Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0422727
Nº Convencional: JTRP00037237
Relator: HENRIQUE ARAÚJO
Descritores: GRAVAÇÃO DA PROVA
ANULAÇÃO DE JULGAMENTO
Nº do Documento: RP200410120422727
Data do Acordão: 10/12/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA A DECISÃO.
Área Temática: .
Sumário: I - A imperceptibilidade do depoimento gravado de testemunha, constitui nulidade, sujeita ao regime de arguição previsto no artigo 205 do Código de Processo Civil.
II - Esta nulidade importa unicamente a anulação do depoimento não gravado ou deficientemente gravado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

I. RELATÓRIO

B..... e mulher, C....., residentes na Rua....., freguesia de....., concelho de....., intentaram contra D....., residente no lugar da....., dessa freguesia, a presente acção declarativa de condenação, sob a forma sumária, pedindo que a Ré seja condenada a:
a) reconhecer os direitos de composse e de compropriedade dos Autores sobre o prédio rústico identificado no artigo 1º da petição inicial;
b) restituir os direitos de composse e de compropriedade dos Autores e de H..... sobre o muro ou parede da confrontação Nascente do art. 929º rústico da matriz da freguesia de.....;
c) abster-se de, por si ou por interposta pessoa, a seu mando, por qualquer modo entrar, limitar, impedir, lesar, privar ou turbar o prédio rústico ou o muro ou parede da confrontação Nascente daquele prédio rústico, eliminando o tubo de águas pluviais que implantou no muro com derivação para a propriedade dos Autores.
d) reconhecer o direito de tapagem, através de portão, barreira ou qualquer outro meio idóneo, do prédio rústico descrito no art. 1º da petição.

Na contestação, os Réus impugnam os factos alegados pelos Autores e pedem a improcedência da acção.

Responderam os Autores mantendo o inicialmente alegado.

Proferiu-se o despacho saneador, fixou-se a matéria assente e organizou-se a Base Instrutória, sem que surgisse qualquer reclamação das partes.

Por fim, foi proferida a sentença que, julgando a acção totalmente improcedente, absolveu as Rés dos pedidos formulados pelos Autores.

Inconformados com essa decisão, dela recorreram os Autores.
O recurso foi admitido como sendo de apelação, com efeito meramente devolutivo (v. fls. 114).

Nas alegações de recurso, os apelantes formulam as conclusões que seguem:
1. Tendo os ora recorrentes recorrido quanto à matéria de facto e feito a competente transcrição da prova testemunhal produzida em Audiência de Discussão e Julgamento, verifica-se que a gravação é inaudível na parte em que a testemunha E..... responde às perguntas dos ilustres causídicos.
2. Deste modo não podem na prática os recorrentes sindicar em sede de recurso a matéria de facto relevante, para que o Tribunal a quo firmasse convicção de que “tal versão encontra-se em contradição com as declarações prestadas em sede da providência cautelar que correu seus termos sob o processo n.º ../2002, neste Tribunal, onde referiu desconhecer por completo as confrontações dos prédios, o que abalou a credibilidade desta testemunha”.
3. Por igual forma na citada transcrição não consta qualquer conteúdo sobre o depoimento prestado pela testemunha da Ré F....., deste jeito, estão os recorrentes impossibilitados na prática de infirmar ou não em sede de recurso a relevância da matéria de facto que permitiu ao Tribunal formar convicção no sentido de que “o mesmo não relevou uma vez que esta testemunha saiu da localidade há pelo menos vinte anos, deslocando-se a ........ apenas esporadicamente, donde resulta não poder a mesma ter conhecimento directo dos factos...Chegou mesmo a afirmar desconhecer a existência do tubo das águas pluviais, razão pela qual não é verosímil que saiba da existência, ou não, de regos de água provocados por aquele”.
4. A sentença ora recorrida viola as normas do Art. 690º- a n.º 1 als. a) e b) e n.º 2 e viola ainda as normas previstas no Art. 712º n.º1, n.º 2 e n.º 3 e ainda o Art. 522º -B todos do C. P. C.
5. A violação destes preceitos torna passível de anulação a recorrida sentença, facto que é do conhecimento oficioso do Tribunal ad quem.
6. Os vícios de que padece ainda a sentença, resultam de se ter dado resposta deficiente de “não provados” aos Arts. 8º, 9º, 15º a 19 º, inclusive, 21º a 26º, inclusive, e 33º a 35º, inclusive, da Base Instrutória.
7. Existe contradição insanável entre as respostas dadas aos Arts. 7º e 27º da base Instrutória dado que ao mesmo conteúdo expresso se responde no primeiro como “Provado” e já ao segundo se responde como “não provado”, violando-se novamente o Art. 712º n.º 3 do C. P. C.
8. Inexiste fundamentação sobre qual o concreto meio de prova que permitiu ao Tribunal a quo dar como “provado” ainda que restritivamente aos Art. 11º e 12º da Base instrutória, violando-se recorrentemente o Art. 712º nº 3 do C. P. C.
9. Aos Arts. 1º, 2, 3º, 4º e 6º das respostas à matéria de facto deveria, salvo o devido respeito, dar-se como resposta “provado” em vez de “não provado” atento o Art. 265º n.º 3 do C.P.C. em que o Tribunal a quo no seu poder-dever de accionar o princípio do inquisitório deveria oficiar a Repartição de Finanças e atentos ainda as partes a negrito da transcrição, a fls. 1, a fls. 2, a fls. 10, a fls.17 e a fls. 18,
10. e os documentos juntos em Audiência de Julgamento, nomeadamente certidão de transacção ocorrida nos autos de processo n.º ../91 que correu seus termos no Tribunal Judicial da Comarca de..... e fotocópia de despacho de fls 78 de procedimento cautelar n.º ../02 em que se refere que foi adjudicado a B....., por sentença de 7 de Novembro de 1953 transitada em julgado e proferida no processo de inventário orfanológico (referenciando-se ali o Art. 1º do requerimento inicial).

Não houve contra-alegações.

Foram colhidos os vistos legais e procedeu-se à audição da prova gravada.
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Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões dos apelantes – arts. 684º, n.º 3 e 690º do CPC – as questões a apreciar e decidir são:
- verifica-se a nulidade da gravação dos depoimentos das testemunhas E..... e F.....?
- as respostas aos quesitos 8º, 9º, 15º a 19º, 21º a 26º e 33º a 35º da base instrutória são deficientes?
- existe contradição entre as respostas dos quesitos 7º e 27º?
- as respostas aos quesitos 11º e 12º não se encontram fundamentadas?
- face aos documentos juntos aos autos, deveriam ser positivas as respostas aos quesitos 1º a 4º e 6º?
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II. FUNDAMENTAÇÃO

Da 1ª instância vêm provados os seguintes factos:

1. Na parede divisória situada a nascente do prédio rústico inscrito na matriz respectiva da freguesia de ....., concelho de..... sob o art. 929º, inexistem quaisquer sinais de meação.
2. Há, pelo menos, 21/22 anos que os Autores, em conjunto com outros sujeitos, cultivam o prédio rústico inscrito na matriz da freguesia de..... sob o art. 929º, dele colhendo os frutos, azeite, batata, feijão, vinho e outros produtos hortícolas, o que sucede quer de dia quer de noite.
3. O pedido rústico mencionado em 2. confronta a nascente com o prédio urbano inscrito na matriz respectiva sob o art. 238º e inscrito a favor da Ré.
4. O prédio urbano inscrito na matriz respectiva sob o art. 238º foi reconstruído com a edificação de uma construção.
5. A reconstrução aludida em 4. foi efectuada aquém dos vestígios da parede do antigo palheiro.
6. A Ré refez o “muro” divisório mencionado em 1., entrando para o efeito no prédio cultivado pelos Autores.
7. Nos vestígios da parede de um antigo palheiro existente no prédio urbano a que alude o ponto 4., foi incrustado um tubo de águas pluviais, que se encontra fixado em cimento.
8. Entre o art. 238º da freguesia de..... e o art. rústico n.º 929º da mesma freguesia, interpõe-se um caminho ou rodeira.
9. Os vestígios do antigo palheiro existentes no art. 238º servem de apoio à construção efectuada pela Ré, encontrando-se a sua parte mais baixa alinhada com idêntico muro da casa confinante a Norte.
10. Tais vestígios encontram-se sob o beiral do telhado da casa da Ré.
11. Uma janela da casa da Ré encontra-se aberta sobre aqueles vestígios.
12. As águas pluviais foram sempre encaminhadas na direcção do art. rústico 929º.

O DIREITO

Os apelantes começam por referir que não lhes é possível sindicar, em sede de recurso, a decisão sobre a matéria de facto, por ser inaudível, na gravação, o depoimento da testemunha E..... e por não se encontrar gravado o depoimento da testemunha F......
Esta questão merece apreciação prioritária, uma vez que da sua procedência resultarão prejudicados os outros argumentos do recurso.

Como refere Lebre de Freitas, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2º, pág. 421, o registo da prova tem a utilidade de permitir ao tribunal, em caso de dúvida no momento da decisão da matéria de facto, a reconstituição do conteúdo do acto de produção de prova e a função de permitir às partes o recurso dessa decisão, que de outro modo escapa ao controlo do tribunal da relação.
No presente processo, os Autores/apelantes requereram, a fls. 50, a gravação da audiência, ao abrigo do disposto no art. 522º-B, do CPC, norma que foi introduzida pelo DL 39/95, de 15.02.
A fls. 53, a Mmª Juiz deferiu esse pedido, procedendo-se ao registo da prova produzida na audiência de julgamento.
A testemunha E..... foi arrolada pelos Autores e depôs a toda a matéria da base instrutória, através de videoconferência.
A testemunha F..... foi arrolada pela Ré e prestou depoimento presencial que incidiu sobre a matéria dos quesitos 15º, 19º, 20º, 21º, 25º e 35º.
Ouvida a gravação verifica-se que, de facto, o depoimento da testemunha E..... é imperceptível, devido às deficientes condições técnicas do sistema de videoconferência.
Esse depoimento é, sem dúvida, importante, não só porque a referida testemunha foi indicada a toda a matéria da base instrutória, mas também porque é nora do anterior proprietário do prédio que hoje pertence à Ré – v. fls. 91.
Já no que concerne ao depoimento da testemunha F....., deve haver lapso dos apelantes. Com efeito, esse depoimento está gravado no lado A da cassete 2, logo a seguir ao depoimento da testemunha G...... Embora o nome da testemunha em causa não tenha ficado gravado, não há a menor dúvida de que o seu depoimento é o acima indicado por corresponder aos restantes sinais de identificação referidos na gravação e constantes da acta (estado civil, profissão, residência), e ainda porque, segundo o advogado da Ré, a testemunha respondeu aos “mesmos quesitos da testemunha anterior” – cfr. acta de fls. 83.

A imperceptibilidade do depoimento da testemunha E..... equivale à omissão de um acto que a lei prescreve, com influência directa no exame e na decisão da causa, na medida em que impede ou, pelo menos condiciona, a reacção que as partes podem dirigir contra a decisão proferida sobre a matéria de facto – art. 690º-A, do CPC.
Essa irregularidade alcandora-se, pois, à categoria de nulidade, sujeita ao regime de arguição previsto no art. 205º do CPC, cujo n.º 1 prescreve:
“Quanto às outras nulidades (as do art. 201º), se a parte estiver presente, por si ou por mandatário, no momento em que forem cometidas, podem ser arguidas enquanto o acto não terminar; se não estiver, o prazo para a arguição (que é de dez dias – art. 153º, n.º 1) conta-se do dia em que, depois de cometida a nulidade, a parte interveio em algum acto praticado no processo ou foi notificada para qualquer termo dele, mas neste último caso só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou quando dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência”.
Como sensatamente se refere no Ac. do STJ de 09.07.2002, CJ Ano X, Tomo II, págs. 153 a 155, “não tendo a parte durante a audiência, possibilidade de controlar uma questão meramente técnica como é a das boas ou más condições em que a gravação está a decorrer, não pode exigir-se a arguição imediata da nulidade aqui denunciada”. De resto, é suposto a gravação ser adequadamente feita, sem imperfeições que toldem a sua utilidade. Com efeito, como resulta dos arts. 4º e 6º do DL 39/95, de 15 de Fevereiro, a gravação é monitorada por um funcionário judicial, o qual deve zelar pela observância de todos os requisitos de ordem técnica conducentes a um registo sonoro que permita a posterior reprodução e eventual transcrição dos depoimentos prestados, a fim de obviar à repetição da prova produzida, nos termos do art. 9º do mesmo diploma.
Também no dia designado para a publicação da decisão sobre a matéria de facto não era possível aos apelantes aperceberem-se de qualquer deficiência dos registos áudio, até porque, estando presentes no momento dessa decisão, as reclamações que pudessem elaborar sobre essa decisão tinham de ser imediatamente feitas, conforme decorre do disposto no art. 653º, n.º 4, do CPC.
Posteriormente a esse momento, nenhuma outra intervenção tiveram os apelantes nos autos nem lhes foi feita qualquer notificação que, por sua natureza, fosse idónea para por si só lhes dar conhecimento da deficiência em causa ou de que pudessem inferir, através do normal dever de diligência, essa mesma deficiência.
Acresce ainda que não consta dos autos a data da entrega das cassetes da gravação, mas sabe-se que a transcrição dos depoimentos foi realizada em 15.10.2003. Pode, por isso, deduzir-se – por não existir qualquer outro elemento de referência temporal – que terá sido esse o momento em que os apelantes tiveram conhecimento das deficiências da gravação. O prazo de 10 dias aí iniciado só se concluiu em 27.10.2003 (uma 2ª feira), data em que os apelantes deram entrada em juízo das alegações de recurso – v. fls. 117.
Logo, tem de admitir-se como tempestiva a arguição da predita nulidade.

Quais as consequências de tal nulidade?
Entendemos que, no que toca à gravação da prova, ela importa, unicamente, a anulação do depoimento não gravado, ou melhor, deficientemente gravado.
Em abono deste entendimento, podemos invocar o que se estatui na 2ª parte do n.º 2 do art. 201º do CPC: a nulidade de uma parte do acto não prejudica as outras partes que dela sejam independentes. E também o que consta do art. 9º do DL 39/95: se se verificar que foi omitida qualquer parte da prova ou que esta se encontra imperceptível, proceder-se-á à sua repetição sempre que for essencial ao apuramento da verdade – v., neste sentido, os Acs. desta Relação de 28.05.2001, no processo n.º 0011312 e de 04.12.2003, no processo n.º 0334403.
Conquanto se anule apenas o depoimento da testemunha E....., a referida nulidade não deixa de provocar o chamado “efeito dominó”.
Na verdade, a anulação parcial da gravação acarreta a anulação da decisão proferida sobre a matéria de facto e dos termos subsequentes, uma vez que a decisão sobre a matéria de facto depende em absoluto da totalidade da prova produzida e a sentença depende em absoluto da factualidade dada como provada.
Por conseguinte, também se anularão a decisão sobre a matéria de facto e a sentença, de acordo com o que rege a 1ª parte do n.º 2 do art. 201º.

Como acima se disse, a questão vinda de decidir prejudica o conhecimento das outras questões colocadas no recurso.
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III. DECISÃO

Pelo exposto, julga-se procedente a apelação e, por via disso, declaram-se nulas:
a) a gravação do depoimento da testemunha E....., que deverá ser repetido e novamente gravado em audiência de julgamento;
b) a decisão sobre a matéria de facto constante de fls. 87 a 92;
c) a sentença de fls. 97 a 103.

Custas pela parte vencida a final.
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PORTO, 12 de Outubro de 2004
Henrique Luís de Brito Araújo
Alziro Antunes Cardoso
Albino de Lemos Jorge