Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
324/10.9GEGDM.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO VAZ PATO
Descritores: JOGO DE FORTUNA E AZAR
MÁQUINA DE JOGO
Nº do Documento: RP20111019324/10.9GEGDM.P1
Data do Acordão: 10/19/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL.
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE.
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO.
Área Temática: .
Sumário: I- À luz da doutrina do acórdão de fixação de jurisprudência nº 4/2010, não são consideradas máquinas de jogo de fortuna ou azar as máquinas que funcionam como uma espécie de rifas ou tômbolas mecânicas, porque nelas a expectativa é limitada ou predefinida e o impulso para o jogo tem de ser renovado em cada operação.
II- Já o serão, porém - na justa medida em que induzem comportamentos compulsivos com reflexos sociais danosos, que a criminalização da exploração ilícita do jogo pretende combater -, as máquinas que possibilitam uma série praticamente ilimitada de jogadas, numa espécie de encadeamento mecânico e compulsivo, em que o jogador corre o risco de se envolver emocionalmente, em que os pontos adquiridos podem ser usados em jogos sucessivos e o próprio funcionamento do jogo induz à cumulação de pontos e a essa utilização em jogos sucessivos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral:
Proc. nº324/10.9GEGDM.P1

Acordam os juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto

I – B……. veio interpor recurso da douta sentença do 2º Juízo Criminal de Gondomar que a condenou, pela prática de um crime de exploração ilícita de jogo, p. e p. pelo artigo 108º, nº 1, do Decreto-Lei nº 422/89, de 2 de Dezembro, na pena de quatro meses de prisão, substituídos por cento e vinte dias de multa, e oitenta dias de multa, à taxa diária de sete euros.
Da motivação do recurso constam as seguintes conclusões:
«1° - A decisão sob recurso faz incorrecta apreciação e valoração dos factos e subsequente subsunção, interpretação e aplicação "in casu" dos normativos legais aplicáveis.
2º - A máquina em causa nos autos não poderá ser enquadrada como jogo de fortuna ou azar.
3º - Na verdade, da conjugação do disposto no artº 4º do nº 1 do D.L. 10/95, de 19/1, com os fundamentos emanados do Acórdão uniformizador de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), com o número 4/2010 (publicado no DR 1ª série - N.º 46 - 8 de Marco de 2010), só serão de considerar como jogos de fortuna ou azar as máquinas de jogos que paguem directamente prémios em fichas ou moedas; ou não pagando directamente prémios em fichas ou moedas, desenvolvam temas próprios dos jogos de fortuna ou azar identificados no art.° 4 n. 1 do D.L. 10/95, de 19/1, por a sua exploração caber exclusivamente aos casinos.
4º - E, nem mesmo a circunstância de os jogos proporcionarem prémios em coisas com valor económico e em dinheiro, ou só em dinheiro, não é suficiente, por si só, para integrar a “específica configuração em que está definido o pagamento de prémios (pagamento directo em fichas ou moedas) nos jogos de fortuna ou azar, não retirando aquela circunstância aos jogos em causa a natureza de modalidade afim.
5° Sendo que, "todas as modalidades de jogos que não correspondam às características descritas e especificadas nos referidos artigos 1.º e 4.° do Decreto-Lei n.º 422/89, na redacção do Decreto-Lei n.º 10/95, embora os seus resultados dependam exclusiva ou fundamentalmente da sorte, revertem para as modalidades afins, como se defende no referido acórdão."
6º - No caso ora em recurso, a máquina em causa tem essencialmente a mesma natureza: não desenvolve tema próprio de jogo de fortuna e azar, como o póker, frutas, campainhas, blackjack, ou mesmo a roleta, (porquanto este jogo conjuga probabilidades muito mais complexas, que variam com o número apostado, sua cor, ser par ou ímpar, etc., e permite apostas elevadas, e não jogadas fixas, como neste caso) e aproxima-se também a uma tômbola ou sorteio (embora com jogadas probabilísticas independentes, i. e., sem que a jogada anterior altere a probabilidade de sair prémio na seguinte, mas tal é um elemento pouco relevante), assumindo assim a natureza de modalidade afim.
7º - Sendo que se o jogo na máquina automática em causar apresentava resultado que dependia exclusiva ou fundamentalmente da sorte, não desenvolvia tema próprio dos jogos de fortuna ou azar nem pagava directamente prémios em fichas ou moedas.

8° - Na sequência, o desenvolvimento deste tipo de jogo integra-se no âmbito do disposto no artigo 159º do DL 422/89 de 2 de Dezembro, na redacção dada pelo DL 10/95 de 19/1, consequentemente, tratando-se de modalidade afim, está sujeita ao regime previsto no artº 160º a 162º do mesmo diploma legal.
9° - Violou por isso a decisão ora em crise, o disposto nos artºs 1º, 3º, 4°, nº 1, al. g) e 108º, nºs 1 e 2 conjugados com os artigos 159º, 160º a 162º do Decreto Lei nº 422/89 de 2/12, com as alterações do Decreto Lei nº 10/95 de 19/01, em conjugação ainda com os fundamentos do Acórdão uniformizador de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), com o número 4/2010 (publicado no DR 1ª série - N.º 46 - 8 de Marco de 2010.
10º - A Sentença ora em crise fez ainda uma desadequada aplicação da medida da pena.
11° - Na verdade, atendendo à inexistência de antecedentes criminais mostra-se desadequado o montante da pena de multa aplicada à recorrente.
12º - Na sequência, entender-se-ia, caso fosse de aplicar qualquer pena, o que não se concebe, que uma pena de menor montante teria servido de igual modo os fins de prevenção geral e especial que os dispositivos legais visam prosseguir, reduzindo-a bem como reduzindo ao mínimo legal a taxa diária da multa.
13° - Assim, nenhuma razão justifica para a aplicação da pena de multa imposta à arguida.
14° - Por todo o exposto e sem mais delongas, deverá ser revogada a decisão de condenação proferida pelo meritíssimo juiz a quo
Na sua resposta, o Ministério Público junto da primeira instância adere à posição sustentada pela recorrente quanto à desconformidade da douta sentença recorrida com a doutrina do acórdão de fixação de jurisprudência nº 4/2010.
Já o Ministério Público junto desta instância, no seu douto parecer, afirma que o acórdão de uniformização de jurisprudência em questão se reporta a um tipo de máquina de jogo específico, diferente daquela a que se reporta a condenação em apreço, e que, por isso, esta não contraria tal acórdão.
Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora decidir

II – As questões que importa decidir são a de saber, por um lado, se a douta sentença em apreço contraria a doutrina do acórdão de fixação de jurisprudência nº 4/2010 e, por outro lado, caso se entenda que tal não se verifica, se a pena em que a arguida foi condenada é adequada face aos critérios legais.

III - Da fundamentação da douta sentença recorrida consta o seguinte:
«II. Fundamentação de Facto
II.l. Factos Provados
Da audiência realizada com observância do formalismo legal, resultaram provados os seguintes factos:
1. No dia 3 de Setembro de 2010, pelas 21 horas e 20 minutos, a arguida B…… possuía no seu estabelecimento comercial denominado "C……", situado na Rua …., nº …, …, Gondomar, em cima do balcão de atendimento aos clientes, uma máquina electrónica tipo roleta, ligada à corrente e pronta a ser utilizada.
2. A referida máquina tem a designação de "Colorama", não tem qualquer referência exterior quanto à sua origem, fabricante ou número de série.
3. Trata-se de uma máquina portátil, de estrutura em madeira, tendo na parte frontal um painel em vidro acrílico decorado como cenário de desenvolvimento do jogo no qual se encontra um botão vermelho, na parte inferior direita.
4. No painel lateral direito encontra-se o mecanismo de introdução de moedas e no painel esquerdo o respectivo cofre e dois bornes metálicos para reposição a zero do contador de jogo.
5. No painel frontal situam-se os elementos para o desenvolvimento do jogo, constituídos por um mostrador circular formado por:
- 64 emissores de luz vermelha (LED's) em que apenas 8 dos quais se encontram marcados com os números 1,2,5,10,20,50,100 e 200;
- 2 visores dos quais um para assinalar os créditos inseridos para se jogar e o outro, os pontos ganhos.
5. Na parte inferior direita encontra-se um botão vermelho que serve para se efectuarem jogadas com os pontos ganhos.
6. Para desenvolver o jogo o jogador introduz uma moeda e automaticamente é accionada uma roleta electrónica no mostrador circular anteriormente referido. Esta roleta produz-se pela iluminação sequencial, no sentido dos ponteiros do relógio, dos LED's existentes no mostrador, dando a sensação de um movimento giratório de um ponto vermelho.
7. O ponto luminoso inicia o seu movimento giratório a grande velocidade, a qual vai perdendo gradualmente até parar ao fim de algumas voltas, detendo-se aleatoriamente num dos LED's.
8. Neste ponto duas situações podem acontecer:
- o LED em que se deteve o ponto luminoso corresponde a um dos oito identificados pelos números já referidos e, neste caso, o jogador ganhará os pontos correspondentes. Os pontos serão posteriormente convertidos (normalmente 1 ponto = 1€), ou em qualquer outro prémio que o explorador da máquina convencione. Os pontos ganhos poderão ser utilizados para a realização de novas jogadas, através do accionamento de um botão situado na parte inferior do painel do jogo. O accionamento deste botão dá direito a 2 jogadas por cada ponto ganho;
- o LED em que se deteve o ponto luminoso não tem qualquer referência pelo que o jogador não ganha quaisquer pontos, restando-lhe a hipótese de tentar novamente a sua sorte, introduzindo novas moedas. Caso o jogador tenha ganho créditos e queira abandonar o jogo, chamará o responsável pela máquina que verificará o número de créditos no visor e efectuará o pagamento do respectivo prémio, recolocando depois o contador a zero encostando qualquer peça metálica aos bornes situados no painel esquerdo da máquina.
9. A arguida agiu livre, voluntária e conscientemente, conhecendo as características da máquina e do jogo que ela desenvolvia, bem sabendo que tal jogo não dependia da perícia ou destreza do jogador, não podendo ele influenciá-lo pois o resultado apenas depende da sorte e, não obstante tal conhecimento, colocou e permitiu a sua colocação no estabelecimento supra identificado e facultou o acesso do público à referida máquina.
10. A arguida sabia que a conduta descrita era proibida e punida pela lei penal.
11. A arguida não tem antecedentes criminais.
12. Não demonstrou arrependimento pela sua apurada conduta.
13. É casada, tem 2 filhos a cargo, é comerciante, profissão com a qual aufere cerca de €1.500,00 por mês, reside em casa própria e está habilitada com o 6º ano de escolaridade.
II.2. Factos não Provados
De relevante para a decisão da causa nada ficou por provar.
(…)
IV. Aspecto jurídico da causa
Vem a arguida acusada da prática do crime de Exploração Ilícita de Jogo p. e p. pelos artºs 108º, nº 1 com referência aos artºs 1º, 3º, 4º nº 1, alª g), 67º e 115º, todos do Decreto-Lei nº 422/89.
Estipula o art. 1º do referido diploma que, jogos de fortuna ou azar são «aqueles cujo resultado é contingente por assentar exclusivamente ou fundamentalmente na sorte».
O art. 3° preceitua que «a exploração e a prática dos jogos de fortuna ou azar só são permitidas nos casinos existentes em zonas de jogo permanente ou temporário criadas por decreto lei ou, fora daqueles, nos casos excepcionados nos arts. 6º e 8º que se referem ao jogo em navios e aeronaves e em zonas de bingo»,
Por seu turno o art. 4º, n ° 1, al. g) "in fine" concretiza que se trata de jogo de fortuna ou azar aquele que se desenvolva em máquinas, que desenvolva temas próprios dos jogos de fortuna ou azar e que apresentem como resultado pontuações dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte.
A finalizar este excurso sobre as normas que se relacionam com a matéria em questão, temos o art. 108°, n ° 1, o qual prescreve que incorre na prática de um crime de exploração ilícita de jogo quem, por qualquer forma, fizer a exploração de jogos de fortuna ou azar fora dos locais legalmente autorizados.
(…)
Importa verificar, então, se se preencheram ou não os elementos objectivos e subjectivos do tipo de ilícito aqui em apreciação.
«São os seguintes, em consonância aliás com a jurisprudência uniforme dos nossos tribunais superiores, os elementos constitutivos do crime de exploração de jogo ilícito, p. e p. pelo art. 108º, nº 1, do Dec. Lei nº 422/89, de 02 de Dezembro, com a redacção introduzida pelo D. L. nº 10/95, de 19 de Janeiro: a) - A exploração de jogos de fortuna ou de azar, segundo a definição de que estes são aqueles cujo resultado depende exclusiva ou fundamentalmente da sorte; b) - Que tal exploração se faça fora dos locais a isso destinados legalmente; e c) - A consciência por parte do agente de que tal tipo de jogo é de fortuna ou azar e que tal lhe é vedado por lei» Ac. RL de 03-10-2001, Proc. 0028443, in www.dgsi.pt.
Ora, no C……. estava instalada, no dia 3/9/2010, uma máquina cujo funcionamento e resultado assenta no sortilégio das fórmulas matemáticas do respectivo software, das quais há-de resultar que a luz em movimento se detenha em certo ponto do seu percurso. Consoante o ponto em que se detenha, o jogador pode ter direito aos créditos correspondentes ou não recebe qualquer prémio.
Como sem dificuldade se percebe, o jogador não controla de nenhum modo o desenlace da jogada, ao qual é absolutamente indiferente a sua vontade ou perícia. O jogador limita-se a introduzir a moeda e a premir o botão para que o jogo se inicie e a partir daí o software da máquina faz o restante.
Aquele estabelecimento era explorado, no sentido de dele se retirarem os proventos económicos a que tende, pela arguida. Não importa se a arguida o fazia de forma isolada ou acompanhada do seu consorte. O que temos por seguro é que a mesma se encontrava no Café a exercer as actividades geralmente relacionadas com este tipo de indústria (maxime, atendimento de clientes) e que foi em seu nome que a licença camarária respectiva foi emitida.
Passando ao elemento subjectivo, a presente incriminação supõe o conhecimento por parte do agente que a sua conduta preenche um ilícito típico e a sua conformação com tal prática.
Ficou demonstrado que a arguida sabia da existência daquela máquina e, necessariamente do tipo de jogo que desenvolvia. Não podia, por isso, ignorar que se tratava de um jogo ilegal, tanto mais que a roleta, mesmo em suporte electrónico, é associada pelo comum dos cidadãos como um "jogo de casino".
Aliás, conforme ficou escrito no Ac. RL de 02/07/2003, Proc. 3668/2002-3, in www.dqsi.pt, «se é concebível que uma pessoa estranha à exploração de máquinas de jogo e sem qualquer contacto com as autoridades fiscalizadoras nesta área possa, em situações particulares, desconhecer as proibições cujo conhecimento é razoavelmente indispensável para tomar consciência da ilicitude do facto (artigo 16º, 2a parte, do Código Penal) ou mesmo, sem défice de conhecimento, possa não se aperceber da ilicitude da conduta assumida (artigo 17°), o mesmo não se aceita que possa acontecer com o arguido, pessoa experiente e inserida há muito neste ramo de actividade. Mas, mesmo que, por mera hipótese académica, tal pudesse acontecer, sempre haveria que considerar que o erro verificado lhe era censurável, o que não afastava a sua punição (artigo 17°, nº 2, do Código Penal)».
Está, assim, preenchida a totalidade dos elementos constitutivo do crime de que vinha acusado.
Vai, por isso, condenada.
V. Medida concreta da pena
A determinação da medida da pena concreta, faz-se nos termos do art. 71º do Código Penal, em função da culpa do agente, do grau de ilicitude do facto, da intensidade do dolo, das condições pessoais dos arguidos, tudo sem que se esqueçam as exigências de prevenção e reprovação do crime.
Em termos da ilicitude, a mesma é de mediana densidade, postando-se na zona intermédia do respectivo tipo, atentas as características do jogo desenvolvido e o incipiente nível de organização que o envolvia. Além do mais, os proveitos económicos conhecidos não são significativos.
As razões de prevenção geral são, por isso, de média dimensão, já que não é previsível que aquele tipo de jogo pusesse em causa o equilíbrio económico de numerosas famílias, fazendo-se notar, todavia, que o resto da comunidade é também prejudicado pela falta de pagamento de impostos (sendo esta uma das razões porque este tipo de jogos tem natureza concessionada).
A arguida não colaborou com a acção da Justiça na descoberta da verdade, nem demonstrou arrependimento pela conduta empreendida.
Actuou com dolo directo e intenso.
A seu favor valoraremos a sua boa inserção familiar e social e a falta de antecedentes criminais.
O crime praticado pela arguida é punido com prisão até 2 anos e multa até 200 dias (artº 108º, nº1 do DL 422/89 de 02/12).
Ponderadas as cambiantes acima elencadas, o tribunal entende satisfazer as funções cometidas à sanção penal a condenação do arguido em 4 (quatro) meses de prisão e 80 (oitenta) dias de multa.
Nos termos do artº 43º, nº1 do Código Penal, substituir-se-á a pena de prisão por igual número de dias de multa - 120 (cento e vinte) -, já que a personalidade da arguida e a gravidade da sua conduta não impõe que a pena aplicada seja cumprida em reclusão.
De acordo com o disposto no artº 6° do Diploma Preambular do Código Penal DL nº 48/95 de 20/02, irá a arguida condenada numa pena única de 200 (duzentos) dias, correspondente à soma dos 120 (cento e vinte) dias de multa aplicados em substituição dos 4 (quatro) meses de prisão e dos 80 (oitenta) dias de multa aplicados como pena principal.
O montante de cada dia de multa será de €7,00 (sete euros), atenta a situação sócio-económica do arguido.
(…)»

IV – Cumpre decidir.
1. Vem a recorrente alegar que a douta sentença recorrida contraria a doutrina do acórdão de uniformização de jurisprudência nº 4/2010.
Nos termos dessa sentença, a recorrente foi condenada pela prática de um crime de exploração ilícita de jogo, p. e p. pelo 108º, nº 1, do Decreto-Lei nº 422/82, de 2 de Dezembro, por explorar uma máquina «cujo funcionamento e resultado assenta no sortilégio das fórmulas matemáticas do respectivo software, das quais há-de resultar que a luz em movimento se detenha em certo ponto do seu percurso», em relação à qual o jogador não controla de modo algum o desenlace da jogada, ao qual é absolutamente indiferente a sua vontade ou perícia».
Estaremos, assim, de acordo com a sentença recorrida, perante um “jogo de fortuna ou azar”, tal como vêm definido nos artigos 1º e 4º do mesmo diploma.
Estatui esse artigo 1º que são jogos de fortuna e azar «aqueles cujo resultado é contingente por assentar exclusiva ou fundamentalmente na sorte». O artigo 4º define os tipos de jogos de fortuna e azar, autorizados apenas nos casinos, constando dessa lista os jogos em máquinas pagando directamente prémios em fichas ou moedas (alínea f) do nº 1) e os jogos em máquinas que, não pagando directamente prémios em fichas ou moedas, desenvolvem temas próprios dos jogos de fortuna ou azar ou apresentem como resultado pontuações dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte (alínea g) do nº 1).
Estatui por seu turno o artigo 159º, nº 1, do mesmo diploma que modalidades afins dos jogos de fortuna ou azar são as operações oferecidas ao público em que a esperança de ganho reside conjuntamente na sorte e perícia do jogador, ou somente na sorte, e que atribuem como prémios coisas com valor económico. Nelas se incluem, nomeadamente, rifas, tômbolas, sorteios, concursos publicitários, concursos de conhecimentos e passatempos (nº 2 do mesmo artigo).
O referido acórdão nº 4/2010 fixa jurisprudência no seguintes termos:
«Constitui modalidade afim, e não jogo de fortuna ou azar, nos termos dos artigos 159.º, n.º 1, 161.º, 162.º e 163.º do Decreto -Lei n.º 422/89, de 2 de Dezembro, na redacção do Decreto -Lei n.º 10/95, de 19 de Janeiro, o jogo desenvolvido em máquina automática na qual o jogador introduz uma moeda e, rodando um manípulo, faz sair de forma aleatória uma cápsula contendo uma senha que dá direito a um prémio pecuniário, no caso de o número nela inscrito coincidir com algum dos números constantes de um cartaz exposto ao público».
Pode dizer-se, como faz o Ministério Público junto desta instância no seu douto parecer, que este acórdão se reporta a uma modalidade específica de máquina, com características distintas das da máquina a que é relativo o presente processo, e que, por isso, não se coloca a questão do desrespeito, por parte da sentença recorrida, da jurisprudência nesse acórdão fixada.
Na verdade, as características da máquina a que é relativo o presente processo são distintas das da máquina a que se reporta o acórdão em questão.
Relembremos as características do jogo desenvolvido pela máquina a que é relativo o presente processo:
Para desenvolver o jogo o jogador introduz uma moeda e automaticamente é accionada uma roleta electrónica no mostrador circular anteriormente referido. Esta roleta produz-se pela iluminação sequencial, no sentido dos ponteiros do relógio, dos LED's existentes no mostrador, dando a sensação de um movimento giratório de um ponto vermelho. O ponto luminoso inicia o seu movimento giratório a grande velocidade, a qual vai perdendo gradualmente até parar ao fim de algumas voltas, detendo-se aleatoriamente num dos LED's. Neste ponto duas situações podem acontecer:
- o LED em que se deteve o ponto luminoso corresponde a um dos oito identificados pelos números já referidos e, neste caso, o jogador ganhará os pontos correspondentes. Os pontos serão posteriormente convertidos (normalmente 1 ponto = 1€), ou em qualquer outro prémio que o explorador da máquina convencione. Os pontos ganhos poderão ser utilizados para a realização de novas jogadas, através do accionamento de um botão situado na parte inferior do painel do jogo. O accionamento deste botão dá direito a 2 jogadas por cada ponto ganho;
- o LED em que se deteve o ponto luminoso não tem qualquer referência pelo que o jogador não ganha quaisquer pontos, restando-lhe a hipótese de tentar novamente a sua sorte, introduzindo novas moedas. Caso o jogador tenha ganho créditos e queira abandonar o jogo, chamará o responsável pela máquina que verificará o número de créditos no visor e efectuará o pagamento do respectivo prémio, recolocando depois o contador a zero encostando qualquer peça metálica aos bornes situados no painel esquerdo da máquina.
Assim, as características da máquina a que é relativo o presente processo são distintas das da máquina a que se reporta o acórdão de uniformização de jurisprudência em questão.
Há, porém, que apurar se os fundamentos em que se baseia esse acórdão para a jurisprudência em causa levarão, em coerência e por identidade de razão, a que se conclua que também a máquina a que se reporta o presente processo deva ser incluída não entre os jogos de fortuna e azar, mas entre as modalidades a eles afins (reguladas nos artigos 159º e seguintes do mesmo diploma).
Impõe-se, para tal, uma breve análise do referido acórdão nº 4/2010.
A questão por este dirimida, e que dividia até então a jurisprudência, diz respeito a máquinas que funcionam como espécies de rifas ou tômbolas mecânicas e atribuem prémios com valor económico de acordo com resultados que dependem exclusiva ou fundamentalmente da sorte.
De acordo com a definição ampla do artigo 1º atrás citado, poderia pensar-se que essas máquinas configuram um jogo de fortuna ou azar pelo facto de os seus resultados dependerem da sorte.
Não é, no entanto, esse o entendimento perfilhado pelo acórdão nº 4/2010. Na sua fundamentação afirma-se a dado passo:
«Todas as modalidades de jogos que não correspondam às características descritas e especificadas nos referidos artigos 1.º e 4.º do Decreto -Lei n.º 422/89, na redacção do Decreto -Lei n.º 10/95, embora os seus resultados dependam exclusiva ou fundamentalmente da sorte, revertem para as modalidades afins, como se defende no acórdão fundamento.
No caso das máquinas de jogos, só são de considerar como jogos de fortuna ou azar:
Os jogos em máquinas pagando directamente prémios em fichas ou moedas;
Os jogos em máquinas que, não pagando directamente prémios em fichas ou moedas, desenvolvam temas próprios dos jogos de fortuna ou azar ou apresentem como resultado pontuações dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte. O facto de os jogos em máquinas terem desaparecido do elenco exemplificativo do artigo 159.º, n.º 2 (modalidades afins), após as alterações introduzidas pelo Decreto – Lei n.º 22/85, de 17 de Janeiro, não significa que todos os jogos em máquinas se dividam, pura e simplesmente, em jogos de fortuna ou azar e jogos de diversão, estes de resultados dependentes exclusiva ou fundamentalmente da perícia do utilizador e não pagando prémios em dinheiro, fichas ou coisas com valor económico, nos termos do artigo 1.º do
Decreto -Lei n.º 21/85, também de 17 de Janeiro.
Ora, os jogos nas máquinas automáticas em causa nos acórdãos em conflito (cf. supra n.os 6.1 e 6.2), se apresentavam resultados que dependiam exclusiva ou fundamentalmente da sorte, não desenvolviam temas próprios dos jogos de fortuna ou azar nem pagavam directamente prémios em fichas ou moedas. Por conseguinte, não podiam ser enquadradas em qualquer dos tipos de jogos de fortuna ou azar praticados em máquinas automáticas, tal como descritos nas referidas alíneas f) e g) do n.º 1 do artigo 4.º do Decreto -Lei n.º 422/89, na redacção introduzida pelo Decreto -Lei n.º 10/95, revertendo, antes, para as modalidades afins referidas no artigo 159.º, pois constituem uma espécie de sorteio por meio de rifas ou tômbolas mecânicas.
É certo que os referidos jogos proporcionavam também prémios em coisas com valor económico e em dinheiro, ou só em dinheiro, mas tal circunstância, se não é permitida pelo artigo 161.º, n.º 3, do referido diploma legal, também não é suficiente, por si só, para integrar a «específica configuração em que está definido o pagamento de prémios (pagamento directo em fichas ou moedas) nos jogos de fortuna ou azar», como se diz no acórdão fundamento.»
E a razão para seguir tal entendimento é a seguinte:
«Como vimos atrás, o tipo legal de crime é dotado de uma certa rigidez, que o constitui como tipo de garantia, sendo essa precisamente uma das manifestações do princípio da legalidade. Assim, aquela circunstância não retira aos jogos em causa a natureza de modalidade afim.
Acresce que a tutela penal adscrita à proibição dos jogos de fortuna ou azar fora dos locais autorizados encontra fundamento, como se viu (cf. supra n.º 7.1.1), em valores de relevante ressonância ético -social, nomeadamente pelos efeitos devastadores a nível social, familiar, económico e laboral, com incremento de criminalidade grave, não só de carácter patrimonial mas também de carácter pessoal (vida, integridade física, ameaça, coacção) que a dependência de jogos de grande poder aditivo e potenciação de
descontrolo pode acarretar.
Tal não sucede relativamente aos jogos em máquinas automáticas que funcionam como espécies de rifas ou tômbolas mecânicas, em que o que se arrisca assume dimensão pouco significativa, pois a expectativa é limitada ou predefinida e o impulso para o jogo tem de ser renovado em cada operação, ao contrário do que sucede com os jogos de casino, mesmo em máquinas, possibilitando uma série praticamente ilimitada de jogadas, numa espécie de encadeamento mecânico e compulsivo, em que o jogador corre o risco de se envolver emocionalmente.»
Há. assim, duas razões para optar pelo entendimento seguido pelo acórdão.
Uma relativa ao princípio da legalidade e à rigidez da definição do tipo penal em causa. Essa definição não se basta com a noção genérica do citado artigo 1º, há que a completar com o elenco que consta do artigo 4º. Não basta que o resultado do jogo dependa exclusiva ou fundamentalmente da sorte. É necessário que se esteja perante um dos tipos de jogo elencados no artigo 4º, o que não se verifica com as máquinas em questão no acórdão.
Uma outra razão na base do entendimento perfilhado pelo acórdão é de ordem teleológica, relativa à ratio da incriminação e aos princípios da dignidade penal da carência de pena e da máxima restrição penal. A criminalização da exploração de uma máquina de jogo há-de justificar-se à luz de prementes necessidades de protecção de bens jurídicos de particular relevo social. Tal não se verifica, de acordo com o acórdão em relação a máquinas que funcionam como uma espécie de rifas ou tômbolas. Nestas o risco assume pouco significado, pois a «expectativa é limitada ou predefinida», o «impulso para o jogo tem de ser renovado em cada operação», ao contrário do que sucede com os jogos de casino, os quais possibilitam «uma série praticamente ilimitada de jogadas, numa espécie de encadeamento mecânico e compulsivo, em que o jogador corre os risco de se envolver emocionalmente»
Vejamos se, usando estes critérios, a máquina a que é relativo o presente desenvolve um jogo que deve ser considerado de fortuna ou azar, ou não.
Quanto à subsunção no citado artigo 4º do Decreto-Lei nº 422/89, poderíamos considerar que se trata do jogo da roleta habitualmente jogado nos casinos e referido na alínea a) do nº 1 desse artigo. No entanto, e como refere a recorrente, não estarão preenchidas todas as características deste jogo, tal como vêem definidas exaustivamente na Portaria nº 217/2007, de 26 de Fevereiro.
Mas na alínea g) desse nº 1 estão previstos as máquinas que, não pagando directamente prémios em fichas ou moedas, desenvolvam temas próprios dos jogos de fortuna e azar ou apresentem como resultado pontuações dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte. Parece claro que a máquina em apreço apresenta como resultado pontuações (não os prémios isolados proporcionados pelos sorteios, rifas e tômbolas) que dependem exclusivamente da sorte. Está, assim, preenchida a previsão da última parte da alínea g) do nº 1 do citado artigo 4º, que define os tipos de jogos de fortuna ou azar.
Por outro lado, e no que se refere à ratio da criminalização da exploração do jogo, não pode dizer-se em relação ao jogo em apreço nestes autos, como pode dizer-se da máquinas que funcionam como uma espécie de rifas ou tômbolas mecânicas a que ser reporta o acórdão nº 4/2010, que «a expectativa é limitada ou predefinida», ou «o impulso para o jogo tem de ser renovado em cada operação». Pelo contrário, dela pode dizer-se, como pode dizer-se dos jogos de casino, que possibilitam «uma série praticamente ilimitada de jogadas, numa espécie de encadeamento mecânico e compulsivo, em que o jogador corre os risco de se envolver emocionalmente». Os pontos adquiridos podem ser usados em jogos sucessivos e o próprio funcionamento do jogo induz à cumulação de pontos e a essa utilização em jogos sucessivos. Neste aspecto, os efeitos do uso da máquina em apreço nestes autos podem ser substancialmente equiparados aos do jogo da roleta dos casinos, independentemente das diferenças de características entre ambos. A indução de comportamentos compulsivos com reflexos sociais danosos representa um malefício que a criminalização da exploração ilícita do jogo pretende combater e, porque tal risco se verifica no uso da máquina em questão, justifica-se a criminalização da sua exploração ilícita
Assim, a condenação da arguida e recorrente pela prática de um crime de exploração ilícita de jogo, p. e p. pelo artigo 108º, nº 1, do Decreto - Lei nº 422/89, de 2 de Dezembro, não é merecedora de reparo, pelo que ao recurso deverá ser negado provimento quanto a este aspecto.

2. Alega, por outro lado, a recorrente que pena de multa em que foi condenada não é ajustada, por ser excessiva, face aos critérios legais, e que a taxa diárias correspondente à multa por que foi condenada é excessiva em face da sua situação económica.
O crime em apreço é punível com pena de prisão até dois anos e com pena de multa até duzentos dias.
Na escolha das penas em questão e na determinação das respectivas medidas concretas, há que considerar as seguintes disposições do Código Penal.
De acordo com o artigo 40º, a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (nº 1), sendo que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (nº 2).
Nos termos do artigo 70º, se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa de liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Nos termos do nº 1 do artigo 71º, a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção. E, nos termos do nº 2 do mesmo artigo, nessa determinação o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente, o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente (alínea a)); a intensidade do dolo ou da negligência (alínea b)), os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram (alínea c)); as condições pessoais do agente e a sua situação económica (alínea d)); a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime (alínea e)); a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena (alínea f)).
Analisemos, a esta luz, a pena aplicada à arguida e recorrente.
Nada se apurou a respeito do tempo de utilização da máquina em questão, do número de pessoas que a possam ter utilizado ou dos ganhos que ela proporcionou à arguida. Esse desconhecimento não pode deixar de beneficiar a arguida.
Opera como circunstância atenuante de relevo a ausência de antecedentes criminais.
A arguida não prestou declarações em julgamento. Tal significa que não poderá beneficiar das circunstâncias atenuantes da confissão e do arrependimento. Não significa, porém, que o exercício do seu direito ao silêncio se traduza numa circunstância agravante por ausência de demonstração de arrependimento. Tal desvirtuaria tal direito. E não beneficiar de uma circunstância atenuante não será, em termos práticos, exactamente o mesmo do que ser onerado com uma circunstância agravante.
Ponderando estas questões, afiguram-se algo excessivas as penas em que a arguida foi condenada e mais adequadas as penas de três meses de prisão (substituídos por igual tempo de multa) e sessenta dias de multa.
Quanto à taxa diária da multa, a quantia de sete euros, pouco acima do limite mínimo de cinco euros (ver artigo 47º, nº 2, do Código Penal), não se afigura desajustada faca à situação económica da arguida (aufere rendimentos mensais na ordem dos mil e quinhentos euros, reside em casa própria e tem dois filhos a cargo), algo acima dos níveis mais baixos de rendimentos no nosso país.
Deverá, pois, ser dado provimento parcial ao recurso

Não há lugar a tributação (artigo 513º, nº 1, in fine, do Código de Processo Penal)

V – Pelo exposto, acordam os juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento parcial ao recurso, fixando a pena a aplicar à arguida e recorrente, pela prática de um crime de exploração ilícita de jogo, p. e p. pelo artigo 108º, nº 1, do Decreto-Lei nº 422/89, de 2 de Dezembro, em 3 (três) meses de prisão, substituídos por 90 (noventa) dias de multa, e 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de €7,00 (sete euros), o que perfaz a multa global de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de €7,00 (sete euros), num total de €1.050 (mil e cinquenta euros), mantendo-se no restante a douta sentença recorrida.

Sem custas
Notifique.

Porto, 19/10/2011
(processado em computador e revisto pelo signatário)
Pedro Maria Godinho Vaz Pato
Eduarda Maria de Pinto e Lobo