Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
638/17.7IDPRT.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: LILIANA DE PÁRIS DIAS
Descritores: PERDA DE VANTAGENS
OBRIGATORIEDADE
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
CONFISCO
Nº do Documento: RP20220629638/17.7IDPRT.P2
Data do Acordão: 06/29/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Reconhecendo-se a autonomia do instituto da perda de vantagens, a sua natureza e finalidade marcadamente preventivas, o seu carácter sancionatório análogo à da medida de segurança e, para além disso, obrigatório, subtraído a qualquer critério de oportunidade ou utilidade, o juiz não pode deixar de decretar a perda de vantagens obtidas com a prática do crime, na sentença penal, independentemente de o lesado ter deduzido ou não pedido de indemnização civil (e do seu desfecho), ou de ter optado por outros meios alternativos de cobrança do crédito que possa coexistir com a obrigação e necessidade de reconstituição da situação patrimonial prévia à prática do crime, própria do instituto da perda de vantagens.
II - Só em situações comprovadas e concretas de inutilidade se poderá verificar uma específica e excecional subsidiariedade entre os dois institutos.
III - No modelo, que é o nosso, de mera restauração de uma ordem patrimonial conforme ao direito, o confisco não é uma pena, estando em causa, apenas, corrigir uma situação patrimonial ilícita, que não goza de tutela jurídica.
IV - O mecanismo dirige-se contra os próprios bens, sem qualquer juízo de censura da ação ou omissão individual que lhes está subjacente, assumindo-se, antes, quer como um simples mecanismo preventivo análogo à medida de segurança (perda de instrumentos e de produtos), quer como um mero mecanismo civil enxertado no processo penal (confisco das vantagens, das recompensas e do património incongruente) de tutela de uma ordem patrimonial conforme ao direito.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 638/17.7IDPRT.P2
Recurso Penal
Juízo Local Criminal do Porto – Juiz 8

Acordam, em audiência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto.

I. Relatório
No âmbito do processo comum singular que, sob o nº 638/17.7IDPRT, corre termos pelo Juízo Local Criminal do Porto, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
“Nestes termos e face ao exposto:
Julgo a acusação pública de fls. 309 e ss. parcialmente procedente por provada e, em consequência:
ABSOLVO O ARGUIDO AA DA PRÁTICA, COMO COAUTOR MATERIAL, DE UM CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL, PREVISTO E PUNIDO PELOS ARTS. 6º e 105º, n.ºs 1, 2, 4 e 7 do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT), com referência aos arts. 19º a 26º, 27º, 29º e 41º do Código do IVA.
CONDENO O ARGUIDO BB PELA PRÁTICA, COMO AUTOR MATERIAL, DE UM CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL, PREVISTO E PUNIDO PELOS ARTS. 6º e 105º, n.ºs 1, 2, 4 e 7 do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT), com referência aos arts. 19º a 26º, 27º, 29º e 41º do Código do IVA, NA PENA DE 1 (UM) ANO DE PRISÃO, SUSPENSA NA SUA EXECUÇÃO POR IGUAL PERÍODO.
CONDENO A SOCIEDADE ARGUIDA “K..., LDA.” PELA PRÁTICA, por força do disposto no art. 7º, n.º 1 do RGIT, de UM CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL, previsto e punido pelo art. 105º, n.ºs 1, 2, 4 e 7, do RGIT, com referência aos arts. 19º a 26º, 27º, 29º e 41º do Código, na pena de 300 (trezentos) dias de multa, à taxa diária de €6,00 (seis euros), no montante global de €1.800,00 (mil e oitocentos euros).
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Julgo improcedente o pedido de declaração de perda de vantagens a favor do Estado efetuado pelo Ministério Público e absolvo do mesmo os arguidos.
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CUSTAS CRIME: custas a cargo dos arguidos, sendo a taxa de justiça fixada em 2 (duas) UC´s (art. 8º, n.º 5 e Tabela III, do RCP). […]”.

Inconformado com a decisão de improcedência do pedido de declaração de perda de vantagens a favor do Estado e de não sujeição da pena de prisão suspensa na execução à condição de pagamento da prestação tributária em dívida e respetivos acréscimos legais, dela interpôs recurso o Ministério Público para este Tribunal da Relação, com os fundamentos descritos na respetiva motivação e contidos nas seguintes “conclusões”, que se transcrevem (…):
Nestes termos e nos melhores de Direito, sendo dado provimento ao presente recurso deverá a douta sentença recorrida ser revogada:
- na parte relativa à suspensão da execução da pena em que o arguido foi condenado, e substituída por outra que o condene na pena de um ano de prisão suspensa na sua execução, condicionada ao pagamento da prestação tributária e acréscimos legais, dos benefícios indevidamente obtidos, nos termos do artigo 14°, do R.G.I.T., com base no valor da dívida tributária, fixada nas alíneas 5) e 11) dos factos provados, e pelo prazo a determinar em conformidade com a previsão deste artigo, conjugado, apenas na parte omissa, com o disposto no Código Penal, sem prejuízo do juízo de prognose a realizar em conformidade com o que resulta do douto Acórdão STJ de Fixação de Jurisprudência n.º 8/2012; e
- na parte relativa à improcedência da perda de vantagens, sendo substituída por nova decisão que declare a perda a favor do Estado da vantagem obtida com a prática do facto ilícito típico pelo qual o arguido foi condenado, nos termos peticionados pelo Ministério Público.
Porém, V. Ex. ª s farão JUSTIÇA!”.
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Também o arguido BB, inconformado com a decisão, interpôs recurso para este Tribunal da Relação, com os fundamentos descritos na respetiva motivação e contidos nas seguintes “conclusões”, que se transcrevem (…)
Face ao supra exposto, sempre deverão V.Exas atender à aplicação da pena de multa, permitindo ao ora Recorrente a substituição desta por dias de trabalho, em função da sua atual situação sócio-económica, e deste modo, alcançar a pretendida ressocialização do mesmo (…)
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Os recursos foram admitidos para subir nos próprios autos, de imediato e com efeito suspensivo.
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O Ministério Público respondeu ao recurso do arguido, pugnando pela sua improcedência, por considerar inadequada às exigências preventivas verificadas no caso concreto qualquer outra pena para além da pena de prisão (ainda que suspensa na respetiva execução).
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O Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto, neste Tribunal, emitiu parecer, no qual, aderindo à posição do Ministério Público na primeira instância, pronunciou-se pelo provimento do respetivo recurso e consequente revogação parcial da sentença recorrida e, ainda, pela improcedência do recurso do arguido.
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Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não tendo sido apresentada resposta ao parecer do Sr. Procurador-Geral Adjunto.
Procedeu-se a exame preliminar e, colhidos os vistos, realizou-se audiência nos termos do disposto no art.º 411.º, n. 5 do CPP, cumprindo apreciar e decidir.
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II - Fundamentação
É pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido (art.º 412.º, n.º 1 e 417.º, n.º 3, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões que devem ser conhecidas oficiosamente, como sucede com os vícios a que alude o art.º 410.º, n.º 2 ou o art.º 379.º, n.º 1, do CPP (cfr., por todos, os acórdãos do STJ de 11/4/2007 e de 11/7/2019, disponíveis em www.dgsi.pt).
Podemos, assim, equacionar como questões colocadas à apreciação deste tribunal, as seguintes:
1) Quanto ao recurso do Ministério Público:
- É obrigatória a imposição da obrigação de pagamento da prestação tributária e respetivos acréscimos legais como condição da suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido?
- Deve, para além disso, ser decretada a perda da vantagem patrimonial obtida pelo arguido com a prática do crime?
2) Relativamente ao recurso do arguido:
- Deve ser aplicada uma pena de multa (substituída por prestação de trabalho a favor da comunidade) e não uma pena de prisão, que se mostra excessiva e desproporcionada no caso concreto?
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Delimitado o thema decidendum, importa conhecer a factualidade em que assenta a decisão proferida e os respetivos segmentos alvo dos presentes recursos.
“II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Da prova produzida, resultaram os seguintes:
1. FACTOS PROVADOS:
1) A sociedade “K..., Lda.”, NIPC ..., com sede na Rua ..., ..., ... Porto, encontra-se coletada a título principal para o exercício da atividade de “Restaurantes, NE (inclui Act. Restauração Meios Móveis)” (CAE …..) pelo Serviço de Finanças de Porto-5, com início de atividade em 17/10/2013 e enquadrada em sede de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) no regime geral de determinação do lucro tributável e, para efeitos de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) no regime normal de periodicidade trimestral.
2) O arguido BB é sócio gerente da referida sociedade desde 17/10/2013, sendo responsável pela gestão e administração da sociedade arguida, competindo-lhe decidir, para além do mais, a faturação dos serviços prestados, dos lançamentos contabilísticos, bem como cobrar e arrecadar os montantes faturados, proceder ao pagamento dos impostos e praticar as respetivas obrigações fiscais.
3) A sociedade arguida, representada pelo arguido BB, liquidou e recebeu nos 3.º e 4.º trimestres de 2016 e 1.º trimestre de 2017 - e até ao termo do prazo de entrega daquelas prestações tributárias (2016-11-15, 2017-02-15 e 2017-05-15) - IVA dos seus Clientes que, subtraído do IVA dedutível, ascende a €17.328,60, €14.963,60€ e €11.354,64, e cuja entrega ao Estado ela descurou em violação do dever geral de pagar impostos.
4) Com efeito, até ao termo do prazo de entrega das prestações tributárias - recebeu efetivamente dos seus Clientes IVA no montante de €17.328,60, €14.963,60 e €11.354,64 respetivamente, relativo ao imposto liquidado nos 3.º e 4.º trimestre de 2016 e 1.º trimestre de 2017 (2016.09T, 2016.12T e 2017.03T respetivamente).
5) Assim, no âmbito da referida atividade, o arguido BB prestou serviços, que faturava e de que se fazia pagar, liquidando e efetivamente recebendo o IVA referido na sua totalidade, quantias que recebeu e não entregou nos cofres do Estado, até à data limite de entrega das declarações periódicas, no montante de €17.328,60, €14.963,60 e €11.354,64.
6) Até à presente data o arguido BB não regularizou a sua situação fiscal, encontrando-se o Estado patrimonialmente prejudicado em valores elevados e no valor total mínimo acima mencionado.
7) O imposto referido foi recebido na íntegra pela sociedade arguida, o que resulta da análise dos movimentos diários de caixa e na análise contabilística, contudo, por decisão do seu gerente, arguido BB, não foram entregues ao Estado na data em que terminou o prazo para cumprimento da obrigação de entrega, nem nos 90 dias seguintes, nem nos 30 dias subsequentes à notificação para o efeito, antes o utilizando em benefício da sociedade arguida.
8) O arguido BB tinha conhecimento das suas obrigações fiscais, pois sabia que, por via do exercício da atividade da referida sociedade e de acordo com as normas vigentes em matéria tributária, estava legalmente obrigado a entregar à Autoridade Tributária, nos prazos fixados na lei, as quantias liquidadas e recebidas a título de tal imposto (IVA) no período referido.
9) O arguido BB sabia que a aludida importância que recebeu dos clientes da sociedade que representava, a título de IVA, não lhe pertencia a si nem àquela, mas sim ao Estado, e que as deveria entregar, simultaneamente com a respetiva declaração periódica de IVA, nos competentes Serviços do IVA, ou noutro local autorizado, dentro do prazo legal indicado.
10) Contudo, ainda assim, agiu do modo descrito, o que quis, em representação da dita sociedade, apropriando-se desse montante e utilizando-o no normal giro da mesma.
11) Atuou, assim, o arguido BB, por si e em representação da sociedade referida, em nome e no interesse coletivo desta, com o propósito de obter proveitos económicos indevidos a que não tinha direito, pela não entrega da quantia de IVA, que não foi por si suportada, mas sim cobrada aos clientes, agindo ainda com o intuito de causar o correlativo prejuízo ao Estado Português, como de facto causou pois, ao não entregar à Administração Tributária aqueles montantes de IVA diminuiu as receitas tributárias e, por via disso, lesou o erário público da Fazenda Nacional no montante global de €43.646,84.
12) O arguido BB agiu de forma livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e penalmente punível e, por isso, censurável.
Mais se provou:
13) O arguido BB tem os seguintes antecedentes criminais (cfr. fls. 495 e ss.):
-por sentença datada de 06/07/2018, transitada em julgado a 14/02/2019, proferida no âmbito do Proc. n.º 4636/16.0T9PRT, foi o arguido condenado pela prática, em 31/08/2016, de um crime de falsificação de documento, na pena de 30 dias de multa, à taxa diária de €6,00, no montante de €180,00, pena essa já declarada extinta;
-por sentença datada de 07/03/2019, transitada em julgado em 08/04/2019, proferida no âmbito do Proc. n.º 875/17.4IDPRT, foi o arguido condenado pela prática, em 15/05/2017, de um crime de abuso de confiança fiscal, na pena de 130 dias de multa, à taxa diária de €5,00, no montante de €650,00, pena essa já declarada extinta;
-por acórdão datado de 04/11/2019, transitado em julgado em 04/12/2019, proferido no âmbito do Proc. n.º 749/17.9IDPRT, foi o arguido condenado pela prática, em 2015 e 2018, de um crime de fraude fiscal qualificada e um crime de abuso de confiança fiscal na pena de 1 ano e 6 meses de prisão suspensa por igual período, com a condição de no período da suspensão pagar à AT a quantia de 17.710,00€ e na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de €8,00, no montante global de €960,00.
14) O arguido AA tem os seguintes antecedentes criminais (cfr. fls. 49o e ss.):
-por sentença datada de 06/03/2018, transitada em julgado a 14/02/2019, proferida no âmbito do Proc. n.º 222/16.2PAVLG, foi o arguido condenado pela prática, em 01/06/2016, de um crime de difamação, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de €8,00, no montante de €800,00, pena essa já declarada extinta.
Provou-se também:
15) O arguido BB nasceu no dia .../.../1981, tendo atualmente 40 anos de idade.
16) O arguido AA nasceu no dia .../.../1968, tendo atualmente 53 anos de idade.
17) A sociedade arguida encontra-se em liquidação.
18) Resulta ainda dos autos (cfr. teor do relatório social datado de 22/03/2021, a fls. 481 e ss.):
-Nascido numa família cujos padrões vivenciais são descritos como medianos é o mais novo de dois descendentes. O seu percurso desenvolvimental decorreu inserido no seu núcleo de origem, onde a dinâmica foi referenciada como ajustada, estável e potenciadora de interiorização de valores consentâneos com as convenções sociais, sendo que na gestão do processo educativo esteve patente o perfilhamento de estratégias educativas exigentes e tradicionais, onde ambas as figuras parentais foram intervenientes, não obstante o acompanhamento do quotidiano estivesse assacado à progenitora, mas devido ao laboro desta, partilhado também com uma ama.
-O arguido efetuou o percurso escolar sem registar repetições, manifestando capacidade de aprendizagem e adaptação comportamental às regras da instituição escolar, tendo orientado a sua escolarização para a artes, pelo que no secundário ingressou na escola ....
-Integrou o curso superior de designer gráfico, o qual finalizou com sucesso, sendo que após completar este curso, concluiu também o curso de designer de interiores, sendo que esta última formação foi em paralelo com o trabalho que já desenvolvia como designer gráfico.
-Trabalhou em comunicação, imagem e decoração, num gabinete da área, cerca de 7 anos. Posteriormente foi laborar para uma gráfica de familiares, onde esteve apenas um ano. Após esse período começou a trabalhar numa empresa de comunicação e Imagem, onde o seu vínculo precário, laborando nesta empresa cerca de um ano.
-Depois desta experiência, em conjunto com um amigo, constituiu uma sociedade T..., Lda., abrindo então uma casa comercial, ..., o que reporta a 2012, sendo que em 2014, constituiu nova sociedade, K..., Lda., com um terceiro, abrindo então um restaurante no ... situado no centro da cidade, a “...”. Todavia esta sociedade apenas prevaleceu cerca de meio ano, ficando então o arguido, sozinho, segundo refere, na gestão do restaurante, sendo o primeiro sócio relações públicas do mesmo.
-Na sequência da situação profissional, apesar de manter a morada da progenitora, passa a residir de forma permanente em casa do primeiro sócio e amigo.
-O arguido no presente integra o núcleo familiar de origem, composto pelo próprio e pela mãe, 74 anos, reformada, sendo que o pai de BB faleceu em 2018 após doença prolongada. O núcleo assim constituído habita no primeiro andar de uma moradia bifamiliar, tipologia 3, a qual é composta por r/ch, 1º andar e sótão, adquirida há vários anos pelos pais do arguido, a qual se insere em zona urbana. A ambiência familiar é referenciada como ajustada, havendo entre os elementos da família, incluindo o irmão mais velho já autónomo, grande coesão e solidariedade. Nesta dimensão o arguido é qualificado como ponderado, empreendedor, responsável e que manifesta preocupação com o bem-estar dos que lhe são próximos, pelo que expressou o cuidado em preservar a mãe desta situação, muito embora esta, tenha conhecimento parcial das circunstâncias.
-BB, no presente, não desenvolve atividade profissional, uma vez que encerrou ambos os estabelecimentos comerciais, não auferindo qualquer valor regular, apesar de, durante este período, último ano, venha a realizar alguns trabalhos pontuais para conhecidos no âmbito de remodelação, decoração de interiores e imagem. Assim, é a progenitora que com a sua reforma e pensão de viuvez, no montante global de €819, faz face às despesas de subsistência e gastos com a manutenção da habitação. O arguido ocupa ainda o tempo em pintura e escultura.
-À data dos factos, 2016, o arguido mantinha permanência no núcleo de origem, sendo que em 2017 passou a residir permanentemente em casa do primeiro sócio e amigo, que consigo trabalhava como relações públicas, num apartamento arrendado, tipologia 3, em cuja habitação também residia em períodos alternados a filha mais velha deste último, sendo descrita a existência de uma dinâmica interna equilibrada.
-A atividade económica do restaurante “...”, onde o arguido exercia funções de sócio gerente, auferindo mais ou menos €800, mais ajudas de custo que se consubstanciavam no pagamento de transporte e habitação, após o primeiro ano de abertura em que refere ter tido sucesso, passou a confrontar-se com acentuadas
dificuldades financeiras, sendo que o volume de negócio ter-se-á ressentido inicialmente pelas obras efetuadas na via pública e, posteriormente, pelo encerramento e obras no mercado ..., o que terá sido determinante para a diminuição significativa da procura do restaurante, particularmente a nível de turistas, situação que se agravou ao longo do tempo. Nesta sequência e conjuntura, passou a confrontar-se com grandes dificuldades em assegurar as despesas fixas inerentes à manutenção do espaço, situação que piorou com o aparecimento do COVID 19, acabando então por encerrar o restaurante em março de 2020, rescindindo também o contrato de arrendamento do espaço.
-No período correspondendo à factualidade descrita, BB orientava o quotidiano em torno da atividade laboral, referindo que pretendia abarcar todas as áreas no âmbito da gerência comercial, situação que se tornou desgastante, o que, cumulativamente com a falta de formação em gestão, propiciou algum desalinho a nível organizacional. No meio social onde BB cresceu e atualmente se encontra, tanto o próprio como família projetam uma imagem positiva e de respeito, sendo as referências pessoais de ajustamento aos preceitos sociais, sendo-nos ainda transmitido que tem como características a correção e amabilidade.
-O conhecimento deste envolvimento de BB com o Sistema de Justiça Penal parece cingir-se a um grupo restrito de pessoas próximas, pelo que até ao momento, no meio social, pese embora um conhecimento ténue dos desaires negociais, não se verifica qualquer repercussão referente à presente situação.
-O envolvimento do arguido com o Sistema de Administração de Justiça parece não ter tido consequências nefastas a nível familiar, uma vez que mãe e irmão continuam a prestar-lhe o seu apoio incondicional. Na dimensão pessoal, o arguido fez menção aos ecos negativos, manifestando algum desalento e tristeza pelas dificuldades com que se está a deparar, sentindo-se sucumbido pela indefinição que neste momento detém, essencialmente a nível profissional e financeiro. O mesmo está consciente da sua situação jurídico-penal, manifestando ansiedade e preocupação, bem como receio pelas consequências do desenrolar do mesmo. O arguido denota capacidade crítica, sendo que em termos abstratos identifica a ilicitude dos comportamentos, bem como danos e vítimas. Equacionando a possibilidade de condenação, o arguido manifestou adesão a eventual medida de execução na comunidade.
[…]
2. FACTOS NÃO PROVADOS:
a) O arguido AA é, conjuntamente, com o arguido BB, gerente de facto da sociedade “K..., Lda.”, pelo menos, desde 2015, dividindo a responsabilidade da gestão da vida da mesma, nomeadamente, assinando documentos em representação da sociedade e tomando decisões inerentes à sua regular administração.”.
*
Apreciando os fundamentos dos recursos.
Comecemos pela análise dos fundamentos do recurso interposto pelo Ministério Público, centrado, como vimos, em duas questões: na falta de estipulação da obrigação de pagamento da prestação tributária e respetivos acréscimos legais como condição de suspensão da execução da pena de prisão; e na omissão da declaração de perda das vantagens do crime. (…)
*
Analisemos, agora, o segundo dos fundamentos do recurso invocados pelo Ministério Público.
Discorrendo sobre a problemática da declaração de perda a favor do Estado das vantagens do facto ilícito típico, escreveu o tribunal de primeira instância na sentença recorrida o seguinte (segue transcrição parcial):
“A perda de vantagens está prevista no Título III que dispõe sobre as consequências jurídicas do facto.
Ora, como é sabido, a perda de vantagens é exclusivamente determinada por necessidades de prevenção. Como ensina Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, pág. 315, em anotação ao art. 111º, não se trata de uma pena acessória, porque não tem relação com a culpa do agente, nem de um efeito da condenação, porque também não depende uma condenação. Trata-se de uma medida sancionatória análoga à medida de segurança, pois baseia-se na necessidade de prevenção do perigo da prática de crimes, “mostrando ao agente e à generalidade que, em caso de prática de um facto ilícito típico, é sempre e em qualquer caso instaurada uma ordenação dos bens adequada ao direito decorrente do objeto” (Figueiredo Dias, 1993: 638, e apontando também nesse sentido, Maia Gonçalves, 2007: 436, anotação 3ª, ao art. 111º, considerando que o preceito tem em vista “mais uma perigosidade em abstrato” e visa a “prevenção da criminalidade em geral”, Leal Henriques e Simas Santos, 2002: 1162 e 1164, e Sá Pereira e Alexandre Lafayette, 2007: 299, anotação 6ª ao artigo 111º.
Acresce ainda que a natureza de tais disposições não é pacífica, quer na doutrina, quer na jurisprudência. Com efeito, como já referido, para Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, “As Consequências Jurídicas do Crime”, pág. 638, a mesma não deve ser considerada uma pena acessória “(…) mas uma providência sancionatória análoga à medida de segurança. Análoga, pelo menos, no sentido em que é sua finalidade prevenir a prática de futuros crimes, mostrando ao agente e à generalidade que, em caso de prática de um facto ilícito, é sempre e em qualquer caso instaurada uma ordenação dos bens adequada ao direito.
Com efeito, ao contrário de Damião da Cunha, Figueiredo Dias não considera este instituto como pena acessória pois esta implica a culpa - dolo - do agente.
Sendo considerado um instituto criado para a prevenção geral do crime, no seguimento da ideia que "o crime não compensa", para a aplicação de tal instituto basta que tenha existido uma facto típico-ilícito e não necessariamente culposo.
Para Pedro Caeiro, em Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 21, n°2, "Sentido e função do instituto da perda de vantagens relacionadas com o crime no confronto com outros meios de prevenção da criminalidade reditícia (em especial os procedimentos de confisco in rem e a criminalização do enriquecimento ilícito), “o instituto da perda de vantagens do crime configura-se como um tertium genus. Ou seja, não configura uma pena acessória porque se basta com um facto típico e ilícito, não carecendo de estar verificada a culpa na sua produção, mas também não configura uma medida de segurança uma vez que esta implica que se confirme a perigosidade de o agente vir a praticar factos homogéneos, (...) a pena exige a culpa; a medida de segurança exige a perigosidade do agente; a perda basta-se, muito prosaicamente, com a existência de vantagens patrimoniais obtidas através da prática do crime.".
Seguindo de perto o Acórdão da Relação do Porto de 10/07/2019, disponível em www.dgsi.pt, salientamos as suas partes mais relevantes, aderindo às mesmas: Relativamente à questão essencial podemos distinguir duas realidades distintas: -por um lado, a realidade em que o arguido se apropria, ou não entrega ao Estado, determinada quantia, coisa, ou direito que lhe não pertence; -por outro lado, a realidade em que o arguido, com essa quantia, coisa ou direito que lhe não pertence, multiplica o seu património. Ora, todo o lucro ou benefício obtido à custa de coisa, direito ou quantia de que o agente de um facto ilícito se apropria, deve ser visto como uma vantagem que, nos termos do art. 111º do Código Penal, deve ser declarada perdida a favor do Estado. E tendo presente os crimes fiscais é indiscutível que tudo o que ultrapassar o valor dos impostos não pagos - e nessa precisa medida - deve ser considerado como “vantagem patrimonial” a ser declarada perdida a favor do Estado. Contudo, se não é discutível que possam ser declaradas perdidas a favor do Estado todas as vantagens adquiridas pelo autor de um facto ilícito fiscal que excedam a quantia que não entregou ao Estado, já é discutível saber se as quantias de que o arguido diretamente se apropriou, ou não entregou, também podem ser declaradas perdidas a favor do Estado, mesmo naqueles casos em que os arguidos foram condenados, na procedência do pedido de indemnização civil, a pagar à Segurança Social IP as mesmas quantias, acrescidas de juros de mora. Como decorre dos Acórdãos onde esta questão foi suscitada, todos eles estão de acordo quanto à razão de ser do art. 111º do Código Penal, qual seja, a de demonstrar que o crime não compensa. Na corrente contrária aceita-se que o regime existe para demonstrar que o crime não compensa, mas só deve declarar-se perdida uma vantagem que realmente tenha ocorrido, não bastando, para tal, a mera não entrega das quantias devidas ao Estado. Concordamos que o regime da perda de vantagens tem como finalidade fazer ver à sociedade e fazer sentir ao condenado que “o crime não compensa”. Por isso, para além da perda dos bens, direitos ou coisas obtidas com a prática do facto ilícito, a lei penal hoje vai mais longe e permite a perda das vantagens adquiridas à custa dessas coisas ou direitos. Contudo, a nosso ver, o que resulta deste entendimento - e julgamos dever orientar a leitura do art. 111º do CP – é que só haverá tal perda quando tenha efetivamente havido uma vantagem e, nessa medida, exista um mínimo de utilidade na declaração da sua perda a favor do Estado. Pelo que, o regime jurídico da “perda de vantagens” previsto no art. 111º do CP não justifica que sejam declaradas perdidas a favor do Estado vantagens que efetivamente não existiram, nem justifica declarações de perda de vantagens meramente intimidatórias e sem qualquer utilidade prática. Em primeiro lugar, considera-se que a noção de “vantagem”, a que alude o art. 111º do CP, tem o sentido de um incremento patrimonial efetivo, realidade que implica duas coisas: a de que seja tomado em conta o património do agente do crime e a de que haja efetivamente um aumento desse património. Como acima referimos, tendo em conta a noção de “vantagem” referida no art. 111º do CP, isto é, encarada com o sentido de um incremento patrimonial efetivo, é ainda necessário que se verifique no património do agente o referido incremento patrimonial (ou seja, a vantagem), o que, no caso que curamos, não ficou minimamente demonstrado em relação ao arguido BB. Por outro lado, naqueles casos em que o agente vê o seu património incrementado apenas com o valor do imposto não pago e é condenado, a título de indemnização civil, a pagar esse montante ao Estado (Administração Tributária/Segurança Social) – o que não é o caso, não existe qualquer vantagem. E não existe vantagem porque o seu património está afeto ao valor do correspondente direito de crédito. Assim, quando o art. 111º do CP fala em “vantagem”, está a reportar-se a um incremento patrimonial efetivo obtido pelo agente de um facto ilícito. De acordo com este entendimento, só existe vantagem quando o agente vê o seu património aumentado para além, e na medida do excesso, do valor não entregue, sendo que existe título executivo e, portanto, o Estado é credor do arguido nesse montante. Assim, julgamos que do art. 111º do CP decorre a impossibilidade de se declararem perdidas a favor do Estado as quantias equivalentes às prestações não entregues e, por maioria de razão, aquelas relativamente às quais tenha havido condenação no pedido de indemnização civil, fundamentalmente por duas razões: uma, assente na letra do preceito (“sem prejuízo dos direitos do ofendido ou de terceiro) e outra, na inutilidade dessa declaração. O Estado é titular de um direito de crédito relativamente a uma obrigação, sendo que a obrigação tributária (por corresponder a um Direito do Estado ou da Segurança Social) não pode ser declarada perdida a favor do Estado.
No caso de ter havido condenação em pedido de indemnização civil (o que não ocorreu no caso em apreço), a falta de previsão legal para se declarar a perda (da mesma quantia) a favor do Estado é ainda mais clara. A cumulação de títulos executivos (sentença condenando no pedido cível e liquidação do tributo devido) não é em si mesma ilegal, nem proibida pelo direito penal. Com efeito, obrigação tributária é devida por força da lei, isto é, pela verificação dos pressupostos de facto previstos na norma de incidência, e a indemnização civil, ainda que tenha a sua fonte no incumprimento daquela obrigação, tem um título jurídico diverso e pode ser superior, desde que desse incumprimento tenham advindo danos. Todavia, a existência de dois títulos jurídicos conferindo ao ofendido (I) o direito de exigir o cumprimento da obrigação tributária e (II) o direito de exigir o ressarcimento dos danos acrescidos, representa, sem sombra de dúvida, a existência de dois direitos de crédito pertencentes ao ofendido. Se estamos perante dois direitos de crédito cujo titular é o ofendido, parece que não pode o Tribunal declarar perdida a favor do Estado a obrigação / correspetivo jurídico desses direitos, com fundamento num artigo que manda precisamente salvaguardar os “direitos do ofendido ou de terceiro”. Para além dos argumentos fundados na letra do art. 111º do CP, julgamos ainda que a perda a favor do Estado de “vantagens” traduzidas na falta de entrega de quantias devidas, numa situação em que o arguido já foi condenado a pagar-lhe essa quantia a título de indemnização civil, não cabe nas finalidades e vai muito para além da necessidade de prevenção inerente ao regime do art. 111º do CP, precisamente por se traduzir na aquisição de mais um inútil titulo executivo.
No Acórdão da Relação do Porto, de 22/03/2017, in www.dgsi.pt., podemos ler no seu sumário que: "Não há lugar ao decretamento da perda de vantagens (art. 111º do Código Penal)) se o Estado (A.T.) optou pela recuperação do seu crédito de imposto através da execução fiscal, arredando o Ministério Público de intervenção na recuperação daquela quantia por considerar ter meios suficientes para cobrança coerciva desse imposto.". No mesmo sentido, ainda o Acórdão da Relação do Porto, de 05/04/2017, igualmente disponível in www.dgsi.pt.
Conforme também é referido no Acórdão da Relação do Porto, de 22/02/2017, publicado em www.dgsi.pt: “Na verdade, a perda de vantagens do crime constitui instrumento de política criminal, com finalidades preventivas, através do qual o Estado exerce o seu ius imperium anunciando ao agente do crime, ao potencial delinquente e à comunidade em geral que, mesmo onde a cominação de uma pena não alcança, nenhum benefício resultará da prática de um ilícito [v.g. “o crime não compensa”, nem os seus agentes dele retirarão compensação de qualquer natureza]. Tanto basta para concluir que as intenções ou entendimento do ofendido a propósito da obtenção do ressarcimento devido, não competem nem podem sobrepor-se ou substituir-se ao exercício do poder de autoridade pública subjacente ao instituto em causa. O direito à indemnização, mesmo quando já se mostra judicialmente estabelecido, é livremente renunciável e negociável, o mesmo não acontecendo com as medidas de carácter sancionatório. A reserva constante do n.º 2, do citado art. 111º, em benefício dos direitos do ofendido ou terceiros de boa-fé, não lhes concede poderes derrogatórios das medidas dessa natureza aí previstas, significando apenas que, concorrendo a execução do pedido de indemnização civil com a do valor da perda de vantagens prevalecerá a primeira delas, remetendo-nos para uma fase de tramitação posterior, em que já estão atribuídos e devidamente delimitados quer os valores da indemnização do ofendido ou de terceiro e o da perda de vantagens que, como é bom de ver, poderão nem sequer ser inteiramente coincidentes.” É certo que o art. 111º do CP pretende evitar que o arguido enriqueça à custa do crime. Deve, portanto, evitar-se o sentimento geral de que o crime compensa, com repercussões efetivas na esfera patrimonial do condenado. Contudo, mesmo sendo acentuadamente preventiva-geral, essa finalidade não deve visar a “instrumentalização do condenado ao interesse geral ou à mera estabilização de ansiedades coletivas quanto à segurança” - FERNANDA PALMA, Direito Constitucional Penal, Almedina, 2006, pág. 126, a propósito da questão de saber se as finalidades meramente retributivas e de prevenção geral são constitucionais. Entendemos também que não é possível uma leitura da finalidade preventiva do preceito ora em causa que vá para além do objetivo que se pretende alcançar e sem qualquer efeito prático. Devemos, isso sim, adequar o sentido da norma aos fins preventivos, mas sempre condicionados à necessidade, proporcionalidade e utilidade prática de toda a reação penal – artigo 18º da Constituição da República Portuguesa. Ora, é precisamente a clara e manifesta desnecessidade da perda de vantagens relativamente a uma obrigação que o arguido/condenado tem de prestar e para a qual já existe título executivo que evidencia não estar na finalidade do preceito (art. 111º) a intenção de se obter mais um (eventualmente inútil) título executivo. Em termos de pura retribuição (reação penal constrangedora), o agente tem de pagar a contribuição devida, porque o Estado tem um título executivo. Em termos de justiça estritamente comutativa, o agente vê-se condenado a pagar um montante equivalente ao benefício obtido e, pelas razões expostas, não vê o seu património enriquecido; na verdade, se por um lado não entregou as quantias devidas, por outro, tem uma dívida de igual montante, acrescida dos juros de mora. Em termos de plena reintegração do agente na situação em que se encontrava, antes da prática do crime, nada mais é necessário, pois o mesmo é obrigado, através de mais do que um título, a pagar a quantia de que se apropriou, acrescida de juros de mora vencidos, até integral pagamento (no caso de condenação civil). Portanto, podemos concluir que o efeito preventivo (e até retributivo) da perda de vantagens não é, nestes casos, necessário. Contudo, para além de não ser necessária a referida perda de vantagens, a mesma não tem qualquer utilidade prática. Aliás, o cuidado que tem a posição contrária, ao referir que o condenado não vai pagar duas vezes a mesma quantia só mostra a inutilidade de se declarar perdida a favor do Estado uma quantia que o mesmo agente tem de pagar. Daí que, esta condenação (na mesma quantia) seja uma clara instrumentalização do condenado à mera estabilização de ansiedades coletivas de segurança que não tem qualquer outra justificação e que, em termos práticos, é inútil, pois o que importa é que o agente pague as importâncias em dívida apenas uma vez. Daí que, pelas razões expostas, a finalidade do regime da perda de vantagens não seja, de modo algum, a de permitir alcançar mais um título executivo, o que seria inútil e desnecessário. Por outro lado, e como se começou por dizer, só deverá ser declarada tal perda quando efetivamente tenha havido uma vantagem para o agente, no caso o ora arguido, e, nessa medida, exista um mínimo de utilidade na declaração da sua perda a favor do Estado. Ou seja, terá de existir um incremento patrimonial efetivo na esfera do agente. Era, pois, necessário que se verificasse no património do arguido o referido incremento patrimonial (ou seja, a vantagem), o que, no caso que curamos, não ficou minimamente demonstrado.
Pelas razões expostas, declaro improcedente o pedido de declaração a favor do Estado efetuado pelo Ministério Público.”.

Defende o Ministério Público / recorrente que o tribunal a quo, julgando improcedente o pedido de declaração de perda a favor do Estado da vantagem ilicitamente obtida pelo arguido BB, violou o disposto no artigo 110.º, n.ºs 1 a 4, do Código Penal, já que a lei impõe que a perda de vantagens seja sempre judicialmente decretada, independentemente de ser (ou não) formulado e julgado procedente pedido de indemnização civil.
Vejamos se lhe assiste razão.
Dispõe o art.º 110º, nº 1, alínea b), nº 3 e nº 4, do Código Penal, na versão da Lei nº 30/2017, de 30 de maio (de modo equivalente ao art.º 111º, nºs 2 e 4, do CP, na redação anterior):
“1 – São declarados perdidos a favor do Estado:
b) As vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem.
3 – A perda dos produtos e das vantagens referidos nos números anteriores tem lugar ainda que os mesmos tenham sido objeto de eventual transformação ou reinvestimento posterior, abrangendo igualmente quaisquer ganhos quantificáveis que daí tenham resultado.
4 – Se os produtos ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no art. 112º-A”.
Como é salientado no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 13/2/2019 (disponível em www.dgsi.pt e que aqui se seguirá de perto), a concretização das finalidades subjacentes ao confisco das vantagens do crime poderá erigir-se, brevemente, segundo uma lógica de confluência de dois vetores primaciais.
Primeiramente, à perda das vantagens deverá reconhecer-se, uma marcada finalidade preventiva. Como ensina Figueiredo Dias, “Nas vantagens (…) o que está em causa primariamente é um propósito de prevenção da criminalidade em globo, ligado à ideia – antiga, mas nem por isso menos prezável – de que «o “crime” não compensa». Ideia que se deseja reafirmar tanto sobre o concreto agente do ilícito-típico (prevenção especial ou individual), como nos seus reflexos sobre a sociedade no seu todo (prevenção geral), mas sem que neste último aspeto deixe de caber o reflexo da providência ao nível do reforço da vigência da norma (prevenção geral positiva ou de integração). (…) necessidade de «aniquilamento do benefício patrimonial ilicitamente conseguido» e, consequentemente, de o Estado «não tolerar uma situação patrimonial antijurídica», operando a «restauração da ordenação dos bens correspondentes ao direito»”.
Num exercício em que se convocam as preponderantes finalidades preventivas e se relacionam os interesses em causa, João Conde Correia estabelece que “O património do condenado deve ser restituído à situação anterior ao seu cometimento, àquilo que ele teria se não o tivesse praticado. Só desta forma será possível, quer ao nível individual, quer ao nível coletivo, prevenir a prática de futuros crimes, impedindo a sua reprodução. O Estado não pode, ao mesmo tempo, proibir uma determinada conduta e permitir que o condenado dela beneficie.”
Na verdade, trata-se do único mecanismo eficaz e não ingénuo de dissuasão da criminalidade que visa o lucro, que é aquela que mais prejuízos inflige aos cidadãos (ainda que muitas vezes sem vítimas identificadas). Poderemos, assim, seguindo esta lógica, identificar o segundo grupo de valores protegidos com a remoção das vantagens do crime através do confisco.
Como se refere a este respeito no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 392/2015, de 12 de agosto de 2015, “além destas finalidades preventivas, a este regime também está subjacente uma necessidade de restauração da ordem patrimonial dos bens correspondente ao direito vigente. Um Estado de Direito não pode deixar de preocupar-se em reconstituir a situação patrimonial que existia antes de alguém através de condutas ilícitas ter adquirido vantagens patrimoniais indevidas, mesmo que estas não correspondam a um dano de alguém em concreto”.
Também Euclides Dâmaso e José Luís Trindade reconhecem que o confisco das vantagens serve outros interesses para além das finalidades preventivas, que unanimemente lhe são reconhecidas. Afirmam estes autores que “vai-se cimentando a ideia que a perda ou confisco serve três objetivos:
- o de acentuar os intuitos de prevenção geral e especial, através da demonstração de que o crime não rende benefícios;
- o de evitar o investimento de ganhos ilegais no cometimento de novos crimes, propiciando, pelo contrário, a sua aplicação na indemnização das vítimas e no apetrechamento das instituições de combate ao crime; e
- o de reduzir os riscos de concorrência desleal no mercado, resultantes do investimento de lucros ilícitos nas atividades empresariais”.
Em concretização da necessidade de «restauração da ordem patrimonial» enquanto conjunto de valores protegidos, será ainda imprescindível acrescentar que as medidas ablativas das vantagens do crime visam, não só assegurar a sobrevivência do Estado de Direito, mas essencialmente proteger valores fundamentais de toda a comunidade.
O confisco produz um efeito dissuasivo, mediante o reforço da noção de que o crime não compensa.
Por outro lado, assinala-se que, ao contrário do que sucede no confisco dos instrumentos ou dos produtos, onde o fundamento do confisco radica nas características de um objeto concreto, já no caso das vantagens o que está em causa é um benefício económico, ou se preferirmos, um incremento patrimonial, pelo que, na restauração da situação económica existente antes da prática do crime, é absolutamente indiferente que o confisco opere por referência às vantagens diretas ou ao seu valor. Não existe no âmbito do confisco das vantagens qualquer racionalidade na distinção, para estes efeitos, entre o confisco dos ativos gerados diretamente pela prática do crime, ou o confisco do respetivo valor.
Assim, o confisco das vantagens não constitui um mecanismo eventual ou facultativo de assegurar as finalidades que lhe estão subjacentes. Já no acórdão proferido no processo n.º 282/18.1T9PRD.P1[1] fizemos notar que o legislador nacional estabeleceu o confisco das vantagens como uma medida obrigatória, subtraída a qualquer critério de oportunidade, e que ocorrerá sempre, por imperativo legal, que com a prática do crime tenham sido gerados benefícios económicos – como claramente resulta do disposto no artigo 110.º do Código Penal, na redação introduzida com a Lei 30/2017, reproduzindo, no essencial, o disposto no art.º 111º do Código Penal, na versão anterior à entrada em vigor daquele diploma legal.
Portanto, não se atribui ao intérprete ou ao realizador do direito qualquer margem de discricionariedade na aplicação deste mecanismo ablativo. Como afirma João Conde Correia, “mesmo nos casos em que no confronto com a pena aplicada ele seja insignificante, implique a utilização de meios ou custos desproporcionados, torne muito difícil a obtenção da própria condenação ou seja óbvia a inexistência de bens confiscáveis, o Ministério Público e o juiz não podem prescindir da questão patrimonial e restringir o objeto do processo à questão penal. A adesão do confisco à sorte do processo penal é total, precludindo qualquer tipo de ponderação sobre a sua pertinência ou utilidade prática”.
Também este Tribunal da Relação do Porto vem decidindo, maioritariamente, na sua jurisprudência mais recente e à qual aderimos, relativamente à questão enunciada pelo recorrente que, no tocante à articulação entre a responsabilidade civil (ou fiscal) e perda de vantagens, o instituto da perda de vantagens marca sempre a sua autonomia.
Assim, e como é salientado no acórdão deste TRP, de 22/3/2017 [2], verificados os necessários pressupostos legais, a perda da vantagem decorrente da prática do crime terá de ser decretada sempre, “e também sem prejuízo do que a Administração Fiscal possa vir ou não a decidir e a conseguir no âmbito da pretensão assente na respetiva obrigação fiscal – aliás, numa harmonia ontologicamente perfeita. Isto é, se efetivamente cobra o crédito a ela correlativo ou não, se o deixa ou não prescrever, se em relação a ele deixa ou não operar qualquer fundamento de oposição, etc. Porque a questão da determinação da perda de vantagens, conexionada que está diretamente com o crime praticado, e competindo ao Tribunal decidi-la na sentença penal, não pode ser deixada à sorte (abdicando o Tribunal de tal poder-dever de decisão, omissão que seria sempre irreversível), de uma futura e eventual reclamação dos valores que o Fisco pudesse entender serem devidos e ao sucesso que tal pretensão pudesse ter. Sendo que é na sentença penal e através dela que se poderá cumprir o caráter sancionatório de tal medida.” [3].
Reconhecendo-se a autonomia do instituto da perda de vantagens, a sua natureza e finalidade marcadamente preventivas, o seu carácter sancionatório análogo à da medida de segurança [4] e, para além disso, obrigatório, subtraído a qualquer critério de oportunidade ou utilidade, o juiz não pode deixar de decretar a perda de vantagens obtidas com a prática do crime, na sentença penal. E isto independentemente de o lesado ter deduzido ou não pedido de indemnização civil (e do seu desfecho), ou de ter optado por outros meios alternativos de cobrança do crédito que possa coexistir com a obrigação e necessidade de reconstituição da situação patrimonial prévia à prática do crime, própria do instituto da perda de vantagens [5] [6].
Só em situações comprovadas e concretas de inutilidade – pois, como se acentua no acórdão deste TRP, de 11/4/2019 [7], o Estado não pode receber duas vezes a mesma quantia - se poderá verificar uma específica e excecional subsidiariedade entre os dois institutos [8].
Algo que, porém, não sucede no caso concreto, subsistindo por reparar o prejuízo causado ao Estado por via da prática do crime fiscal em apreço.
Pensamos, ainda, que também a segunda objeção enunciada pelo tribunal de primeira instância à declaração de perda das vantagens decorrentes da prática do crime[9] não pode proceder.
No modelo, que é o nosso, de mera restauração de uma ordem patrimonial conforme ao direito, o confisco não é uma pena. Está em causa, apenas, corrigir uma situação patrimonial ilícita, que não goza de tutela jurídica. O mecanismo dirige-se contra os próprios bens, sem qualquer juízo de censura da ação ou omissão individual que lhes está subjacente.
Portanto, o confisco não tem caráter sancionatório – ou não o tem primordialmente -, assumindo-se, antes, quer como um simples mecanismo preventivo análogo à medida de segurança (perda de instrumentos e de produtos), quer como um mero mecanismo civil enxertado no processo penal (confisco das vantagens, das recompensas e do património incongruente) de tutela de uma ordem patrimonial conforme ao direito.
“O crime nunca é título legítimo de aquisição”, dizia Sidónio Rito, sendo, pois, natural e legítimo que o Estado procure restabelecer a situação anterior, reduzindo essas vantagens a zero. O crime não pode compensar.[10]
Daí que se nos afigure desnecessária a demonstração de um efetivo incremento no património do arguido, exigida pelo tribunal de primeira instância.[11]
A verdade é que o desvio patrimonial que o legislador pretende corrigir com o instituto da perda de bens ou vantagens ocorreu e foi, para além disso, determinado pelo comportamento do arguido, o qual omitiu indevidamente a obrigação, que sobre si impendia, de entrega das prestações tributárias ao Estado.[12]
Se para a verificação e consequente condenação pela prática do crime de abuso de confiança fiscal se mostrava indiferente o concreto destino dado pelo arguido (e sociedade arguida) aos montantes liquidados a título de imposto, que não vieram a ser entregues ao Estado/administração fiscal, o mesmo sucede com o funcionamento do confisco: este opera independentemente da prova de enriquecimento ou de obtenção de benefício pessoal pelos autores do crime.[13]
A exigência imposta pelo tribunal de primeira instância ao funcionamento dos mecanismos do confisco equivale a uma restrição que não se encontra legalmente prevista [14] e que, para além disso, colide com a sua natureza e finalidade marcadamente preventivas.
Para demonstração de que o crime não compensa e que não se pode tolerar a manutenção de uma situação patrimonial contrária ao direito, deve proceder-se à declaração da perda a favor do Estado das vantagens do facto ilícito típico, substituída, no presente caso, pelo pagamento do respetivo valor a cargo do arguido,[15] nos termos previstos no art.º 110.º, n.º 1, alínea b) e n.º 4, do Código Penal.
Procede, assim, na totalidade, o recurso do Ministério Público, impondo-se a consequente revogação parcial da sentença recorrida.
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III - Dispositivo

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, com a consequente revogação parcial da sentença recorrida, decretando-se, consequentemente, o seguinte:
- a nulidade da sentença, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do CPP, decorrente da omissão de imposição da obrigação pecuniária como condição da suspensão da execução da pena de prisão, precedida da também necessária formulação do juízo de prognose a que alude o acórdão do STJ de uniformização de jurisprudência n.º 8/2012, devendo o tribunal de primeira instância proferir nova sentença, na qual equacione a possibilidade de pagamento pelo arguido BB da prestação tributária e legais acréscimos, formulando o mencionado juízo de prognose, tendo em conta a sua concreta situação económica, e decida em conformidade com o explanado no presente acórdão;
- a perda a favor do Estado da vantagem patrimonial ilicitamente obtida com a prática do crime de abuso de confiança fiscal, com a consequente condenação do arguido BB no pagamento ao Estado do valor equivalente (ou seja, a quantia total de € 43.646,84), o que deverá ficar a constar da nova sentença a proferir pelo tribunal de primeira instância.
Não são devidas custas pelo recurso.
Perante a nulidade da sentença decretada, fica prejudicada a apreciação do recurso interposto pelo arguido.
Notifique.
*
(Elaborado e revisto pela relatora – art.º 94º, nº 2, do CPP – e assinado digitalmente).
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Porto, 29 de junho de 2022.
Liliana de Páris Dias
Cláudia Rodrigues
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[1] Datado de 10/12/2019, publicado em www.dgsi.pt e com o seguinte sumário:
VI - A vantagem do crime corresponde a um benefício e a eliminação de um benefício não está limitada a objetos certos e determinados.
VII - O confisco das vantagens não constitui um mecanismo eventual ou facultativo de assegurar as finalidades que lhe estão subjacentes, mas antes uma medida obrigatória, subtraída a qualquer critério de oportunidade, e que ocorrerá sempre que, por imperativo legal, com a prática do crime tenham sido gerados benefícios económicos.
VII - Reconhecendo-se a autonomia do instituto da perda de vantagens, tendo presente a sua natureza e finalidade (marcadamente preventivas) e o seu carácter sancionatório (análogo à da medida de segurança) e, para além disso, sendo obrigatório, o juiz não pode, na sentença penal, deixar de decretar a perda de vantagens obtidas com a prática do crime, independentemente de o lesado ter deduzido ou não pedido de indemnização civil ou de ter optado por outros meios alternativos de cobrança do crédito que possam coexistir com a obrigação e necessidade de reconstituição da situação patrimonial prévia à prática do crime, própria do instituto da perda de vantagens.
VIII - Tendo ficado demonstrado que a recorrente obteve uma vantagem patrimonial ilícita, decorrente da prática de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, não podia o tribunal a quo deixar de a condenar, como condenou, no pagamento ao Estado do valor correspondente a tal vantagem, mostrando-se totalmente irrelevante para o efeito a circunstância de ter sido deduzido pedido de indemnização civil pelo lesado Instituto da Segurança Social.
[2] Relatado pelo Desembargador Francisco Mota Ribeiro e disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[3] Em sentido absolutamente idêntico, afirma-se no acórdão do TRP de 26/10/2017 (relatado pelo Desembargador Vítor Morgado), igualmente disponível em www.dgsi.pt: “Tenha ou não deduzido pedido civil, tenha ou não a Autoridade Tributária entendido que dispõe de meios suficientes para a cobrança coerciva do imposto devido, há lugar, nos termos do artº 111º CP, num crime de burla tributária, ao decretamento de perda de vantagens obtidas com a prática do crime”.
Veja-se, ainda, os acórdãos deste TRP, de 11/4/2019 (Relator: Desembargador João Venade), de 24/10/2018 (Relator: Desembargador José Piedade), de 12/9/2018 (Relatora: Desembargadora Maria Dolores da Silva e Sousa), de 25/9/2019 e de 12/7/2017 (Relator: Desembargador Jorge Langweg), todos disponíveis para consulta em www.dgsi.pt.
Na Relação de Guimarães, veja-se o recente acórdão relatado pela Desembargadora Isabel Cerqueira, datado de 14/1/2019, também disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[4] Como é salientado no acórdão do TRP, 22/3/2017, a autonomia entre os dois institutos afirma-se “num plano desde logo iminentemente substantivo, o facto de aquele assumir uma natureza sancionatória análoga à da medida de segurança e o outro apenas uma natureza fundamentalmente ressarcitória das perdas e danos sofridos pelo ofendido ou lesado com o comportamento ilícito típico.”
[5] Como refere Germano Marques da Silva, in Direito Penal Tributário, página 142: «e se a vantagem obtida corresponder integralmente ao imposto em dívida? Parece-nos que mesmo neste caso o tribunal deve condenar na perda de vantagem correspondente, ainda que se entretanto tiver sido pago o imposto em dívida deva considerar não haver já lugar à condenação por essa vantagem pertencer ao Estado a título de imposto já cobrado. …».
[6] Por condensar tudo o que vem de ser exposto, reproduz-se o sumário do acórdão deste TRP, de 25/9/2019 (relatado pelo Desembargador Jorge Langweg).
I - O instituto da perda de vantagem do crime constitui uma medida sancionatória análoga à medida de segurança, com intuitos exclusivamente preventivos.
II - Não é determinante da inviabilidade da sua efetivação a opção pela execução tributária ou a omissão de dedução de pedido de indemnização civil.
III - Tanto a doutrina como a jurisprudência consideram que a perda de vantagens do crime constitui instrumento de política criminal, com finalidades preventivas, através da qual o Estado exerce o seu ius imperium anunciando ao agente do crime, ao potencial delinquente e à comunidade em geral que nenhum benefício resultará da prática de um ilícito.
IV - A vontade do ofendido a propósito da obtenção do ressarcimento devido não pode afetar o exercício do poder de autoridade pública subjacente ao instituto em causa.
V - A circunstância de o ofendido ser o próprio Estado, dotado de mecanismos de ressarcimento coercivo bem mais amplos que os concedidos aos particulares, não pode justificar solução diversa, sob pena de colocar em crise o ius imperium manifestado no aludido instrumento de política criminal e os fins preventivos do direito sancionatório.
VI - Os mecanismos de cobrança coerciva à disposição do Estado/Autoridade Tributária não deixam de estar sujeitos a determinados requisitos e condicionalismos, não havendo uma absoluta garantia de concretização do ressarcimento.
VII – Também eles não afastam a necessidade de fazer vingar os fins de prevenção prosseguidos pelo instituto de perda da vantagem patrimonial.
[7] Relatado pelo Desembargador João Venade e disponível em www.dgsi.pt.
[8] Cfr., no mesmo sentido, os acórdãos deste TRP de 22/3/2017 e de 26/10/2017.
[9] Traduzida na exigência de demonstração de uma efetiva vantagem para o agente decorrente do crime.
[10] Cfr. João Conde Correia, in “«Non-Conviction Based Confiscations» no Direito Penal Português Vigente”, Revista Julgar nº 32, Maio-Agosto 2017, pág. 94.
[11] A imposição do confisco ao autor do crime, independentemente da demonstração de um efetivo ganho patrimonial ou enriquecimento na sua esfera jurídica, vem sendo reconhecida pelos tribunais superiores italianos, como nos dá conta Tommaso Trinchera, em “Confiscare Senza Punire? Uno studio sullo statuto di garanzia della confisca della ricchezza illecita”, G. Giappichelli Editore – Torino, páginas 115, 118 e 406.
[12] Sendo, por isso, manifesta a existência de “vantagem patrimonial”, diversamente do que parece ser pressuposto pelo tribunal a quo na sentença recorrida. Com efeito, a não entrega ao Estado do IVA previamente deduzido traduz sempre um ganho patrimonial, independentemente do concreto destino dado a essa quantia (tornando-se indiferente para o preenchimento do tipo legal, como é sabido, saber se os agentes efetivamente se “apropriam” dessas quantias em seu benefício ou se as utilizam na gestão corrente da sociedade, afetando-as ao pagamento de outras despesas).
[13] Do mesmo modo, o arguido teria de ser condenado solidariamente com a sociedade arguida no pagamento da indemnização devida ao Estado, nos termos próprios da responsabilidade civil extracontratual, caso tivesse sido formulado pedido de indemnização civil: o que ocorreria independentemente da indagação e prova da obtenção de qualquer benefício patrimonial (direta ou indiretamente) pelo próprio arguido.
[14] É de notar que mesmo que o arguido fosse um terceiro – e não é, sendo antes o autor do crime de abuso de confiança fiscal – a perda (ou pagamento ao Estado do respetivo valor) poderia ser decretada, desde que estivesse prevista qualquer uma das situações contempladas nas diversas alíneas do nº 2 do art.º 111.º do CP. E é manifesto que estas hipóteses não se restringem às situações em que o terceiro retirou benefícios do facto ilícito cometido por outrem.
Também a redação do art.º 110.º, n.º 1, alínea b) do CP sugere que a nossa interpretação é a mais correta e adequada, pois nele se prescreve que são perdidos a favor do Estado “as vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem”.
[15] Em rigor, essa obrigação impenderia igualmente sobre a sociedade arguida, mas o Ministério Público não recorreu desse segmento da sentença que, quanto a ela, transitou em julgado. Consequentemente, não pode o tribunal de recurso modificar, nessa parte, a decisão recorrida, sob pena de violação do princípio de proibição da reformatio in pejus.