Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1399/12.1TBAMT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: TELES DE MENEZES
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
CONCESSIONÁRIA DA AUTO-ESTRADA
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
Nº do Documento: RP201306131399/12.1TBAMT.P1
Data do Acordão: 06/13/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Os tribunais administrativos têm competência para apreciar acções que tenham por objecto responsabilidade civil extracontratual de concessionárias de auto-estradas e suas empreiteiras, por actos praticados com a construção de auto-estradas, ainda que sejam invocados direitos reais e formulados pedidos de condenação no seu reconhecimento.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 1399/12.1TBAMT.P1 – 3.ª
Teles de Menezes e Melo – n.º 1402
Mário Fernandes
Leonel Serôdio

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I.
B…, C… e marido D…, e E… e mulher F…, instauraram a presente acção com processo comum sumário contra G…, S.A., H…, A.C.E., e I…, Lda, pedindo a condenação solidária das Rés a:
a) Reconhecerem que os AA. são donos e legítimos possuidores do prédio identificado no art. 1.º da p.i.;
b) Reconhecer a favor do prédio dos AA. uma servidão de passagem no local assinalado nas plantas juntas como D/4 e D/5, de forma a permitir o acesso de pessoas e veículos, nomeadamente agrícolas, ao referido prédio, nos mesmos termos em que sempre se verificou desde tempos imemoriais até há cerca de 3 anos;
c) Reconhecer que a parte sul de tal prédio, resultante das obras empreendidas pelas Rés nas parcelas 73 e 76, se encontra encravada;
d) Reconhecer que, com as mesmas obras, as Rés impediram os AA. do uso de tal acesso e de fruir e dispor do seu prédio, em violação do seu direito de propriedade;
e) A pagar-lhes a quantia de € 3.000,00, a título de indemnização pelos prejuízos sofridos pelos AA. desde que foi cortado o acesso até à presente data, na actividade agrícola por eles desenvolvida no mesmo prédio, em consequência da privação absoluta do seu direito, durante esse período;
f) 1. Em caso de reconstituição natural: a realizar as obras necessárias à restituição aos AA. do pleno uso, fruição e disposição de tal prédio, criando novo acesso e viabilizando o trânsito de pessoas e veículos pelo mesmo;
2. Caso se entenda que a reconstituição natural não é possível: serem condenadas a pagar aos AA. indemnização, fixada nos termos do art. 566.º do CC, a liquidar em execução de sentença;
g) Repararem os danos patrimoniais que ainda vierem a ocorrer, a liquidar em execução de sentença;
h) Mais devem ser as Rés condenadas a pagar a condigna reparação dos danos morais no valor de € 3.000,00;
i) E os graves e contínuos danos morais que lhes venham a causar e que se vierem a liquidar em execução de sentença;
j) a tais quantias devem acrescer juros moratórios vencidos e vincendos, à taxa legal, até integral pagamento;
k) Assim como custas de parte e procuradoria.
Alegaram ser donos do prédio rústico identificado no art. 1.º da p.i., o qual tinha 14.000m2 e formava uma unidade, sendo bordejado por um arruamento público que termina no seu limite nascente, o qual entronca num caminho particular que segue na direcção nascente e se prolonga para sul, atravessando outros prédios, até formar bifurcação, da qual derivava uma parte que penetrava no prédio dos AA. Pelo mesmo se passava a pé e de carro desde o prédio do art. 1.º até à rua, estando o seu trânsito demarcado permanentemente no solo há mais de 40 anos. Tal caminho é o único de que dispõem dos AA. para aceder à parte sul do seu imóvel, o que sempre fizeram de forma pública, pacífica e continuada, na convicção de exercerem um direito próprio. No seguimento da expropriação com carácter de urgência determinada por despacho do secretário de Estado Adjunto das Obras Públicas e das Comunicações com o n.º 9072/2009, de 24.03.2009, publicado no DR 2.ª Série, n.º 64, de 01.04.2009, foi expropriada uma parcela ao prédio dos AA. com 2 670m2. E ainda foi expropriada uma parcela de terreno de um prédio pertencente a terceiros, no qual estava implantado o caminho de servidão, que foi englobado nessa expropriação numa extensão de 300m. A 1.ª Ré é a entidade expropriante, a 2.ª Ré o consórcio construtor e a 3.ª Ré foi encarregada pela 1.ª de instruir e acompanhar todo o processo expropriativo. Com as obras que se iniciaram após 15.07.2009, data da posse administrativa, a nova via rodoviária não só dividiu o prédio dos AA. em duas partes, a norte e a sul da auto-estrada, como a via se acha em parte implantada sobre o leito do caminho de servidão, impossibilitando a passagem de pessoas e veículos, designadamente agrícolas, não podendo os AA. aceder à parte sul do seu prédio, que está encravado. Desta situação advêm-lhes vários danos patrimoniais e não patrimoniais.

A 3.ª Ré contestou, defendo-se por excepção, invocando a incompetência material do Tribunal de Amarante e defendendo a competência do Tribunal Administrativo; a caducidade do direito de acção, por a indemnização a que os AA. eventualmente tinham direito dever ter sido pedida no processo expropriativo; e a prescrição do direito de indemnização, por terem já decorrido mais de 3 anos sobre a notificação aos AA. da DUP. Ainda impugnaram os factos alegados pelos AA.

A 2.ª Ré defendeu-se nos mesmos moldes.

A 1.ª Ré invocou a sua ilegitimidade, dizendo-se concessionária da obra e tê-la subempreitado à 2.ª Ré, que nos termos desse contrato é responsável pelos danos provocados a terceiros resultantes das actividades desenvolvidas na sua execução, devendo ser a única ré nesta acção, por ser o sujeito da relação material controvertida; ainda remeteu para a contestação da 2.ª Ré.

Os AA. responderam, insurgindo-se contra as excepções suscitadas.

Foi proferida a seguinte decisão:
A presente acção foi intentada contra os promotores da construção e gestão da infraestrutura rodoviária Auto-Estrada … que integra a concessão do K… sendo que os actos alegados pelos autores devem ter-se por actos de administração ou gestão pública porque cometidos no exercício de um poder público de autoridade, visando a prossecução do interesse público da materialização de uma infraestrutura rodoviária, tudo como consta da preclara contestação da ré “H…, ACE” e que coonestamos em toda a latitude.
As rés são entidades que estão incumbidas de prosseguir com a execução da obra pública de construção de lanços de auto-estrada e os autores pretendem ver-se ressarcidos de hipotéticos prejuízos resultantes da privação do acesso á parte sul do seu prédio no âmbito dos trabalhos do “K…”.
Considerando estarmos perante alegados prejuízos decorrentes de uma obra pública e resultantes da actuação de pessoas colectivas de direito privado regulada por disposições e princípios de direito administrativo, é perante o Tribunal Administrativo que os autores têm de reclamar conforto para os seus eventuais prejuízos pois de acordo com o art. 4 alínea i) do ETAF estatui que estão acometidos à jurisdição administrativa os litígios respeitantes à responsabilidade civil extra-contratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e das demais pessoas colectivas de direito público.
Numa palavra, porque até intuitivamente, não é a jurisdição cível a competente, declaro este Tribunal incompetente absolutamente em razão da matéria, a qual diz respeito à jurisdição administrativa e absolvo as rés da instância.

II.
Recorreram os AA., concluindo:
1. Salvo o devido respeito, os recorrentes consideram que merece censura a douta sentença sob recurso, ao absolver as RR – G…, S.A., H…, A.C.E., I…, Lda. - da instância, por incompetência absoluta do tribunal comum para conhecer da presente acção.
2. Consideram os recorrentes que, para efeitos da determinação do tribunal competente, a douta sentença recorrida não apreciou:
a. O pedido formulado na acção e a causa de pedir que lhe está subjacente;
b. A natureza jurídica dos sujeitos do lado passivo e do contrato celebrado por estes;
c. A competência jurisdicional em razão da matéria dos tribunais da ordem judicial e da ordem administrativa;
d. A competência jurisdicional para conhecimento do objecto do litígio.
o que a enferma de nulidade, nos termos da al. d) do nº 1 do artº 668º do C.P.C..
A- PEDIDO FORMULADO E A CAUSA DE PEDIR QUE LHE ESTÁ SUBJACENTE
3. Importa, assim, por interpretação da petição inicial, ver como os autores conformaram o seu pedido e como caracterizam os actos das RR. para se poder concluir acerca da jurisdição competente.
4. A simples leitura da petição inicial revela que a causa de pedir da presente acção consiste na violação ilícita do direito de propriedade dos autores, ora apelantes, e consequente direito de ver reposto o acesso ao seu prédio de forma a evitar maiores danos ou impossibilidade de reparação.
5. E, os AA. concluem pedindo que as RR sejam condenadas a reconhecer que são donos e legítimos possuidores do prédio identificado no artigo 1º da Petição inicial, que impediram os AA. de uso de acesso e de fruir e dispor da parte sul do seu prédio, em violação do seu direito de propriedade, que restituam aos autores o pleno uso, fruição e disposição de tal prédio e a reparação dos danos provocados, no decurso e por força da empreitada de obras públicas identificada nos autos.
6. Na presente acção não se está perante relação jurídica administrativa, mas sim perante questão de direito privado, directamente ligada ao direito de propriedade.
7. Também o pedido de indemnização que os autores cumularam com o pedido de reconhecimento da titularidade do direito de propriedade é da competência dos Tribunais Comuns pois os prejuízos que alegam decorrem directamente da ofensa de direitos de natureza privada.
8. Além de que, a interposição de duas acções, no Tribunal de Amarante e no Tribunal Administrativo e Fiscal, além de violar o princípio da economia processual, pode levar a contradições entre julgados.
B- NATUREZA JURÍDICA DOS SUJEITOS DO LADO PASSIVO E DO CONTRATO CELEBRADO POR ESTES
9. Na presente acção estamos perante um litígio entre entidades privadas – Os Autores de um lado e as Rés do outro.
10. As bases do referido contrato de concessão e as suas cláusulas foram aprovadas – como referem as RR - pelo Decreto-Lei nº 86/2008, de 28 de Maio.
11. Na acção está em causa a responsabilidade civil extracontratual derivada de danos causados a terceiros com a execução das obras previstas no referido contrato de concessão de obras públicas.
12. O que resulta do mencionado diploma, por um lado, é que a Ré G…, S.A. na sua posição de concessionária, responde perante terceiros, por culpa ou risco, pelos prejuízos causados no exercício das actividades que constituem o objecto da concessão, nos termos da lei geral (Base 69, nº 1).
13. E, por outro, que ela responde também, nos termos gerais da relação comitente-comissário, pelos prejuízos causados pelas entidades por si contratadas para o desenvolvimento das actividades compreendidas na concessão (Base 69, nº 2).
14. Os tribunais da ordem administrativa não são competentes para conhecer da acção no que concerne às RR., por virtude de esta não serem pessoas colectivas de direito público nem lhes ser aplicável um regime substantivo da responsabilidade civil de direito público.
C - COMPETÊNCIA JURISDICIONAL EM RAZÃO DA MATÉRIA DOS TRIBUNAIS DA ORDEM JUDICIAL E DA ORDEM ADMINISTRATIVA
15. A douta sentença enferma de manifesta violação do artº 1 nº 1 do ETAF.
16. Contraria, igualmente, o disposto nos artºs 211º e art. 212º, nº3 da
Constituição da República Portuguesa,
17. Bem como o art. 66° e 67º do Código de Processo Civil.
18. Assim como ignora o estabelecido pelo artº 18º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei 3/99, de 13.1.
D - COMPETÊNCIA JURISDICIONAL PARA CONHECIMENTO DO OBJECTO DO LITÍGIO.
19. Para determinar a competência do tribunal administrativo haverá que analisar se a versão tal como foi apresentada pelos AA. reporta o litígio a uma relação jurídico-administrativa.
20. Para atribuir competência ao tribunal administrativo, o meritíssimo juiz a quo vem dizer que “estarmos perante alegados prejuízos decorrentes de uma obra pública e resultante da actuação de pessoas colectivas de direito privado regulada por disposições e princípios de direito administrativo”.
21. Assim, a conclusão de que o litígio a dirimir na acção decorria de relação jurídica administrativa e de que, por isso, a competência cabia aos tribunais administrativos e não ao foro comum, baseou-se, essencialmente na consideração de que os actos que os AA. imputam às RR. devem ter-se por “actos de administração ou gestão pública porque cometidos no exercício de um poder público de autoridade, visando a prossecução do interesse público da materialização de uma infraestrutura rodoviária”(sublinhado será sempre nosso).
22. Ora, como se refere supra, a acção envolve apenas entidades privadas – os AA. e as RR, que mais não são do que sociedades comerciais, constituídas segundo o regime do direito privado.
23. Nem mesmo em relação à primeira Ré, apesar de ser concessionária, existe algo que permita concluir que a respectiva actuação, que os AA. lhe imputam, tenha sido desenvolvida no âmbito de prerrogativas de direito público, de acordo com normas de direito administrativo.
24. Pelo contrário, conforme já exposto, as próprias Bases do contrato de concessão aprovadas pelo Decreto-Lei nº 86/2008, de 28 de Maio, afastam a existência de tais prerrogativas de direito público, ao estabelecer na “Base 69” que: “A Concessionária responderá, nos termos da lei geral, por qualquer prejuízo causados a terceiros no exercício das actividades que constituem objecto da concessão, pela culpa ou pelo risco”.
25. Não beneficiam as RR. de prerrogativas de direito público, cuja existência, conforme decorre do art. 1º, nº 5, da Lei 62/2007, de 31.12, é condição de aplicação do actual regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas de direito público às pessoas colectivas de direito privado.
26. Assim também, ao contrário do que é preconizado na douta sentença sob recurso, estará afastada a possibilidade de se incluir o litígio ora em causa no âmbito da jurisdição administrativa, nos termos do art. 4º, nº 1, al. i), do ETAF.
27. As relações jurídicas que se estabelecem entre o dono da obra e o empreiteiro, ao abrigo de um contrato de empreitada de obras públicas, são reguladas pelas normas de Direito Administrativo, mas as relações com terceiros pertencem à esfera do direito privado e são reguladas por este direito.
28. Os tribunais administrativos são chamados a decidir questões relacionadas com a interpretação, validade ou execução do contrato de empreitada de obras públicas, mas já não as questões relacionadas com as relações entre o empreiteiro particular e terceiros afectados pela conduta deste.
29. No presente caso não estão em causa as relações jurídicas administrativas estabelecidas entre as partes por força do referido contrato, até porque, como é manifesto, os AA. não são partes do mesmo.
30. Ainda que o dono da obra fosse um ente público (o que não será o caso) não há, na concepção e execução de uma empreitada, seja de obras públicas seja de obras particulares, o exercício de qualquer poder público ou a realização de qualquer função pública, antes se encontrando todas as partes envolvidas submetidas às normas de direito privado, designadamente ao dever de respeitar os direitos de propriedade de terceiros que sejam afectados ilicitamente no decurso da empreitada.
31. Reconduz-se, pois, a questão em litígio a uma relação jurídica de direito privado, como tal regulada pelas normas e princípios do direito civil comum.
32. Deste modo, não pode deixar de se concluir que os tribunais administrativos são materialmente incompetentes para o conhecimento da causa sub judice.
33. Por isso, não poderia ter sido decidido julgar procedente a excepção de incompetência absoluta, antes se devendo concluir serem competentes os tribunais judiciais.
TERMOS EM QUE, nos melhores de direito e com o sempre mui douto suprimento de V.Exas. deve ser concedido provimento ao presente recurso, e consequentemente ser revogado a douta sentença recorrida, sendo declarado que o Tribunal Judicial de Amarante é competente, em razão da matéria, para a apreciação da presente acção.
DANDO-SE PROVIMENTO AO RECURSO SERÁ FEITA, COMO SEMPRE JUSTIÇA

As apeladas contra-alegaram, pedindo a confirmação do julgado.

III.
A questão suscitada consiste em definir qual o tribunal competente para esta acção: se o comum, se o administrativo.

IV.
Os factos são os que supra se deixaram descritos.

V.
O art. 1.º/1 da Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro (ETAF), estabelece:
Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.
E o art. 4.º/1 (Âmbito da jurisdição) dispõe:
Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto:
i) Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público.
Finalmente, o art. 5.º/1 estabelece:
A competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal fixa-se no momento da propositura da causa, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente.
Como vimos, a decisão impugnada enquadrou a competência dos tribunais administrativos na previsão da al. i) do n.º 1 do art. 4.º.

De acordo com a p.i., os AA. invocaram o seu direito de propriedade sobre determinado imóvel, a existência de uma servidão de passagem a favor desse imóvel (prédio dominante), e formularam os pedidos de reconhecimento da existência desses direitos, bem como de condenação das Rés no pagamento de indemnizações pelo postergação dos mesmos.
Aparentemente, a competência seria dos tribunais comuns, porque se trata de questão relacionada com responsabilidade extracontratual por violação de direitos reais.
Todavia, na origem da ofensa aos direitos mencionados, geradora dos danos invocados, está a expropriação de duas parcelas de terreno, uma pertencente aos AA., que dividiu o seu prédio em duas partes, e a outra pertencente a terceiro, na qual se encontrava parcialmente implantada a servidão de passagem que dava acesso ao prédio dos AA., em particular à parte que hoje se situa a sul da auto-estrada implantada e que, segundo eles, ficou privada de acesso, e as obras subsequentes, levadas a cabo pelas Rés.
Por essa razão, e como veremos, é menos correcta a afirmação dos apelantes consistente em os tribunais da ordem administrativa não serem competentes para conhecer da acção no que concerne às Rés, por virtude de estas não serem pessoas colectivas de direito público nem lhes ser aplicável um regime substantivo da responsabilidade civil de direito público.
É que, a al. i) do n.º 1 do art. 4.º do ETAF, comina aos tribunais da jurisdição administrativa a apreciação de litígios que tenham por objecto a responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público.
Assim, o enquadramento adequado da competência material entre tribunais comuns e administrativos, não se deve circunscrever à natureza da responsabilidade, mas também ter em consideração a qualidade daquele que nela incorre, à luz da sua relação com a Administração.
Se é certo que o art.º 212.º/3 da Constituição afirma que “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”, e o art.º 1.°/1 do ETAF consagra que “os tribunais administrativos e fiscais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações administrativas e fiscais”; não o é menos que a citada al. i) do n.º 1 do art. 4.º do ETAF alargou a competência dos tribunais administrativos aos casos em que, apesar de estarem em causa normas respeitantes à responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados, a estes seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público[1].
«Existiu, assim, por parte do legislador, o propósito de estender a competência dos tribunais administrativos e fiscais a áreas de jurisdição que antes não eram suas.
Deixou de vigorar o art.º 4.º al. f), norma restritiva da competência dos tribunais administrativos inserta no anterior ETAF (DL, n.º 124/84 de 27/4), segundo a qual estavam excluídos da jurisdição administrativa e fiscal os recursos e acções que tinham por objecto questões de direito privado, ainda que qualquer das partes fosse pessoa de direito público. O regime introduzido atribuiu competência aos tribunais administrativos e fiscais a todas as questões de responsabilidade civil envolvendo pessoas colectivas de direito público (cfr. alíneas g) e h) do referido art.º 4.° n.° 1), independentemente de se saber se as mesmas eram regidas por normas de direito público ou por normas de direito privado. Neste ponto existiu uma evidente intenção de alargar a jurisdição dos tribunais administrativos, indo ainda mais além ao aplicar essa competência à responsabilidade civil extracontratual dos próprios privados desde que lhes deva ser aplicado o regime próprio da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público.
Face a estas circunstâncias parece-nos que, para efeitos de competência dos tribunais administrativos e fiscais, deixa de ter relevância a distinção, que antes do actual ETAF entrar em vigor, se fazia entre actividade de gestão privada e de direito público, atribuindo-se a competência a esses tribunais apenas nesta hipótese. A este propósito escreveu-se no acórdão do STJ de 10.04.2008, acessível in www.dgsi.pt, que tal distinção “não releva para determinação da competência jurisdicional, certo que a lei seguiu critério objectivo da natureza da entidade demandada, ou seja, sempre que o litígio envolva uma entidade pública ou, entidades privadas desde que a estas deva ser aplicado o regime próprio da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público, em quadro de imputação à mesma de facto gerador de um dano, o conhecimento do litígio compete aos tribunais da ordem administrativa, independentemente do direito substantivo aplicável”.»[2]
Continua o aresto que «A competência do foro administrativo em relação à responsabilidade civil extracontratual dos privados, como se viu, está dependente de a estes dever ser aplicado o regime próprio da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público.
Estabelece o art.º 1.° n.° 5 da Lei 67/2007 de 31.12, - diploma que aprovou o regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas - que “as disposições que, na presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas colectivas de direito público, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas colectivas de direito privado e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam regulados por disposições ou princípios de direito administrativo”.
Quer dizer, esta disposição, em relação às entidades privadas, faz aplicar-lhes o regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado, no que toca a acções ou omissões levadas a cabo «no exercício de prerrogativas de poder público» ou que sejam «regulados por disposições ou princípios de direito administrativo». Portanto, desde que as pessoas colectivas de direito privado (e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares) actuem em moldes de direito público, desenvolvam uma actividade administrativa, deve aplicar-se às suas acções e omissões o regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado.
Como refere Carlos Cadilha, in “Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas”, pág. 49. “...tal como de resto sucede em relação a órgãos e serviços que integram a Administração Pública, o regime da responsabilidade administrativa é apenas aplicado no que se refere às acções ou omissões em que essas entidades tenham intervindo investidas de poderes de autoridade ou segundo um regime de direito administrativo, ficando excluídos os actos de gestão privada e, assim, todas as situações em que tenham agido no âmbito do seu estrito estatuto de pessoas colectivas privadas”.
Concretiza o art.º 1.º n.° 5 da Lei 67/2007, na prática, o princípio delineado no art.º 4.º n° 1 al. i) do ETAF que atribuiu competência aos tribunais administrativos e fiscais para apreciar e decidir a responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público. Carlos Cadilha, in ob. cit, pág. 48, refere que o dito art.º 1.° n.º 5 «se correlaciona directamente» com art.º 4º n.° 1 al. i) do ETAF. Indica, pois, aquela disposição as situações em que as entidades privadas poderão ser submetidas a um regime de responsabilidade administrativa e, consequentemente, poderão ser demandadas perante os tribunais administrativos em acções de responsabilidade civil, nos termos do referido art.º 4.° n.° 1 al. i) do ETAF.
Como se viu, nos termos do art.º 1.° n.° 5 da Lei 67/2007, são dois os factores determinativos do conceito de actividade administrativa. O primeiro refere-se ao exercício de prerrogativas de poder público, o que equivale ao desempenho de tarefas públicas para cuja realização sejam outorgados poderes de autoridade. O segundo respeita a actividades que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo, o que significa que os respectivos exercícios deverão ser reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo.»

No nosso caso está em causa um contrato de concessão celebrado entre o Estado (Ministério das Obras Públicas, Transportes e Comunicações) e a 1.ª Ré, conforme refere o art. 2.º do DL 86/2008, de 28.05.
Segundo a Base 2/2 do Anexo I do mencionado diploma, “A concessão tem por objecto a concepção, construção, aumento do número de vias, financiamento, exploração e conservação, com cobrança de portagem aos utentes, do lanço de auto-estrada ….”
De acordo com a Base 4/1 “A concessionária deve desempenhar as actividades concessionadas de acordo com as exigências de um regular, contínuo e eficiente funcionamento do serviço público e adoptar, para o efeito, os melhores padrões de qualidade disponíveis em cada momento, tudo nos exactos termos das disposições aplicáveis do Contrato de Concessão.”
Na Base 20/2-a) atribuiu-se à concessionária a competência para a prática dos actos que individualizem, caracterizem e identifiquem os bens a expropriar, enquanto na Base 21/1 se instituiu a mesma em entidade expropriante em nome do concedente.
Finalmente, na Base 69/1 e 2 estabelecem-se os termos em que se efectiva a responsabilidade extracontratual da concessionária.
O que não significa, como pretendem os apelantes, que aí se defina a competência material de algum tribunal ou ordem de tribunais para a resolução de quaisquer litígios relacionados com a concessão. Com efeito, apenas se refere que os danos provocados são enquadrados pela lei geral, e que vigora a relação jurídica comitente-comissário relativamente aos terceiros por ela contratados para executar trabalhos compreendidos na concessão.
Como vimos, independentemente da área do direito aplicável, entra também em linha de conta a qualidade do autor dos danos e sua ligação à Administração, para efeito de definir a competência material do tribunal.
Não parece, por isso, haver dúvida de que a actuação da 1.ª Ré, no âmbito da execução das obras enquadráveis na concessão, se substitui à actuação do Estado. Este, mediante o contrato de concessão, entregou a um privado aquilo que são atribuições suas.
Estamos, pois, perante responsabilidade do Estado transferida para um ente privado mediante o contrato de concessão da obra em causa.
Como se refere no acórdão citado, «A actividade a desenvolver pela ré no âmbito da concessão em causa, desenvolve-se num quadro de índole pública.
A entidade privada concessionária da auto-estrada, é chamada a colaborar com a Administração na execução de uma tarefa administrativa de gestão pública. Aí se deve inscrever a tarefa de realização de vias de comunicação em Portugal.»
E chama à colação o acórdão do Tribunal de Conflitos de 20.01.2010, na parte em que afirma que “as entidades concessionárias que são chamadas a colaborar com a Administração na execução de tarefas administrativas através de um contrato administrativo (por ex. concessão de obras públicas ou de serviço público) devem ter a sua actividade regulada e sujeita a disposições e princípios de direito administrativo”.
Nesse mesmo acórdão[3] remete-se para o do STJ de 10.4.2008, no qual se afirma que a distinção entre actividade de gestão privada e de gestão pública “não releva para determinação da competência jurisdicional, certo que a lei seguiu critério objectivo da natureza da entidade demandada, ou seja, sempre que o litígio envolva uma entidade pública, ou, acrescentaremos nós, entidades privadas desde que a estas deva ser aplicado o regime próprio da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público, em quadro de imputação à mesma de facto gerador de um dano, o conhecimento do litígio compete aos tribunais da ordem administrativa, independentemente do direito substantivo aplicável”.
E aludindo ao art. 1° n° 5 da Lei 67/2007 de 31/12 (diploma que aprovou o regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas), afirma o aresto que «esta disposição, em relação às entidades privadas, faz aplicar-lhes o regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado, no que toca a acções ou omissões levadas a cabo «no exercício de prerrogativas de poder público» ou que sejam «regulados por disposições ou princípios de direito administrativo». Ou seja, desde que as pessoas colectivas de direito privado (e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares) actuem em moldes de direito público, desenvolvam uma actividade administrativa, deve aplicar-se às suas acções e omissões o regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado.
Como diz Carlos Alberto Cadilha “...tal como de resto sucede em relação a órgãos e serviços que integram a Administração Pública, o regime da responsabilidade administrativa é apenas aplicado no que se refere às acções ou omissões em que essas entidades tenham intervindo investidas de poderes de autoridade ou segundo um regime de direito administrativo, ficando excluídos os actos de gestão privada e, assim, todas as situações em que tenham agido no âmbito do seu estrito estatuto de pessoas colectivas privadas”. In Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, pág. 49.»
Também no acórdão do Tribunal de Conflitos de 26.01.2012[4] se considerou ser da competência dos tribunais administrativos, e não dos judiciais, a acção mediante a qual o A. exige das Rés, uma, a Estradas de Portugal, S. A., que integra o sector empresarial do Estado, e outra, a sua empreiteira, indemnização pelos danos causados a um seu prédio por obra de construção de uma auto estrada.
É verdade que, no nosso caso, os AA. invocam a titularidade de determinado imóvel e pedem a condenação das Rés a reconhecê-lo. Mas, tal pedido funciona como pressuposto do pedido principal de reposição da servidão de passagem e do subsidiário de indemnização, decorrente da privação daquela. Ora, este dano resultou da expropriação e dos trabalhos de execução da auto-estrada, a cuja concretização a mesma se destinou, previstas no contrato de concessão celebrado pela Administração com a 1.ª Ré.
No mesmo sentido pode ainda ver-se o acórdão do Tribunal de Conflitos de 05.03.2013[5].
Efectivamente, estamos perante a violação de um direito real menor – servidão de passagem –, mas com a especificidade de ter sido perpetrada no seguimento de uma expropriação e da obra pública que ela se destinou a permitir, e que foi concessionada à 1.ª Ré pela Administração/Estado.
Como resulta do art. 26.º/1 da Lei n.º 52/2008, de 28.08 (LOFTJ) Os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
Assim, esta competência residual ocorre quando não haja atribuição da competência a outra ordem jurisdicional, como acontece in casu.
Neste caso há aos Tribunais Administrativos.

Assim, julga-se a apelação improcedente e confirma-se a decisão recorrida.

Custas pelos recorrentes.

Porto, 13 de Junho de 2013
Trajano A. Seabra Teles de Menezes e Melo
Mário Manuel Baptista Fernandes
Leonel Gentil Marado Serôdio
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[1] Processo: 342/12.2TJPRT.P1
[2] Ibid.
[3] Processo: 025/09
[4] Processo: 07/11
[5] Processo: 09/12