entregues, conforme a lei determina, nem entrado no bolso dos trabalhadores, obviamente entraram, através desta ilícita inversão do título da posse, no giro económico da empresa para seu auto - financiamento, ou seja, para o pagamento de salários, fornecedores e despesas correntes de funcionamento».
13ª - «Este comportamento, além de revestir natureza criminal, envolve um qualificado juízo de censura, não só porque o mesmo é gerador de concorrência desleal relativamente às empresas que, seguramente com muito esforço, cumprem, pontualmente e na íntegra, as suas obrigações tributárias, como também origina a indesejável delapidação do erário da Segurança Social, o qual é absolutamente fundamental para o equilíbrio social ao nível das nobres funções de previdência e assistência que procura assegurar».
14ª - «Considera o Recorrente que o Meritíssimo Juiz a quo não fez uma correcta apreciação da matéria fáctica constante dos autos e criteriosa interpretação e aplicação das normas legais ao caso sub judicie, designadamente, do Art. 27º-B do RJIFNA — D.L. nº 20-A/90, de 15-Jan., na redacção introduzida pelos D.L. nº 394/93 de 24-Nov. e 140/95 de 14-Junho, actual Art.107º do RGIT, aprovado pela Lei nº 15/2001, de 5-Junho, bem como o disposto nos Art. 5º do D.L. nº 103/80 de 9-Maio, disposições legais que, por isso, foram violadas».
Termina pedindo a pronúncia dos arguidos também por não terem procedido à entrega junto da Segurança Social das deduções efectuadas nas remunerações pagas aos membros dos órgãos estatutários durante os meses de Maio a Agosto de 1999.

6.
O Ministério Público junto da 1ª instância pugnou pelo provimento do recurso porque o art. 27º-B do RJIFNA, que previa e punia o abuso de confiança em relação à segurança social, não fazia distinção entre as deduções nas remunerações dos meros trabalhadores de uma empresa e as daqueles que, para além de trabalhadores, eram simultaneamente membros dos órgãos sociais. Por isso, o artigo 107º do RGIT não procedeu a um alargamento do tipo legal de abuso de confiança fiscal contra a segurança social.

A arguida “C………., Ldª” também respondeu ao recurso interposto.
Começa por invocar a ilegitimidade do assistente para recorrer da decisão proferida, uma vez que este não acompanhou a acusação pública nem deduziu acusação particular.
Quanto ao mérito, pugna pela manutenção do decidido, isto porque a retenção das cotizações cobradas aos membros dos órgãos estatutários não constituía ilícito penal, face ao disposto no art. 27º-B do RJIFNA por contraposição ao disposto no art. 107º do RGIT.

O Sr. P.G.A. junto desta Relação também respondeu, defendendo a improcedência da questão prévia e o provimento do recurso.
Quanto à alegada ilegitimidade, entende este magistrado que a legitimidade do recorrente para intervir nos autos como assistente não é discutível, sendo que esta legitimidade lhe confere legitimidade para recorrer, uma vez que a decisão proferida nos autos contraria a pretensão por si manifestada. Quanto ao facto de ele não deduzido acusação, nem ter aderido à acusação deduzida pelo M.P., nada significa: se não o fez é porque se conformou com a que já constava.

Finalmente, a arguida “C………., Ldª.” respondeu ao parecer do Sr. P.G.A. reafirmando, em síntese, que a falta de entrega das cotizações cobradas aos membros dos órgãos estatutários não constituía ilícito penal à luz do art. 27º-B do RJIFNA, sendo inconstitucional a interpretação que se fizer de molde a considerar abrangida pela norma a retenção daquelas quantias, por violação do art. 29º nº 1 da Constituição.
Suscita, ainda, a excepção de litispendência, dado que corre termos contra os arguidos processo de execução fiscal para cobrança das quantias em causa nos presentes autos.
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FACTOS PROVADOS

7.
Dos autos resultam os seguintes factos, relevantes para a decisão a proferir:
1º - Em 7-11-2006 foi deduzida acusação contra “C………., Ldª” e B………. porquanto:
«A sociedade arguida iniciou a sua actividade de comércio a retalho de pronto a vestir, tecidos e adornos em 1985.
O arguido é sócio gerente da sociedade arguida, desde a sua criação, e o único responsável pelos actos de gestão da mesma, decidindo autonomamente de todos os assuntos ligados à respectiva gestão comercial e financeira, bem como do destino a dar às receitas de empresa e dos pagamentos a efectuar por esta.
Nos períodos a seguir indicados a sociedade arguida, através do arguido seu representante, procedeu a desconto nos salários dos seus trabalhadores, a título de contribuições devidas à Segurança Social, dos seguintes montantes:


Face às disposições conjugadas dos artºs. 50, nºs. 2 e 3 e 6º, do DL nº 103/80, de 9 de Maio e 10º, nº2 do DL nº 199/99, de 8 de Junho, deveriam tais quantias ter sido entregues nos Serviços do Instituto de Segurança Social, IP (Delegação do Porto) até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que respeitam as contribuições.
Porém o arguido não o fez, nem regularizou a situação nos 90 dias volvidos sobre aquelas datas, apropriando-se das quantias referidas, que totalizavam € 11 029,82.
Ao não proceder à entrega das quantias retidas a título de contribuições, nos cofres do ISS, IP, o arguido agiu de acordo com uma resolução única de não cumprir as suas obrigações contributivas e com intenção de se apropriar dos referidos montantes, o que fez, sabendo que era sua obrigação entregá-los à Segurança Social, nos prazos e pelos referidos valores.
Da análise efectuada às declarações de rendimentos apresentadas pela sociedade arguida e referentes aos exercícios de 1999 a 2004, foi possível concluir que «a empresa dispôs de meios financeiros que lhe permitiam pagar as remunerações dos órgãos estatutários e dos trabalhadores, bem como as respectivas quotizações retidas para entrega na Segurança Social». (cfr. fls. 248 a 251).
O B………. actuou em nome e no interesse da sociedade arguida, na qualidade de seu representante legal, pois afectou as quantias retidas a investimentos e despesas correntes da empresa (água, electricidade, comunicações, etc.), em benefício da primeira arguida e, consequentemente, também em benefício dele próprio.
Agiu sempre livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei.
Já depois de decorrido o prazo legal para o pagamento, bem como os 90 dias posteriores, concretamente, entre Janeiro de 2003 e Setembro de 2005, o arguido entregou à Administração Fiscal, por conta das contribuições referentes aos meses de 05/99, 09/99, 12/99, 01/00 a 06/00, 07/00 (parte: 184,43), tendo ainda pago as cotizações, mas não os juros, referentes aos períodos de 01/02 a 04/02, pelo que a dívida global, neste momento, ascende a € 7 896,30, acrescida de encargos legais. (cfr. fls. 365 a 377).
Pelo exposto, cometeu um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. nos art. 107º e 105º nº 1 do RGIT e a arguida, C………., Lda. incorre na prática do mesmo ilícito, por força do disposto no art. 7º do referido normativo».
2º - Em 6-12-2006 o Instituto da Segurança Social, I.P., deduziu pedido de indemnização civil.
3º - Na mesma data o Instituto da Segurança Social, I.P., requereu «se digne admitir a sua intervenção como assistente, nos termos e para os efeitos do art. 68º do Código de Processo Penal».
4º - Em 13-12-2006 a arguida “C………., LDª” requereu a abertura de instrução.
5º - O Instituto da Segurança Social, I.P., foi admitido a intervir no processo como assistente.
6º - Em 14-9-2007 foi proferido o seguinte despacho:
«O tribunal é competente.
A arguida tem legitimidade, está devidamente representada por advogado, o requerimento foi tempestivamente apresentado e beneficia de apoio judiciário – artigo 287º, nº 1, al. a) do C.P.Penal. Assim, e por se mostrarem reunidos os legais requisitos declaro aberta a instrução. Notifique nos termos do artigo 287º nº 5 do C.P.Penal …».
7º - Na decisão instrutória, conforme o referido, entendeu-se que os descontos nas quotizações dos membros dos órgãos sociais não integram o crime imputado aos arguidos, pelo que não foram tais factos considerados na pronúncia.
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DECISÃO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente – art. 412º, nº 1, in fine, do C.P.P., Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 2ª ed., III, 335 e jurisprudência uniforme do S.T.J. (cfr. acórdão do S.T.J. de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, pág. 196 e jurisprudência ali citada e Simas Santos / Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., pág. 74 e decisões ali referenciadas), sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios enumerados no art. 410º, nº 2 do mesmo Código.

Por via dessa delimitação a questão a decidir por este Tribunal da Relação do Porto reside em apurar se a retenção das deduções efectuadas nas quantias pagas aos membros dos órgãos estatutários da arguida “C………., Ldª”, entre Maio e Agosto de 1999, integra ou não o crime de abuso contra a Segurança Social.

No entanto e antes de abordarmos esta questão há que decidir da questão prévia suscitada pela arguida, referente à ilegitimidade do Instituto da Segurança Social, I.P., para interpor recurso da decisão instrutória.
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QUESTÃO PRÉVIA - LEGITIMIDADE/ILEGITIMIDADE DO INSTITUTO DA
SEGURANÇA SOCIAL, I.P., PARA RECORRER DA DECISÃO INSTRUTÓRIA

A legitimidade é a posição do sujeito processual perante uma determinada decisão, posição essa que lhe confere o direito de a impugnar.
No campo em que nos estamos a mover, do recurso em processo penal, a determinação da legitimidade para recorrer obtém-se por via do catálogo que consta do nº 1 do art. 401º do C.P.P.
Assim, têm legitimidade para recorrer:
a) o Ministério Público, sempre;
b) o arguido e o assistente, das decisões contra eles proferidas;
c) as partes civis, da parte das decisões contra cada uma proferidas;
d) os que tiverem sido condenados no pagamento de quaisquer importâncias ou que tiverem a defender um direito afectado pela decisão.
No entanto, não pode recorrer quem não tiver interesse em agir. O interesse em agir é, assim, um pressuposto autónomo cuja não verificação imporá o não recebimento de recursos que, de outro modo, seriam recebidos.
Para além desta norma, uma outra confere legitimidade ao assistente para interpor recurso. Estamos a falar do art. 69º nº 2, al. c), que preceitua que o assistente pode «interpor recurso das decisões que o afectem, mesmo que o Ministério Público o não tenha feito».

O Instituto da Segurança Social, I.P., foi admitido a intervir nos autos na qualidade de assistente.
Preceitua o art. 68º do C.P.P. que
«1 - Podem constituir-se assistentes no processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito:
a) Os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos;
b) As pessoas de cuja queixa ou acusação particular depender o procedimento;
c) No caso de o ofendido morrer sem ter renunciado à queixa, o cônjuge sobrevivo não separado judicialmente de pessoas e bens ou a pessoa, de outro ou do mesmo sexo, que com o ofendido vivesse em condições análogas às dos cônjuges, os descendentes e adoptados, ascendentes e adoptantes, ou, na falta deles, irmãos e seus descendentes, salvo se alguma destas pessoas houver comparticipado no crime;
d) No caso de o ofendido ser menor de 16 anos ou por outro motivo incapaz, o representante legal e, na sua falta, as pessoas indicadas na alínea anterior, segundo a ordem aí referida, salvo se alguma delas houver comparticipado no crime;
e) Qualquer pessoa nos crimes contra a paz e a humanidade, bem como nos crimes de tráfico de influência, favorecimento pessoal praticado por funcionário, denegação de justiça, prevaricação, corrupção, peculato, participação económica em negócio, abuso de poder e de fraude na obtenção ou desvio de subsídio ou subvenção.

3 - Os assistentes podem intervir em qualquer altura do processo, aceitando-o no estado em que se encontrar, desde que o requeiram ao juiz:

4 - O juiz, depois de dar ao Ministério Público e ao arguido a possibilidade de se pronunciarem sobre o requerimento, decide por despacho, que é logo notificado àqueles …».
A arguida opôs-se ao pedido formulado por a possibilidade de a segurança social se constituir como assistente ter desaparecido com a entrada em vigor do RGIT e porque o bem protegido com o crime imputado é o interesse do Estado.

Vejamos o primeiro argumento.
O art. 46º do RJIFNA (Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras, do D.L. 20-A/90, de 15/1), na redacção introduzida pelo D.L. 394/93, de 24/11, permitia à administração fiscal constituir-se assistente nos processos relativos a crimes de abuso de confiança fiscal.
Este diploma veio a ser substituído pelo RGIT – Regime Geral das Infracções Tributárias, constante da Lei 15/2001, de 5/6, diploma que não contém norma semelhante ao citado art. 46º.
Aqui diremos, sempre salvaguardando o devido respeito pela bem estruturada posição da arguida, que o recurso ao desaparecimento daquela norma para negar à Segurança Social o direito de se constituir assistente, não é de grande valor (parafraseando acórdão proferido por este tribunal em 17-12-2003, no processo 0344559).
Conforme já vimos, o art. 46º do RJIFNA foi introduzido pelo D.L. 394/93, de 24/11, e apenas em 1995, com o D.L. 140/95, de 14/6, é que o regime do RJIFNA foi alargado às infracções praticadas em relação à segurança social, mediante a tipificação como crime da não entrega a esta das quantias retidas para esse fim. E isto sucedeu porque, conforme o próprio diploma refere, o quadro sancionatório dos regimes de segurança social mostrava-se incapaz de prevenir a violação das normas relativas ao cumprimento das obrigações dos contribuintes perante a segurança social. Daí que fosse alargado o campo de aplicação do RJIFNA «às infracções praticadas no âmbito dos regimes de segurança social pelos respectivos contribuintes, definindo e penalizando os crimes contra a segurança social», mediante a inrodução, precisamente, dos art. 27º-A a 27º-E.
Tudo isto para dizermos que nem sequer se pode ter por seguro, portanto, que o art. 46º do RJIFNA, acima citado, abrangesse, também, a segurança social.

A arguida diz, ainda, que não é admissível a figura de assistente no crime de abuso de confiança contra a segurança social porque o bem protegido com este crime é, apenas, o interesse do Estado.
Como vimos, podem constituir-se assistentes as pessoas a quem leis especiais conferirem tal direito (nº 1 do art. 68º do C.P.P.). Mas para além destas podem, também, constituir-se assistentes em processo penal os ofendidos, «considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação …» (art. 68º, nº 1, al. a), do C.P.P.).
Dir-se-á, imediatamente, que sendo a Segurança Social ofendida por estes crimes, então sempre terá legitimidade para intervir como assistente, por via da al. a), do nº 1 do art. 61º do C.P.P.
Como sabemos, ofendido para efeitos de constituição de assistente não equivale a pessoa prejudicada com o crime cometido. É que se assim fosse sempre seria admissível a figura do assistente, qualquer que fosse o crime cometido, desde que houvesse um ofendido com a sua prática.
Ofendidos, para este efeito, «são os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação» (citação tirada do acórdão desta relação de 15-10-2003, processo 0342397).
Mas a interpretação desta expressão não deve ficar pelo interesse imediato ou predominante. Deve ir para além desta perspectiva restritiva de molde a entendê-la como o interesse abrangido pelo âmbito de tutela, que integra o objecto jurídico tutelado (Augusto Silva Dias, A Tutela do Ofendido e a Posição do Assistente, in Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, pág. 61 e segs.).
Daí que entendamos que a corrente jurisprudencial que se mostra mais conforme com as novas concepções da vitimologia seja aquela que aceita que a segurança social possa, validamente, constituir-se como assistente nos casos de abuso de confiança contra a segurança social, por os interesses defendidos com o crime de abuso lhe dizerem directamente respeito, dado que é ela a titular do interesse de ver asseguradas as prestações sociais resultantes dos descontos feitos, tudo com vista à sustentabilidade do Estado social.
«Todos têm direito à segurança social», incumbindo ao Estado «organizar, coordenar e subsidiar um sistema de segurança social unificado e descentralizado, com a participação das associações sindicais, de outras organizações representativas dos trabalhadores e de associações representativas dos demais beneficiários» - art. 63º, nº 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa.
Para garantir o cumprimento desta obrigação fundamental, o ordenamento jurídico impôs aos contribuintes, para além do dever de pagar impostos, determinados comportamentos com vista a, mais facilmente, se alcançar um tal fim. Daí que, por exemplo, sejam os contribuintes os onerados com o dever de apresentar as declarações para, face a estas, a administração fiscal apurar se há lugar ao pagamento de impostos.
Mas para além deste dever que a lei impôs aos contribuintes, ela chega a onerar terceiros para conseguir obter os impostos que criou. É o caso da obrigação do terceiro deduzir o imposto devido no rendimento pago ao contribuinte.
Nestes casos, entre o momento da ocorrência do facto tributário e o momento do pagamento do imposto o contribuinte (o tal terceiro) é fiel depositário daquele montante. «Entre o obrigado tributário e a Fazenda Nacional estabelece-se uma relação de confiança fundada na lei, cuja violação se torna passível de juízo de censura ético-jurídica. Para além disso, ao lado dos deveres gerais do contribuinte ou de terceiros a ele ligado de prestar informações à Administração Fiscal sobre a sua situação tributária, há deveres específicos de verdade, de boa-fé, de confiança, de obediência a ordens legais dos seus agentes, que devem ser observados quando ou posteriormente ao concreto cumprimento daqueles deveres gerais. Ora, só a violação desses deveres específicos com o propósito de enganar a Administração ou obstar à sua acção, e consequentemente alcançar benefícios indevidos é que releva inequívoca ressonância ético-jurídica..(…).
Em suma: todos aqueles deveres convergem para a revelação da real capacidade contributiva de cada um e de todos os cidadãos obrigados a pagar impostos, tendo em vista a realização da igualdade e justiça tributárias.
Daí que os bens jurídicos a tutelar nos crimes fiscais sejam similares aos tutelados em crimes idênticos previstos no Código Penal, integrando o bem jurídico mais amplo: a confiança da administração Fiscal na verdadeira capacidade contributiva do contribuinte» - Alfredo José de Sousa, in Direito Penal Económico e Europeu, textos …, citado no acórdão desta relação de 15-10-2003, processo 0342397.
No caso o bem jurídico tutelado é não só a garantia do direito fundamental à segurança social. É, também, o património da segurança social.
É à segurança social que compete assegurar a protecção dos cidadãos, nas várias situações de necessidade. E para que possa cumprir esta sua função compete-lhe assegurar a sustentabilidade do sistema, por via do cumprimento das obrigações dos contribuintes. Então, o incumprimento daquelas obrigações também lesa interesses seus: «interpretação diversa contrariaria injustificadamente o princípio vitimilógico que completa a triangularidade do actual discurso penal – a tríade punitiva: Estado – delinquente – vítima – que inspira o nosso sistema penal … E limitaria, sem justificação plausível, a tendência … no sentido do desenvolvimento do princípio democrático da maior cooperação possível dos cidadãos e das instituições na conformação dos fins públicos de justiça, preocupação sem dúvida também inerente ao instituto da assistência» - acórdão desta relação de 17-12-2003, processo 0344559, citando o acórdão do S.T.J. 29-3-2000.

Assim, e concluindo, o Instituto da Segurança Social tem legitimidade para se constituir assistente nos processos por crime de abuso de confiança contra a segurança social.
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Assente que está a legalidade da admissão do Instituto da Segurança Social, I.P., para intervir no processo como assistente, será que ele pode, por essa circunstância, recorrer da decisão instrutória?
Como sabemos, a decisão instrutória não pronunciou os arguidos pela totalidade dos factos acusados. Não obstante o Ministério Público não recorreu. Quem o fez foi o assistente que, por seu turno, não deduziu acusação nem teve qualquer manifestação explícita de concordância/discordância em relação à acusação deduzida pelo Ministério Público.
Também na resposta a esta questão a jurisprudência se divide: enquanto uma corrente entende que o assistente pode interpor recurso da decisão instrutória, mesmo que não tenha tomado posição em relação à acusação, a outra entende que em tal caso o assistente não poderá recorrer.

Dispõe o art. 69º do C.P.P., cuja epígrafe é «posição processual e atribuições dos assistentes»:
«1 - Os assistentes têm a posição de colaboradores do Ministério Público, a cuja actividade subordinam a sua intervenção no processo, salvas as excepções da lei.
2 - Compete em especial aos assistentes:
a) Intervir no inquérito e na instrução, oferecendo provas e requerendo as diligências que se afigurarem necessárias;
b) Deduzir acusação independente da do Ministério Público e, no caso de procedimento dependente de acusação particular, ainda que aquele a não deduza;
c) Interpor recurso das decisões que os afectem, mesmo que o Ministério Público o não tenha feito».
Esta norma permite-nos concluir, primeiro, que o assistente é um colaborador do Ministério Público e, enquanto tal, a posição dominante é a deste, tendo aquele uma posição que se poderá apelidar de subalterna, na medida em que não tem os mesmos poderes nem a mesma capacidade de acção.
Para além disso também resulta da norma que a figura do assistente está pensada para a parte crime do processo penal.
Poder-se-ia dizer, de imediato, que esta segunda conclusão é uma redundância, porque o processo penal respeita apenas a questões penais. Embora este seja o seu fulcro, a verdade é que no processo penal também se podem discutir questões cíveis, uma vez que pode ser deduzido pedido de indemnização civil. Daí dizermos que o assistente intervém na relação jurídico-penal. Já na relação jurídico-civil, enxertada na acção penal, as partes são o lesado/parte civil/demandante e o demandado, que pode ou não ser o agente do crime. É evidente que o lesado pode também ser assistente no processo e é-o muitas vezes. No entanto fizemos aquela divisão porque, conceptualmente, são figuras distintas.
Então, temos que o assistente é um colaborador do Ministério Público e nesta qualidade pode oferecer provas e requerer diligências no inquérito e na instrução. Pode ainda deduzir acusação independente da acusação formulada pelo Ministério Público e nos crimes particulares mesmo sem acusação do Ministério Público. Pode, finalmente, recorrer das decisões que o afectem, mesmo que o Ministério Público não recorra. Em todos estes aspectos, e apesar da posição ser de colaboração, assiste-se, também, a alguma autonomia na intervenção do assistente, autonomia que se vai mantendo e, na tese de alguns, reforçando, uma vez que pode tomar posições não coincidentes com as posições tomadas pelo Ministério Público.
Regressando de novo ao caso, pode o assistente recorrer da pronúncia? Como entender a expressão «decisão que afecte o assistente»?
Aqui chegados parece-nos razoavelmente fácil concluir que a decisão que afecta o assistente é a decisão que contraria posição por si tomada no processo, que não tutela as pretensões que ele já manifestou nos autos como sendo as suas: «as decisões afectam … o assistente quando são contrárias às pretensões por eles sustentadas no processo. Não se trata de afectar ou contrariar interesses pessoais … mas contrários às posições processuais sustentadas pelos assistentes» - Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. I, 2000, pág. 342.

Transpondo este entendimento para a parte crime do processo, que é onde o assistente intervém, que posição tomou o assistente no processo, que pretensão manifestou, que direito seu reclamou ter sido violado, que posição sustentou? Como já sabemos, o assistente não tomou qualquer posição quanto aos factos imputados aos arguidos, não expôs qualquer posição, não deduziu nenhuma pretensão.
Então, na medida em que a decisão instrutória não contrariou nenhuma posição tomada pelo assistente, temos que dizer que não o afectou. E se não o afectou não pode o assistente recorrer da decisão tomada.
E para alterar o sentido desta conclusão não releva o facto de o assistente ter deduzido pedido de indemnização civil. Como já vimos este pedido circunscreve a relação jurídico-civil, não interferindo nas decisões a proferir na vertente penal.
Ainda recentemente esta relação decidiu neste mesmo sentido, de considerar que o assistente que não deduziu acusação não tem legitimidade para interpor recurso do despacho de não pronúncia se o Ministério não tiver recorrido (acórdãos de 30-5-2007, processo 0740311, e de 7-5-2008, processo 0810653).

Assim, e em conclusão, diremos que o assistente só tem interesse em agir, para efeitos de recurso, relativamente às decisões que contrariem as posições processuais por si assumidas. Se não deduziu acusação, nem manifestou nenhuma opinião em relação à acusação deduzida pelo Ministério Público, não tomou qualquer posição no processo, pelo que não tem legitimidade para recorrer.
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«A decisão que admita o recurso ou que determine o efeito que lhe cabe ou o regime de subida não vincula o tribunal superior» - art. 414º, nº 3, do C.P.P.

Por todo o exposto, e nos termos dos art. 414º, nº 3, 69º, nº 2, al. c), e 401º, nº 1, al. b), todos do C.P.P., não se admite o recurso interposto, por o assistente carecer de legitimidade para recorrer.

Sem custas.

Elaborado em computador e revisto pela relatora, 1ª signatária – art. 94º, nº 2, do C.P.P.

Porto, 2008-06-11
Olga Maria dos Santos Maurício
Jorge Manuel Miranda Natividade Jacob