Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0720506
Nº Convencional: JTRP00040086
Relator: EMÍDIO COSTA
Descritores: AVAL
NULIDADE
PROTESTO
Nº do Documento: RP200702270720506
Data do Acordão: 02/27/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO.
Indicações Eventuais: LIVRO 241 - FLS 110.
Área Temática: .
Sumário: I - A responsabilidade do avalista pela obrigação avalizada só não existe se esta for nula por vício de forma.
II - Não se confunde com a fiança, já que a obrigação do aval não obedece à regra acessorium sequitor principal.
III - O avalista de uma livrança não pode opor ao seu beneficiário as excepções fundadas nas relações imediatas estabelecidas entre este e os subscritores da livrança. A relação do avalista como portador da livrança não é uma relação imediata.
IV - Não é necessário o protesto para a livrança poder ser accionada.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO

B………. deduziu, por apenso à execução comum para pagamento de quantia certa que, no .º Juízo de Execução do Porto, para onde foi remetida pelo Tribunal Judicial de Paredes, lhe move o C.........., S.A., a presente oposição (embargos), pedindo a sua absolvição dos pedidos formulados na execução.
Alegou, para tanto, em resumo, que prestou no dorso da livrança dada à execução o aval que dele consta; porém, quando tal ocorreu, o título encontrava-se completamente em branco, sendo a embargante completamente alheia ao seu preenchimento; acresce que a livrança não foi apresentada a protesto, pelo que a exequente não tem o direito de acção, designadamente contra a embargante.
Contestou a embargada, alegando, também em resumo, que a livrança exequenda se refere a um contrato de mútuo celebrado com a contestante, do montante de 23.400.000$00, por D.......... e E……….; foi para garantia das obrigações decorrentes daquele empréstimo que os mutuários, juntamente com a embargante, conferiram à embargada poderes para que preenchesse o título exequendo; a livrança foi preenchida porque não foram cumpridas as obrigações constantes do contrato; acresce que o portador da livrança não carece de fazer o protesto dela para fazer valer os seus direitos contra o avalista do subscritor, cuja posição está equiparada à da pessoa a quem prestou o aval; termina, por isso, pedindo a improcedência dos embargos.
Proferiu-se, seguidamente, nos autos saneador-sentença que julgou improcedentes os deduzidos embargos.
Inconformada com o assim decidido, interpôs a embargante recurso para este Tribunal, o qual foi recebido como de apelação e efeito meramente devolutivo.
Alegou, oportunamente, a apelante, a qual finalizou a sua alegação com as seguintes conclusões:

1ª – “A relação que intercede entre a Recorrente e o Recorrido é uma relação imediata, na medida em que a obrigação daquele encontra como primeiro credor o beneficiário, o qual assim se lhe opõe directamente, mostrando-se, assim, com o devido respeito, incorrecta e inconstitucionalmente interpretado o artº 17º LULL, tornando possível ao Recorrente a discussão das excepções na oposição à execução que lhe é movida pelo Recorrido, quando este seja ou continue a ser o beneficiário originário da livrança, mantendo-se a mesma identidade da relação causal, subjacente, porque não se saiu da relação subjacente que deu origem ao título;
2ª – O preenchimento de uma livrança em branco, condição imprescindível para que possam verificar-se os efeitos normalmente resultantes da livrança, faz-se de harmonia com o respectivo pacto de preenchimento, expresso ou tácito, pacto esse que deverá definir a obrigação cambiária, designadamente, a fixação do seu montante, as condições relativas ao seu conteúdo, o tempo do vencimento, a sede de pagamento, a estipulação do juros;
3ª – As livranças foram preenchidas pelo Recorrido, desconhecendo a Recorrente, de todo, a existência de qualquer pacto de preenchimento, pelo que, que presume que houve preenchimento abusivo da Livrança;
4ª – O objecto do aval, no momento em que foi prestado pela Recorrente, não estava determinado, nem era determinável para aquela – dado que a Recorrente foi completamente alheia ao preenchimento da livrança e desconhece o conteúdo do contrato de crédito que é referido na Livrança -, sendo por isso nulo e de nenhum efeito – artº 280º, nº 1 C.C.;
5ª – A livrança dada à execução deveria ter sido apresentada a protesto, sendo que, a recusa do aceite ou de pagamento deve ser comprovada por esse acto forma (o protesto) – (LULL, artº 44), visto que só pelo protesto é a Recorrente tomaria conhecimento de que a livrança foi apresentada a pagamento na data do vencimento e de que o seu pagamento não foi efectuado ou recusado;
6ª – Não tendo sido a livrança apresentada a protesto o Recorrido perdeu os direitos de acção contra a Recorrente;
7ª – Violou por isso, a douta sentença recorrida, entre outros, os artigos 32º, 44º e 53º da LULL”.

Contra-alegou a apelada, pugnando pela manutenção do julgado.

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, nos termos do disposto nos artºs 684.º, n.º3, e 690.º, n.º 1, do C. de Proc. Civil.
De acordo com as apresentadas conclusões, as questões a decidir por este Tribunal são as de saber se a apelante, enquanto avalista, pode opor à apelada a excepção de violação do pacto de preenchimento da livrança exequenda e se esta perdeu o direito de acção contra a apelante, em virtude de a livrança não ter sido objecto de protesto.
Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre decidir.
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OS FACTOS

O saneador-sentença recorrido omite totalmente os factos que o Tribunal “a quo” considerou como provados, ao arrepio do disposto no artº 659º, nº 2, do C. de Proc. Civil, o que é causa da respectiva nulidade (artº 668º, nº 1, al. b), do mesmo diploma, a qual, todavia, não foi suscitada pela apelante.
Esta Relação tem, porém, ao seu alcance os factos pertinentes à decisão da causa, pelo que, nos termos do artº 715º, nº 1, daquele mesmo código, substituindo-se ao Tribunal “a quo”, considera como provados os seguintes factos:

1º - A exequente/embargada é portadora de uma livrança, com data de 03/11/2004, no valor de € 102.451,49, subscrita por D……… e E……….;
2º - A embargante, B………., subscreveu o verso da livrança referida no item 1º, logo a seguir às palavras «Por aval aos subscritores» (doc. de fls. 168);
3º - Por escritura pública outorgada no Cartório Notarial de Felgueiras, no dia 31 de Maio de 2001, D………. e esposa, E………., confessaram ser devedores à exequente/embargada da quantia de Esc. 23.400.000$00, que esta lhes concedeu ao abrigo das normas para o regime geral de crédito à habitação (doc. de fls. 22 a 27);
4º - Os subscritores da livrança referida no item 1º e a avalista referida no item 2º subscreveram o documento de fls. 32, com data de 17 de Maio de 2001, intitulado «Autorização», segundo o qual “para garantia do cumprimento das obrigações decorrentes do empréstimo no montante de Esc. 23.400.000$00 (...), destinado a construção de uma habitação situada em ………., freguesia de ………., concelho de Paredes, à data dos respectivos vencimentos ou das suas eventuais prorrogações, compreendendo o capital que for devido, juros remuneratórios e de mora, comissões e eventuais despesas, junto remetemos uma livrança subscrita por nós (...), livrança esta cujo montante e data de vencimento se encontram em branco, para que este Banco os fixe, completando o preenchimento do título, assim como proceda ao seu desconto, quando considerar oportuno, o que, desde já e por esta forma, se autoriza”.
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O DIREITO

Defende a apelante estarmos no domínio das relações imediatas e que, por isso, pode ela invocar, como invocou, o preenchimento abusivo da livrança por parte da exequente/apelada. Mais defende que, em virtude de a livrança não ter sido objecto de protesto, a apelada perdeu o direito de acção contra ela, apelante. Não lhe assiste, porém, a menor razão.
De acordo com o preceituado no artº 77º da Lei uniforme sobre letras e livranças (LULL), são aplicáveis às livranças, na parte em que não sejam contrárias à natureza deste escrito, as disposições relativas às letras. São expressamente aplicáveis às livranças as disposições relativas ao aval (artºs 30º a 32º) e é admitida também a livrança em branco (artº 77º, II e III).
O aval é o acto pelo qual um terceiro ou um signatário da letra ou da livrança garante o seu pagamento por parte de um dos subscritores.
A obrigação do avalista é subsidiária ou acessória de outra obrigação cambiária ou da obrigação de outro signatário.
O aval, porém, é também um verdadeiro acto cambiário, origem duma obrigação autónoma.
Quer dizer, o dador do aval não se limita a responsabilizar-se pela pessoa por honra de quem presta o aval; assume a responsabilidade abstracta, objectiva pelo pagamento da letra (vide Abel Pereira Delgado, LULL Anotada, 4ª ed., 156).
O aval é escrito na própria letra/livrança ou numa folha anexa. Exprime-se pelas palavras «bom para aval» ou por qualquer forma equivalente (artº 31º da LULL).
A embargante não questionou, na sua petição de embargos, a validade do aval por ela prestado aos subscritores da livrança ajuizada, mediante a aposição da sua assinatura na mesma, antes aceitou ter prestado esse aval (v. item 2.º dos factos).
Ora, como tivemos oportunidade de escrever no acórdão proferido no Recurso n.º 1217/98, 2.ª Secção, tirante os casos em que a obrigação garantida seja nula por um vício de forma, o que aqui não está em causa, o avalista tem sempre de responder.
E, como escreveu Pereira Delgado (ob. cit., 171, “pelo disposto no artº 32 da L.U., o avalista é considerado responsável talqualmente a pessoa que ele afiança, o que significa que, quanto à sua responsabilidade pelo pagamento da letra, aquele preceito não estabelece qualquer distinção entre aceitante e avalista, salvo se existir um vício de forma que torne nula a obrigação,...)”.
E, como se pode ler no Ac. da R. de Coimbra de 6/01/94 (C.J., Ano 19º, 1º, 5), “a inexistência da própria obrigação da sociedade avalizada em nada contende com a obrigação autónoma dos avalistas, impondo-se, por isso, o prosseguimento da execução contra estes e na indicada qualidade” (no mesmo sentido, v. também os Acs. da R. de Évora de 9/6/88, B.M.J. n.º 378º, 811, e R. de Lisboa de 22/09/92, C.J., 1992, 4º, 148).
É certo que a livrança ajuizada foi assinada pelos subscritores e pela avalista, ora apelante, em branco, o que é consentido pelo citado artº 77º. Mas não é menos certo que tanto os subscritores da livrança como a avalista subscreveram uma autorização de preenchimento da livrança pela respectiva portadora, a ora apelada (vide item 4º).
Ora, quem assina uma livrança em branco atribui àquele a quem a entrega o direito de a preencher nos termos acordados. Quem dá o aval a uma livrança em branco fica, sem mais, vinculado ao acordo de preenchimento havido entre o portador e o subscritor.
No regime legal vigente, o aval funciona como uma obrigação autónoma. Não se confunde com a fiança, já que a obrigação do aval não obedece à regra acessorium sequitor principal e mantém-se mesmo no caso de a obrigação garantida ser nula por qualquer razão que não seja um vício de forma.
E, ao invés do que afirma a apelante, a relação entre o portador da livrança e o avalista do respectivo aceitante não é uma relação imediata, mas sim uma relação mediata, pelo que está vedado ao avalista suscitar a excepção do preenchimento abusivo convencionado entre o portador e o subscritor da livrança.
Mas nem se vê como a apelante pode questionar aquela excepção quando ela própria assinou a autorização de preenchimento da livrança por parte da apelada. A sua conduta processual aproxima-se dos limites da litigância de má fé.
A decisão recorrida (louvando-se no Acórdão da Relação de Lisboa de 30/06/2005, in www.dgsi.pt) entendeu que a apelante, enquanto avalista da livrança, não podia opor à exequente/apelada as excepções fundadas nas relações imediatas, ou seja, as estabelecidas entre aquela e os subscritores da livrança, invocando o disposto no artigo 17º da LULL.
Este é também o nosso entendimento (no mesmo sentido, vide, por todos, o Acórdão desta mesma Secção de 24/10/2006, Vieira e Cunha, Lemos Jorge e Pelayo Gonçalves, em www.dgsi.pt, e Vaz Serra, RLJ, Ano 113, pág. 187; Acs. do STJ de 23.01.1986, BMJ 353º, pág. 482, de 27.04.1999, CJ (STJ), Ano VII, Tomo II, pág. 68, de 11.12.2003, no processo n.º 03A3529 e de 11.11.2004, no processo n.º 04B3453; e Acs. da Relação de Coimbra, de 30.01.2006, no processo n.º 3697/05, e de 14.02.2006, no processo n.º 3650/05, do STJ de 27/05/04 e desta Relação de 19/10/06 e 11/07/05 em www.dgsi.pt).
A relação entre portador e avalista não é uma relação imediata, mas sim uma relação mediata, pelo que não pode o avalista suscitar em sede de oposição à execução quaisquer excepções fundadas sobre as relações pessoais com o avalizado, a menos que o portador, ao adquirir a livrança, tenha procedido conscientemente em detrimento do devedor.
Mas ainda que se entendesse o inverso, uma vez que a apelante subscreveu a autorização de preenchimento da livrança e não se alegou que a exequente, ao preencher a mesma, violou a autorização dada, os embargos, quanto a este fundamento, não podiam deixar de improceder.

Defende também a apelante que a apelada perdeu o direito de acção contra si, em virtude de a livrança não ter sido objecto de protesto.
Mas, como escreveu Abel Pereira Delgado (ob. cit., 161), não é necessário o protesto da letra para accionar o avalista do aceitante. É a opinião mais seguida (vide a doutrina e jurisprudência aí citada).
De acordo com o decidido no Acórdão da Relação de Lisboa de 19/10/77 (C.J., 1977, 5º, pág. 1019), o portador da letra, para exercer os seus direitos contra o avalista do aceitante, não carece de fazer o respectivo protesto, pois que o avalista está vinculado da mesma forma que o aceitante da letra.
O avalista é responsável solidário perante o portador da letra. Mas tal responsabilidade só pode ser exigida contra os endossantes, sacador e outros co-obrigados, com excepção do aceitante, quando o portador comprova o facto da falta de pagamento por um acto formal (protesto) – vide artºs 44º e 53º da LULL.
Se não fizer tal protesto, o portador da letra perde os seus direitos de acção contra os referidos intervenientes da letra (endossantes, sacador e outros co-obrigados), com excepção do aceitante (vide Ac. do S.T.J. de 7/5/74, B.M.J. nº 237º, 270).
E se o portador da letra não perde o direito de acção contra o aceitante também tem de se entender que o não perde contra o seu avalista, uma vez que este, com o aval, assume obrigação igual à do aceitante avalizado.
É esta a orientação maioritária seguida pela nossa jurisprudência (o citado acórdão da R. de Lisboa de 19/10/77 considera mesmo ser tal jurisprudência unânime), como nos dá conta Abel Pereira Delgado (ob. cit., 161) e a que merece o nosso acolhimento.
Improcedem, assim, sem necessidade de mais longas considerações, as conclusões da alegação da apelante, pelo que a decisão recorrida terá de se manter.
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DECISÃO

Nos termos expostos, decide-se julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Custas pela apelante.

Porto, 27 de Fevereiro de 2007
Emídio José da Costa
Henrique Luís de Brito Araújo
Alziro Antunes Cardoso