Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
51/15.0GTPNF.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JORGE LANGWEG
Descritores: CRIME DE CONDUÇÃO EM ESTADO DE EMBRIAGUEZ
EXAME DE PESQUISA DE ÁLCOOL
EXAME SANGUÍNEO
INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO PARA A DECISÃO
Nº do Documento: RP2017062151/15.0GTPNF.P1
Data do Acordão: 06/21/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: REENVIO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º722, FLS.222-227)
Área Temática: .
Sumário: Se o arguido após acidente em que ficou ferido foi conduzido ao Hospital onde lhe foi recolhido sangue para analise e acusou taxa de alcoolemia em valor que constitui crime, ocorre insuficiência da matéria de facto para a decisão, mormente em sede de valoração de tal meio de prova, se não se sabe se o arguido foi submetido a exame de pesquisa de álcool no ar expirado, e se era possível ou impossível a realização desse exame de ar expirado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ● Processo n° 51/15.0GTPNF.P1
● Data do acórdão: 21 de Junho de 2017

● Relator: Jorge M. Langweg
● Adjunta: Maria Dolores da Silva e Sousa

● Origem: Comarca do Porto Este
● Instância Local de Penafiel | Juízo Criminal

Acordam,em conferência, os juízes acima identificados do Tribunal da Relação do Porto

Nos presentes autos em que figura como recorrente o arguido B…;
I - RELATÓRIO
1. No dia 15 de fevereiro de 2017 foi proferida a sentença recorrida no âmbito dos presentes autos, que terminou com a condenação do arguido nos seguintes termos:
"Tudo visto e ponderado, o tribunal decide:
a) Condenar o arguido pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez, previsto e punido pelos artigos 292°, n°1 e 69°, n°1, al. a) do C.P. na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de € 5,00 no montante global de €300,00 (trezentos euros), e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 3 meses;
b) Condenar o arguido nas custas do processo (artigos 513° e 514° Código de Processo Penal), fixando-se a taxa de justiça no mínimo (artigo 8°, n°5 do R.C.P.).
(...)."
2. Inconformado com a decisão condenatória, o referido arguido interpôs recurso da mesma, concluindo a respetiva motivação nos seguintes termos:
"O incumprimento das regras Regulamentares que se impunham cumprir no que respeita ao resultado positivo de uma taxa de álcool no sague na situação de acidente automóvel com feridos graves, determinava o arquivamento dos autos.
A prova produzida em Audiência impõe uma decisão diversa quanto à matéria de facto dada como provada, máxime no respeita aos pontos 2, 3, 4 e 5.
O Tribunal a quo sustenta a condenação do arguido B… somente no resultado do relatório de análise ao sangue que aponta para uma taxa de álcool superior a 1,2 l/g, retirando toda a credibilidade às testemunhas, nas quais se inclui o agente da GNR, sem fundamento objetivamente compreensível.
O resultado do relatório de análise ao sangue, considerando a prova produzida em audiência não pode, só por si, determinar a condenação do arguido B…, considerando as circunstâncias externas ocorridas após o sinistro provocado por terceiros, ainda não identificados.
O Tribunal a quo refutou todo o depoimento testemunhal que indubitavelmente determinaria ter sido dado como não provado o ponto 4 dos factos provados.
Absteve-se, o Tribunal a quo, do dever de cuidado que lhe era exigido, de confirmar o âmbito dos inquéritos em investigação, quer por terem sido referenciados por todos dos lesados dos sinistros, quer por constar, nos próprios autos uma referência concreta e clara a fls 55.
O Tribunal a quo não cuidou com a devida acuidade a questão da culpabilidade prevista no artigo 368° do C.P.P.
Pelo que importava, quando muito, com base do Princípio basilar de "in dúbio pro reo", que o arguido fosse declarado inocente e, consequentemente, absolvido.
Impunha-se, pois, uma decisão diferente, ou seja, que absolvesse o arguido do crime de que vinha acusado.
E não tendo o arguido praticado este crime, não poderá haver lugar à condenação.
A sentença recorrida violou, pelo menos, o dispostos nos artigos os artigos 292°-, 13°, 14° e 16° do C.P."

3. O recurso foi liminarmente admitido no tribunal a quo.
4. O Ministério Público apresentou resposta à motivação do recurso em matéria penal, concretizando-a nos seguintes termos:
"A fiscalização de que o recorrente foi alvo foi efectuada de acordo com a legislação em vigor, respeitando escrupulosamente os critérios ai consignados.
A sentença sindicada não padece de qualquer nulidade, não se verificando ainda qualquer dos vícios plasmados no art.° 410°, n.° 2, do CPP."

5. O Ministério Público junto deste Tribunal emitiu parecer, contendo uma nova questão, que se passa a transcrever:
2 - Questão prévia - insuficiência para a decisão da matéria de facto provada
2.1 - Vem dado como provado, na parte que, ora, nos interessa, que o arguido foi sujeito a teste de alcoolemia na circunstância de um acidente de viação em que interveio o veículo que conduzia e mediante recolha de sangue efetuada no Centro Hospitalar C… (pontos 1 e 2 dos factos provados).
Estabelece do artigo 156°, do C. da Estrada, sob a epígrafe "Exames em caso de acidente", o seguinte:
Os condutores e os peões que intervenham em acidente de trânsito devem, sempre que o seu estado de saúde o permitir, ser submetidos a exame de pesquisa de álcool no ar expirado, nos termos do artigo 153.".
Quando não tiver sido possível a realização do exame referido no número anterior, o médico do estabelecimento oficial de saúde a que os intervenientes no acidente sejam conduzidos deve proceder à colheita de amostra de sangue para posterior exame de diagnóstico do estado de influência pelo álcool e ou por substâncias psicotrópicas.
Se o exame de pesquisa de álcool no sangue não puder ser feito ou o examinando se recusar a ser submetido a colheita de sangue para análise, deve proceder-se a exame médico para diagnosticar o estado de influência pelo álcool e ou por substâncias psicotrópicas.
-Os condutores e peões mortos devem também ser submetidos ao exame previsto no n.° 2.
Resulta deste preceito legal e da sua conjugação com o disposto no artigo 153°, por um lado, que a pesquisa de álcool no sangue através de análise sanguínea só tem lugar quando não seja possível a realização de exame de pesquisa de álcool no ar expirado, mesmo nos casos de acidente de viação, e por outro, que, quando não seja possível o exame através de ar expirado, o consentimento expresso do condutor para a recolha de sangue não é necessário se ele estiver impossibilitado de o prestar.
Como se decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 20 de Dezembro de 2011, proc 408/G9.6GAMMV.C1, disponível em www.dgsi.pt:
Em momento algum a lei impõe ou exige que se formule um pedido expresso de consentimento de quem tem que sujeitar-se ao exame de recolha de sangue para aferição do grau de alcoolemia.
O exame de sangue é a via excecional para a recolha de prova admitida na lei para tal efeito, apenas admissível em casos expressamente tipificados, nomeadamente quando o estado de saúde não permite o exame por ar expirado ou esse exame não for possível.
A exclusão liminar da admissibilidade de exames coercivos está assegurada pela simples oposição - recusa - do titular do interessado em sujeitar-se ao exame.
Sucede que, no caso em apreço, nada se diz na sentença, designadamente, quanto à possibilidade (ou impossibilidade) da realização de exame de pesquisa de álcool no ar expirado, com observância dos procedimentos previstos no artigo 153° (sendo caso disso); nem se curou de saber se a colheita de sangue feita no Centro Hospitalar C… teve em vista (ou não) a deteção de álcool no sangue do arguido, se o arguido se opôs (ou não) a tal colheita ou se a mesma ocorreu (ou não) com o seu consentimento tácito.
Assim como não é feita no texto da sentença qualquer referência à observância dos procedimentos relativos à análise de sangue para quantificação da taxa de álcool previstos na Secção II do Capitulo I da Portaria n° 902-B/2007, de 13 de agosto, aludindo-se apenas ao relatório junto a fls. 5 dos autos, este relativo à quantificação de álcool no sangue do arguido e ao rastreio de substâncias psicotrópicas.
E se é certo que o juízo técnico e científico contido nesse relatório pericial está subtraído à livre apreciação do julgador - estando-Ihe, portanto, vedado pôr em causa os resultados das análises efetuadas (salvo no condicionalismo previsto no n° 2 do artigo 163°, do C. P. Penal) - é, também, verdade que não está subtraído a essa apreciação o controlo da legalidade dos procedimentos a que está sujeita a recolha do material submetido a análise, cuja inobservância poderá conduzir à invalidação daquela prova.
Estamos, pois, na nossa perspetiva, perante uma "lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para uma decisão de direito " (') que configura a anomalia prevista na alínea a) do n° 2 do artigo 410° do C. P. Penal - insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
Ora, como se sabe, os vícios decisórios previsto no n° 2 do artigo 410° do C. P. Penal são de conhecimento oficioso, pelo que, a considerar-se a matéria de facto apurada insuficiente para sustentar a decisão de direito proferida, não poderá esta Relação deixar de pronunciar-se em conformidade, ordenando o reenvio do processo à 1a instância com vista ao necessário suprimento, uma vez que, com os elementos disponíveis, não se afiguraria possível decidir da causa (artigo 426°, n° 1, do C. P. Penal).
E será assim, também, porque, pese embora no nosso sistema processual penal prevaleça o modelo acusatório (artigo 32°, n° 5, da CRP), o mesmo não se impõe de forma absoluta, pois que, como ensina o Prof. Figueiredo Dias, (2) é integrado pelo princípio da investigação, através do qual se pretende traduzir o poder/dever atribuído ao tribunal de esclarecer e instruir autonomamente, ou seja, independentemente das contribuições da acusação e da defesa, o facto sujeito a julgamento, criando ele próprio as bases necessárias à sua decisão, desta forma se acentuando "o carácter indisponível do objecto e do conteúdo do processo penal, a sua intenção dirigida à verdade material".
- Pelo exposto, emite-se parecer no sentido de que - na procedência da questão prévia, ora, suscitada e sem se conhecer das questões colocadas pelo recorrente - julgado verificado o vício decisório previsto na alínea a) do n° 2 do artigo 410° do C. P. Penal [insuficiência para a decisão da matéria de facto provada], deverá ser determinado o reenvio do processo para julgamento parcial, nos termos do disposto no artigo 426°, n°, 1 do C. P. Penal, tendo em vista apurar os factos supra referidos [2.2], com produção da prova suplementar tida por necessária e prolação de nova sentença, com suprimento da apontada insuficiência."

6. O arguido apresentou resposta ao parecer, manifestando concordância com o seu teor.
7. Não tendo sido requerida audiência, o processo foi à conferência, após os vistos legais, respeitando as formalidades legais [artigos 417°, 7 e 9, 418°, 1 e 419°, 1 e 3, c), todos, ainda do mesmo texto legal].

Questões a decidir
Do thema decidendum do recurso:
Para definir o âmbito dos recursos, a doutrina [1] e a jurisprudência [2] são pacíficas em considerar, à luz do disposto no artigo 412º, nº 1, do Código de Processo Penal, que o mesmo é definido pelas conclusões que o recorrente extraiu da sua motivação, sem prejuízo, forçosamente, do conhecimento das questões de conhecimento oficioso.
A função do tribunal de recurso perante o objeto do recurso, quando possa conhecer de mérito, é a de proferir decisão que dê resposta cabal a todo o thema decidendum que foi colocado à apreciação do tribunal ad quem, mediante a formulação de um juízo de mérito.
Atento o teor do relatório atrás produzido, importa decidir as questões substanciais a seguir concretizadas – sem prejuízo de outras de conhecimento oficioso -, que sintetizam as conclusões do recorrente, constituindo, assim, o seu thema decidendum:
1ª: O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
2ª: A impugnação ampla da decisão da matéria de facto;
II - OS FACTOS PROCESSUAIS RELEVANTES

Perante as questões suscitadas no recurso da sentença, torna-se essencial - para a devida apreciação do seu mérito - recordar a fundamentação da decisão em matéria de facto recorrida:
Extrato da sentença recorrida:
«II-Fundamentação
A. Discutida a causa resultou provado que:
1. No dia 02.10.2015, cerca das 05h30m, na Estrada Nacional …, ao km ......, em …, Penafiel, ocorreu um acidente de viação em que foi interveniente o veículo ligeiro de passageiros, de matrícula ..-..-QH, conduzido pelo arguido.
2. Sujeito que foi, ao teste de alcoolémia no sangue e de substâncias psicotrópicas, por recolha efectuada no Centro Hospitalar C…, E.P.E., acusou o mesmo uma T.A.S. de, pelo menos, 1,34G/l.
3. Mais tendo acusado a taxa de substâncias psicotrópicas de no sangue, pelo menos, de 8,5ng/ml de THC-COOH e 1,4 ng/ml de THC.
4. O arguido representou e quis ingerir bebidas alcoólicas e consumir canabinóides e conduzir o veículo automóvel na via pública, tendo conduzido sujeito à influência do álcool e dos estupefacientes/substâncias psicotrópicas no sangue.
5. Sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei e tinha capacidade de se determinar de acordo esse conhecimento.
6. O arguido é ajudante de motorista, encontrando-se em baixa médica, auferindo cerca de €360,00.
7. Vive com os pais e irmãos em casa daqueles.
B. Motivação da matéria de facto
O tribunal considerou os factos supra referidos provados com base nos elementos que passa a explicar.
Que nas circunstâncias de tempo e lugar o arguido conduzia o veículo identificado e que ocorreu um acidente, resulta das declarações do próprio arguido, do depoimento das restantes testemunhas e do auto de notícia de fls. 3 e 4.
Que o arguido foi conduzido ao Hospital onde lhe foi recolhido sangue para análises e acusou as taxas de álcool de estupefacientes referenciadas resulta do relatório de fls. 5 (de evidenciar que o tribunal aplicou a margem de erro referido nesse relatório).
Que o arguido ingeriu bebidas alcoólicas antes de iniciar a condução também resultou provado com base nas declarações do arguido (que admitiu ter ingerido duas cervejas), da testemunha D… (amigo do arguido que o acompanhou num primeiro bar em que estiveram juntos e onde o arguido terá ingeridos duas cervejas) e E… (também amigo do arguido que o acompanhou nos dois bares onde foram e referiu que viu o arguido beber 3 cervejas).
O arguido refere, porém, que não ingeriu bebidas alcoólicas em quantidade suficiente para ter aquela taxa de álcool no sangue. Refere que não se recorda de nada após o acidente (apenas de acordar já no Hospital), mas sabe que foi agredido depois do acidente e que alguém deverá tê-lo obrigado a ingerir whisky depois do acidente (não se recordando, porém, de nada nem sabendo explicar a razão de ciência destas suas desconfianças).
As duas testemunhas que acompanhavam o arguido, designadamente E… também sustentaram a mesma teoria, mas sem ninguém conseguir explicar porque têm tal opinião, nem identificar pessoas que possam corroborar essa teoria.
O tribunal tem como dado objetivo a taxa de álcool no sangue apresentada pelo arguido na realização do exame. Por outro lado, o facto de as testemunhas apenas terem visto o arguido a beber três cervejas não significa que o arguido não tenha ingerido mais bebidas alcoólicas durante o dia e noite. Acresce que, não consegue o tribunal como e por que motivos é que alguém (um desconhecido e sem motivo aparente) conseguiria obrigar o arguido a ingerir bebidas alcoólicas estando ele desmaiado/inanimado. Por fim, não podemos deixar de frisar que a versão dos factos apresentada pelo arguido é, no mínimo, fantasiosa e inverosímil à luz das mais elementares regras da experiência.
Pelo que foi considerado provado que arguido conduzia, pelo menos, com aquela taxa de álcool no sangue.
A quantidade de produto estupefaciente com que o arguido conduzia também resulta do mesmo exame.
A ausência de antecedentes criminais do arguido resulta do seu CRC junto aos autos.
As condições económicas e profissionais do arguido resultaram provadas com base nas suas declarações que, nesta parte, se mostraram credíveis,

Perante o exposto, importa apreciar e decidir as questões submetidas à apreciação deste Tribunal - sem prejuízo das questões de apreciação oficiosa -.
III - FUNDAMENTAÇÃO

De acordo com as regras da precedência lógica a que estão submetidas as decisões judiciais (artigo 608°, n° 1 do Código de Processo Civil, ex vi do artigo 4° do Código de Processo Penal), cumpre apreciar, primeiramente, o vício formal suscitado pelo Ministério Público.

A - Da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada:
O arguido foi julgado - e condenado - pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez, previsto e punido pelos artigos 292°, n°1 e 69°, n°1, al. a) do Código Penal.
O Ministério Público junto deste Tribunal suscita, formalmente, o supra citado vício formal da sentença, por entender que nesta não foram apurados todos os factos necessários para que possa ser decidida a imputação ao arguido da responsabilidade pelo crime de que foi acusado.
Concretamente, sustenta que a sentença omite qualquer referência à possibilidade (ou impossibilidade) da realização de exame de pesquisa de álcool no ar expirado, com observância dos procedimentos previstos no artigo 153° (sendo caso disso); nem se curou de saber se a colheita de sangue feita no Centro Hospitalar C… teve em vista (ou não) a deteção de álcool no sangue do arguido, se o arguido se opôs (ou não) a tal colheita ou se a mesma ocorreu (ou não) com o seu consentimento tácito.
Assim como não é feita no texto da sentença qualquer referência à observância dos procedimentos relativos à análise de sangue para quantificação da taxa de álcool previstos na Secção II do Capitulo I da Portaria n° 902-B/2007, de 13 de agosto, aludindo-se apenas ao relatório junto a fls. 5 dos autos, este relativo à quantificação de álcool no sangue do arguido e ao rastreio de substâncias psicotrópicas.
E se é certo que o juízo técnico e científico contido nesse relatório pericial está subtraído à livre apreciação do julgador - estando-Ihe, portanto, vedado pôr em causa os resultados das análises efetuadas (salvo no condicionalismo previsto no n° 2 do artigo 163°, do C. P. Penal) - é, também, verdade que não está subtraído a essa apreciação o controlo da legalidade dos procedimentos a que está sujeita a recolha do material submetido a análise, cuja inobservância poderá conduzir à invalidação daquela prova.
Conclui, assim, existir uma "lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para uma decisão de direito ", integrante do vício formal previsto na alínea a) do n° 2 do artigo 410° do C. P. Penal - insuficiência para a decisão da matéria de facto provada -.
Apreciando.
De jure
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada prevista na alínea a) do art. 410°, n° 2, do Código de Processo Penal é aquela decorre da omissão de pronúncia, pelo tribunal, sobre factos alegados ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão, ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou como não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados pela acusação, pela defesa ou resultado da discussão. Se tal sucedeu, então o tribunal de julgamento terá deixado de considerar um facto essencial postulado pelo objeto do processo, isto é, deixou por esgotar o thema probandum.
Este - o thema probandum - é consubstanciado pela acusação ou pronúncia, complementada pela pertinente defesa, sendo referente ao apuramento da factualidade referente à existência e extensão da responsabilidade penal em causa nos autos, bem como à indemnização: à luz do disposto no artigo 124°, n° 1, do Código de Processo Penal: "Constituem objecto da prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis."
Por conseguinte, reveste interesse instrumental ao apuramento da factualidade referente à existência e extensão da responsabilidade penal em causa nos autos, o apuramento dos factos susceptíveis de conferir (ou retirar) força probatória ao exame de sangue realizado e que permitiu determinar a taxa de alcoolemia que o arguido registava no exercício da condução automóvel.
De acordo com o disposto no artigo 152.°, n.° 1, a) do Código da Estrada, os condutores devem submeter-se às provas estabelecidas para a deteção dos estados de influência por álcool ou por substâncias psicotrópicas.
A este respeito, estatui o artigo 156°, do C. da Estrada, sob a epígrafe "Exames em caso de acidente", o seguinte:
"1. Os condutores e os peões que intervenham em acidente de trânsito devem, sempre que o seu estado de saúde o permitir, ser submetidos a exame de pesquisa de álcool no ar expirado, nos termos do artigo 153.".
2. Quando não tiver sido possível a realização do exame referido no número anterior, o médico do estabelecimento oficial de saúde a que os intervenientes no acidente sejam conduzidos deve proceder à colheita de amostra de sangue para posterior exame de diagnóstico do estado de influência pelo álcool e ou por substâncias psicotrópicas.
3. Se o exame de pesquisa de álcool no sangue não puder ser feito ou o examinando se recusar a ser submetido a colheita de sangue para análise, deve proceder-se a exame médico para diagnosticar o estado de influência pelo álcool e ou por substâncias psicotrópicas."
Relacionado com a impossibilidade de realização do exame de pesquisa de álcool no ar expirado, o disposto no n° 1 do art. 4° da Lei n°. 18/2007, de 17 de Maio, estatui o seguinte:
"1- Quando, após três tentativas sucessivas, o examinando não conseguir expelir ar em quantidade suficiente para a realização do teste em analisador quantitativo, ou quando as condições físicas em que se encontra não lhe permitam a realização daquele teste, é realizada análise de sangue."
Em caso de acidente, estabelece o n.° 1 do art.° 156.° do mesmo diploma que os condutores devem, sempre que o seu estado de saúde o permitir, ser submetidos a exame de pesquisa de álcool no ar expirado, nos termos do art.° 153.°.
Quando não for possível a realização do exame referido no número anterior, o médico do estabelecimento oficial de saúde a que os intervenientes no acidente sejam conduzidos deve proceder à colheita da amostra de sangue para posterior exame de diagnóstico do estado de influenciado pelo álcool - n.° 2 do citado art.° 156.°,atrás reproduzido -.
Se o exame de pesquisa de álcool no sangue não puder ser feito, deve proceder-se a exame médico para diagnosticar o estado de influenciado pelo álcool - n.° 3 do mesmo preceito legal, igualmente transcrito na fundamentação deste acórdão -.
Ora, conforme resulta expressamente da factualidade apurada, ocorreu um acidente de viação em que foi interveniente um veículo automóvel ligeiro de passageiros conduzido pelo arguido.
Posteriormente, em circunstâncias não concretamente apuradas foi realizado um exame ao sangue do arguido.
A respeito desta matéria, veja-se, nomeadamente, o acórdão desta Relação, de 15 de Junho de 2011 (processo n° 122/10.0GBBA0.P1), publicado na base de dados de jurisprudência disponibilizada na rede digital global [3]
O Tribunal Constitucional (decisão sumária n° 132/2011) entendeu que a norma constante do art. 156°, 2 do Código da Estrada, na redação do Dec. Lei n° 44/05, de 23/2, não era inconstitucional, quando interpretada no sentido de permitir o exame através de recolha de sangue "(...) e não tiver sido possível a realização do exame referido no n.° 1 do mencionado artigo".
Resultando da fundamentação da convicção do tribunal plasmada na sentença que "o arguido foi conduzido ao Hospital onde lhe foi recolhido sangue para análises e acusou as taxas de álcool de estupefacientes referenciadas resulta do relatório de fls. 5", sem concretizar o motivo pelo qual não foi sujeito ao exame de pesquisa de álcool no ar expirado, desconhece-se se aquele meio concreto de prova pode, ou não, ser valorado.
Os autos ainda revelam que o arguido foi encontrado ferido após o acidente, tendo-se o mesmo identificado verbalmente como condutor do automóvel, após o que foi conduzido ao hospital.
Tendo em atenção a impugnação da decisão da matéria de facto suscitada no recurso e o enquadramento legal dos procedimentos para determinação da taxa de alcoolemia de condutores, torna-se absolutamente necessário para a boa decisão da causa apurar, no caso em apreço, um conjunto de factos que não constam da sentença recorrida como "provados", "não provados" ou, sequer, na fundamentação da convicção do tribunal, nomeadamente:
a) se o arguido foi submetido a exame de pesquisa de álcool no ar expirado, através de aparelho aprovado para o efeito (art. 156°,1 e 153° do C. Estrada);
b) se era possível (ou impossível) a realização de tal exame (recolha de ar expirado);
Por força do disposto no n° 1 do art. 426° do Código de Processo Penal, sempre que, por existirem vícios referidos nas alíneas do n.° 2 do art. 410°, não for possível decidir da causa, o tribunal de recurso determina o reenvio do processo para novo julgamento, relativamente à totalidade do objecto do processo ou a questões concretamente identificadas na decisão de reenvio.
Padecendo a sentença recorrida do vício formal referido na al. a) do n.° 2 do art. 410° do Código de Processo Penal - e não constando dos autos elementos suficientes para sanar o aludido vício, designadamente o auto de notícia não explicita devidamente o sucedido, nem a documentação clínica e hospitalar o faz - este Tribunal superior encontra-se impedido de decidir a causa, tornando necessária a recolha de prova para o apuramento dos factos acima referidos, mediante o reenvio do processo para novo julgamento.

III - DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, os juízes signatários acordam por unanimidade, em conferência, considerar verificado o vício formal da sentença tipificado no artigo 410°, n° 2, al. a) do Código de Processo Penal e, em consequência, determinam o reenvio do processo para novo julgamento, com vista ao apuramento, nomeadamente, dos factos a seguir concretizados:
a) se o arguido foi submetido a exame de pesquisa de álcool no ar expirado, através de aparelho aprovado para o efeito;
b) se era possível (ou impossível) a realização de tal exame (recolha de ar expirado);
Sem custas.
Nos termos do disposto no art. 94°, 2, do Código de Processo Penal, aplicável por força do art. 97°, 3, do mesmo texto legal, certifica-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo relator.

Porto, em 21 de Junho de 2017.
Jorge Langweg
Maria Dolores da Silva e Sousa
_______
[1] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição revista e atualizada, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, V.
[2] Como decorre já de jurisprudência datada do século passado, cujo teor se tem mantido atual, sendo seguido de forma uniforme por todos os tribunais superiores portugueses, até ao presente: entre muitos, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de Outubro de 1995 (acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória), publicado no Diário da República 1ª-A Série, de 28 de Dezembro de 1995, de 13 de Maio de 1998, in B.M.J., 477º,-263, de 25 de Junho de 1998, in B.M.J., 478º,- 242 e de 3 de Fevereiro de 1999, in B.M.J., 477º,-271 e, mais recentemente, de 16 de Maio de 2012, relatado pelo Juiz-Conselheiro Pires da Graça no processo nº. 30/09.7GCCLD.L1.S1, este pesquisável, nomeadamente, através do aplicativo de pesquisa de jurisprudência disponibilizado, pelo ora relator, em http://www.langweg.blogspot.pt.
[3] No endereço seguinte:
http://www.dgsi.pt/itrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/95785692d17ec518802578beQ04cf9a97O penDocument.