Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0611498
Nº Convencional: JTRP00039459
Relator: GUERRA BANHA
Descritores: MAUS TRATOS A OUTREM
Nº do Documento: RP200609200611498
Data do Acordão: 09/20/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE.
Indicações Eventuais: LIVRO 456 - FLS 96.
Área Temática: .
Sumário: O crime de maus tratos abrange todos os comportamentos dolosos praticados sobre as pessoas referidas nos nºs 1, 2 e 3 do artº 153º do CP95 que lesem o seu bem-estar e a sua saúde e ofendam a sua dignidade.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam em audiência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto.
I
RELATÓRIO
1. B………., arguido nos autos de processo comum colectivo n° ../03..TAVLG do 3º Juízo do Tribunal Judicial da comarca de Valongo, interpôs o presente recurso do acórdão proferido em 25/05/2005, a fls. 220-237, que o condenou:
a. como autor de um crime de maus tratos, da previsão do art. 152º, nºs 3 e 6, do Código Penal, na pena de 2 anos de prisão e na pena acessória de proibição de contacto com a vítima pelo período de 2 anos;
b. como autor de um crime de ofensa à integridade física simples, da previsão do art. 143º, nº 1, do Código Penal, na pena de 6 meses de prisão.
c. Em cúmulo jurídico daquelas duas penas, condenou-o na pena única de 2 anos e 3 meses de prisão e na pena acessória de proibição de contacto com a vítima pelo período de 2 anos.
d. Mais o condenou a pagar à assistente a quantia de € 2.500,00, a título de indemnização por danos causados, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a notificação até integral pagamento, e
e. nas custas criminais e civis.
Concluiu a motivação do seu recurso formulando as conclusões seguintes:
1ª. O Tribunal recorrido incorreu em notórios erros de julgamento, nomeadamente ao considerar demonstrada a matéria vertida sob os itens 2 e 27 dos factos provados.
2ª. A análise ponderada da prova produzida em audiência, nomeadamente das declarações da assistente e das testemunhas C………., D………. e E………., conduz a conclusões diversas.
3ª. Da dita análise deve, nomeadamente, concluir-se que os sucessivos reatamentos do relacionamento amoroso entre assistente e arguido se deveram a verdadeiras reconciliações, não a medos ou angústias.
4ª. Deve, de igual modo, concluir-se que a bofetada desferida pelo arguido na filha, no dia 23 de Fevereiro de 2003, não foi violenta.
5ª. O douto acórdão recorrido padece de nulidade, por omissão de menções referidas no nº 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal, quais sejam a discriminação dos concretos motivos de facto que fundamentam a decisão condenatória.
6ª. O procedimento criminal pela prática dos factos provados vertidos sob os itens 3, 4, 8 e 15 encontra-se prescrito, atendendo ao período de tempo desde então decorrido.
7ª. A descrita factualidade fundamenta, no entanto, a condenação do arguido pelo crime de maus tratos, em clara violação do disposto no artigo 118º do Código Penal.
8ª. A matéria de facto vertida nos itens 5, 6, 7, 12, 13 e 14 dos factos provados não especifica as circunstâncias de tempo, lugar e modo da respectiva prática, impedindo o exercício de um efectivo direito de defesa do recorrente, em clara violação do dispositivo do artigo 32° da Constituição da República Portuguesa.
9ª. A decisão recorrida funda-se numa incorrecta interpretação da norma do artigo 152º, nº 3, do Código Penal.
10ª. A boa interpretação do citado preceito impõe, com vista ao preenchimento do tipo legal de crime de maus tratos, uma actuação grave e reiterada, que, em boa verdade, não ficou validamente demonstrada.
11ª. A condenação do recorrente pela prática do crime de ofensa à integridade física funda-se, para além do alegado erro na decisão de facto, numa incorrecta interpretação do artigo 143º do Código Penal.
Pretende, assim, que, no provimento do recurso, seja revogado o acórdão recorrido e seja substituído por outro que absolva o recorrente dos crimes de que estava acusado e do pedido de indemnização civil contra si deduzido.

2. Responderam à motivação do recurso o Ministério Público e a assistente, pronunciando-se ambos pelo não provimento do recurso.

3. Nesta Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu o parecer que consta a fls. 282, em que se pronunciou pela rejeição do recurso por manifesta improcedência, nos termos do art. 420º, nº 1, do Código de Processo Penal.
Este parecer foi notificado aos demais sujeitos processuais, nos termos do art. 417º nº 2 do Código de Processo Penal, a que apenas respondeu o recorrente para dizer que deu cumprimento ao disposto no art. 412º, nºs 3 e 4, do Código de Processo Penal.
Os autos foram a visto dos Ex.mos Juízes adjuntos e, após, realizou-se a audiência de julgamento.
II
FUNDAMENTOS DE FACTO
4. No acórdão recorrido foram considerados provados os factos seguintes:
1) Desde 2 de Novembro de 1990, data do nascimento da filha de ambos, D………., que o arguido viveu maritalmente com F………. . Em Abril de 1993, separaram-se.
2) Desde esta última data, o arguido e a ofendida têm vindo a manter uma relação amorosa, interrompida por diversas vezes por períodos de tempo de alguns meses, em virtude das constantes agressões, injúrias e ameaças cometidas pelo arguido na pessoa da ofendida, motivadas essencialmente por ciúmes do arguido.
3) A F………. desde há alguns anos que aceita por vezes reatar o relacionamento amoroso com o arguido por receio de agressões e perseguições cometidas pelo arguido.
4) Desde data indeterminada de 1993, o arguido frequentemente espera pela F………. na rua sem o seu consentimento e diz-lhe em voz alta "puta", "que anda a foder com este e com aquele", "badalhoca".
5) Nestas ocasiões, a F………. tenta fugir e o arguido geralmente agarra-a com violência e contra a sua vontade.
6) Por vezes o arguido envia mensagens escritas para o telemóvel da ofendida com palavras como "baixa as cuecas e salta para cima de mim até estares satisfeita".
7) Por diversas vezes o arguido se encostou e espreitou para dentro da janela de casa da irmã da F………. quando esta lá se encontra.
8) Por diversas vezes, o arguido telefonou para casa da F………. durante a noite, por volta das 3 ou 4 horas da madrugada, e desligava o telefone quando aquela o atendia.
9) Ainda em 1993, residindo a F………. em casa da sua avó, o arguido por diversas vezes esperou, escondido, numa zona isolada, que a F………. passasse na rua em direcção a casa da sua irmã, como fazia habitualmente, e desferiu-lhe bofetadas, provocando-lhe hematomas.
10) A F………., por medo e vergonha, nunca recorreu ao hospital, nunca apresentou queixa nem contou a verdade a ninguém.
11) Durante dez anos e até Agosto de 2001, a F………. trabalhou na G………., no Porto.
12) Durante esse período de tempo, o arguido tinha acessos de ciúmes que duravam cerca de uma semana e que se interrompiam quando a ofendida aceitava namorar com ele.
13) Nesses acessos de ciúmes, o arguido todos os dias esperava pela F………. à porta da G………. contra a sua vontade, constrangendo-a com a sua presença.
14) De uma das vezes, à porta da G………., o arguido chamou-lhe "puta" e "vaca' em voz alta.
15) No dia 14 de Fevereiro de 1998, o arguido esperou pela F………. na Rua ………., contra a sua vontade. Quando a F………. ia a passar naquele local, o arguido surpreendeu-a e disse-lhe em voz alta "puta", "que andava a foder com os patrões" e desferiu-lhe um número indeterminada de bofetadas, que provocaram a sua queda, tendo tido necessidade de receber tratamento hospitalar.
16) Como consequência directa e necessária desta conduta do arguido, resultaram para a F………. as lesões descritas no auto de exame médico-legal de fls. 6 dos autos apensos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, que lhe demandaram 4 dias de doença.
17) Em data indeterminada do verão de 2002, depois de a F………. sair do café que fica perto de casa da sua irmã, o arguido telefonou-lhe por diversas vezes seguidas para o telemóvel e disse-lhe "que ela se estava a arreganhar toda para o homem do café".
18) No dia 31 de Janeiro de 2003, a F………. foi jantar com o arguido na churrasqueira ……….. .
19) No decurso do jantar, o arguido disse à F………. que "há doze anos que me andas a enganar, andas a foder com este e com aquele, não querias que eu te fosse buscar à G………. porque andavas a foder com os estudantes todos".
20) Já no exterior da churrasqueira, a F………. tentou fugir mas o arguido pôs-se à sua frente, impedindo-a de fugir e disse-lhe em voz alta "eu fodo-te, eu parto-te os dentes".
21) Mais lhe disse que a proibia de levar a filha para casa da sua irmã porque a ofendida ia para lá “foder” com os ucranianos que vivem em frente.
22) Em seguida, o arguido atirou com a mochila e partiu o vidro de um veículo automóvel.
23) No dia 16 de Fevereiro de 2003, o arguido esperou pela F………. à porta de casa da irmã daquela, sita na ………., em Ermesinde, e disse-lhe, em voz alta aos gritos: “eu vi-te pela janela a foder com os ucranianos”. A F………. telefonou para a polícia e o arguido ausentou-se, dizendo-lhe em voz alta que a “fodia".
24) No dia 23 de Fevereiro de 2003, pelas 22 horas (10 da noite), na ………., em Ermesinde, nesta comarca, como habitualmente, o arguido esperou na rua que a F………. e a filha de ambos, D………., de 12 anos de idade, passassem por aquele local ao regressarem a casa vindas de casa da irmã da F………., como fazem habitualmente aos fins-de-semana.
25) Ao passarem naquele local, o arguido agarrou a F………. pelos braços e disse-lhe aos gritos, "que andava a foder com os ucranianos", provocando-lhe hematomas nos braços.
26) A filha de ambos, a D………., interpôs-se entre o arguido e a F………. e disse ao arguido para largar a sua mãe. De imediato, o arguido disse à menor D………. "cala-te, se não levas”.
27) Como a menor continuou a gritar, o arguido desferiu-lhe uma bofetada com violência.
28) Como consequência directa e necessária desta agressão, resultaram para a ofendida D………. edema da hemiface esquerda e solução de continuidade do lábio superior, que lhe demandaram 5 dias de doença, sem afectação da capacidade de trabalho. A menor D………. teve necessidade de receber tratamento hospitalar.
29) No dia 26 de Março de 2003, o arguido, como habitualmente, sem o consentimento e contra vontade da F………., esperou na rua que ofendida e a menor saíssem de casa da irmã da ofendida a fim de a ameaçar, injuriar e agredir, apenas não o tendo feito porque estas regressaram de táxi para casa.
30) O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, com a intenção de causar sofrimentos físicos e psíquicos à mãe da sua filha e com intenção de molestar o corpo da sua filha, bem sabendo que a sua conduta era adequada a provocar tais sofrimentos e lesões e que a sua conduta era proibida por lei.
31) Na sequência das agressões e demais comportamentos do arguido, a assistente sofreu dores e vexame público, sentindo vergonha e enorme constrangimento.
32) A assistente é de modesta condição económica e social encontrando-se desempregada.
33) O arguido é de modesta condição económica e social, integrando uma equipe de construção civil.
34) No seu certificado de registo criminal junto a fls. 59 não se encontra averbada qualquer condenação criminal.

5. E foram considerados não provados os factos seguintes:
Não se provaram todos os demais factos constantes da acusação pública, do pedido de indemnização civil e das contestações. Deste modo, não se provou:
- que as mensagens escritas para o telemóvel da assistente fossem enviadas pelo arguido “quase todos os dias”;
- que a assistente dissesse “que tinha tido acidentes para justificar as lesões”;
- que no dia 14 de Fevereiro de 1998 o arguido tivesse desferido socos na assistente;
- que a assistente tivesse aceitado ir jantar com o arguido na churrasqueira ………. “com receio de que este a agredisse”;
- que a assistente é pessoa de boa formação moral, cívica, estimada por todos e unanimemente tida como pessoa honesta;
- que o arguido é conhecido na zona da sua residência como sério e respeitador, incapaz da conduta descrita.

6. O tribunal recorrido motivou a sua decisão quanto aos factos provados e não provados do seguinte modo:
«A convicção do tribunal no que concerne aos factos provados fundou-se no conjunto da prova produzida, nomeadamente:
- nas declarações da assistente F………., que descreveu, de forma sentida mas com detalhe e riqueza de pormenores, a merecer toda a credibilidade, todos os acontecimentos acima considerados provados; conjugado com:
- o depoimento da testemunha D………., a qual, para além de descrever o sucedido no dia 23 de Fevereiro de 2003, nomeadamente a agressão de que foi vítima, com o estaladão que sofreu e que lhe provocou o rompimento do lábio, relatou diversos episódios que presenciou, em que o pai agrediu a mãe (viu-o a dar-lhe uma estalada e a agarrá-la pelos braços) e injuriava a mãe de “puta” e “vaca”, referindo expressivamente que “era um escândalo” (sic); conjugadas com:
- o depoimento da testemunha C………., irmã da assistente, a qual se pronunciou sobre as peripécias do relacionamento da irmã com o arguido, referiu que, embora não tenha assistido aos acontecimentos ocorridos no dia 23 de Fevereiro de 2003, foi logo após contactada pela irmã, deslocando-se para o local onde ainda viu o arguido à frente, em passo acelerado, e a sobrinha, a menor D………., agarrada à face e com “um bocadinho de sangue no lábio”. Segundo relatou, por diversas vezes viu a irmã com marcas vermelhas nos braços, as quais no dia seguinte passavam a “negras”. Também por diversas vezes presenciou o arguido a chamar a assistente, na via pública, de “puta” e “vaca”, tendo-o também ouvido dizer “vai dar a cona a quem tu quiseres mas não levas a minha filha”. Por duas vezes surpreendeu o arguido “dependurado” à sua janela a olhar lá para o interior da sua residência. A testemunha, na ocasião, namorava com um ucraniano, o que logo foi pretexto para o arguido acusar a assistente de que andava metida com ucranianos que residiam nas redondezas, dizendo “não queres foder comigo porque andas a foder com ucranianos”; conjugado com:
- o depoimento da testemunha H………., a qual relatou que, efectivamente, há cerca de seis a sete anos, num sábado à tarde, deparara com a assistente na rua assustada, a chorar, com sangue na cara, que a mesma a informara que acabara de ser agredida pelo pai da filha e que no local ainda chegou a ver um homem, de costas, a afastar-se.
- Relativamente às lesões sofridas pela assistente no dia 14 de Fevereiro de 1998, foi valorada o exame médico directo, a que se reporta o auto de fls. 6 do apenso, conjugado com a ficha clínica junta a fls. 64 e 65.
- No que se refere às lesões sofridas pela filha D………., foi valorada a perícia realizada pelo Instituto de Medicina Legal, cujo relatório consta de fls. 55-56, conjugado com a documentação clínica constante de fls. 33-34 (ficha clínica) e com a declaração junta a fls. 4.
- Foi igualmente valorado o documento junto a fls. 38 (assento de nascimento).
- No que se refere situação pessoal e profissional do arguido foram valoradas as declarações do arguido e no que concerne aos seus antecedentes criminais, o respectivo certificado de registo criminal junto a fls. 59.----------
Importa deixar consignado que o arguido, reconhecendo, embora, que vivera maritalmente com a assistente desde o nascimento da filha de ambos até Abril de 1993 e que posteriormente tivera um relacionamento amoroso com aquela, interrompido e depois reatado por diversas vezes, negou os factos de que vinha acusado, que taxou de falsos, apenas reconhecendo que uma vez desferira uma bofetada na assistente, ainda antes do nascimento da filha, e que em 1998 tivera uma zanga com a assistente na G………., uma vez que esta lhe lançara um cinzeiro à cabeça que o atingiu nos braços e no peito. Na ocasião deu-lhe uma bofetada porque ela lhe dera antes duas bofetadas. Quanto aos acontecimentos ocorridos no dia 23 de Fevereiro de 2003, reconheceu que efectivamente abordara a assistente, que com ela discutira e se exaltara, negando porém qualquer injúria ou agressão. No que se refere à sua filha, o arguido começou por referir que a mesma lhe dera um pontapé nas partes, na sequência do que lhe deu “uma sapatada”, para depois de interpelado para esclarecer o que era uma sapatada referir que se tratara de uma “sacudidela” que não teria aptidão para deixar quaisquer marcas.
A versão do arguido, desmentida pelos demais elementos de probatórios e pese embora o depoimento da testemunha E………., que referiu que, naquele dia 23 de Fevereiro de 2003, tinha acompanhado o arguido e que a filha lhe dera um pontapé nas partes, o que teria visto, não obstante ser de noite ― segundo ele os factos teriam ocorrido entre as 22h30 e as 23h00 ― e se encontrar a cerca de 20 metros de distância, não mereceu qualquer credibilidade, nem sequer chegou a suscitar no tribunal uma qualquer dúvida, que, a ter existido ― e, repete-se, não existiu ― sempre deveria ser valorada pro reo. Por outras palavras e mais cruamente, o tribunal não teve dúvidas sobre o que sucedeu naquele dia 23 de Fevereiro de 2003 e sobre o mencionado “pontapé nas partes” não acreditou numa palavra do que disseram quer o arguido que a testemunha E………. .
No que se refere aos factos não provados, os mesmos radicaram na circunstância de se ter provado realidade distinta (assim, quanto aos socos alegadamente desferidos pelo arguido sobre a assistente, no dia 14 de Fevereiro de 1998, a assistente foi clara no sentido de que na ocasião não foram desferidos socos) ou de sobre eles não ter sido efectuada qualquer tipo de prova (todos os demais factos não provados).
III
FUNDAMENTOS DE DIREITO
7. São as conclusões da motivação do recurso que delimitam o seu objecto e os poderes de cognição do tribunal, sem prejuízo das questões de que pode conhecer oficiosamente.
As questões que se contêm nas conclusões do recurso formuladas pelo recorrente visam a decisão de facto e a decisão de direito e sintetizam-se do seguinte modo:
1ª. erro de julgamento quanto aos pontos de facto descritos como provados sobre os itens 2) e 27), que o recorrente entende não se terem provado, ou não se terem provado desse modo;
2ª. nulidade do acórdão recorrido por omitir a discriminação dos concretos motivos de facto que fundamentam a decisão condenatória, em violação do nº 2 do art. 374º do Código de Processo Penal;
3ª. prescrição do procedimento criminal quanto aos factos descritos como provados sob os itens 3), 4), 8) e 15), atendendo ao período de tempo desde então decorrido, e baseando-se o acórdão recorrido nesses factos para condenar o arguido pelo crime de maus tratos, violou o disposto no art. 118º do Código Penal;
4ª. que a matéria vertida nos itens 5), 6), 7), 12), 13) e 14) dos factos provados não especifica as circunstâncias de tempo, lugar e modo da respectiva prática, impedindo o exercício do direito de defesa do recorrente e violando o art. 32° da Constituição da República Portuguesa;
5ª. incorrecta interpretação da norma do artigo 152º, nº 3, do Código Penal, no que respeita à condenação do arguido pelo crime de maus tratos, por não ter ficado demonstrada uma actuação grave e reiterada do arguido;
6ª. incorrecta interpretação do art. 143º do Código Penal, no que respeita à condenação do recorrente pelo crime de ofensa à integridade física.

8. Quanto à primeira questão, o recorrente invoca ter havido erro de julgamento quanto aos pontos de facto descritos como provados sobre os itens 2) e 27), que entende não se terem provado, ou não se terem provado do modo como ficou descrito.
Os pontos de facto impugnados são os seguintes:
* “A F………. desde há alguns anos que aceita por vezes reatar o relacionamento amoroso com o arguido por receio de agressões e perseguições cometidas pelo arguido” ― descrito no acórdão recorrido sob o item 2), supra descrito no nº 4 sob o item 3;
* “Como a menor continuou a gritar, o arguido desferiu-lhe uma bofetada com violência” ― descrito sob o item 27).
Quanto ao primeiro facto impugnado, diz o recorrente que das declarações prestadas em audiência pela própria assistente e pela sua irmã, a testemunha C………., resultou evidente que “os sucessivos reatamentos do relacionamento amoroso entre o arguido e a assistente nada tiverem a ver com o alegado receio de agressões e perseguições”, mas, antes, que se deveram à “falta de alternativas”, acrescentando que, “para qualquer observador medianamente atento e perspicaz ... se alguém tem medo de outrem foge certamente, não se refugia no seus braços”.
Quanto ao segundo facto impugnado, diz que do depoimento da própria menor “resultou claro como água ... que o arguido terá desferido ... uma ligeira bofetada, não mais do que isso”, discordando, deste modo, apenas do carácter violento atribuído à bofetada.
Tanto o Ministério Público como a assistente consideram que o recorrente não cumpriu o ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4 do art. 412º do Código de Processo Penal no que respeita às provas que impõem decisão diferente e, por isso, propõem que o recurso deva ser rejeitado nesta parte.
Tal se resume, em primeira linha, a apreciar se o recorrente especificou as provas produzidas em audiência que imponham decisão diferente da tomada pelo tribunal recorrido quanto aos dois pontos de facto impugnados.
Com efeito, prescreve o nº 3 do art. 412º do Código de Processo Penal que, quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) Os pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) As provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas.
O nº 4 do mesmo artigo acrescenta que, quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas als. b) e c) do número anterior fazem-se por referência aos suportes técnicos, havendo depois lugar a transcrição.
Como se vê, a lei exige que o recorrente especifique, em concreto, ponto por ponto, não só quais os factos que considera incorrectamente julgados, mas também em que sentido deveriam ter sido correctamente julgados e quais as provas que impõem essa diferente decisão.
Impor decisão diversa da recorrida não significa admitir uma decisão diversa da recorrida. Tem um alcance muito mais exigente, muito mais impositivo. No sentido de que não basta contrapor à convicção do julgador uma outra convicção diferente, ainda que também possível, para provocar uma modificação na decisão de facto. É necessário que o recorrente desenvolva um quadro argumentativo que demonstre, através da análise das provas por si especificadas, que a convicção formada pelo julgador, relativamente aos pontos de facto impugnados, é impossível ou desprovida de razoabilidade.
É inequivocamente este o sentido da expressão “provas que impõem decisão diversa da recorrida”, constante da al. b) do nº 3 do art. 412º do Código de Processo Penal. Que consubstancia um ónus imposto ao recorrente, no sentido de ter de demonstrar que as provas produzidas impõem uma decisão diferente da que foi proferida. “Impor” decisão diferente não significa “admitir” uma outra decisão diferente. É mais do que isso e quer dizer que a decisão proferida, face às provas, não é possível ou não é plausível.
Ora, o recorrente limitou-se a confrontar a convicção formada pelo tribunal recorrido com a sua própria convicção, relativamente aos depoimentos prestados acerca dos dois factos impugnados. O que, manifestamente, não cumpre o ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4 do art. 412º do Código de Processo Penal, nem põe em causa a decisão proferida como uma decisão não possível ou não razoável.
Acresce que a valoração da prova por depoimento não tem que se basear, necessariamente, apenas no sentido formal das palavras proferidas por cada testemunha. Já que, nos termos do art. 127º do Código de Processo Penal, esta prova “é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”. Em que a imediação, resultante da “relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes do processo, permite obter uma percepção própria do material que haverá de ter como base da sua decisão” (cfr. Prof. FIGUEIREDO DIAS, em Direito Processual Penal, Lições coligidas por Maria João Antunes, 1988-1989, pág. 158). Por isso, escreve o mesmo Professor, “a decisão do tribunal há-de ser sempre uma «convicção pessoal» ─ até porque nela desempenham um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais” (em Direito Processual Penal, vol. I, ed. 1974, p. 204).
No mesmo sentido se pronuncia o acórdão do SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA de 20/09/2005 (em www.dgsi.pt/jstj.nsf/ com o nº 05A2007): “A convicção do tribunal é construída dialecticamente, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e das lacunas, das contradições, hesitações, inflexões de voz, (im)parcialidade, serenidade, olhares, «linguagem silenciosa e do comportamento», coerência do raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, por ventura, transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos”.
Elementos que a transcrição dos depoimentos não fornece e de que a reapreciação em sede de recurso não pode dispor. O que quer dizer que o grau de credibilidade a atribuir aos depoimentos prestados oralmente em audiência é insusceptível de ser plenamente controlado e valorado em sede de recurso. Motivo porque não pode deixar de constituir uma importante limitação à modificação da decisão proferida em primeira instância. Que a lei restringe aos casos em que se evidencia um manifesto erro de julgamento que “impõe” que se altere a decisão recorrida (arts. 412º, nº 3, e 431º do Código de Processo Penal).
Em todo o caso, invocando o recorrente que os factos provados não correspondem, sequer, ao sentido dos depoimentos das próprias ofendidas, cabe apreciar o que sobre estes factos foi por elas declarado.
Quanto ao primeiro ponto de facto ― isto é, se o reatamento da relação entre a assistente e o arguido foi motivado por receio de agressões e perseguições cometidas pelo arguido ― a assistente começou por esclarecer que ela e o arguido viveram juntos durante cerca de dois anos e uns meses, até Abril de 1993, mas depois disso, mantiveram uma relação de namoro, mas nunca mais viveram juntos (fls. 45 do apenso da transcrição), “cada um vivia na sua casa” (fls. 46); zangavam-se “por causa dos ciúmes dele” (fls. 46); Perguntada porque é que, ao longo destes dez anos, tendo-se zangado várias vezes e sendo por ele agredida, voltavam a reatar, respondeu: “Mal de mim quando me zangava com ele. Mal de mim, se eu não lhe fazia as vontadinhas...” (fls. 81) ― as demais respostas dadas pela assistente, sobre este ponto de facto, estão “imperceptíveis” (fls. 45 e 81-83), mas o sentido global do seu depoimento confirma a versão traduzida nos factos provados, ou seja, que, numa primeira fase, a assistente, porque gostava do arguido, ia-lhe perdoando as agressões, mas à medida que este não se corrigia e continuava a persegui-la e a agredi-la cada vez com mais violência, tudo fazia por “fugir dele”, mas ele não a largava, perseguia-a por todo o lado e ela tinha muito medo dele.
Também o depoimento da testemunha C………., irmã gémea da assistente, citado pelo recorrente, confirma a versão do acórdão recorrido. Disse esta testemunha que ele agredia a assistente e afastava-se logo, para não ser visto à beira dela, mas sempre a dizer “não queres falar hoje falas amanhã, porque se não vai a bem vai a mal” (fls. 109/110). Perguntada (por um dos srs. advogados) se a assistente se sentia feliz nos períodos de reconciliação com o arguido, respondeu: “Não, mesmo quando não estavam zangados. O senhor fala em reconciliação, eu falo em quando não estavam zangados, não mostravam ter uma relação feliz” (fls. 123). A nova pergunta “se ela era assim tão maltratada porque voltava?”, respondeu: “Não sei, de fora, é mais difícil analisar do que quem está por dentro da situação. Do meu ponto de vista, eu acho que era por não ter alternativas. (...) É fácil compreender iniciar uma relação com alguém, a primeira vez que sai com alguém a pessoa é insultada, a pessoa afasta-se logo. (...) É que o sr. B………. (arguido) é uma excelente pessoa, mas impõe medo, impõe” (fls. 123/124). Como se percebe e decorre do contexto global do seu depoimento, a “falta de alternativas” a que se refere esta testemunha não é no sentido de “falta de outros pretendentes”, como pretende sugerir o recorrente, mas no sentido de que o arguido não largava de mão a assistente, perseguia-a por todo o lado, impunha medo, e se ela o recusava ou se a encontrava com outro homem causava-lhe problemas em público, insultava-a, agredia-a, como vinha fazendo ao longo dos últimos dez anos. E era para evitar esses conflitos e por medo dele que a assistente o aceitava muitas vezes. Mesmo sendo infeliz, como expressivamente declarou esta sua irmã.
Nenhuma razão assiste, pois, ao recorrente, quanto a este ponto de facto, que se mostra julgado de acordo com o sentido dos dois depoimentos por eles referidos.
Quanto ao segundo ponto de facto impugnado ― sobre o carácter violento da bofetada que o arguido desferiu na menor, sua filha ― declarou esta em audiência: “O meu pai chegou à nossa beira e começou a chamar nomes à minha mãe e a agarrá-la ... nos braços. E eu dizia assim «larga a minha mãe», «larga a minha mãe» ... (e depois) levei um estalo na cara ... deu-me um estalo com muita força ... foi com a mão aberta” (fls. 91/93). Perguntada: “ele diz que foi uma sapatada, uma sacudidela”, respondeu: “Não, não foi” (fls. 93). Perguntada: “Foi um estaladão?”, respondeu: “Sim”. Perguntada: “Foi uma chapada forte?”, respondeu: “Sim, muito forte” (fls. 94). Depois de dizer que foi ao Hospital receber tratamento à lesão provocada por essa “chapada”, voltou a repetir que “foi só uma chapada, mas muito forte, eu fiquei toda... toda marcada ... começou a deitar sangue (nos lábios) ... e fiquei toda marcada na cara” (fls. 95/96). Negou que tivesse dado qualquer pontapé ao arguido (fls.97).
Também a assistente, mãe da menor, declarou sobre este facto: “espetou-lhe um chapadão na cara” (fls. 74). Confrontada com o depoimento do arguido que, quanto a este ponto, teria dito que ela “lhe deu um pontapé nas partes baixas” e que ele apenas lhe tinha dado “uma sapatada” ou “uma sacudidela”, respondeu que “não é verdade” que a menina lhe tenha dado o pontapé e que ele deu-lhe a ela “um chapadão de mão cheia, até fez «poc» na cara da minha filha” (fls. 75), esclarecendo que esse “chapadão” foi por causa da menina lhe ter dito duas vezes “ó pai, larga a minha mãe ... larga a minha mãe” (fls. 74 e 75).
Como se constata, os dois depoimentos exprimem, com evidente clareza, o carácter violento da chapada: “com muita força” e “de mão cheia, até fez «poc» na cara” da menina. O que é também confirmado pelos ferimentos causados na face e no lábio da criança, que foi assistida no Serviço de Urgências do Hospital de S. João, conforme consta do doc. a fls. 4, da ficha clínica a fls. 34 (que diz que a menor sofreu “edema na hemiface esquerda e ferida incisa na superfície interna do lábio superior com 1cm de diâmetro”) e do relatório do exame pericial a fls. 56. Em que também se baseou o tribunal recorrido, como consta da respectiva motivação.
É, assim, evidente que a decisão recorrida, quanto a estes pontos de facto, não merece qualquer reparo e que o recorrente não tem a menor razão.

9. A segunda questão posta pelo recorrente refere-se a uma alegada nulidade do acórdão recorrido por, segundo diz o recorrente, ter omitido a discriminação dos concretos motivos de facto que fundamentam a decisão condenatória, desse modo violando o nº 2 do art. 374º do Código de Processo Penal.
Não é claro nem preciso o recorrente na delimitação desta questão: se se refere à fundamentação da decisão de facto, ou à fundamentação da decisão de direito. Dúvida que não se verifica apenas na formulação das conclusões, mas também na própria motivação do recurso.
Nesta parte da motivação do recurso, começa o recorrente por transcrever uma citação de Marques Ferreira, extraída das “Jornadas de Direito Processual Penal”, p. 229, que manifestamente se refere à motivação da decisão de facto.
Mas logo a seguir escreve: “O acórdão recorrido limita-se a enumerar os factos dados como provados, a referir a prova que formou a convicção do tribunal, nada dizendo sobre os reais motivos de facto que fundamentam a decisão condenatória”. Assim sugerindo que a apontada omissão verificar-se-ia na fundamentação da decisão de direito. Sugestão que é corroborada pelo texto subsequente, onde o recorrente passa a referir-se “ao crime de maus tratos” e “às correntes interpretativas do art. 152º do Código Penal”, ou seja, reportando-se exactamente à parte da fundamentação do acórdão sobre o crime de maus tratos, de que transcreve alguns trechos.
Deve, assim, entender-se que o recorrente pretende referir-se à fundamentação da decisão de direito, e não à fundamentação da decisão de facto, já que, conforme transcrito anteriormente, é o próprio a dizer que o acórdão recorrido enumera os factos dados como provados e refere “a prova que formou a convicção do tribunal”. O que não pode deixar de significar que o recorrente reconhece que o tribunal analisou as provas produzidas em audiência que serviram para formar a sua convicção. Que mais não é do que o exame crítico das provas a que alude o nº 2 do art. 374º do Código de Processo Penal. E, por isso, esta fundamentação foi feita no acórdão recorrido. O que, aliás, decorre da transcrição feita supra, sob o nº 6.
Mas também fez a fundamentação, em termos adequados e suficientes, da decisão de direito. Independentemente de ter, ou não, convencido o recorrente. Tanto assim que o próprio recorrente transcreve um trecho dessa fundamentação. Com que o recorrente diz discordar, porque faz uso de “factos prescritos” e porque a interpretação que faz do art. 152º do Código Penal não corresponde ao “entendimento da nossa Jurisprudência mais actual”.
O que quer dizer que a apontada omissão de falta de fundamentação do acórdão recorrido é uma falsa questão. A questão verdadeira é que o recorrente discorda da “interpretação” seguida pelo tribunal recorrido e discorda, sobretudo, que a conduta do arguido, vertida nos factos provados, configure o crime de maus tratos. O que nos reconduz para um outro aspecto do recurso, enunciado sobre as conclusões 9ª e 10ª e que será apreciado mais a frente.
Assim, também quanto a esta questão o recurso é manifestamente improcedente. Sendo certo que, como refere o Prof. GERMANO MARQUES DA SILVA, em matéria de motivação do recurso não basta o recorrente afirmar a existência de erros ou vícios na decisão recorrida, é necessário demonstrá-los (em Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª edição revista e actualizada, Editorial Verbo, 2000, p. 349/351). O que o arguido não fez.

10. A questão invocada sobre a prescrição do procedimento criminal quanto aos factos descritos como provados sob os itens 3), 4), 8) e 15), é também uma falsa questão.
Em primeiro lugar, porque esses factos não foram punidos autonomamente, mas integrados no âmbito de uma conduta reiterada e continuada ao longo de vários anos, constitutiva de um crime de maus tratos, cujo prazo de prescrição, atenta a moldura legal abstracta (prisão de 1 a 5 anos), é de 10 anos, nos termos do disposto no art. 118º, nº 1, al. b) do Código Penal.
Em segundo lugar, porque, como refere o Ministério Público na sua resposta, tratando-se de um crime de execução continuada ou reiterada, o prazo da prescrição só começa a correr desde a data da prática do último acto, como prescreve o art. 119º, nº 2, al. b) do Código Penal. Que, neste caso, já ocorreu no decurso do ano de 2003. Ano em que foi instaurado o procedimento criminal (24/02/2003) e o arguido foi constituído, em 10/04/2003 (fls. 43), tendo este facto interrompido o prazo prescricional, nos termos do art. 121º, nº 1, al. a) do Código Penal.
Não se verifica, pois, a prescrição.
O que, em nosso entender ocorre, é uma questão diferente da prescrição, relacionada com a aplicação da lei penal no tempo. Que decorre do facto de o crime de maus tratos “a progenitor de descendente comum em 1º grau”, ora previsto no nº 3 do art. 152º do Código Penal, que é a hipótese legal aplicável ao arguido, ter sido apenas criado pela Lei nº 7/2000, de 27/05, cuja vigência se iniciou em 1/06/2000.
De que decorre que os factos praticados anteriormente a esta data, podendo constituir crimes autónomos, tais como de ofensa à integridade física, de ameaça e de injúria (arts. 143º, nº 1, 153º, nº 1 e 2, e 181º, nº 1, do Código Penal, respectivamente), não podem ser incluídos na caracterização da conduta reiterada ou continuada que tipifica o crime de maus tratos, da previsão do art. 152º, nº 3, do Código Penal, na redacção actual. Porque tal interpretação ofende o princípio constitucional consagrado no nº 1 do art. 29º da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual “ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a acção ou a omissão”.
Daí que, dos factos provados, só os praticados pelo arguido posteriormente a 1/06/2000 podem ser considerados no preenchimento dos elementos constitutivos do crime de maus tratos tipificado no nº 3 do art. 152º do Código Penal. Todos os demais factos aí descritos, praticados anteriormente a essa data, têm que considerar-se irrelevantes e como não escritos. O que abrange os factos descritos sob os itens 3) a 16) do acórdão ― supra transcritos sob os itens 4) a 16) do nº 4.

11. Como consequência da sua exclusão, fica prejudicada a questão suscitada pelo recorrente quanto aos factos descritos nos itens 5), 6), 7), 12), 13) e 14), em que já pretendia a sua exclusão por não conterem especificadas as circunstâncias de tempo, lugar e modo da respectiva prática, por entender que, desse modo, impediam o exercício do seu direito de defesa e violavam o art. 32° da Constituição da República Portuguesa.
Excluídos tais factos, ainda que por outro motivo, deixa o recorrente de poder considerar-se prejudicado no seu direito de defesa quanto a tais factos, como, a existir, cessa a apontada violação à Constituição da República Portuguesa.

12. Alega ainda o recorrente que o tribunal recorrido fez uma incorrecta interpretação da norma do artigo 152º, nº 3, do Código Penal, no que respeita à sua condenação pelo crime de maus tratos, por não ter ficado demonstrada uma actuação grave e reiterada.
Sobre os elementos constitutivos do tipo de crime de maus tratos, aqui em causa, e o enquadramento jurídico-penal dos factos provados no âmbito desse tipo de crime, a decisão recorrido refere o seguinte:
«Tem sido controvertida a questão de saber se o mencionado crime de maus tratos exige ou não, para a sua configuração, a prática de condutas repetidas, plúrimas e variadas de agressão.
Já em 1989, a Prof. Teres Beleza, ao analisar o artigo 153º, nº 3, do Código Penal, na sua versão original, fazia notar que “(...) os vários verbos utilizados implicam uma ideia de reiteração, de continuidade, ligada, justamente, à relação existente entre as pessoas” (Maus Tratos conjugais: o artigo 153º, 3, do Código Penal, Lisboa, 1989, pág. 21).
Também os Drs. Simas Santos e Leal Henriques, em comentário ao artigo 152º do Código Penal, na sua redacção de 1995, anotam que “(...) não basta uma acção isolada do agente para que se preencha o tipo (estaríamos então no domínio das ofensas à integridade física, pelo menos), mas também não se exige habitualidade na conduta. Afigura-se-nos que o crime se realiza com a reiteração do comportamento, em determinado período de tempo” (Código Penal Anotado, 2º vol., Lisboa, 1998, pág. 182).
Mais recentemente, observa o Prof. Taipa de Carvalho que “o tipo legal de crime em análise, pressupõe segundo a ratio da autonomização deste crime, uma reiteração das respectivas condutas. Um tempo longo entre dois ou mais dos referidos actos afastará a reiteração ou habitualidade pressuposto, implicitamente, por este tipo de crime” (Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo I, Coimbra, 1999, pág. 334).
Mas curiosamente, a jurisprudência dos tribunais superiores, sempre mais atenta às realidades da vida, tem seguido uma caminho ligeiramente diverso na interpretação do referido normativo legal, já que vem considerando que, mesmo com a redacção de 1982, a referida conduta criminal se poderia verificar com uma única conduta agressiva, desde que a sua gravidade intrínseca a pudesse qualificar como tal (cfr. Ac. da Rel. de Lisboa de 29 de Abril de 1987, in Col. de Jur. ano XII, tomo 2, pág. 183, e os Acs. do S.T.J. de 17 de Outubro de 1996 e de 14 de Dezembro de 1997, in Col. de Jur., Acs. do S.T.J., ano IV, tomo 3, pág. 170 e ano V, tomo 3, pág. 235, respectivamente).
No caso dos autos, qualquer que seja a posição que se perfilhe sobre esta delicada questão não pode duvidar-se que os actos praticados pelo arguido correspondem, segundo o conjunto de regras sociais a que estamos habituados, a um achincalhamento físico e, sobretudo, de ordem moral, voluntariamente praticado na pessoa da mãe da sua filha, isto é, “de progenitor de descendente comum em 1º grau” (nº 3 do citado artigo 152º), o que configura a comissão do crime de maus tratos pelo qual vem acusado».
De forma sintética, o acórdão recorrido disse o essencial sobre a interpretação da norma legal que aplicou (o art. 152º do Código Penal), sobretudo no que respeita às características da acção configurada na hipótese do tipo legal, e os motivos porque essa norma legal era aplicável à conduta do arguido. Tudo quanto a mais fosse escrito mais não seria do que confirmar ou repetir o que, de forma sintética, mas suficientemente esclarecedora, foi dito. Porque, quando a decisão não convém, ou não agrada, nenhuma fundamentação é convincente. [-Pensamos que se justifica acrescentar esta pequena nota: Num momento em que, por tudo e por nada, tanto se recorre à comparação entre o que se produz no nosso país, nos diversos sectores da administração pública, incluindo o da Justiça, e o que se produz noutros países estrangeiros, vale a pena mencionar aqui que temos em mãos um processo de revisão de sentença penal estrangeira, proferida por um tribunal suíço, de condenação por crime de burla agravada, a qual é constituída por duas páginas: a primeira identifica o tribunal, os sujeitos processuais e o teor da acusação; a segunda descreve as provas, a fundamentação e a decisão. Nem uma citação doutrinária ou jurisprudencial, nem, sequer a transcrição da lei aplicável. Apenas a citação do artigo. A fundamentação é constituída por uma frase: “Os factos constituem o crime do artigo ...”. A decisão foi aceite por todos os sujeitos processuais. Não houve qualquer recurso.
O acórdão aqui recorrido, apesar de constituído por 17 páginas dactilografadas, com fundamentação desenvolvida da decisão de facto e da decisão de direito, nesta com transcrições e citações doutrinárias e jurisprudenciais adequadas e pertinentes. E nem mesmo assim é aceite como fundamentação suficiente e convincente.
Duas realidades incomparáveis, porque incomparáveis são as mentalidades.].
À referida fundamentação há, apenas, que acrescentar, agora, uma pequena nota, para dizer que, não obstante a exclusão dos factos praticados anteriormente a 1 de Junho de 2000, continuam a configurar-se preenchidos todos os elementos objectivos e subjectivo do crime de maus tratos, da previsão conjugada dos nºs 1 e 3 do art. 152º do Código Penal, na redacção introduzida pela Lei nº 7/2000.
Com efeito, é sabido que história do preceito do art. 152º do Código Penal sobre o crime de maus tratos está directamente ligada ao conceito sociológico de violência doméstica, enquanto manifestação de posições e condutas de domínio, força e agressão no seio da família, seja qual for a forma que esta assuma: casamento, união de facto, vida em comum, poder paternal (cfr. o ac. do STJ de 6/04/2006, em www.dgsi.pt/jstj.nsf/ com o nº 06P1167, e o estudo sobre “A actuação do Ministério Público no âmbito da violência doméstica”, de Jorge dos Reis Bravo, procurador da República, na Revista do Ministério Público, ano 26, nº 102, p. 45).
Na sua origem está uma dupla ordem de razões: por um lado, a constatação de que nem todos os comportamentos eticamente censuráveis, correspondentes a essas manifestações de violência doméstica, especialmente os de incidência psíquica, eram abrangidos, ou não eram adequadamente punidos, pelos tipos de crime em que se decompunham algumas dessas condutas ilícitas, tais como os crimes de ofensa à integridade física simples, de ameaça e de injúria; por outro lado, a maior consciencialização ético-social que se foi desenvolvendo nos tempos mais recentes acerca da gravidade dessas formas de violência, de que as sucessivas alterações legislativas (entre 1995 e 2000), e o aceso debate social que as acompanhou, são disso testemunho (cfr. A. Taipa de Carvalho, em Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, p. 329/330).
Por isso, a ratio do referido preceito é a de prevenir as frequentes e quase sempre subtis formas de violência no seio da família; sobretudo, de proteger os elementos mais frágeis da família (crianças, idosos, doentes, esposas) desse tipo de condutas agressivas ou mesmo violentas, tanto no plano físico como no psíquico, em que se materializam os “maus tratos”. Daí que se venha entendendo que o bem jurídico protegido pela norma legal que tipifica o crime de maus tratos não é, directamente, a comunidade familiar, mas sim um conjunto de aspectos (bem jurídico complexo) inerentes à pessoa individual e à dignidade humana de cada um do seus membros, tais como a saúde e o bem-estar físico, psíquico e mental (cfr. A. Taipa de Carvalho, ob. citada, p. 332; e os acs. desta Relação de 12/05/2004 e de 13/07/2005, em www.dgsi.pt/jtrp,nsf/ com os nºs 0346422 e 0443639).
No que respeita à modalidade e às características da acção ilícita, tanto a doutrina como a jurisprudência têm entendido, sem divergências de relevo, que abrange todos os comportamentos dolosos praticados, de forma reiterada, durante um certo período de tempo, sobre as pessoas referidas nos nºs 1, 2 e 3 do art. 152º do Código Penal, que lesam o seu bem-estar e a sua saúde e ofendem a sua dignidade. O que quer dizer que, em regra, para se configurar o crime de maus tratos, exige-se uma pluralidade de condutas ofensivas (agressões físicas ou psíquicas, ameaças, injúrias, tratamento cruel ou desumano, utilização em actividades proibidas, perigosas ou manifestamente excessivas), praticadas no decurso de um determinado período de tempo, adequadas, objectiva e subjectivamente, a provocarem a lesão de algum daqueles bens jurídicas da pessoa (cfr. autores e jurisprudência citada anteriormente).
Para além disso, vem sendo ainda entendido, pelo menos ao nível da jurisprudência, que também pode integrar o referido crime “uma conduta complexa, que revista gravidade e traduza o sentido de crueldade, de insensibilidade, de malvadez”. Neste sentido se pronuncia o recente acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6/04/2006 (em www.dgsi.pt/jstj.nsf/ com o nº 06P1167), segundo o qual é admissível que “um singular comportamento possa ter uma carga suficiente demonstradora da humilhação, provocação, ameaças, mesmo que não abrangidas pelo crime de ameaças, do acto de molestar o cônjuge ou equiparado”. No mesmo sentido o ac. do STJ de 14/11/97, em CJ/STJ/1997/III/235.
Também Jorge dos Reis Bravo emite a mesma opinião, dizendo que “condutas há que, apesar de não se subsumirem a qualquer outro tipo legal de crime, pela gravidade das suas consequências ao nível da saúde psíquica da vítima, devem convocar a aplicação do tipo do art. 152º do Código Penal”. (...). Acrescentando ainda que “uma conduta de maus tratos físicos ― que, isoladamente poderia integrar um crime de ofensa à integridade física ― passará a ter uma qualificação jurídico-penal diversa, assumindo a de crime de maus tratos, desde que integrada num comportamento em que se demonstrem antecedentes de maus tratos psíquicos, por exemplo” (na Revista do Ministério Público citada, p. 70).
Esta resenha doutrinária e jurisprudencial corresponde às posições expostas no acórdão recorrido e destina-se apenas a confirmar a convergência com tais posições.
Ora, os factos provados revelam que o arguido, movido por ciúmes injustificados, por várias vezes, ao longo de cerca de 3 anos, entre meados do ano 2000 (pelo menos a partir de 1 de Junho de 2000) até 26 de Março de 2003, agrediu fisicamente, insultou e ameaçou a mãe da filha comum de ambos, a ofendida F………., em vários locais públicos, de que se destacam:
- No verão do ano de 2002, quando a ofendida F………. se encontrava num café, perto da casa de residência da sua irmã, em Ermesinde, o arguido telefonou-lhe por diversas vezes seguidas para o telemóvel e dizia-lhe "que ela se estava a arreganhar toda para o homem do café". O que a deixava muito constrangida.
- No dia 31 de Janeiro de 2003, no decurso de um jantar entre ambos numa churrasqueira ………., o arguido disse-lhe: “há doze anos que me andas a enganar, andas a foder com este e com aquele, não querias que eu te fosse buscar à G………. porque andavas a foder com os estudantes todos”.
- Imediatamente após, já no exterior da dita churrasqueira, a ofendida tentou fugir do arguido e daquele local, mas o arguido impediu-a de sair dali, pondo-se à sua frente e dizendo-lhe em voz alta: “eu fodo-te, eu parto-te os dentes”.
- Na mesma ocasião, disse-lhe ainda que a proibia de levar a filha para casa da sua irmã, porque a ofendida ia para lá “foder com os ucranianos”.
- No dia 16 de Fevereiro de 2003, o arguido, sem o conhecimento e contra a vontade da ofendida F………., esperou por esta à porta de casa da sua irmã, na ………., em Ermesinde, e quando a F………. ia a sair disse-lhe em voz alta e aos gritos: “eu vi-te pela janela a foder com os ucranianos”. Deixando, assim, entender que a tinha estado a espiar.
- Então, a ofendida F………. telefonou para a polícia e o arguido ausentou-se, mas dizendo-lhe em voz alta que a “fodia”. Querendo com isso dizer que na primeira oportunidade lhe iria bater.
- No dia 23 de Fevereiro de 2003, pelas 22 horas, na mesma ………., em Ermesinde, o arguido, sabendo que a ofendida F………. e a filha de ambos, D………., de 12 anos de idade, estavam em casa da irmã daquela, voltou a esperar que saíssem e passassem por aquele local, sem o conhecimento e contra a vontade da ofendida. Quando iam a passar no referido local, o arguido agarrou a F………. pelos braços, contra a vontade desta, provocando-lhe hematomas nos braços, e disse-lhe aos gritos “que andava a foder com os ucranianos”.
- Tais factos foram praticados na presença da filha de ambos, a D……….., que tentou que o arguido largasse a mãe, mas este, persistindo naquela sua conduta ofensiva para com a F………., desferiu na filha uma bofetada com violência.
- No dia 26 de Março de 2003, o arguido, também sem o conhecimento e contra vontade da F………., voltou a esperar na rua que esta e a filha de ambos saíssem de casa da irmã da F………., para a ameaçar, a insultar e a agredir, só não o tendo conseguido realizar porque a F……… decidiu regressar a sua casa com a filha de táxi.
- Já anteriormente, designadamente entre 1 de Junho de 2000 e Agosto de 2001, período em que a ofendida F………. trabalhava na G………., no Porto, o arguido, apenas movido por ciúmes, ia esperá-la todos os dias à porta daquela G………., contra a vontade da F………., constrangendo-a com a sua presença e chegando a insultá-la, chamando-lhe em voz alta “puta” e “vaca” e dizendo-lhe que andava a foder com os estudantes todos.
Tais condutas ofensivas, pela sua reiteração e persistência e pelo carácter de malvadez que, globalmente, revelam, integram o conceito de maus tratos físicos e psíquicos, já que lesaram a saúde e o bem-estar físico e psíquico da ofendida F.......... e ofenderam a sua dignidade como pessoa livre que é.
A ofendida F………. é a mãe da D………., que também é filha do arguido. Verificando-se a hipótese prevista no nº 3 do art. 152º do Código Penal.
De que resulta que tais condutas praticadas pelo arguido integram o crime de maus tratos da previsão conjugada dos nºs 1 e 3 do art. 152º do Código Penal. Como foi decidido no acórdão recorrido.
Apenas se justifica reduzir, de 2 anos para 15 meses, a pena de prisão aplicada ao arguido por este tipo de crime, considerando que, em consequência de terem sido excluídos os factos ocorridos anteriormente a 1 de Maio de 2000, é menor a intensidade da ilicitude do facto e o juízo de censura e, consequentemente, é menor a medida da culpa.
Por força dessa redução, também a pena única terá que ser reduzida para 18 meses de prisão. Mantendo-se, no mais, a decisão recorrida, designadamente quanto à suspensão da execução da pena de prisão e quanto à pena acessória de proibição de contactar com a vítima pelo período de 2 anos.

13. Quanto à condenação do arguido pelo crime de ofensa à integridade física, da previsão do art. 143ª do Código Penal, nenhum erro de interpretação da norma, ou qualquer outro erro de direito, se verifica.
Este crime refere-se à agressão física que o arguido praticou na sua filha D………., no dia 23 de Fevereiro de 2003, que consistiu numa bofetada violenta e injustificada, com a intenção de a magoar fisicamente, apenas porque a menor tentou impedi-lo de agarrar e agredir a sua mãe. Constituindo, por isso, ofensa dolosa à integridade física da menor, integradora daquele tipo de crime.
Nada a dizer quanto à pena aplicada, desde logo porque o recorrente nenhuma questão suscitou a esse respeito.
IV
DECISÃO
Por tudo o exposto, acorda-se em conceder parcial provimento ao recurso e, em consequência:
a. Reduz-se a pena aplicada pelo crime de maus tratos, da previsão conjunta dos nºs 1 e 3 do art. 152º do Código Penal, para 15 meses de prisão.
b. Também se reduz a pena única, resultante do cúmulo jurídico da pena de prisão anteriormente referida com a pena de 6 meses de prisão aplicada pelo crime de ofensa à integridade física, para 18 meses de prisão.
c. Mantém-se, no mais, o acórdão recorrido, designadamente quanto ao período de suspensão da execução da pena única de prisão e quanto à pena acessória de proibição de contactar com a vítima pelo período de 2 anos.
d. Condena-se o recorrente a pagar as custas inerentes ao seu decaimento parcial no recurso, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC (arts. 513º, nº 1, e 514º, nº 1, do Código de Processo Penal e 80º, nº 1, al. b), do Código de Processo Penal).
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Porto, 20 de Setembro de 2006
António Guerra Banha
Jaime Paulo Tavares Valério
Joaquim Arménio Correia Gomes
José Manuel Baião Papão