Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
6854/18.7T8PRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FERNANDA ALMEIDA
Descritores: DECISÃO SURPRESA
NULIDADE DA SENTENÇA
REGRA DE SUBSTITUIÇÃO DO TRIBUNAL RECORRIDO
ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA
PODERES DE REPRESENTAÇÃO
Nº do Documento: RP202102086854/18.7T8PRT-A.P1
Data do Acordão: 02/08/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A omissão de uma formalidade de cumprimento obrigatório, como ocorre com o respeito pelo princípio do contraditório destinado a evitar decisões-surpresa, configura a nulidade da sentença/despacho, por omissão de pronúncia posto estar o juiz a tomar conhecimento de questão não suscitada pelas partes, sem prévio exercício do contraditório.
II - A privação dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, a que alude o art. 81º do CIRE, não determina um caso de incapacidade judiciária do insolvente, mas sim de indisponibilidade relativa, a suprir através da notificação do administrador de insolvência, nos termos dos arts. 27.º e 28.º CPC.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:
RELATÓRIO
Por apenso aos autos de execução que opõem a B…, SA, à mãe do ora requerente, C…, veio este apresentar oposição a execução, formulando, de igual modo, incidente de intervenção de terceiros.
Foi apresentada contestação e, de imediato, proferida a sentença recorrida, esta com o seguinte teor:
Nos presentes autos de embargos de executado com incidente de intervenção de terceiros em que é embargante C… e embargada B…, SA, compulsado o requerimento inicial, verificamos que o mesmo foi subscrito por advogado mandatado pelo interveniente/embargante.
Todavia, compulsado o Portal citius verifica-se que o mesmo foi declarado insolvente no âmbito do processo de insolvência 4183/16.0T8VNG, Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia - Juiz 1.
E da consulta do referido portal não resulta que o processo haja sido encerrado.
Dispõe o nº 1 do artº 15 do Código de Processo Civil que a capacidade judiciária consiste na suscetibilidade de estar, por si, em juízo, fluindo do nº 2 que a capacidade judiciária tem por base e por medida a capacidade do exercício de direitos.
A falta de capacidade das partes quando verificada configura uma exceção dilatória que conduz à absolvição da instância (artºs 278º, 576º, 577º, al. c) e 578º, todos do CPC).
Estabelece o nº 1 do artº 81º, do CIRE que: “sem prejuízo do disposto no título X, a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência”.
Daqui resulta que, como escrevem Carvalho Fernandes e João Labareda in Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência Anotado, 3ª ed., pág. 392, o liquidatário judicial assume a representação do falido para os efeitos patrimoniais relativos à falência, “o que significa, tal como dizia a lei antiga, ser a «inibição» do falido inoperante quanto às matérias de natureza pessoal, em geral, e quanto às patrimoniais estranhas à falência.”
Com efeito, traduzindo-se a falência numa liquidação universal do património do falido/insolvente, tendo em vista a proteção e satisfação dos direitos dos credores, compreende-se que aquele não possa praticar atos sobre os bens que integram a massa e que possam causar prejuízo aos credores, quer diminuindo o seu património, quer prejudicando o direito dos credores de obterem pagamento dos seus créditos à custa desses bens.
Como entende Manuel de Andrade (in Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, Coimbra Editora, pág.l13.), “Na inibição do falido deve julgar-se estabelecida e sancionada em correspondência com o motivo que a inspirou, isto é, consoante o exigir a proteção que se quis dispensar aos interesses dos credores. Nada menos do que isso, mas também nada mais do que isso.”
Revertendo para o caso em apreço verificamos que o que está em causa na execução é, precisamente, uma divida titulada pelo insolvente, dito por outras palavras, o objeto da presente ação insere-se no domínio do interesse dos credores do insolvente, pelo que, neste caso, o requerente acresce de capacidade judiciária para estes autos de embargos de executado e, por conseguinte, verificada que está a exceção dilatório de falta de capacidade judiciária do embargante impõe-se a extinção da instância.
*
Por todo o exposto, declaro procedente a exceção dilatória de falta de capacidade do embargante para o procedimento de embargos e intervenção de terceiros e, em consequência, absolvo o embargado da instância – artºs 15º, 278º, 576º, 577º, al. c) e 578º, todos do CPC e 81º, do CIRE.
Custas pela massa insolvente.

Desta decisão, recorre o embargante, visando a revogação da sentença e a sua substituição por outra que notifique, em prazo razoável, o Administrador de Insolvência para autorizar ou não o aqui recorrente, a embargar a presente ação executiva.
Culmina o recurso com as seguintes conclusões:
1ª – O aqui E., recorre da decisão do tribunal a quo que absolveu de instância o embargo de terceiro interposto pelo mesmo contra a acção executiva proposta pelo exequente, com o fundamento de falta de capacidade judiciária, por ser insolvente, no âmbito do art.º 15º do C.P.C., o impede de agir processualmente nos presentes autos.
2ª – Com efeito o aqui E., já interveio de per se nos autos principais e principalmente no apenso-B - habilitação de herdeiros.
3. Onde foi o único herdeiro a aceitar sub-ingressar na posição da sua Mãe falecida e aceitar os autos como estavam, face ao repúdio dos demais herdeiros.
4. Aqui o Tribunal recorrido nunca colocou em causa a sua capacidade judiciária, nem o exequente, apesar de ter total conhecimento da insolvência pessoal do aqui recorrente por causa da petição embargos de terceiro onde informou o Tribunal da sua condição falimentar.
3ª- Pois, o facto de aceitar in totum a herança pode prejudicar, teoricamente, a massa da insolvência, e o seu repúdio prejudicar, hipoteticamente, os seus credores, aqui e no processo de insolvência, não obstante estarem a peticionar - a B… - o mesmo pedido, face ao facto da Mãe ter sido fiadora do aqui E.
4ª – Mas nessa data, julho de 2019, o Tribunal recorrido, apesar de informado pelo aqui recorrente, não seguiu o caminho da incapacidade judiciária prevista no art.º 15º do C.P.C.
5ª – Passou-se assim, mais um ano, e nas partes gerou-se a firme convicção que a questão não se ia colocar pelo tribunal.
6ª – Porém, na presente sentença ora recorrida, o Tribunal a quo entendeu por bem seguir esse caminho sem que as partes sejam convidadas a se pronunciar sobre essa questão.
7ª – Gerando assim a nulidade do art.º 195º n.º1 por referencia ao art.º 3º n.º 3 - princípio do contraditório, ambos do C.P.C., que argui para os devidos efeitos.
8ª - “Assim, o Tribunal “a quo”, concretizou uma interpretação da lei adjectiva que se consubstanciou numa nulidade em procedendo, logo secundária, que influiu na decisão final da questão controvertida, por violação do princípio do contraditório. Não se tratando uma nulidade de fundo material do despacho reclamado, não se trata de nulidade de pronúncia/fundamentação mas como se chegou ao despacho.
9ª - O Tribunal Europeu dos Direitos dos Homens aponta que o direito ao contraditório quer em processo civil quer em criminal, traduz, em regra que as partes em processos penais ou civis deverão ter a possibilidade de aceder e comentar todas as provas aduzidas ou observações apresentadas, mesmo que por um magistrado independente, a fim de influenciar a decisão do Tribunal.
10ª - O mesmo Tribunal examinou o princípio da igualdade de armas como “um dos elementos do conceito mais amplo de um julgamento justo” na acepção do artigo 6.º n.º 1 da Convenção Europeia, que origina que “a cada parte deverá ser concedida uma oportunidade razoável para expor o seu caso em condições que não a coloquem numa situação de desvantagem face ao seu oponente”; neste âmbito “são importantes as aparências, bem como a crescente sensibilidade para a questão de uma administração da justiça equitativa - Vide - EDH, Caso Bulut c. Áustria, sentença de 22 de Fevereiro de 1996, Relatórios de 1996-II , p. 359, parágrafo 47. 11ª - Assim, o Tribunal “a quo” limitou os direitos do aqui R., mormente o direito um processo equitativo e ano acesso ao Direito e aos Tribunais.
12ª – Desta feição, esta interpretação é violadora do Direito a um efectivo contraditório e a uma decisão justa que a D…, confere ao aqui R., considerando este anómala a mesma por parte do Tribunal a quo, em negar uma audiência/pronúncia prévia, por mais pura e defensável convicção que o Tribunal estivesse convencido da completa falta de razão do peticionante.
13ª – Esta limitação do acesso ao direito ao contraditório por parte do Tribunal a quo não é a tradição forense nos tribunais Portugueses!
14ª - A conformação constitucional do princípio do contraditório está consagrada no art.º 20º n.º 4 da CRP.
15ª - O qual inclui o âmbito da garantia de acesso ao direito, a qual estende-se ao observância das garantias de imparcialidade e independência, possibilitando-se, designadamente, um correcto funcionamento das regras do contraditório.
16ª - Aliás em Ac., do TC 510/2015 em questão similar foi declarada a interpretação inconstitucional do artigo 796.º, n.º 7, do Código de Processo Civil, na redação do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de dezembro, na interpretação segundo a qual «a sentença proferida em processo sumaríssimo, na qual se considera verificada a excepção da incompetência do tribunal em razão da matéria, pode ser proferida sem facultar às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre essa questão, quando até então nenhuma das partes ou o tribunal a tinham colocado, debatido ou de qualquer forma a ela referido".
17ª - interpretação dos arts. dos 3º n.º3,15º, 27º, 28. 29º 104º e 607.º, in totum, ex vi do art.º 154º, e 607º todos do Código de Processo Civil todos do Código de Processo Civil, quando interpretados no sentido de permitir a prolação de sentença que decreta a não capacidade judiciária ao aqui E., sem facultar às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre essa questão, quando até então nenhuma das partes ou o tribunal a tinham colocado, debatido ou de qualquer forma a ela referido, por violação dos arts. 20º n.º 4 da CRP e do princípio da garantia do processo equitativo.
18ª - Pelo que deve ser anulado tal despacho por um que conceda às partes o concreto e efectivo contraditório sobre a questão em análise - a incapacidade judiciária.
19ª - No ponto, o tribunal oficiosamente tem que encetar diligências no sentido de suprir a falta/vício de capacidade judiciária - art.º 28º n.º1 e 2 do C.P.C., incumbindo mesmo ao juiz ordenar a notificação do Sr Administrador de insolvência para autorizar/ratificar o translado ou não, suspendendo-se a instância.
20ª - Acção que o tribunal quo não concretizou.
21ª - Podendo até, nos termos do art.º 27º n.º 1 ser renovada a instância de habilitação de herdeiros pelo Sr Administrador de insolvência.

Não foram apresentadas contra-alegações.
Os autos correram Vistos.

Objeto do recurso: da decisão surpresa e da capacidade judiciária.
II - FUNDAMENTAÇÃO
De facto
Os factos que interessam à decisão encontram-se já descritos no despacho recorrido, acrescendo, por consulta do processo de insolvência acima referido que a sentença de declaração de insolvência foi proferida a 6.7.2016, sendo que o presente apenso foi iniciado a 16.5.2018.
De Direito
Da nulidade por omissão de audiência prévia e de audição das partes sobre a incapacidade judiciária.
O apelante insurge-se contra a sentença, porque sem prévio exercício do contraditório, decidiu quanto à regularidade da instância com base em questão suscitada oficiosamente: a incapacidade judiciária do requerente.
O saneador-sentença foi proferido, de facto, sem precedência de audiência prévia e decidiu a matéria de exceção dilatória que as partes não haviam invocado nos respetivos articulados e sobre as quais não tiveram oportunidade de se pronunciar.
Neste tocante, reproduzimos aqui o que já anteriormente expusemos no nosso acórdão de 3.6.2019 (Proc. 3781/18.T8AVR.P1):
«Quando o juiz, findo o período dos articulados e considerando o estado do processo, entender que dispõe de condições para decidir já o mérito da causa [ou de exceção dilatória], essa decisão será incluída no despacho saneador, a proferir, em princípio, na audiência prévia (arts.591.º/d, 595.º/1/b e 595.º/2).
A audiência prévia destina-se a facultar às partes uma discussão sobre as vertentes do mérito da causa que o juiz projeta decidir.
O juiz não deve decidir o litígio sem um debate prévio, no qual os advogados das partes tenham a oportunidade de produzir alegações orais, de facto e de direito, acerca do mérito da causa [ou de exceção processual].
Nessas alegações, as partes poderão tecer os considerandos que tenham por convenientes, no sentido de justificar e fundamentar a procedência das respetivas pretensões, além de poderem tomar posição sobre eventuais exceções peremptórias não discutidas nos articulados, mas que o juiz entenda poder conhecer oficiosamente.
Deve ser proporcionada às partes a possibilidade de produzirem alegações quando o juiz se proponha decidir o mérito da causa num enquadramento jurídico diverso do assumido e discutido pelas partes nos articulados.
A realização de audiência prévia impede que as partes venham a ser confrontadas com uma decisão surpresa (situação proibida pelo art.3.º/3[1]) e impede os casos em que a anunciada intenção de conhecimento imediato do mérito da causa derive de alguma precipitação do juiz.
Não determinando a realização de audiência prévia, a intenção de conhecer do mérito da ação no saneador deverá ser precedida de audição das partes por escrito, sendo estas notificadas especificamente para o efeito.»
Na situação dos autos, nenhuma destas atuações ocorreu e isso é suficiente para considerar nulo o processado[2].
Para Lebre de Freitas, a consagração do princípio da proibição das decisões surpresa, resulta de uma conceção moderna e mais ampla do princípio do contraditório,“[…]com origem na garantia constitucional do Rechtiches Gehör germânico, entendido com uma garantia de participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão”. O princípio do contraditório no plano das questões de direito exige que antes da sentença, às partes seja facultada a discussão efetiva de todos os fundamentos de direito em que a decisão se baseie”[3].
Ora, as nulidades processuais “são quaisquer desvios do formalismo processual prescrito na lei, e a que esta faça corresponder – embora não de modo expresso – uma invalidade mais ou menos extensa de aspetos processuais“[4].
Atento o disposto nos art. 195.º e ss. CPC, as nulidades processuais podem consistir na prática de um ato proibido, omissão de um ato prescrito na lei ou realização de um ato imposto ou permitido por lei, mas sem o formalismo requerido.
A omissão do exercício do contraditório não constitui uma nulidade principal, pois não consta do elenco das nulidades previstas nos arts. 186.º a 194.º e 196.º a 198.º do CPC.
Representa, pois, a omissão de um ato ou formalidade que a lei prescreve, que integra a previsão do art. 195.º CPC e, por isso, configura uma irregularidade que só determina a nulidade do processado subsequente àquela omissão se influir no exame e decisão da causa, estando o seu conhecimento dependente da arguição, nos termos previsto no art. 199.º CPC[5].
Uma irregularidade pode influir no exame e decisão da causa, se comprometer o conhecimento da causa, a instrução, discussão e o julgamento.
A nulidade processual é distinta da nulidade da sentença, uma vez que a nulidade por falta de pronúncia, a que alude o art. 615.º, n.º 1 d) CPC está diretamente relacionada com o comando do art. 608.º, n.º 2 do mesmo Código, reportando-se ao não conhecimento das questões (que não meros argumentos ou razões) relativas à consubstanciação da causa de pedir e do pedido.
Nos termos do art. 615.º n.º 1, al. d) CPC a sentença é nula, quando “o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
O vício em causa está relacionado com a norma que disciplina a “ordem de julgamento” – art. 608.º, n.º2 CPC.
Resulta do regime previsto neste preceito, que o juiz na sentença: deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. Não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”.
Pode considerar-se que a “omissão de uma formalidade de cumprimento obrigatório, como ocorre com o respeito pelo princípio do contraditório destinado a evitar decisões-surpresa”, configura a nulidade da sentença/despacho, por omissão de pronúncia. Nestas circunstâncias o juiz está a tomar conhecimento de questão não suscitada pelas partes, sem prévio exercício do contraditório.
Esta interpretação revela-se coerente com a atual conceção do principio do contraditório, entendido como “garantia de participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão”[6].
No caso presente verificando-se a omissão do prévio exercício do contraditório, perante uma questão de direito suscitada oficiosamente e que ditou o fim da ação, a sentença é nula, nos termos do art. 615.º, n.º 1 d) CPC.
Todavia, aqui chegados há que operar com a regra da substituição ao Tribunal recorrido, prevista no art. 665.º CPC.
Com efeito, não obstante tratar-se de sentença nula, a decisão deste tribunal não será a de remessa dos autos à primeira instancia para prolação de nova decisão, mas, se o processo já contiver elementos suficientes para o efeito, decidir sobre a questão de fundo.
Nesse tocante, está em causa averiguar se o embargante, declarado insolvente por sentença anterior aos presentes autos, podia propô-los.
O tribunal de primeira instância, lançando mão do disposto no art. 81.º CIRE, considerou que após a declaração de insolvência, o requerente não podia apresentar-se a juízo por caber ao administrador de insolvência a sua representação para todos os efeitos de caráter patrimonial. Veio, por isso, a decidir que não lhe assistia capacidade judiciária e que, portanto, haveria a embargada de ser absolvida da instância (arts. 15.º, 278.º, 576.º, 577.º, al. c) e 578.º CPC).
Assumimos, como em primeira instância, que os presentes autos tem por finalidade oporem-se à execução coerciva de crédito, assumindo natureza exclusivamente patrimonial, podendo colidir com os interesses da massa insolvente (até por via das custas que gera), impondo-se a aplicação do disposto no art. 81.º CIRE.
Todavia, não se trata de uma situação de incapacidade judiciária, mas sim de irregularidade de representação, sanável, nos termos dos arts. 27.º e 28.º do CPC, ou seja, notificação do AI para que ratifique o processado.
Com efeito, não se trata da suscetibilidade de estar por si em juízo (art. 15.º CPC), mas sim de um caso de “indisponibilidade relativa”[7] que resulta do facto de o insolvente, nos termos daquele art. 81.º, ficar privado do poder de administrar e de dispor dos bens que integram a massa insolvente, sendo que, de acordo com o n.º 4 daquele normativo, o administrador da insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência.
Assim, ao invés de uma questão de capacidade judiciária, está em causa a representação do embargante, privado dos poderes de administração e disposição dos bens que integram a massa insolvente, devendo o mesmo ser representado pelo AI que, para o efeito, deverá ser notificado.
Neste sentido, a jurisprudência recente[8].
III – Dispositivo
Em consequência, decidem os Juízes desta Relação julgar o recurso procedente e, em consequência, revogar a decisão recorrida, ordenando a notificação do administrador de AI para, em 10 dias, ratificar o processado apresentado pelo embargante, nos termos dos arts. 27.º e 28.º CPC.
Sem custas.

Porto, 8.2.2021
Fernanda Almeida
António Eleutério
Maria José Simões
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[1] Segundo o qual “[o] juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.
[2] Ac. RP. de 27.9.2017, Proc. 136/16.6T8MAI-A.P1: I - O art. 591.º do CPC estabelece a regra: realização da audiência prévia; os artigos seguintes ocupam-se das excepções: o art. 592.º dos casos em que a audiência prévia não tem lugar, o art. 593.º dos casos em que a audiência prévia pode ser dispensada. II - Quando a acção houver de prosseguir (i.é., não deva findar no despacho saneador pela procedência de excepção dilatória que já tenha sido debatida nos articulados) e o juiz pretenda decidir de imediato, no todo ou em parte, do mérito da causa (ou apreciar excepção dilatória que não tenha sido debatida nos articulados ou que vá julgar improcedente) deve realizar-se audiência prévia para facultar às partes a discussão de facto e de direito que importe para esse conhecimento. III - A não realização da audiência prévia nos casos em que a mesma tem lugar e não pode ser dispensada gera uma nulidade processual, não obstando a isso a circunstância de previamente à decisão o juiz ter anunciado às partes que se julgava em condições de decidir de mérito. IV - Mesmo que se admita que se as questões a decidir forem muito simples e a decisão sobre elas for pacífica na jurisprudência e na doutrina, o juiz poderá, no uso do poder de simplificação e agilização processual e adequação formal, não realizar a audiência prévia, a decisão de não a realizar deverá ser fundamentada e precedida do convite prévio às partes para se pronunciarem sobre a possibilidade de o fazer e, querendo, alegarem por escrito o que iriam sustentar oralmente na audiência se esta tivesse lugar. Ac. RL, de 11.12.2018, Proc. 103/16.0T8OER-A.L1-2: Entendendo o Tribunal a quo que podia conhecer, em sede de despacho saneador, acerca do mérito da acção, deveria, prima facie, em cumprimento do prescrito na alínea b), do nº. 1, do artº. 591º, do Cód. de Processo Civil, convocar audiência prévia; - Não o fazendo, incorreu na prática de irregularidade que, podendo influir no exame ou na decisão da causa – artº. 195º, do CPC -, se transmuta ou converte em nulidade processual, dado ter sido praticado um acto que a lei não admite, qual seja o de dispensar a realização da audiência prévia quando esta dispensa não era legalmente sancionada; - Porém, sempre se poderia argumentar, em defesa da posição assumida, que o Tribunal a quo teria feito uso do poder de gestão processual, na vertente ou segmento do poder de simplificação e agilização processual, nos quadros do legalmente prescrito nos artigos 547º e 6º, ambos do Cód. de Processo Civil, sendo normalmente esta situação admitida apenas quando as questões a decidir forem muito simples e a decisão sobre as mesmas for pacífica, jurisprudencial e doutrinariamente; - Ora, a entender-se a possibilidade de recurso ao presente mecanismo, mesmo nas situações em que a lei impõe a regra da realização da audiência prévia, a decisão de prescindibilidade desta, para além de dever ser fundamentada nesses quadros, o que não sucedeu, sempre deveria ser precedida de devido convite às partes (Embargante e Embargado) para se pronunciarem acerca da possibilidade de tal dispensa e da permissão destas se pronunciarem, por escrito, nos termos em que o iriam fazer oralmente em sede de audiência, se esta tivesse lugar, o que igualmente não ocorreu;- Pelo que ocorrendo o vício de nulidade da decisão que dispensou a realização da audiência prévia, tal determina a nulidade dos actos praticados subsequentemente a tal decisão e que da mesma dependam em absoluto, ou seja, e in casu, o proferido saneador sentença, devendo ser proferida decisão a convocar as partes (Embargante e Embargado) para a audiência prévia omitida, nos termos e para os efeitos do artigo 591º, nº. 1, do Cód. de Processo Civil, ou, em alternativa, ser proferido o despacho previsto nos artºs 547º e 6º, do Cód. de Processo Civil, convidando as partes a pronunciar-se sobre a possibilidade de dispensa desta diligência, sobre eventuais excepções e sobre o mérito da causa. RG, de 17.1.2019, Proc. 4833/15.5T8GMR:
I – Entendendo o juiz, após a fase dos articulados, que os autos contêm os elementos necessários a habilitá-lo a proferir decisão de mérito que ponha termo ao processo, impõe-se a convocação de audiência prévia para o fim previsto no art. 591º/1, b) do CPC. II A preterição da aludida formalidade processual, que se reputa de essencial, gera para além de nulidade processual a nulidade do saneador-sentença e atenta a influência sobre esta decisão, implica a anulação do processado a fim da tramitação processual regressar ao momento anterior ao despacho que dispensou a realização da audiência prévia, de forma a possibilitar a efectiva audição das partes em sede de audiência prévia, devendo, no despacho que a designar, serem esclarecidos, em concreto, os fins a que se destina.
[3] Introdução ao Processo Civil- Conceito e princípios gerais à luz do novo código, 3ª edição, Coimbra Editora, 2013, p. 124 e 133.
[4] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Reimpressão, 1993, p. 156
[5] Neste sentido, o Ac. STJ 2.7.2015, Proc. 2641/13.7TTLSB.L1.S1, Ac. STJ 29.1.2015, Proc. 531/11.7TVLSB.L1.S1.
[6] Lebre de Freitas, cit, p. 125.
[7] Maria do Rosário Epifânio, Manual da Direito da Insolvência, 6.ª E., p. 109.
[8] Ac. STJ, de 10.12.2019, Proc. 5324/07.3TVLSB-A.L1.S1: I - A declaração de insolvência priva o insolvente dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência. II - Tal privação não consubstancia uma incapacidade judiciária do insolvente pois que a declaração da insolvência não implica uma perda da sua capacidade judiciária, mas uma substituição na sua representação processual (substituição legal automática do insolvente pelo administrador da insolvência) traduzida numa indisponibilidade relativa daquele delimitada: pelos bens que integram a massa insolvente; pela protecção do interesse dos credores. III - A extensão dessa substituição processual encontra-se confinada à finalidade da realidade que serve: protecção do património do insolvente em função do interesse dos credores por forma a salvaguardar a satisfação dos respectivos créditos. Nessa medida, não é extensível às matérias de natureza pessoal, às patrimoniais estranhas à massa insolvente, bem como às relacionadas com o património insolvente que visem a valorização ou o aumento do mesmo. Ainda, Ac. STJ, de 7.11.2017, Proc. 497/14.1TBVLG.S1:
I - A razão de ser da privação dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, a que alude o art. 81º do CIRE, funda-se no interesse dos credores, isto é, tem em vista a salvaguarda da satisfação dos créditos. II - Esta privação não deve ser vista como sendo uma manifestação de qualquer incapacidade ou de ilegitimidade, mas sim como de indisponibilidade relativa. III - Se os efeitos visados com uma ação judicial não são de molde a colocar em causa a salvaguarda do património do insolvente, então inexiste razão para a aplicação do art. 81º do CIRE. IV - Nesta hipótese nem o devedor está privado ou inibido de agir, nem se põe a necessidade de representação (substituição) por parte do administrador da insolvência.