Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
6320/18.0T8VNG-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: AMARAL FERREIRA
Descritores: REMISSÃO ABDICATIVA
PRESSUPOSTOS
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RP201909126320/18.0T8VNG-B.P1
Data do Acordão: 09/12/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 181, FLS 137-147)
Área Temática: .
Sumário: I - Para ocorrer a remissão abdicativa é fundamental que a declaração negocial tenha precisamente carácter remissivo, ou seja, que com ela o credor declare, sem margem para dúvidas, que renuncia à prestação em dívida pelo devedor, e que o devedor preste o seu consentimento.
II - O abuso de direito na modalidade de supressio exige, para além do tempo sem exercício que é eminentemente variável consoante as circunstâncias, que se verifiquem indícios objectivos de que esse direito não mais seria exercido, ou seja, é necessário que, do conjunto das circunstâncias presentes, o credor tenha dado ao devedor a impressão de que não mais faria valer o direito.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: TRPorto.
Apelação nº 6320/18.0T8VNG-B.P1 - 2019.
Relator: Amaral Ferreira (1252).
Adj.: Des. Deolinda Varão.
Adj.: Des. Freitas Vieira.

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO.

1. Declarada, por sentença transitada em julgado, a insolvência de B…, apresentou o administrador da insolvência (AI), decorrido o prazo da reclamação de créditos, informando não existirem créditos reclamados que tivessem sido reconhecidos ou reconhecidos em termos diversos da respectiva reclamação e não terem sido reconhecidos créditos não reclamados, a relação dos créditos reconhecidos na qual incluiu o crédito reclamado pelo Banco C…, S.A.”, no montante de € 162.478,20, dos quais € 127.293,22 respeitam a capital e € 35.184,98 a juros de mora, indicando o aval como fundamento do crédito, que classificou como comum.

2. O insolvente deduziu impugnação do aludido crédito, concluindo pela sua procedência e que não fosse reconhecida a totalidade do crédito, invocando, para tanto:
- A ilegitimidade do reclamante, com o fundamento que na sentença judicial condenatória figura como autora o “D…, S.A.”, pessoa jurídica diversa do reclamante, que não demonstra quaisquer factos constitutivos da sucessão que alega na reclamação de créditos;
- A figura contratual da remissão abdicativa, mediante a alegação de que a devedora principal é a sociedade “E…, Ldª” que, como consta da sentença condenatória, proferida em 17/3/1997 no âmbito da acção nº 10775/94, que correu termos no extinto 8º Juízo Cível do Porto, 2ª Secção, já então se encontrava falida, tendo sido representada pelo respectivo liquidatário, sendo que os documentos que estão na base do crédito reclamado são livranças subscritas pela falida e avalisadas, entre outros, pelo impugnante e que, em 18/10/2012, como é do conhecimento do credor, que nele nada referiu, indicou ou reclamou, assim renunciando ao respectivo crédito, se iniciou o procedimento administrativo da liquidação oficiosa da sociedade, que culminou com a decisão administrativa de liquidação oficiosa, proferida em 14/11/2012 e registada nessa data, sem que tivesse sido apurado qualquer activo ou passivo;
- Não poder o credor reclamante exigir dele, enquanto sócio de “E…, Ldª”, a dívida, porque a sociedade principal devedora foi, no âmbito do referido procedimento administrativo, declarada extinta e não houve qualquer partilha de activo ou passivo, sem propor acção contra a generalidade dos sócios justificando que, aquando do encerramento da liquidação, a extinta sociedade possuía bens ou valores, sócios que, ainda assim, só responderiam pelo passivo superveniente até ao montante que recebessem em partilha;
- A figura do abuso do direito na modalidade de venire contra factum proprium ou supressio, uma vez que o credor teve um comportamento omissivo e passivo durante 19 anos e 9 meses, o que criou no insolvente a expectativa de que nunca reclamaria o crédito, insolvente que confiou que o credor tinha desistido do crédito ou que o direito nem sequer existia, pois que nunca foi interpelado para pagar o crédito reclamado e nunca foi confrontado com qualquer restrição ou acesso a serviços bancários, não constando sequer a responsabilidade em causa no mapa das responsabilidades do Banco de Portugal, confiança que saiu reforçada com a extinção da sociedade, sem que algum credor tenha reclamado créditos.

3. Respondeu o credor impugnado que, sustentando a improcedência da impugnação do seu crédito, depois de referir que o insolvente aceitou a dívida, já que na petição de insolvência a indicou, e que integrara, por fusão, entre outros, o “D…, S.A.”, que era o autor na acção nº 10775, mais alega que o insolvente interveio activamente nessa acção, porquanto a contestou, que culminou com a condenação solidária todos os RR. a pagarem-lhe o crédito reclamado, e que, independentemente da confiança que criou de que o crédito não lhe iria ser exigido, o insolvente demonstra conhecer o prazo ordinário da prescrição de 20 anos e reconhece que foi citado três meses antes de a mesma operar, tendo optado, não obstante a condenação, por não liquidar voluntariamente a dívida, sendo que instaurou execução passados 19 anos porque apenas então conseguiu apurar a existência de bens susceptíveis de penhora pertencentes aos obrigados e que permitissem o pagamento, pelo menos parcial da dívida, e é irrelevante para a decisão o facto de o impugnante não estar incluído na Central de Riscos do Banco de Portugal, que apenas visa alertar as instituições de crédito para o eventual risco na concessão de crédito, mas não constitui nem elimina responsabilidades, situação que o favoreceu.

4. Junta pelo administrador da insolvência, que foi notificado para o efeito, a reclamação de créditos que lhe havia sido dirigida pelo credor impugnado, e a informação de que o insolvente havia sido citado para a execução que lhe moveu o credor e que não deduzira oposição, e tendo-se frustrado a tentativa de conciliação designada, foi proferida decisão que, além do mais, julgou improcedente a impugnação apresentada pelo insolvente e considerou reconhecidos os créditos incluídos na lista apresentada pelo AI.

5. Inconformado, apelou o insolvente que, nas pertinentes alegações, formula as seguintes conclusões:
I. A decisão recorrida é passível de censura, no que tange à matéria de direito.
II. O Tribunal a quo decidiu em total desacerto, não revelando a sentença uma criteriosa avaliação da prova produzida, bem como do seu enquadramento legal.
III. O aqui Recorrente/Insolvente invocou a remissão abdicativa por parte do Recorrido em virtude de o mesmo, apesar de devidamente notificado para o procedimento administrativo de liquidação nos termos do RJPADLEC, oficiosamente instaurado, não indicou que era titular de qualquer crédito, nem interveio no dito procedimento.
IV. Tal procedimento terminou com o registo de encerramento da liquidação, sem que tenha sido apurada a existência de qualquer ativo ou passivo a liquidar.
V. Nomeadamente e de forma muito sucinta, o Tribunal a quo refere: “Sendo um contrato, a remissão exige o consenso entre as partes e, assim, a emissão de, pelo menos, duas declarações negociais, estando uma delas a cargo do credor, declarando renunciar ao direito de exigir a prestação, e a outra na disponibilidade do devedor, declarando aceitar a renúncia.”
VI. E acrescenta: “Contudo, o facto de o credor não ter intervindo no aludido procedimento não pode ser entendido como renúncia ao crédito de que era titular, designadamente perante o insolvente, inexistindo qualquer declaração expressa (ou tácita) nesse sentido.”
VII. Acabando por concluir: “Inexiste qualquer elemento que permita concluir que estamos perante uma remissão abdicativa.”
VIII. A vontade de perdoar a dívida como a de aceitação do perdão não exigem uma declaração expressa, podendo deduzir-se de manifestações que, não tendo expressão direta por palavras ou escritos,
IX. As revelem com um grau de probabilidade que as tornem inequívocas, quando apreciadas à luz do padrão de comportamento que rege a tomada de decisões por uma pessoa sensata.
X. Ora este entendimento está plasmado em Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 12-03-2008, no âmbito do processo 3380/07 - 4ª Secção, disponível em http://www.pgdlisboa.pt/jurel/stj_mostra_doc.php?nid=26820&cod area=3
XI. E no que diz respeito às manifestações que são necessárias, que não tendo expressão por palavras ou escritos, as quais com um grau de probabilidade se tornem inequívocas à luz das regras da experiência,
XII. Haverá alguma mais evidente do que durante cerca de 20 anos o Recorrido nunca tenha exigido ou cobrado o seu alegado crédito junto do Recorrente/Insolvente?
XIII. Haverá alguma manifestação mais inequívoca do que durante praticamente 20 anos o Recorrido não tenha dirigido ao Recorrente/Insolvente uma missiva a interpelar para a sua alegada dívida?
XIV. Haverá manifestação mais forte do que nunca o Recorrido tenha comunicado ao Banco de Portugal a alegada dívida de que o Recorrente/Insolvente é devedor?
XV. Resulta, pois, à saciedade que a declaração negocial pode ser expressa ou tácita.
XVI. A dissolução e liquidação da sociedade operada ao abrigo do Regime jurídico dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de entidades comerciais (Anexo III do DL 76-A/2006 de 29 de Março) contempla um procedimento especial de extinção imediata da sociedade, divergindo do estabelecido no Código das Sociedades Comerciais sobre a Dissolução da sociedade.
XVII. Deste modo, e tendo em consideração o que se disse supra no âmbito desta temática, as declarações de inexistência de ativo e passivo a liquidar da sociedade, tem óbvias implicações no destino da presente demanda, cujo objeto consubstancia a reclamação e reconhecimento em juízo de um crédito por parte do Recorrido, emergente alegadamente de uma obrigação da entretanto declarada extinta sociedade.
XVIII. Resulta à saciedade que o Recorrido/Credor, nos termos do procedimento de dissolução e de liquidação da sociedade supra referido, nada referiu, nada indicou, nada reclamou.
XIX. O Credor/Recorrido através da sua omissão renunciou ao seu alegado crédito.
XX. Comportamento, por omissão, que nos conduz à figura da remissão abdicativa.
XXI. A remissão abdicativa constitui uma das causas de extinção das obrigações, traduzindo-se na renúncia do credor ao direito de exigir a prestação que lhe é devida, caracterizando-se como uma verdadeira renúncia do credor ao poder de exigir a prestação que lhe é devida pelo devedor.
XXII. E, uma vez extinta a obrigação, extinguem-se também as garantias da mesma.
XXIII. No caso o aval prestado pelo aqui Recorrente/Insolvente.
XXIV. A páginas 218 “Das Obrigações em Geral”, Vol II, 3ª Edição, escreve o Professor Antunes Varela que: “A remissão tem como efeito imediato a perda definitiva do crédito, de um lado, e a liberação do débito, pelo outro. E, uma vez extinta a obrigação, com ela se extinguem reflexamente os acessórios e as garantias pessoais ou reais, que asseguravam o seu cumprimento, sem necessidade da intervenção de terceiros que as tenham prestado.” (Negrito e sublinhado nosso)
XXV. Ademais, a remissão não é um negócio solene.
XXVI. O silêncio do Credor/Recorrido ao objetivamente não reclamar ou indicar qualquer crédito sobre a sociedade falida, ou conhecimento de existência de quaisquer bens da mesma, afigura-se-nos ser o de renunciar a todos os créditos que pudessem emergir da sua actividade societária.
XXVII. Silêncio que se compadece e compromete com a postura que o Recorrido sempre adotou até 2017, momento em que perdoou-se-nos, novamente a expressão, decidiu ir “rapar o tacho”!
XXVIII. O Tribunal a quo fez uma errada aplicação do Direito, ignorando os documentos, elementos e factos constantes dos autos,
XXIX. Pelo que se impõe uma nova decisão, com aplicação do correto enquadramento legal e que julgue verificada a exceção de remissão abdicativa!
XXX. Invocou ainda o aqui Recorrente/Insolvente abuso de direito por parte do Recorrido/Credor, na modalidade de supressio.
XXXI. Entende o aqui Recorrente/Insolvente que o Recorrido/Credor durante cerca de 20 anos adotou um comportamento inerte, passivo e omissivo,
XXXII. Na medida em que a alegada dívida do Recorrente/Insolvente nunca foi comunicada ao Banco de Portugal ou ás instituições financeiras junto das quais contraiu 2 (dois) créditos habitação, nem teve qualquer impedimento ou restrição no acesso aos serviços pelas mesmas prestado.
XXXIII. Sobre esta matéria o Tribunal a quo alongou-se um pouco mais do que na resposta à invocada remissão abdicativa.
XXXIV. O Tribunal a quo refere e reconhece que: “Resulta dos factos elencados que a sentença foi proferida a 17 de Março de 1997 e que transitou em julgado a 10 de Abril de 1997, sendo certo que não resulta dos autos que entre esta data e a data da instauração da acção executiva (11 de Janeiro de 2017) o credor tenha interpelado o insolvente (judicial ou extrajudicialmente). Por outro lado, a declaração de insolvência é de 30 de Julho de 2018 e a reclamação de créditos foi dirigida ao Sr. Administrador da Insolvência a 16 de Agosto de 2018. (Negrito e sublinhado nosso).
XXXV. Acrescentando ainda que: A situação descrita enquadrar-se-ia na supressio, por estar em causa o decurso de mais de 19 anos sem exercício do direito de crédito emergente da sentença proferida a 17 de Março de 1997. No caso, pode até considerar-se que o não exercício do direito durante um tão longo período de tempo é susceptível de criar uma convicção subjectiva de que não será exercido.” (Negrito e sublinhado nosso).
XXXVI. Porém, e perante estas duas premissas, o Tribunal conclui de forma manifestamente incompreensível, mormente dizendo que: “Contudo, não vemos, na factualidade alegada, justificação para essa confiança. De facto, o simples decurso do tempo sem o exercício de um direito não é suficiente para se poder concluir pelo abuso do direito, sendo certo que a ausência de registo da responsabilidade em causa junto do Banco de Portugal (Central de Responsabilidades de Crédito) ou a inexistência de impedimento ou restrições no acesso a serviços prestados por instituições bancárias ou financeiras, incluindo a obtenção de crédito, nada nos diz a tal respeito. Não vemos na alegação do insolvente quais as diligências que o próprio desenvolveu no sentido de clarificar a situação junto do credor, ciente, como não podia deixar de estar, do teor da sentença proferida a 17 de Março de 1997.” (Negrito e sublinhado nosso)
XXXVII. A resposta/conclusão a que chega o Tribunal a quo, nomeadamente a que se acaba de transcrever é verdadeiramente chocante na ótica do Recorrente/Insolvente.
XXXVIII. O Recorrido/Credor esteve 19 anos e 9 meses sem reclamar o que quer que fosse do aqui Recorrente/Insolvente.
XXXIX. Não lhe remeteu uma única interpelação a reclamar o que quer que fosse.
XL. Durante estes quase 20 anos, nunca ao Recorrente/Insolvente foi exigido o pagamento de qualquer valor em dívida.
XLI. Nunca o Recorrente/Insolvente foi impedido de proceder à abertura de qualquer conta bancária ou de requerer qualquer tipo de crédito, junto de qualquer entidade bancária, ou de usufruir de qualquer tipo de serviço bancário,
XLII. Com fundamento em ser cliente de risco ou de existir eventuais incumprimentos bancários que o impedisse de aceder a tais serviços.
XLIII. Ademais, o aqui Recorrente/Insolvente durante a sua vida, já longa, contraiu 2 (dois) créditos hipotecários, um deles reclamado aqui nos autos, sem qualquer impedimento ou restrição.
XLIV. Sendo certo que, junto do Banco de Portugal nada consta, nem nunca constou, do mapa de responsabilidades do aqui Recorrente/Insolvente relativamente à alegada dívida do Recorrido/Credor.
XLV. Com o devido respeito, o Recorrido/Credor nunca nada fez para demonstrar que existiria um valor em dívida da responsabilidade do aqui Recorrente/Insolvente, nem nunca fez nada para cobrar tal valor.
XLVI. Ao invés, o Recorrido/Credor manteve-se 20 anos totalmente alheado e desinteressado no seu alegado crédito.
XLVII. Perante os comportamentos (ou não comportamentos) do Recorrido/Credor, supra melhor descritos, o Recorrente/Insolvente acreditou e confiou nada dever e viveu a sua vida de uma forma tranquila, ciente de que tudo estaria resolvido e de que nada devia fosse a que título fosse,
XLVIII. O que aliás vinha sendo corroborado por fontes oficiais, nomeadamente, pelo próprio Banco de Portugal, e recentemente pela Conservatória do Registo Comercial do Porto, quando em finais de 2012, tomou conhecimento do procedimento administrativo oficioso de dissolução e liquidação n.º …./2009-2S – referente à sociedade comercial “E…, Lda. NIPC ………,
XLIX. Onde pôde constatar não ter sido apurada a existência de qualquer ativo ou passivo a liquidar, isto é, que nenhum credor reclamou eventuais créditos.
L. Pelo que, ao só agora, volvidos 20 anos, vir o Recorrido/Credor exigir um alegado valor tão avultado em dívida, ao Recorrente/Insolvente, coloca em causa toda a confiança e segurança que lhe transmitiu ao longo de todo este tempo.
LI. Perdoou-se-nos, mais uma vez, o grito de revolta, mas como pode o Tribunal a quo referir que não vê na factualidade alegada justificação para a confiança do Recorrente/Insolvente?!
LII. Em face da factualidade descrita, como pode o Tribunal a quo considerar que era exigível ao Recorrente/Insolvente que desenvolvesse diligências quando resulta à evidência a sua desnecessidade?
LIII. Haverá maior justificação para a confiança do Recorrente/Insolvente do que a inexistência ou não comunicação do alegado crédito do Recorrido/Credor junto de Portugal?
LIV. Haverá maior justificação para a confiança do Recorrente/Insolvente do que ter contraído 2 (dois) créditos hipotecários sem qualquer restrição ou impedimento?
LV. Haverá maior justificação para a confiança do Recorrente/Insolvente do que nunca, em 20 anos, ter recebido uma interpelação que fosse para o pagamento do crédito reclamado pelo Recorrido/Credor?
LVI. Haverá ainda maior justificação para a confiança do Recorrente/Insolvente do que ter tido conhecimento que a sociedade da qual havia sido sócio havia sido oficiosamente extinta, sem que fosse reclamado qualquer crédito por algum credor?
LVII. Estas são as diligências perpetradas pelo aqui Recorrente/Insolvente e não nos parecem tão poucas quanto isso, muito pelo contrário e o Tribunal a quo ignorou-as, mesmo estando ao seu alcance a sua análise e valoração.
LVIII. O Recorrido/Credor criou no Recorrente/Insolvente a expectativa que nunca exerceria e reclamaria o seu alegado direito/crédito.
LIX. Expectativas que se traduziram em ações e omissões por parte do Recorrido/Credor, quer por parte do aqui Recorrente/Insolvente.
LX. Os sinais facultados pelo Recorrido/Credor, durante estas duas décadas, transmitiram ao Recorrente/Insolvente que havia “desistido” ou que tal direito nem sequer existia.
LXI. O Recorrido/Credor ao vir reclamar o seu alegado direito e crédito, em manifesta contradição com os sinais e comportamentos fornecidos ao Recorrente/Insolvente durante 20 anos, age em manifesto Abuso de Direito na sua modalidade da supressio.
LXII. A supressio não se basta com o mero decurso do tempo, de contrário, esta conduta omissiva do agente aproximar-se-ia do instituto da prescrição.
LXIII. O abuso de direito, invocado neste caso pelo Recorrente/Insolvente, assenta em pressupostos mais exigentes, nomeadamente caracteriza-se por:
- O titular deve comportar-se como se não tivesse o direito e não mais o queira exercer;
- A contraparte confiou em que o direito não será exercido, e atua como tal;
- O exercício superveniente do direito é suscetível de provocar à outra parte uma desvantagem injusta.
LXIV. Ou seja, a inércia, omissão ou não-exercício do direito por um período prolongado, sem que possa sê-lo tardiamente se contundir com os limites impostos pela boa fé, constitui uma expressão ou modalidade especial do “venire contra factum proprium”, conhecida por supressio.
LXV. Por outras palavras, a supressio traduz-se no não exercício do direito durante um lapso de tempo de tal forma longo que crie na contraparte a representação de que esse direito não mais será exercido, conduzindo o exercício tardio a uma desvantagem injustificada para esta.
LXVI. O Recorrente/Insolvente sente-se revoltado e injustiçado, pois que todos os sinais e convicções que tinha era de que nada devia a ninguém, conforme informações oficiais das constantes Instituições Bancárias com quem trabalhou, do Banco de Portugal e até da própria Conservatória do Registo Comercial, nas quais sempre confiou.
LXVII. O Tribunal a quo voltou a fazer uma errada aplicação do direito, pelo que se justifica uma correção do enquadramento legal aplicável ao caso.
LXVIII. Impõe-se e urge, pois, revogar a decisão do Tribunal a quo, substituindo-a por outra que exclua o crédito reconhecido a favor do Recorrido/Credor/Banco C…, S.A., julgando assim procedente a impugnação apresentada pelo Recorrente/Insolvente, e consequente alteração da graduação de créditos, repondo-se a justiça!
NESTES TERMOS E NOS DEMAIS DE DIREITO, QUE V. EXAS. DOUTAMENTE SUPRIRÃO, DEVE O PRESENTE RECURSO DE APELAÇÃO SER JULGADO PROCEDENTE, POR PROVADO E, EM CONSEQUÊNCIA, SER REVOGADA A DECISÃO PROFERIDA PELO TRIBUNAL A QUO, TUDO COM AS DEVIDAS E LEGAIS CONSEQUÊNCIAS.
ASSIM DECIDINDO, FARÃO V. EXAS. INTEIRA JUSTIÇA!

6. Não tendo sido oferecidas contra-alegações, colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO.

1. A factualidade com relevo para a decisão é, além da que se deixou relatada, a que o tribunal recorrido considerou para o efeito, que é a seguinte:
a) B… apresentou-se à insolvência a 20 de Julho de 2018 e, por sentença proferida a 30 de Julho de 2018, foi declarada a situação de insolvência;
b) Com o requerimento inicial juntou a relação de credores nos seguintes termos:
- “Banco C…, S.A.” - no montante de 161.875,73 euros;
- “F…, S.A.” - no montante de 251.165,00 euros;
c) Juntou, ainda, a relação das acções pendentes, identificando a acção executiva nº 1189/17.5T9PRT, do Juízo de Execução do Porto - Juiz 1;
d) O “D…, S.A.” instaurou acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra os réus “E…, Lda.”, G… e esposa, H…, I… e esposa, J…, e B… e esposa, K…, a qual correu termos pelo extinto 8º Juízo Cível da Comarca do Porto, com o número 10775/1994, onde, a 17 de Março de 1997, foi proferida sentença, cuja certidão se encontra junta a fls. 34 e seguintes e cujo teor se dá aqui por reproduzido, transitada em julgado a 10 de Abril de 1997, que julgou a acção parcialmente procedente e condenou os réus a pagarem solidariamente ao autor a quantia de 25.520.000$00, “acrescida de juros de mora, à taxa legal que vigorou, vigora e vier a vigorar, que actualmente é de 10%, desde 25/03/94, até integral pagamento, contabilizados até ao dia 14/12/94 no valor de 2.768.745$00 (…), bem como no imposto de selo devido correspondente”;
e) O “Banco C…, S.A.”, a 11 de Janeiro de 2017, instaurou acção executiva contra “E…, Lda.”, H…, I…, J…, B…, K… e G…, para cobrança coerciva da quantia de 154.167,36 euros, acrescido de juros de mora vincendos, a qual corre termos com o número 1189/17.5T8PRT, do Juízo de Execução do Porto - Juiz 1, apresentando como título executivo a sentença referida na alínea anterior, com os fundamentos constantes do requerimento executivo cuja cópia se encontra junta a fls. 19 verso e seguintes e cujo teor se dá aqui por reproduzido;
f) No âmbito de tal acção executiva foi penhorada a fracção autónoma designada pela letra I, descrita na 2ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, freguesia …, com o número 2273/19980226-I (penhora registada através da inscrição com a ap. 2255, de 29 de Novembro de 2017);
g) O insolvente foi citado para os termos da referida acção executiva a 8 de Fevereiro de 2017 e não deduziu oposição;
h) O “Banco C…, S.A.”, no processo de insolvência, a 16 de Agosto de 2018, reclamou um crédito no montante de 162.478,20 euros, com os fundamentos constantes da reclamação de créditos cuja cópia se encontra junta a fls. 45 e seguintes e cujo teor se dá aqui por reproduzido, com fundamento na sentença referida na alínea d) e na acção executiva identificada na alínea e);
i) A sociedade comercial foi declarada falida e foi objecto do procedimento administrativo de liquidação previsto no RJPADLEC, oficiosamente instaurado, estando o encerramento da liquidação registado desde 14 de Novembro de 2012.

2. Tendo presente que o objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso, que neles se apreciam questões e não razões e que não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido - artºs 638º, nº 2, 609º, nº 1, 635º, nº 4, e 639º, todos do Código de Processo Civil (CPC) -, a questão suscitada na apelação é a de saber se o crédito impugnado se encontra extinto por remissão abdicativa ou por abuso do direito.

Da remissão abdicativa.
Resultando do que se deixou relatado os fundamentos pelos quais o apelante/insolvente impugnou o crédito do “Banco C…, S.A.”, que o administrador da insolvência (AI) incluiu na relação de créditos apresentada, entre eles se incluindo a figura da remissão abdicativa, e tendo a decisão recorrida desatendido tal fundamento, continua o apelante a sustentar, nos termos que constam das conclusões III a XXIX das alegações de recurso, ocorrer, no caso dos autos, o dito instituto (da remissão abdicativa).
A remissão, que é uma causa de extinção das obrigações distinta do cumprimento, encontra-se prevista no artº 863º do Código Civil (CC), que dispõe que “O credor pode remitir a dívida por contrato com o devedor” - nº 1 - e que “Quando tiver carácter de liberalidade, a remissão por negócio entre vivos é havida como doação, na conformidade dos artigos 940º e seguintes” - nº 2.
Consiste na “renúncia do credor ao direito de exigir a prestação e que é feita com a aquiescência da outra parte” (A. Varela, Das Obrigações em Geral, 3ª ed., II Vol., pág. 209), ou, noutra definição, no “contrato entre o credor e o devedor, destinado a extinguir determinada relação obrigacional entre eles existente” (Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, 1980, 2º, pág. 234.
Necessita de revestir a forma de contrato bilateral, na medida em que a renúncia do credor ao direito de exigir a prestação é feita com a aquiescência da outra parte, tendo como efeito imediato a perda definitiva do crédito, de um lado, e a liberação do débito, pelo outro, por isso se trata de uma causa de extinção das obrigações em que não chega a haver prestação, mas não consubstancia necessariamente um contrato oneroso, identificado pelo carácter sinalagmático e correspectivo das concessões recíprocas, antes podendo traduzir uma verdadeira liberalidade ao devedor, a que é aplicável o regime legal da doação (artºs 940º e segs., do CC), ou assumir um intuito meramente abdicatório.
Isso mesmo sublinha o primeiro dos autores e obra citados, pág. 236, “a remissão constitui a renúncia do credor ao direito de exigir a prestação, feita com a aquiescência da contraparte, necessitando de revestir a forma de contrato, quer se trate de remissão donativa, quer de remissão puramente abdicativa”.
Assim sendo, para ocorrer a remissão é fundamental que a declaração negocial tenha precisamente carácter remissivo, ou seja, que com ela a parte credora declare, sem margem para dúvidas, que renuncia à prestação em dívida pelo devedor, e que o devedor preste o seu consentimento, pois pode ter interesse em afirmar a inexistência da dívida e em obter a declaração judicial desse facto.
A lei não exige que o consentimento do devedor seja prestado de forma escrita, estando, por isso, sujeito às regras gerais sobre as declarações negociais (cfr. os artºs 217º, 218º e 234º do CC).
Por seu turno, a vontade de remitir por parte do credor pode resultar também de uma manifestação tácita de vontade, embora deva ter uma significação inequívoca e, por último, para prova do contrato que serve de base à remissão, não se exige documento escrito - cfr., neste sentido, o acórdão da RL de 22/9/2009, Proc. 138/06.0TCFUN.L1-7, www.dgsi.pt.

No caso em apreço, o apelante invoca o instituto da remissão abdicativa, com a consequente extinção da obrigação, no facto de o recorrido, durante cerca de 20 anos, nunca ter exigido ou cobrado o seu alegado crédito, designadamente interpelando-o para o efeito, não ter comunicado ao Banco de Portugal a dívida, nem ter, no âmbito do processo de liquidação oficiosa da sociedade “E…, Ldª”, em que o encerramento da liquidação se encontra registado desde Novembro de 2012.
Sem deixar de se salientar que a dívida do apelante resulta da sentença condenatória proferida no processo nº 10775/1994, e não propriamente no seu alegado aval à dita sociedade, apesar de o credor “Banco C…, S.A.” aceitar que, entre a data em que transitou em julgado a sentença (10 de Abril de 1997) e a da instauração da execução (11 de Janeiro de 2017) - o que se encontra provado sem impugnação [factos de d) e e)] -, não interpelou o devedor para pagar a dívida, nem comunicou a dívida ao Banco de Portugal, para efeitos de inclusão do devedor na Central de Riscos, não temos tais factos como suficientes para concluir nem que o credor remitiu a dívida, nem que o devedor deu o seu consentimento.
Como se salientou, a remissão abdicativa reveste a forma de contrato bilateral, em que são exigíveis a declaração de renúncia do credor e o consentimento do devedor.
E, embora não se torne necessário que tais declarações revistam a forma escrita, podendo resultar de uma manifestação de vontade tácita, mas que, no caso do credor, deve ter um significado inequívoco, à míngua de outros factos, não temos os invocados pelo apelante, e sem necessidade de recorrer às regras da impressão do destinatário, consagradas nos artigos 236º a 238º do CC, posto que inexiste qualquer declaração, suficientes para concluir pela existência de qualquer declaração do apelado no sentido de renunciar à dívida.
Efectivamente, a não interpelação do devedor durante cerca de 20 anos para efectuar o pagamento da dívida constitui um mero (embora longo) comportamento omissivo do credor com vista à cobrança do seu crédito.

E também não integra qualquer declaração de renúncia ao crédito a não comunicação pelo credor da existência da dívida ao Banco de Portugal (não ao devedor), tratando-se antes da violação de um dever legal imposto às instituições de crédito, como é o caso do “Banco C…, S.A.”.
É que, a Central de Responsabilidades de Crédito (CRC) - que iniciou a sua actividade em Outubro de 1978, então com a designação de Serviço de Centralização de Riscos de Crédito - e que está actualmente enquadrada pelo DL 204/2008 de 14/10, corresponde a um sistema de informação gerido pelo Banco de Portugal, constituído pela comunicação recebida das entidades participantes, entre as quais e primordialmente se situam as instituições bancárias, sobre responsabilidades efectivas ou potenciais decorrentes de operações de crédito e por um conjunto de serviços relativos ao seu processamento e difusão.
A CRC tem como principal objectivo o de apoiar as entidades participantes na avaliação do risco de concessão de crédito, sendo por isso que as mesmas podem aceder à informação agregada das responsabilidades de crédito de cada cliente, ou potencial cliente (quando tenha ocorrido por parte deste um pedido de concessão de crédito, ou mediante autorização do mesmo) relativamente ao conjunto do sistema financeiro.
Mas a CRC destina-se também, como é evidente, a ser utilizada pelo Banco de Portugal para efeito da supervisão das instituições financeiras, análise da estabilidade do sistema financeiro, compilação de estatísticas e de realização de operações de política monetária.
Os circuitos de informação em que assenta a CRC encontram o respectivo ponto de partida na obrigatoriedade da comunicação mensal ao Banco de Portugal por parte das entidades participantes, das responsabilidades dos seus clientes decorrentes de operações de crédito, (desde que o valor do saldo seja igual ou superior a 50 €) e na reciprocidade no acesso à informação, na medida em que essas entidades recebem também mensalmente os saldos das responsabilidades agregadas dos seus clientes junto do sistema financeiro, sendo que, além dessa informação mensal sobre os seus clientes, as entidades participantes podem receber ou consultar a informação centralizada sobre particulares, empresas ou outras entidades que lhas hajam solicitado crédito (potenciais clientes), desde que tenham obtido destas um pedido de concessão de crédito ou uma autorização para a realização dessa consulta.
Mas, os dados recolhidos pela CRC e divulgados ao sistema financeiro são da exclusiva responsabilidade das instituições que os transmitem ao Banco de Portugal, não cabendo a este proceder a qualquer alteração desses dados - cfr. artº 2º, nº 4, do DL 204/2008 de 14/10 -, instituições cuja violação do dever legal de comunicação, não as dispensando do cumprimento da comunicação, as faz incorrer em contra-ordenação punível com coima - artºs 9º e 10º do DL nº 204/2008.
Reafirma-se, pois, que do fim visado pelo referido regime legal (da sua violação) nenhuma declaração se retira do credor no sentido de remitir a dívida do apelante.

Reiterando-se que o crédito do apelado resulta da sentença referida em d) dos factos provados, o que acaba de se expor no sentido de não integrar o instituto da remissão abdicativa, desde logo, por falta de declaração de renúncia do credor, é totalmente aplicável ao facto de a sociedade “E…, Ldª” ter sido liquidada oficiosamente sem que no processo respectivo processo o credor tenha reclamado o seu crédito.
Resulta dos factos provados de i) que a sociedade em causa foi declarada falida e objecto de procedimento administrativo de liquidação previsto no RJPADLEC, oficiosamente instaurado, estando o encerramento da liquidação registado desde 14 de Novembro de 2012.
O RJPADLEC (Regime Jurídico dos Procedimentos Administrativos de Dissolução e Liquidação de Entidades Comerciais), publicado no Anexo III ao DL nº 76-A/2006, de 29/3, como a sua designação indica, contempla os procedimentos administrativos de dissolução e liquidação de entidades comerciais, que são aplicáveis, consoante os casos, às sociedades comerciais, às sociedades civis sob forma comercial, às cooperativas e aos estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada - artºs 1º e 2º do DL citado -, entre eles se incluindo, como é o caso, como se retira do documento de fls. 13, o procedimento administrativo instaurado oficiosamente pelo conservador, mediante auto que especifique as circunstâncias que determinaram a instauração do procedimento e no qual nomeie um ou mais liquidatários, quando se verifique terem decorrido os prazos previstos no artigo 150º do Código das Sociedades Comerciais para a duração da liquidação sem que tenha sido requerido o respectivo registo de encerramento, prazo esse que é de dois anos - artº 15º, nº 5, al. b) do RJPADLEC e 150º do Código das Sociedades Comerciais (CSC).
Tal procedimento administrativo contempla a notificação da sociedade, um gerente, os sócios e os credores por meio de publicação por aviso - artºs 17º, nºs 2 e 3, e 8º, nºs 4, 5 e 8, do RJPADLEC -, para, no prazo de dez dias, irem aos autos informar os créditos e os débitos que detivessem sobre a sociedade, bem como se têm conhecimento de bens e direitos de que a sociedade fosse titular, avisando que se, dos elementos do processo não fosse apurada a existência de qualquer activo ou passivo a liquidar ou se não fosse comunicada no dito prazo a sua existência, em cumprimento do disposto no artº 24º, nºs 1 e 2, do RJPADLEC, a Conservadora declararia imediatamente o encerramento da liquidação e lavraria oficiosamente o respectivo registo de encerramento da liquidação, pelo que não haveria acto de liquidação, nem partilha a desencadear que implicassem a nomeação de liquidatários, notificação que foi efectuada (cfr. fls. 12 vº).
E, tendo resultado do processo a inexistência de activo e passivo a liquidar, obviamente por nada ter sido comunicado, foi declarado o encerramento da sociedade e ordenado o imediato registo do encerramento da liquidação - cfr. fls. 13.
Ora, tendo, à data da instauração do procedimento em causa, a sociedade sido declarada falida, não é o facto de nele não se ter apurado a existência de qualquer passivo, por, designadamente o banco apelado não ter indicado a existência do seu crédito, que leve a concluir pela existência de declaração, mesmo tácita, de renunciar ao seu crédito, renúncia esse que, a existir, seria sobre a sociedade dissolvida e, eventualmente, sobre os bens recebidos pelos sócios, mas não sobre o património próprio dos sócios, não sendo de mais reafirmar, mais uma vez, que o crédito impugnado pelo apelante resulta da sentença que o condenou solidariamente com a sociedade falida.

Em qualquer dos casos, nenhuma declaração de consentimento do devedor, ainda que tácita, que, como se viu era necessária numa situação de remissão abdicativa, se pode concluir ter existido, devedor que, aliás, a contraria ao indicar, no requerimento inicial de apresentação à insolvência, o crédito do apelado.
Improcede, por quanto se deixa dito, a questão.

Do abuso do direito.
Outro dos fundamentos pelos quais o apelante sustenta, à semelhança do que fez ao impugnar o crédito do apelado, a extinção da dívida é o instituto do abuso do direito, que faz integrar na circunstância de, durante cerca de 20 anos, o apelado nunca o ter interpelado para o pagamento da dívida e não ter comunicado ao Banco de Portugal a sua existência, comportamento omissivo esse que o fez confiar em que nada devia e tudo estava resolvido - conclusões XXX a LXV das alegações de recurso.
Dispõe o artº 334º do CC, que “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda, manifestamente, os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Retira-se desse preceito legal que o exercício de um direito só pode qualificar-se de abusivo quando seja exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça ou do sentimento jurídico socialmente dominante.
O instituto do abuso do direito tem como objectivo primordial - funcionando como que uma “válvula de segurança” para impedir ou paralisar situações de grave injustiça que o próprio legislador preveniria se as tivesse previsto, constituindo uma forma de antijuricidade cujas consequências devem ser as mesmas do acto ilícito - obstar à consumação de certos direitos que, embora válidos em tese, na abstracção da hipótese legal, acabam por constituir, quando concretizados, uma clamorosa ofensa da justiça, entendida enquanto expressão do sentimento jurídico socialmente dominante (cfr., nomeadamente, Coutinho de Abreu, Do Abuso do Direito; Manuel de Andrade, Teoria Geral das Obrigações, 3ª ed., págs.63/64; Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 7ª ed., pág. 537; Pires de Lima/A. Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª ed., pág. 299).
Sintetizando os ensinamentos dos referidos autores, configura uma situação de abuso do direito se/quando alguém, embora legítimo detentor de um determinado direito, formal e substancialmente válido, o exercita circunstancialmente fora do seu objectivo ou da finalidade que justifica a sua existência, em termos que ofendam, de modo gritante, o sentimento jurídico, seja criando uma desproporção objectiva entre a utilidade do exercício do direito e as consequências a suportar por aquele contra quem é invocado, seja prejudicando ou comprometendo o gozo do direito de outrem.
Uma das manifestações características do abuso do direito é o venire contra factum proprium, cuja estrutura pressupõe duas condutas, sucessivas mas distintas, temporalmente distanciadas e de sinal contrário, protagonizadas pelo mesmo agente: o factum proprium, seguido, em contradição, do venire.
A sua proibição é corolário do fundamental princípio ético-jurídico da confiança, condição básica da convivência pacífica e da cooperação entre os homens - cfr. Baptista Machado, citado no Acórdão do STJ de 12/6/2013, consultável no site da dgsi.pt -, não podendo a ordem jurídica deixar de tutelar a confiança legítima baseada na conduta de outrem.
A inacção, inércia ou omissão do exercício de um direito por parte do seu titular, durante um mais ou menos longo lapso de tempo, constitui um dos elementos da modalidade do abuso do direito na vertente da proibição do venire contra factum proprium, apelidada pela doutrina, na expressão original alemã, de Verwirkung (apud Baptista Machado, Tutela da Confiança …, Obra Dispersa, I, pág. 421 e segs.) ou de supressio, na terminologia introduzida por Menezes Cordeiro.
Reflectindo sobre o instituto em causa (estudo da origem, evolução, consolidação dogmática e regime, a que dedica o parágrafo 34º do Volume V do seu Tratado de Direito Civil, na edição da 2ª reimpressão, Almedina, 2011, citado no acórdão do STJ de 11/12/2013, Proc. nº 629/10.9TTBRG.P2.S1, consultável no referido site da Internet), Menezes Cordeiro sustenta que, sendo embora variável o quantum de tempo necessário para concretizar a supressio, o mesmo há-de ser sempre inferior ao da prescrição, por óbvias razões, mas equivalente ao período, decorrido o qual, segundo o sentir comum prudentemente interpretado pelo julgador, já não será de esperar o exercício do direito atingido.
Nesta abordagem, buscando a afinação do conceito à luz do vector tempo, sublinha o mesmo autor que …a supressio não pode ser, apenas, uma questão de decurso do tempo, sob pena de atingir, sem vantagens, a natureza plena da caducidade e da prescrição.
Além disso, conclui, traduzindo-se a supressio numa omissão - a que falta, por isso, a precisão do positivo factum proprium - a sua caracterização demanda a verificação de outros elementos complementares (circunstâncias colaterais, ibidem, pág. 323) que, para além do não-exercício prolongado do direito, melhor alicercem a confiança do beneficiário, a saber: uma situação de confiança; uma justificação para essa confiança (baseada na conduta circunstancial do titular do direito, a contraparte convence-se, justificadamente, que o direito já não será exercido); um investimento de confiança e a imputação da confiança ao não-exercente (a contraparte, convicta e movida por essa confiança, tomou medidas ou passou a actuar em conformidade, causando-lhe ora o exercício tardio do direito maiores desvantagens do que o seu exercício atempado. A omissão do titular do direito, por via desse nexo de imputação da confiança, constituiu-se assim numa situação que torna, ética e socialmente aceitável/ajustado, o seu sacrifício).
Mais de que saber, com rigor, se a analisada modalidade (supressio) do abuso do direito tem aplicação ou não em matérias/direitos sujeitos a prescrição - a resposta, não obstante, já resulta do que se deixou dito -, importa analisar se o exercício do direito em causa, à luz dos dilucidados contornos circunstanciais, afronta, de modo clamoroso ou gritante, os limites impostos pela boa-fé e pelos bons costumes, na compreensão de que lhes corresponde um comportamento honesto, leal, diligente, que não frustre o fim prosseguido pelo contrato e/ou defraude os legítimos interesses ou expectativas da parte contrária.

Transpondo o que se deixa dito para a situação dos autos, entende-se que o apelante não podia contar com a inacção do apelado - decurso da quase totalidade do prazo ordinário da prescrição de 20 anos (entre o trânsito da sentença e a instauração da execução da mesma decorreram 19 anos e 9 meses) e não comunicação da dívida ao Banco de Portugal.
Na verdade, conquanto se reconheça que o período de tempo decorrido entre a sentença condenatória e a instauração da execução pelo apelado, na medida em que esgotava a quase totalidade do prazo da prescrição, bem como o facto de não ter comunicado a existência da dívida ao Banco de Portugal - comportamento omissivo -, poderia ser susceptível de criar no apelante a convicção de que o direito não seria exercido, não pode deixar de se ter presente que, além disso e como se sublinhou ser necessário para integrar o instituto do abuso do direito na modalidade de supressio, se tornava necessário verificação de outros elementos complementares que, para além do não-exercício prolongado do direito, melhor alicercem a confiança do beneficiário, a saber: uma situação de confiança; uma justificação para essa confiança (baseada na conduta circunstancial do titular do direito, a contraparte convence-se, justificadamente, que o direito já não será exercido); um investimento de confiança e a imputação da confiança ao não-exercente, elementos esses que não se surpreendem nos factos provados e a considerar.
Aliás, o apelante, contrariando a existência de confiança de que o direito não seria exercido, indicou a existência do débito para com o apelado no requerimento de apresentação à insolvência.
E, se bem que a apreciação da existência de abuso de direito constitua matéria de conhecimento oficioso, certo é que o apelante não deduziu embargos à execução que o apelante lhe moveu, o que afrontaria o caso julgado formado na execução.
Acresce que, pesem embora os meios actualmente existentes, designadamente informáticos, permitam um melhor conhecimento e accionamento dos meios ao seu dispor para efeitos de cobrança dos respectivos créditos, não se pode olvidar que o apelante é uma instituição bancária que, como se retira do factos provados de d) e e), passou por transformações societárias.
Improcede, portanto, a questão e, consequentemente, a apelação.

III. DECISÃO.

Pelo exposto, acordam os juízes que constituem esta Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente a apelação e confirmar a decisão apelada.
*
Custas pelo apelante.
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Porto, 12/09/2019
Amaral Ferreira
Deolinda Varão
Freitas Vieira