Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
7/14.0GHVNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FÁTIMA FURTADO
Descritores: CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
Nº do Documento: RP201506237/14.0GHVNG.P1
Data do Acordão: 06/23/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Se as condutas do arguido, quer ao nível do desvalor da acção e do resultado, quer pelo numero de vezes que foram praticadas, não revelam intensidade nem aptidão suficiente para lesarem também a saúde psíquica e emocional da ofendida de modo incompatível com a sua dignidade e liberdade de pessoa humana em ambiente conjugal, não pode ocorrer a unificação das condutas num único crime de violência doméstica.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 7/14.0GHVNG.P1
Vila Nova de Gaia

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto
(2ª secção criminal)

I. RELATÓRIO
No processo comum singular nº 7/14.0GHVNG, da Instância Local de Vila Nova de Gaia, Secção Criminal, Juiz 3, da Comarca do Porto, foi submetido a julgamento o arguido B…, com os demais sinais dos autos.
A sentença, proferida a 26 de janeiro de 2015 e depositada no mesmo dia, tem o seguinte dispositivo:
“Decisão
Em face do exposto, e sem outras considerações, o Tribunal decide:
1. Absolver o arguido B… da prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nºs 1, al. b) e 2 do Código Penal.
2. Julgar extinto o procedimento criminal contra o arguido pela prática de um crime de injúria, previsto e punido pelo artigo 181º, nº1 do Código Penal, por ilegitimidade do Ministério Público, nos termos do artigo 188º, nº 1 do Código Penal e do artigo 50º do C.P.P.
3. Condenar o arguido como autor material de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143º, nº 1 do Código Penal e um crime de detenção ilegal de arma, previsto e punido pelo artigo 86º, nº 1, alínea c) da Lei nº 5/2006, de 23/02, na redacção introduzida pela Lei nº 12/2011, de 27.04, por referência à alínea c) do nº 6 do artigo 3º da mesma Lei, nas penas parcelares de, respectivamente, 150 e 200 dias de multa, e na pena única de 250 dias de multa, à razão diária de € 5,00, o que perfaz a quantia global de € 1.250,00.
4. Condenar o arguido pela prática, como autor material, de um crime de coacção agravada, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22º, nºs 1 e 2, 23º, 154º, nº 1 e 155º, nº 1, alínea a), todos do Código Penal na pena de 4 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um ano.
*
Mais se condena o arguido no pagamento das custas do processo, com taxa de justiça que se fixa em 2 UC, e nos demais encargos a que a sua actividade deu causa.
*
Após trânsito, remeta boletins ao registo criminal.
Proceda a depósito.”
*
Inconformados, o Ministério Público e a assistente C… interpuseram recursos, independentes, apresentando as competentes motivações, que rematam com as seguintes conclusões:
A. Recurso do Ministério Público
1. “Foi o arguido B… absolvido da prática do crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nºs 1, alínea b) e 2, do Código Penal - e condenado, para além do mais, pela prática dos crimes de ofensa à integridade física simples e de coacção agravada na forma tentada, por se ter entendido que as condutas daquele, pese embora repetidas por algumas ocasiões, não são suficientes para integrar a prática do crime referido em primeiro lugar, por não terem gravidade bastante para se poder afirmar que, com elas, o bem-estar físico e emocional e a dignidade pessoal da assistente foram intoleravelmente lesados.
2. Ora, não podemos, de todo, concordar com tal absolvição. E mesmo até com base nos factos dados como demonstrados na sentença ora colocada em crise.
3. Para além disso, nos factos dados como provados sob o n.º2 podiam e deviam ter-se dado como demonstradas as concretas expressões proferidas pelo arguido relativamente à assistente, já que isso ficou cabalmente demonstrado em audiência; na verdade, se o Tribunal a quo considerou (e bem!) que tais factos ocorreram, com base no que mencionou a assistente, também podia (e devia) ter dado como demonstradas quais foram tais expressões - precisamente, porque a assistente as mencionou. Veja-se, por exemplo, as declarações desta, aos 09m:50s, em que C… refere que, por várias vezes, o arguido se dirigia à mesma, inclusive à frente de terceiros, dizendo: “tu não percebes nada, cala-te!”. Também aos 11m:40s diz a assistente que, não raras vezes, o arguido se lhe dirigia, dizendo: “oh, ela não percebe nada disso, cala-te!”. Mais referiu a assistente, aos 18m:56s, que B… se lhe dirigia, dizendo: “és uma merda!”
4. Com todo o respeito por opinião diversa, entendemos que o Tribunal se limitou a tirar uma conclusão daquilo que C… disse, dando como provado que o disse (pois que, caso contrário, não teria dado como demonstrado), sem dar como demonstrado o que, em concreto, é que B… proferiu relativamente à assistente, que a levou a sentir-se inferiorizada e desconfortável. E discordamos por completo do referido na subsunção dos factos ao direito, a fls. 368, 2º parágrafo, no sentido de que o facto dado como provado sob o n.º 2 é criminalmente inócuo. Referir-se a alguém, e especialmente à pessoa com quem se vive em união de facto, com expressões e comentários, em frente de terceiros, no intuito de a fazer sentir-se inferiorizada e desconfortável, mostra bem a vontade reiterada de humilhação pública a que o arguido queria vetar C… …
5. Por outro lado, o Tribunal a quo deu por provado que “No dia 13 de Janeiro de 2014, pelas 21h, no interior da mencionada residência, depois de a assistente ter solicitado ao arguido que não perturbasse o seu descanso e de um subsequente desentendimento entre os dois, este agarrou-a pelos pulsos, apertando-os. 5 - A assistente gritou e, nessa altura, o arguido pegou numa almofada que se encontrava em cima do sofá e desferiu-lhe com ela uma pancada na face, atingindo-a no olho esquerdo” (…) “Como consequência directa e imediata da conduta do arguido sofreu a assistente, na face, equimose arroxeada, de forma irregular, com 2 por 1,5 cm na metade externa da pálpebra superior esquerda, no membro superior direito, equimose arroxeada, arredondada, com 1 cm de diâmetro, na face antero-lateral do terço distal do antebraço, que lhe demandaram três dias para a cura, sem afectação da capacidade de trabalho profissional e geral”. Por seu turno, deu como não demonstrado que “o arguido atingiu a assistente com o fecho da almofada; de seguida, o arguido desferiu-lhe várias pancadas com a almofada na face”.
6. Entendemos, contudo, que os factos dados como não provados sob as alíneas g) e h) deveriam, atento até o que foi dado como demonstrado sob o ponto 12., ter sido dados como provados.
7. É que, se é inegável que a assistente referiu que não tinha a certeza se o arguido a atingiu, ou não, com o fecho da almofada, e que o arguido apenas admitiu ter dado uma pancada com a almofada na assistente (dizendo esta que este lhe desferiu várias pancadas na face), a verdade é que entendemos que andou mal a sentença ora posta em crise ao entender que não havia razão para dar maior credibilidade a um dos relatos em detrimento do outro - razão pela qual apenas deu como demonstrado o admitido pelo arguido.
8. Com efeito, o relatório médico-legal junto aos autos a fls. 78 a 80 e com base no qual se deu como demonstrados os factos descritos sob o ponto 12., refere que C… apresentava uma equimose arroxeada na face, com 2x1,5 cm, na metade externa da pálpebra superior esquerda. E não nos parece que uma única pancada na face, com uma almofada, causasse tal equimose. Na verdade, se é inegável que a assistente não conseguiu confirmar se o arguido a atingiu, ou não, com o fecho da almofada, a verdade é que, atenta a lesão documentada nos autos, cotejada com as regras da experiência comum (pois que uma só pancada com uma almofada não seria suficiente para causar tais lesões) poder-se-ia, por si só, dar como demonstrado que aquele a atingiu com fecho da mesma. De outro modo, não teria a lesão ali documentada. O mesmo se refira quanto ao facto dado como não provado sob a alínea h).
9. A ser assim, tinha o Tribunal a quo motivos para dar maior credibilidade à versão dos factos apresentada pela assistente - e desvalorizar por completo a versão apresentada por B…, por se tratar de “história” completamente inverosímil. Deste modo, e em suma, entendemos que o relatório de perícia de avaliação do dano corporal em direito penal, cotejado com as regras da experiência comum, impunham que, quanto a estas alíneas, se desse como demonstrada a versão dos factos apresentada pela assistente, por se tratar, de facto, da versão mais consentânea com a realidade.
10. Entendemos, pois, que o ponto dado como demonstrado sob o n.º5 e os factos referidos nas alíneas g) e h), considerados como não provados, foram incorrectamente julgados, sendo que as provas supra mencionadas (relatório de exame médico-legal e declarações da assistente, conjugadas entre si e em cotejo com as regras da experiência comum a que se deve sempre socorrer) impunham decisão diversa da ora colocada em crise. Na verdade, deveria ter sido dado como demonstrado que (…) “a assistente gritou e, nessa altura o arguido pegou numa almofada que se encontrava em cima do sofá e desferiu-lhe com ela várias pancadas na face, atingindo-a com o fecho da mesma no olho esquerdo. De seguida, o arguido desferiu-lhe várias pancadas com a almofada na face”. Ao não decidir deste modo, violou o Tribunal recorrido o disposto nos art. 127º e 374º, n.º2, ambos do C.P.P.
11. Acresce que independentemente do supra referido, i.e., mesmo não dando como demonstrado o supra explanado, ainda assim o Tribunal a quo deveria ter condenado B… pela prática de um crime de violência doméstica.
12. Na verdade, comete o crime de violência doméstica todo aquele que “de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais […]a pessoa do outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação”, sendo que tal crime é agravado “se o agente praticar o facto […]no domicílio comum”.
13. As condutas abrangidas por este tipo de ilícito abrangem tanto os maus tratos físicos (isto é, ofensas à integridade física simples), como os maus tratos psíquicos (humilhações, provocações, o molestar, ameaças mesmo que não configuradores em si do crime de ameaça). Como decorre da actual redacção dos artigos 152º e 152º A, ambos do Código Penal, afastou-se expressamente a exigência de reiteração como elemento do tipo, ao se introduzir no tipo a expressão “de modo reiterado ou não”. Como se escreve no douto aresto do Tribunal da Relação do Porto, datado de 26 de Maio de 2010, cujo Relator é o Exmo. Sr. Desembargador, Dr. Joaquim Gomes, “…podemos assentar, no que concerne ao crime de violência doméstica da previsão do art.152º do Cód. Penal, que a acção típica aí enquadrada tanto se pode revestir de maus tratos físicos, como sejam as ofensas corporais, como de maus tratos psíquicos, nomeadamente humilhações, provocações, molestações, ameaças ou outros maus tratos, como sejam as ofensas sexuais ou as privações da liberdade, desde que os mesmos correspondam a actos, isolada ou reiteradamente praticados, reveladores de um tratamento insensível ou degradantes da condição humana da sua vítima”.
14. Defende a sentença ora posta em crise que a conduta de B… não consubstancia a prática do crime de violência doméstica, em virtude de apenas ter sido dado como demonstrado um episódio de violência física (o ocorrido no dia 13 de Janeiro de 2014, na residência comum do casal) e, por outro lado, apenas se deu como demonstrado que, em momento anterior àquele dia, o arguido apenas por uma vez apelidou a assistente de “filha da puta”, sendo que lhe disse, por mais do que uma vez e em datas não concretamente apuradas, “vai-te tratar” - para além de, por várias vezes, e em frente a terceiras pessoas, ter tecido comentários a seu respeito que a fizeram sentir-se inferiorizada e desconfortável, pois que “bem-estar físico e emocional e a dignidade pessoal da assistente [não] foram intoleravelmente lesados, não revelando tais condutas aquela intensidade de ataque à dignidade pessoal, insensibilidade ou crueldade exigida pelo tipo legal”.
15. Discordamos de tal entendimento. Na verdade, é nosso entendimento que tendo em consideração os factos dados como provados - isto é, mesmo sem o referido em 3.1 e 3.2 - o arguido deveria ter sido condenado pela prática do crime por que vinha acusado.
16. É que, ao dar-se como provado (e foi, efectivamente, o que resultou da audiência de discussão e julgamento) que B…, por várias vezes e durante o tempo em que viveram juntos, em frente de terceiras pessoas, proferiu expressões e teceu comentários relativos à assistente que a fizeram sentir-se inferiorizada e desconfortável, fica por demais demonstrado que o arguido quis (e conseguiu), ao longo dos tempos, humilhar e molestar psiquicamente a sua companheira - e inclusive em frente de outras pessoas!
17. E, consoante se deixou aduzido supra, podia e devia o Tribunal a quo ter dado como provadas as concretas expressões que fizeram a assistente sentir-se desse modo: “vai-te tratar”, “cala-te, não sabes nada”, “és uma merda”. B… quis, de facto, e ao longo dos tempos, vexar a assistente - inclusive, perante terceiros. Não satisfeito, e consoante resulta do ponto 3. dos factos provados, apelidou-a, pelo menos uma vez, de “filha da puta”. Dito de outro modo, a convivência entre arguido e assistente, ao longo dos tempos, foi marcada por uma agressividade do primeiro em relação à segunda, agressividade essa que transparecia nas constantes expressões de superioridade proferidas pelo arguido, numa constante vontade de humilhar, publicamente até, a sua companheira.
18. Acresce que, no dia 13 de Janeiro de 2014, pelas 21h, o arguido agrediu fisicamente a sua companheira, C… - e com uma almofada (para que esta não gritasse!!). Não satisfeito, e em frente de terceiros, apelidou-a de “filha da puta”, disse-lhe que caso esta apresentasse queixa que “a mataria, atirando-a da varanda”.
19. Assim, em face de todos os factos dados como provados (e bem assim, aqueles que o deveriam ter sido) entendemos que o arguido B… deveria ter sido condenado pela prática do crime de violência doméstica - para além do crime de detenção de arma proibida.
20. Na verdade, no caso sub judice, as concretas ofensas verbais e físicas infligidas são, por si só, e ainda mais no seu conjunto, susceptíveis de configurar forma de humilhação, ou molestação que, pela sua gravidade, atentam claramente contra a dignidade pessoal da vítima, encontrando-se, assim, no nosso modesto entendimento, preenchidos os elementos objectivos do crime de violência doméstica por que o arguido vinha acusado.
21. Entendemos, pois, que estão verificados todos os pressupostos de que depende a verificação do mencionado crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nºs 1, alínea b) e 2, do Código Penal e pelo qual o arguido B… deveria ter sido condenado.
22. Cumpre, então, determinar a pena concreta a aplicar ao arguido. Prescreve o n.º1, do art. 71º, do Código Penal que “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”. Importa ainda atender, dentro dos limites abstractos definidos pela lei, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal de crime, deponham a favor ou contra o arguido, na medida em que se mostrem relevantes para a culpa ou para as exigências preventivas – art. 71º, n.º2, do Código Penal.
23. No caso, são elevadas as necessidades de prevenção geral, não só devido à necessidade de combater a proliferação das situações de casos de violência intrafamiliar, mas, igualmente, de modo a evitar que o arguido, no futuro, adopte comportamentos similares àqueles por que aqui responde.
24. Por outro lado, importa atentar que o arguido agiu com a modalidade mais forte de culpa, actuando com dolo directo, representando e querendo o resultado obtido. Com efeito, é elevado o grau de culpa manifestado, exercendo o seu ascendente relativamente à queixosa, submetendo-a, durante um período temporal razoável, a um tratamento susceptível de a destruir psicologicamente, mantendo-a num estado de permanente e arbitrária sujeição aos seus caprichos e ímpetos.
25. Cumpre, ainda, referir que B… não demonstrou qualquer arrependimento relativamente às condutas por si perpetradas - arranjando sempre forma de, de alguma maneira, as justificar com a conduta da assistente… Facto que demonstra, só por si, que são consideráveis as exigências de prevenção especial. Por outro lado, não tem antecedentes criminais.
26. Tudo ponderado, afigura-se-nos que B… deverá ser condenado pela prática do crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nºs 1, alínea b) e 2, do Código Penal (para além da condenação pela prática do crime de detenção de arma proibida já referida na sentença recorrida), na pena de 2 anos e 6 meses de prisão.
27. De acordo com o disposto no art. 50º, do Código Penal, o tribunal deve suspender a pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos, quando, atendendo à personalidade do arguido, às condições de vida, à sua conduta anterior ou posterior ao crime e às circunstâncias deste, possa concluir que a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
28. Uma vez que o arguido não possui antecedentes criminais e que assistente e arguido já não vivem juntos, entendemos que a pena de prisão em que o arguido vier a ser condenado deverá ser suspensa na sua execução - e pelo período da pena a aplicar, ou seja, 2 anos e 6 meses.
29. Por outro lado, entendemos que tal suspensão da execução da pena de prisão deverá ser condicionada à obrigação de aquele frequentar o programa para agressores de violência doméstica, ministrado pela DGRSP - tudo, nos termos dos artigos 50º, nºs 1 e 2 e 52º, n.º1, alínea b), ambos do Código Penal.
30. Absolvendo o arguido pela prática do crime de violência doméstica por que B… vinha acusado, apesar de dar como provados os factos descritos sob os pontos 2 a 12, 15 e 17, o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 152º, nºs 1, alínea b) e 2, do Código Penal, assim como o disposto no art. 127º e 374º, n.º2, ambos do CPP, que impunham que se proferisse decisão condenatória pela prática de tal crime.
PELO EXPOSTO, deve o presente recurso ser julgado procedente e em consequência revogar-se a sentença proferida nos autos, sendo substituída por outra que condene o arguido B…, atentos os factos dados como provados e, bem assim, atento o supra referido em 3.1 e 3.2, pela prática do crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nºs 1, alínea b) e 2, do Código Penal, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeito à obrigação de frequentar o programa para agressores de violência doméstica, ministrado pela DGRSP.”
*
B. Recurso da assistente C…
“I
Há uma manifesta incoerência entre a matéria dada como provada e a matéria dada como não provada, bem como erro na apreciação da prova.
II
Desde o ano de 2012, a Recorrente foi vítima de agressões verbais perpetradas pelo Recorrido.
III
A Recorrente foi agredida fisicamente no dia 13 de janeiro de 2014.
IV
A Recorrente berrou na sequência da agressão com a almofada.
V
A conduta do Recorrido foi reiterada no tempo e aquele visou diminuir a Recorrente na sua condição humana.
VI
O Tribunal a quo violou o artigo 410° n.° 2 b) e c) do Código de Processo Penal.
VII
O Recorrido teve consciência que a sua conduta era idónea a atingir física e psicologicamente a Recorrente, atuando de forma livre, voluntária, consciente e dolosa, tendo a noção que o seu comportamento era proibido e punido por lei.
VIII
A ratio do tipo do crime de violência doméstica está na proteção da pessoa individual e da sua dignidade humana.
IX
Os comportamentos do Recorrido ocorreram de forma reiterada.
X
Tal reiteração não é relevante, nem elemento necessário.
XI
Estamos perante um crime de violência doméstica.
XII
Discorda-se com a douta fundamentação que não considera que a conduta do Recorrido tem uma "(...) intensidade do desvalor (...) de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana.".
XIII
A sentença não explica porque não se entendeu que os factos não têm gravidade suficiente para serem integrados no crime de violência doméstica.
XIV
Incorreu, assim, na ilegalidade prevista no artigo 97º n.ºs 1 b) e 5 do Código de Processo Penal.
XV
Entende a sentença que o ato "(...) terá que assumir uma intensa crueldade, insensibilidade, desprezo pela consideração do outro como pessoa (...)".
XVI
O emprego de uma almofada de sofá é revelador de uma intensa crueldade.
XVII
O Recorrido bem sabia que a almofada era bastante dura e suscetível de causar grande dor.
XVIII
Além disso o Recorrido empregou bastante força para desferir o ataque.
XIX
Uma almofada de sofá é um objeto que não deixará marcas particularmente visíveis na vítima - tornando mais difícil a prova.
XX
Leva ainda a vítima a uma grande humilhação, ao esta ter de relatar que foi agredida com uma almofada.
XXI
Após a agressão, o Recorrido abeirou-se da Recorrente e empurrou-a para fora do domicílio, fechando a porta por considerar que esta queria «dar espetáculo» e que o deveria fazer fora de portas.
XXII
Com esta atitude, o Recorrido expulsou a Recorrente do seu domicílio, privando-a do seu lar, demonstrando uma imensa insensibilidade e crueldade.
XXIII
O Recorrido entende que a agressão perpetrada em 13 de janeiro de 2014 foi algo que a Recorrente fez por merecer, revelando um enorme desprezo pela consideração do outro como pessoa.
XXIV
Comportamento claramente incompatível com a consideração que o Recorrido deve à Recorrente, diminuindo-a na sua dignidade.
XXV
Ao fim de vinte e seis anos de vida em comum foi com bastante sofrimento, constrangimento e revolta interior que a Recorrente se viu forçada a expor a conduta agressiva do Recorrido.
XXVI
Nada poderá ser mais atentatório da dignidade pessoal da Recorrente do que ter que terminar um projeto de vida e expôr esses mesmos motivos em virtude de agressões levadas a cabo pelo Recorrido.
XXVII
A factualidade provada coloca a Recorrente numa situação de vítima de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade dentro do ambiente conjugal.
XXVIII
O Recorrido pretendeu exercer um controlo e domínio sobre a ofendida.
XXIX
Os factos provados são demonstrativos e preenchem os elementos típicos do crime.
XXX
Os atos praticados pelo Recorrido são reveladores de um tratamento insensível e degradante da condição humana da sua vítima.
XXXI
É indubitável que à Recorrente foram infligidos maus tratos físicos e psíquicos, crime cuja ilicitude é agravada em virtude da relação familiar.
XXXII
O Recorrido deverá ser condenado pelo crime de violência doméstica, na sua forma agravada, em virtude de o facto ter sido praticado no domicílio comum.
XXXIII
Ao Recorrido dever-lhe-á ser aplicada a pena acessória de proibição de contacto com a vítima, incluindo o afastamento da sua residência e do seu local de trabalho.
XXXIV
Deverá ainda ser reconhecido à Recorrente o direito a obter uma decisão de indemnização por parte do Recorrido.
XXXV
Caso não se entenda que o Recorrido seja condenado pelo crime de violência doméstica deverá este ser condenado por um crime de ofensa à integridade física qualificada.
XXXVI
Trata-se de um tipo de culpa agravada de ofensa à integridade física por força da cláusula geral da especial censurabilidade.
XXXVII
É suscetível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a circunstância de o agente praticar o facto contra pessoa com quem o agente mantém uma relação análoga à dos cônjuges.
XXXVIII
Os laços familiares básicos com a vítima devem constituir para o agente fatores inibitórios acrescidos
XXXIX
Ultrapassar essa fronteira supõe uma especial censurabilidade.
XL
É reveladora da especial censurabilidade ou perversidade do agente o facto de este ter utilizado uma almofada de sofá como instrumento de agressão.
XLI
A ofensa foi cometida contra a pessoa com quem o Recorrido vivia em comunhão de vida, no interior da casa de morada do casal, revelando igualmente especial censurabilidade.
XLII
O Recorrido, além de agredir a Recorrente com as próprias mãos, demonstrou querer continuar as agressões tendo-se munido para o efeito de uma almofada do sofá.
XLIII
O Recorrido não se satisfez com a primeira agressão, denotando-se uma vontade de continuar o ataque, prolongando-o no tempo e na intensidade.
XLIV
Há motivos justificativos de especial censurabilidade e perversidade do Recorrido.
XLV
O Tribunal a quo violou os artigos 97º n.º 5, 374º n.º 2 in fine e 379º n.º 1 a) do Código de Processo Penal, os artigos 71º, 143º n.º 1, 145º n.ºs 1 a) e 2, 152º n.ºs 1 b) e 2, 154º n.º 1, 155º n.º 1 a) e 181º n.º 1 do Código Penal, artigos 2º a) e 21º n.ºs 1 e 2 da Lei n.º 112/2009 de 16 de setembro e o artigo 9º do Código Civil.
Em suma, nos presentes autos ficou cabalmente provado que o Recorrido praticou o crime de violência doméstica, devendo, pois, o Recorrido ser condenado por esse crime. Deverá ainda, respeitando-se o previsto no artigo 21º da Lei n.º 112/2009 de 16 de setembro, ser reconhecido à Recorrente o direito a obter uma decisão de indemnização por parte do Recorrido, aplicando-se o artigo 82º-A do Código de Processo Penal.
Assim não se entendendo, deverá ser o Recorrido condenado pelo crime de ofensa à integridade física qualificada, mantendo-se os restantes.
Em qualquer dos casos, deverá ao Recorrido ser aplicada a pena acessória de proibição de contacto com a vítima, a qual deverá incluir o afastamento da residência e do local de trabalho desta, nos termos do artigo 152º n.ºs 4 e 5 do Código Penal.
TERMOS EM QUE DEVE SER DADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E, EM CONSEQUÊNCIA, SER REVOGADA A SENTENÇA RECORRIDA, CONDENANDO-SE O RECORRIDO PELO CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E SER RECONHECIDO À RECORRENTE O DIREITO A OBTER INDEMNIZAÇÃO, OU, CASO ASSIM NÃO SE ENTENDA, ALÉM DOS CRIMES PELOS QUAIS JÁ VEM CONDENADO, CONDENÁ-LO AINDA PELO CRIME DE OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA QUALIFICADA EM SUBSTITUIÇÃO DA CONDENAÇÃO PELO CRIME DE OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA SIMPLES.
TUDO COM AS LEGAIS CONSEQUÊNCIAS. MAIS AINDA, DEVER-LHE-Á SER APLICADA A PENA ACESSÓRIA DE PROIBIÇÃO DE CONTACTO COM A VÍTIMA, INCLUINDO O AFASTAMENTO DA RESIDÊNCIA E DO LOCAL DE TRABALHO DESTA.”
*
Os recursos foram admitidos, por despacho datado de 5 de março de 2015.
O arguido não respondeu.
O Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal a quo respondeu ao recurso da assistente, pugnando para que lhe fosse dado provimento, com os fundamentos que aduziu nas suas próprias alegações de recurso.
Nesta instância, o Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, sustentando que ambos os recursos sejam julgados parcialmente procedentes, no sentido de a matéria de facto, que se deve ter por assente, ser subsumível ao crime de violência doméstica, previsto e punível pelo artigo 152º, nºs 1, al. b) e nº 2 do Código Penal, com aplicação ao arguido da pena proposta pelo Ministério Público, de dois anos e seis meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo (sem prejuízo da condenação em pena de multa pelo crime de detenção ilegal de arma, que não constitui objeto do recurso).
Foi cumprido o artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, sem resposta.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
*
II. FUNDAMENTAÇÃO
Conforme é jurisprudência assente, o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente a partir da respetiva motivação, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer (artigo 412º, nº 1 do Código de Processo Penal).
*
1. Questões a decidir
Face às conclusões extraídas pelos recorrentes das respetivas motivações apresentadas, são as seguintes as questões a decidir:
A. Recurso do Ministério Público
A.1. impugnação da decisão proferida quanto a determinados pontos da matéria de facto provada, por erro de julgamento;
A. 2. saber se a conduta do arguido integra o crime de violência doméstica.
B. Recurso da assistente C…
B. 1. vícios da sentença: contradição insanável entre a matéria de facto provada e não provada e erro notório na apreciação da prova;
B. 2. saber se a conduta do arguido integra o crime de violência doméstica ou, pelo menos, o crime de ofensa à integridade física qualificada.
*
2. Factos Provados
Segue-se a enumeração dos factos provados, não provados e respetiva motivação, constantes da sentença recorrida:
“Da audiência de julgamento resultaram provados os seguintes factos:
1. O arguido e a assistente C… viveram em condições análogas às dos cônjuges durante cerca de 26 anos e até ao dia 14.01.2014, residindo juntos na Rua …, .º andar .., …, Vila Nova de Gaia.
2. Por mais do que uma vez durante o tempo em que viveram juntos, em datas não concretamente apuradas, o arguido, em frente de terceiras pessoas, proferiu expressões e teceu comentários relativos à assistente que a fizeram sentir-se inferiorizada e desconfortável.
3. Desde o ano de 2012 a relação entre o arguido e a assistente deteriorou-se, tendo aquele, no âmbito de discussões entre o casal, chamado à assistente, pelo menos uma vez, “filha da puta” e dito a esta, por mais do que uma vez e em datas não concretamente apuradas, “vai-te tratar”.
4. No dia 13 de Janeiro de 2014, pelas 21h, no interior da mencionada residência, depois de a assistente ter solicitado ao arguido que não perturbasse o seu descanso e de um subsequente desentendimento entre os dois, este agarrou-a pelos pulsos, apertando-os.
5. A assistente gritou e, nessa altura, o arguido pegou numa almofada que se encontrava em cima do sofá e desferiu-lhe com ela uma pancada na face, atingindo-a no olho esquerdo.
6. A assistente fugiu para o corredor do prédio, pedindo ajuda aos vizinhos.
7. O arguido, que entretanto foi também para o corredor do prédio, dirigiu à assistente a seguinte expressão: “filha da puta” e ameaçou-a de que “caso apresentasse queixa a mataria, atirando-a da varanda”.
8. Ao proferir aquela última expressão quis o arguido provocar na assistente um sentimento de medo e inquietação, por forma a constrangê-la na sua liberdade de decisão e omissão, com o propósito de a intimidar a não apresentar queixa.
9. Por força do que o arguido lhe transmitira a assistente teve receio de que o arguido viesse a atentar contra a sua vida em momento futuro.
10. Entretanto a assistente foi levada para casa de um vizinho e houve outro vizinho que chamou a polícia.
11. Em virtude do comportamento do arguido a assistente sentiu dores nos locais atingidos, não tendo, contudo, recebido tratamento hospitalar.
12. Como consequência directa e imediata da conduta do arguido sofreu a assistente, na face, equimose arroxeada, de forma irregular, com 2 por 1,5 cm na metade externa da pálpebra superior esquerda, no membro superior direito, equimose arroxeada, arredondada, com 1 cm de diâmetro, na face antero-lateral do terço distal do antebraço, que lhe demandaram três dias para a cura, sem afectação da capacidade de trabalho profissional e geral.
13. No dia 14.01.2014 o arguido detinha, no interior da residência, uma espingarda, arma de fogo longa, com dois canos de alma lisa, em razoável estado de conservação, com todos os seus mecanismos em boas condições para efectuar disparos, de calibre 12 mm, sem cão, com 67,7 cm de comprimento do cano e com percussão central.
14. O arguido não era nem é titular de licença de uso e porte de arma ou detenção no domicílio.
15. Ao actuar da forma acima descrita o arguido bem sabia que a sua conduta era idónea a atingir física e psicologicamente a assistente, sua companheira.
16. Sabia também que, em virtude de não ser titular de licença de uso e porte de arma, não lhe era lícito adquirir, guardar, transportar, deter ou ter na sua posse a supra descrita arma e, não obstante, detinha-a na sua posse, sabendo encontrar-se apta a ser utilizada.
17. Ao fazê-lo agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
18. O arguido não exerce qualquer actividade laboral desde o final do ano de 2010, altura em que encerrou a empresa que tinha, sendo os irmãos que, de momento, o auxiliam economicamente.
19. Vive em Baião, numa habitação de construção antiga e de grandes dimensões, onde viveu na infância e que recebeu por herança conjuntamente com os seus dois irmãos.
20. Na comunidade de residência é descrito como um indivíduo sociável, que pauta as relações que estabelece pela cordialidade e educação.
21. O arguido apresenta reduzidos factores de risco para o cometimento de factos de natureza idêntica aos que estão em causa nos presentes autos, sendo certo que o arguido e a assistente estão separados, não existe o propósito de se reconciliarem e o arguido, ao longo da sua vida, tem-se posicionado adequadamente na interacção social.
22. O arguido nunca antes foi condenado pela prática de qualquer infracção criminal.
*
Não se provaram quaisquer outros factos com relevância para a causa, designadamente que:
a) desde o ano de 2012 a assistente tem sido vítima, por diversas vezes e em datas não concretamente apuradas, mas de forma regular, de agressões físicas e verbais perpetradas pelo arguido;
b) a partir da data referida em a) passou a ser frequente o arguido dirigir à assistente as seguintes expressões “filha da puta”, “maluca”, “vai-te tratar”;
c) a partir da data referida em a) o arguido humilhava constantemente a assistente, razão pela qual esta deixou de conviver com os seus amigos e com o próprio filho, por vergonha; d) na circunstância referida em 3 o arguido torceu as mãos da arguida;
e) a arguida gritou em virtude das dores sofridas;
f) quando pegou na almofada o arguido mantinha a assistente agarrada por uma das mãos;
g) o arguido atingiu a assistente com o fecho da almofada;
h) de seguida, o arguido desferiu-lhe várias pancadas com a almofada na face;
i) antes do referido em 6, a assistente “conseguiu libertar-se” do arguido;
j) o arguido foi no encalço da assistente e, já no corredor do prédio, desferiu-lhe dois estalos na cara e agarrou-a pelos pulsos, apertando-os;
k) nas circunstâncias referidas em 7 o arguido disse à assistente que caso apresentasse queixa “a mataria, dando-lhe um tiro”;
l) para se refugiar em casa de um vizinho a assistente “conseguiu fugir”;
m) a conduta do arguido tenha sido reiterada no tempo e praticada de uma forma regular, visando aquele, com ela, diminuir a assistente na sua condição humana.
*
III – Motivação
Os factos dados como provados assentam numa apreciação crítica e global de toda a prova produzida no seu conjunto.
Assim, o Tribunal considerou, para além dos documentos juntos aos autos a fls. 8/9, 11, 117/118 (autos de apreensão e de exame directo da arma referida nos factos provados) e 78 e seguintes (relatório médico), as declarações do arguido (quer as prestadas em sede de 1º interrogatório, quer as prestadas em julgamento, sendo umas e outras, de resto, coincidentes) e da assistente e os depoimentos das testemunhas D…, E…, F…, G… e H… (vizinhos do arguido e da assistente), I… (filho da assistente), J… (agente da GNR que no dia 13.01.2014 foi chamado ao prédio onde viviam o arguido e a assistente por causa da situação aqui em questão) e K… e L… (irmãos do arguido) – todos prestados de forma que se nos afigurou séria, coerente e isenta -, conjugadamente com as regras da normalidade e da experiência comum.
A assistente, apesar de visivelmente perturbada com os factos objecto do presente processo e de em alguns momentos ter sido pouco precisa nas suas declarações, relatou, de forma no essencial séria e convincente, e em suma, ter começado a viver com o arguido há cerca de 26 anos e que a relação entre os dois começou a agravar-se quando o arguido encerrou a sua empresa, há 3 ou 4 anos, tendo, a partir dessa altura, o ambiente em casa começado a deteriorar-se e a serem frequentes os momentos em que arguido e assistente mal falavam um com o outro mas também as discussões, no decurso das quais o arguido lhe dizia, às vezes (sem conseguir precisar com que frequência), que era “uma filha da puta” e que “era maluca e precisava de se tratar”. Contou ainda que o casal, socialmente, “não funcionava muito bem”, que em virtude da personalidade do arguido muitas vezes se sentia apagada e pouco à vontade (nomeadamente porque à frente de outras pessoas o arguido mal lhe dava oportunidade de falar e tecia comentários pouco abonatórios a seu respeito) – tendo deixado de conviver com outras pessoas por causa disso - tendo, para exemplificar (e sendo certo que este foi o único episódio concreto de que se lembrou, embora sem conseguir localizá-lo no tempo, o que é compreensível), contado que, numa ocasião (cuja data, repete-se, não soube precisar), quando estavam ambos com uma amiga da assistente que queria abrir uma empresa e falou na hipótese de a assistente trabalhar com ela, o arguido disse que a assistente não tinha iniciativa, “estava bem a uma secretária” e “tinha que ser mandada”.
Quanto a estes factos referiu o arguido, por seu lado, que os problemas entre os dois começaram por questões económicas, que em Junho de 2012 chegou a ir para Baião (onde tem uma casa e actualmente reside) sozinho por se ter desentendido com a assistente, que acabou por voltar (a pedido desta) e logo que regressou voltaram a desentender-se, tendo na ocasião, e nesse contexto, chamado à assistente “filha da puta”, que a relação do casal tinha, ou períodos de “absoluto silêncio” ou períodos em que “a assistente lhe dava cabo da cabeça”, que efectivamente lhe dizia “se não estás bem vai-te tratar” (mas isto porque a assistente se queixava constantemente de que “não andava bem”, sendo certo que desde que se conheceram, segundo o arguido, a assistente tomava ansiolíticos e antidepressivos) mas nunca lhe chamou “maluca” e, finalmente, que nunca teve o intuito de humilhar a assistente, apenas a interrompendo porque “percebia mais do que ela de certos assuntos e tinha mais argumentos” e que nunca tiveram grande vida social, apenas convivendo com 2 casais.
Ora, porquanto relativamente a estes factos a única prova produzida foram as declarações do arguido e da assistente (salienta-se que a testemunha I…, filho da assistente – tendo actualmente 38 anos e tendo vivido com o a mãe e o arguido até sair de casa -, nunca presenciou qualquer tipo de mau trato, físico ou psíquico, infligido pelo arguido à assistente, tendo referido apenas que o arguido e a mãe “não conversavam”; e não tendo confirmado, antes pelo contrário, que deixou de conviver com a mãe), porque os dois têm interesse no desfecho do processo e fizeram os seus relatos de forma igualmente “acalorada” e convicta (relatos que, em alguns pontos, acabam por coincidir), nenhum dos relatos merecendo mais credibilidade do que o outro, naturalmente que se suscitaram ao Tribunal dúvidas insanáveis sobre a frequência e a intenção com que algumas expressões eram proferidas e o contexto em que o foram, apenas se tendo dado como provado o que pôde retirar-se sem margem para dúvidas de tais relatos e de algumas explicações e considerações tecidas por arguido e assistente enquanto os faziam.
No tocante aos factos que ocorreram no dia 13 de Janeiro de 2014, os que tiveram lugar na residência do arguido e da assistente não foram presenciados por mais ninguém, pelo que, mais uma vez, o Tribunal apenas pôde atender às declarações do arguido e da assistente. Já os restantes foram presenciados por várias pessoas, como infra se explanará.
Por conseguinte, a assistente contou que depois do jantar pediu ao arguido para não fazer chamadas telefónicas à noite porque isso incomodava o seu descanso, que aquele lhe perguntou “o que é que queres?” e que, quando a assistente se sentou no sofá, o arguido lhe torceu os braços, “medindo-lhe a dor”, tendo depois a assistente gritado, o arguido largado um dos braços desta e tendo-lhe batido com uma almofada na cara, várias vezes (tendo-lhe feito uma nódoa negra no sobrolho, não sabe se com o fecho da almofada). Contou ainda que conseguiu libertar-se, que fugiu para o corredor do prédio, que vieram muitos vizinhos e que o arguido lhe deu um encontrão contra a parede e lhe disse “se chamas a polícia eu mato-te” (não se recordando porém, se o arguido teria dito que a atirava da varanda ou lhe dava um tiro). Disse, por fim, que, por sugestão de um dos vizinhos, o Sr. E…, acabou por ir para casa deste e não saber se na ocasião o arguido teria ido ou não buscar a arma.
Já o arguido disse que no dia 13.01.2014, nas circunstâncias acima referidas, agarrou a assistente pelos pulsos mas não os torceu (tendo sido esta que os torceu a tentar libertar-se), que esta começou a gritar (para chamar a atenção e de forma histérica), que lhe deu uma (e apenas uma) pancada com a almofada na face esquerda, que a assistente foi gritar para a porta de casa e que então lhe disse “queres gritar, então vai lá para fora” e lhe fechou a porta. A assistente, contou, acabou por voltar a entrar em casa (porque tinha a chave) e, quando o arguido viu, estavam cerca de 12 vizinhos juntos, sendo que nessa ocasião chamou, efectivamente, “filha da puta” à assistente. Disse ainda que nunca foi atrás da assistente e que no corredor do prédio não lhe bateu, de nenhuma forma.
Consequentemente, e no que respeita aos acontecimentos que tiveram lugar dentro de casa, mais uma vez terá que dizer-se que não há razão para atribuir maior credibilidade a qualquer dos relatos em detrimento do outro (tendo mesmo, há que dizê-lo, sido algo exagerado, neste ponto, o que foi contado pela assistente, que disse que em virtude das várias pancadas que lhe foram desferidas com a almofada ficou com a cara inchada e, mais do que isso, com “a cara feita num bolo”, circunstância que não só é completamente inverosímil como não foi confirmada por qualquer outro meio de prova, nem testemunhal - isto quando os vizinhos do arguido e da assistente a viram poucos segundos ou minutos depois de tudo acontecer -, nem médica), motivo pelo qual, tendo-se suscitado no Tribunal dúvida insanável sobre a ocorrência dos que foram referidos apenas pela assistente (e porque estes factos prejudicam o arguido), apenas foram dados como provados os factos que foram admitidos pelo arguido.
Já quanto aos restantes acontecimentos, a testemunha D… explicou que estava a fazer o jantar, que decidiu ir buscar o telemóvel ao carro e que, nessa altura, quando abriu a porta de casa, viu o arguido, a assistente e alguns vizinhos cá fora, estando estes a tentar “serenar a situação”, uma vez que o arguido estava muito exaltado. O arguido, contou, terá dito à assistente que a atirava da janela abaixo, sendo que a testemunha também o tentou acalmar e depois a assistente foi levada por um dos vizinhos para casa deste. Disse não ter visto o arguido agredir a assistente, que ouviu insultos mas não se recordava o quê concretamente e ainda que, quando a assistente já estava em casa do vizinho, viu o arguido com um objecto na mão que lhe pareceu ser uma arma. A testemunha E…, por seu lado, contou estar em sua casa e ter ouvido gritos de socorro, ter ido ver o que estava a passar-se e ter visto o arguido muito exaltado (desorientado mesmo) e a assistente a chorar, pelo que acabou por levar esta para sua casa. A testemunha F… relatou que, quando estava em casa, ouviu “uma gritaria”, que reconheceu a voz da assistente (que gritava “acudam!”), que veio à porta e vieram também outros vizinhos (o Sr. D…, o Sr. E… e um outro vizinho do 1º andar), que a assistente continuava a gritar “acudam-me, ele mata-me!”, que o arguido estava muito alterado (não se recordando, no entanto, se fez alguma coisa, e nomeadamente não tendo visto se, de alguma forma, agrediu a assistente), que então perguntou à assistente se queria que chamasse a polícia, que o arguido disse à assistente que se fizesse queixa dele a matava, a atirava da varanda, que ainda assim chamou a polícia, que a dada altura toda a gente foi para dentro de casa e que, como quando espreitou pelo óculo lhe pareceu que o arguido tinha qualquer coisa na mão, algo comprido e este tinha dito que tinha uma arma, voltou a chamou a GNR e que depois disso, nessa noite, não voltou a ver a assistente. Disse, por fim, não saber se foram ou não proferidos insultos.
Finalmente, a testemunha G… contou ter ouvido barulho mas já só ter visto o arguido à porta de casa, a vestir o casaco e com a trela do cão, tendo referido que lhe pediu para irem dar uma volta, que assim fizeram e que depois o arguido foi com a testemunha para casa desta (circunstâncias que também foram referidas pelo arguido).
E a testemunha H… explicou que estava em casa, ouviu gritos, percebeu que vinham do andar de cima, subiu, viu vários vizinhos (a D. F…, o Sr. E…) e viu o arguido e a assistente a discutirem e ambos exaltados, sendo que a assistente estava encostada à parede e o arguido lhe deu “um pequeno empurrão”, tendo então a testemunha pedido ao arguido que se acalmasse, enquanto lhe punha a mão no ombro e tendo este ido para casa.
Conjugados os depoimentos de todas estas testemunhas com as declarações da assistente e do arguido (e destacando-se que, embora haja pontos em que não houve coincidência, no essencial, o “quadro” relatado por todos foi o mesmo), e ainda com o documento de fls. 78 e seguintes, o Tribunal não teve dúvidas de que ocorreram os factos que vieram a ser dados como provados sob os pontos 4 a 7 e 10 a 12.
No concernente aos factos constantes dos pontos 13 e 14 o Tribunal atendeu aos autos de fls. 8/9, 11 e 117/118, conjugadamente com o depoimento da testemunha J…, que procedeu à apreensão da arma. O arguido admitiu ter a arma e os seus irmãos, as testemunhas K… e L…, apenas explicaram que o arguido terá trazido a arma – que era usada pelo pai de todos para caçar - de Baião (onde esteve até cerca do ano de 2006) para a restaurar/reparar.
Os factos descritos nos pontos 8, 9 e 15 a 17 foram dados como provados por intermediação da prova produzida conjugada com as regras da experiência comum.
Quanto aos factos enunciados nos pontos 18 a 21 valoraram as declarações do arguido e o relatório social de fls. 323 e seguintes.
Relativamente à ausência de antecedentes criminais do arguido, atendeu-se ao certificado junto aos autos a fls. 154.
Quanto aos factos que não vieram a ser dados como provados, não se fez qualquer prova que desde o ano de 2012 a assistente tenha sido vítima, por diversas vezes e em datas não concretamente apuradas, mas de forma regular, de agressões físicas perpetradas pelo arguido. Efectivamente, além de o arguido ter negado alguma vez, antes do dia 13.01.2014, ter agredido a assistente, também esta, quando prestou declarações em julgamento, disse que antes de 13.01.2014 nunca o arguido a tinha agredido. É certo que, em posterior sessão de julgamento, quando o Tribunal lhe pediu alguns esclarecimentos, referiu que o arguido lhe deu uma bofetada “quando M… perdeu as eleições (legislativas)”. No entanto, esta afirmação, tal como foi proferida, quando anteriormente já tinha sido pela assistente dito o contrário (e sendo pouco credível que, tratando-se apenas de um episódio, a assistente dele não se recordasse perfeitamente e não o referisse antes), não mereceu credibilidade (reportando-se, aliás, não ao período aqui em questão mas a um período muito anterior). Não se provou também que desde o ano de 2012 a assistente tenha sido vítima, por diversas vezes e em datas não concretamente apuradas, mas de forma regular, de agressões verbais perpetradas pelo arguido, que a partir daquele momento passou a ser frequente o arguido dirigir à assistente as seguintes expressões “filha da puta”, “maluca”, “vai-te tratar” e que a partir do mesmo momento o arguido humilhasse constantemente a assistente, razão pela qual esta deixou de conviver com os seus amigos e com o próprio filho, por vergonha; isto, consoante se explicou já (dando-se aqui por reproduzido o sobredito a este propósito), face às declarações da assistente e do arguido, devidamente contextualizado que foi o relatado por um e por outro e atendendo às explicações adiantadas por um e por outro e à percepção que o Tribunal conseguiu ter das respectivas personalidades.
O mesmo tendo que dizer-se sobre os factos constantes das alíneas d) a i) e l), sublinhando-se ainda que podem ser diferentes as percepções subjectivas que cada um tem de determinadas situações e que, a respeito da circunstância de a assistente “ter conseguido libertar-se do arguido” e ter “conseguido fugir” e este “ter ido no seu encalço”, este referiu, e faz todo o sentido (dada a desproporção física entre arguido e assistente), ter sido ele quem libertou a assistente por vontade própria (já que se não quisesse a assistente não conseguiria libertar-se).
Não se fez qualquer prova dos factos elencados nas alíneas j) (2ª parte) e k), que não foram referidos nem pela assistente nem por nenhuma das testemunhas.
Face à restante prova produzida obviamente que não se fez prova da circunstância mencionada na alínea m).”
*
3. APRECIAÇÃO DOS RECURSOS

A. RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO

A.1. Impugnação da decisão proferida quanto a determinados pontos da matéria de facto provada, por erro de julgamento.
Sustenta o recorrente, que deveriam ter sido dadas como provadas as concretas expressões proferidas pelo arguido relativamente à assistente, a que (apenas) genericamente se alude no ponto 2; bem como deveria ter sido considerada provada a factualidade descrita nas alíneas g) e h) dos factos não provados. Concluindo que, não tendo decidido dessa forma, o tribunal a quo fez incorreta apreciação da prova produzida em audiência.
Para tanto, indica as provas que, em seu entender, impõem decisão diversa, com a menção concreta das passagens da gravação em que funda a impugnação.
Assim cumprindo os requisitos de forma estabelecidos para a impugnação da matéria de facto pelo artigo 412º nº 3, als. a), b) e c) e nº 4 do Código de Processo Penal.
Requisitos esses que se fundam na necessidade da delimitação objetiva do recurso da matéria de facto, na medida em que o recurso deste tipo não se destina a um novo julgamento com reapreciação de toda a prova, como se o julgamento efetuado na primeira instância não tivesse existido, sendo antes o recurso da matéria de facto concebido pela lei como remédio jurídico (cfr. Simas Santos e Leal Henriques, “Recursos em Processo Penal”, 7.ª edição, atualizada e aumentada, 2008, pág. 105).
Nestes casos, o Tribunal da Relação não faz um segundo julgamento, não vai à procura de uma nova convicção, antes se limitando a fazer o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento que tenham sido referidos no recurso e das provas que imponham, e não só que permitam, decisão diferente. Pois a decisão do recurso sobre a matéria de facto não pode ignorar, antes tendo de respeitar, o princípio da livre apreciação da prova do julgador, expresso no artigo 127º do Código de Processo Penal e a sua relação com a imediação e oralidade, sobretudo quando tem que se debruçar sobre a valoração efetuada na primeira instância da prova testemunhal, face à ausência de contacto direto com esse prova, o que integra uma das grandes limitações deste tipo de recursos.
Tudo isto implicando que o tribunal de recurso só possa alterar a decisão sobre a matéria de facto em casos de erro na apreciação da prova.
Posto isto, e dentro dos limites que a lei estabelece para a apreciação do recurso da matéria de facto, vejamos pois se o tribunal a quo errou na apreciação e valoração da prova produzida na audiência e se o resultado do processo probatório devia ser outro.
Da motivação da matéria de facto, já supra transcrita, logo se alcança que grande parte da factualidade apurada (com exceção da ocorrida no dia 13 de janeiro de 2014, fora da residência) teve por base, unicamente, as declarações do arguido e da assistente, uma vez que relativamente a ela não foram apresentadas testemunhas ou outros meios de prova.
Contudo, como o tribunal a quo dá conta na motivação, o arguido e a assistente ”porque os dois têm interesse no desfecho do processo e fizeram os seus relatos de forma igualmente “acalorada” e convicta (relatos que, em alguns pontos, acabam por coincidir), nenhum dos relatos merecendo mais credibilidade do que o outro, naturalmente que se suscitaram ao Tribunal dúvidas insanáveis sobre a frequência e a intenção com que algumas expressões eram proferidas e o contexto em que o foram, apenas se tendo dado como provado o que pode retirar-se sem margem para dúvida de tais relatos e de algumas explicações e considerações tecidas pelo arguido e assistente enquanto o faziam.” (In motivação, fls. 363).
Por outras palavras, nos pontos em que os relatos dos acontecimentos feitos pela assistente e pelo arguido não coincidiam, ficou o tribunal sem saber o que efetivamente sucedeu, já que nenhum motivo havia para conferir credibilidade a um em detrimento do outro.
Sendo precisamente isso o que aconteceu com a factualidade descrita no ponto 2 dos factos provados, em que, da conjugação das declarações do arguido e da assistente, apenas é certo, por ser por ambos admitido, que “o arguido, em frente de terceiras pessoas, proferiu expressões e teceu comentários relativos à assistente que a fizeram sentir-se inferiorizada e desconfortável” (in ponto 2 dos factos provados). Já quanto às concretas expressões/comentários proferidos nessas alturas pelo arguido, embora a assistente tenha referido alguns, o arguido não admitiu tê-los proferido, referindo antes outros, de outro tipo, mas igualmente suscetíveis de causar desconforto e humilhação social à assistente. Perante o que o tribunal a quo ficou com a certeza que de que o arguido proferiu expressões/comentários com virtualidade para causar aquelas sensações à assistente, embora sem saber concretamente quais (se os narrados pela assistente, se os mencionados pelo arguido).
O mesmo sucedendo relativamente à agressão com a almofada, ocorrida no dia 13 de janeiro de 2014, pelas 21 horas, no interior da residência do casal.
Também quanto a esse episódio, temos as declarações da assistente e do arguido. A primeira afirmado que o arguido lhe bateu com uma almofada na cara, por várias vezes, tendo-lhe feito uma nódoa negra no sobrolho, não sabe se com o fecho da almofada. O arguido, por sua vez, afirmando que lhe bateu com a almofada, na face, uma única vez.
Ora, perante estes dois relatos dos acontecimentos, apenas é certa aquela parte deles em que as declarações coincidem, ou seja, que o arguido bateu com uma almofada na cara da assistente, pelo menos, uma vez. Tendo sido isso que o tribunal a quo deu como provado, precisamente por não ter conseguido conferir maior credibilidade a um dos relatos, em detrimento do outro, pelo interesse (contrário) do arguido e da assistente no desfecho do processo e pela forma nitidamente parcial como ambos narraram os acontecimentos.
E, se da mencionada agressão com a almofada, resultou para a assistente uma equimose arroxeada, com 2 cm x 1,5 cm na pálpebra, como foi dado como provado e resulta do relatório de avaliação do dano corporal de fls. 78 e segs, não se pode dizer que a existência desta lesão corrobore qualquer das versões apresentadas. Posto é que uma única pancada com uma almofada na face é já suscetível de causar uma pequena equimose arroxeada, na zona particularmente sensível das pálpebras, não sendo para tal sequer preciso que essa zona seja atingida pelo fecho, mas apenas por uma das pontas da almofada.
Assim, se o Tribunal a quo, que teve a imediação da prova, contactou diretamente com o arguido e a assistente, ouvindo-os e vendo-os enquanto relatavam os acontecimentos, não conseguiu conferir maior credibilidade a um do que a outro, e se a versão a que chegou é plausível segundo as regras da experiência comum e suportada pelas provas invocadas na motivação, não se vê como poderia sequer este tribunal de recurso, que com o arguido e a assistente não contactou diretamente, proceder a um novo julgamento sobre a credibilidade dos mesmos.
Proceder a novo julgamento nesses termos, implicaria um modelo de recurso da matéria de facto que não é o do Código de Processo Penal português.
Como ensina Figueiredo Dias (Direito Processual Penal. vol. I. ed.1974. pag. 204) a decisão sobre a matéria de facto, para além da atividade racional que envolve, tem também sempre de conter uma convicção pessoal, na qual estão presentes elementos racionalmente não explicáveis e mesmo puramente emocionais, designadamente no que respeita à credibilidade dos depoimentos. E o legislador, consciente das limitações que o recurso da matéria de facto necessariamente tem envolver, teve o cuidado de dizer que as provas a atender pelo Tribunal ad quem são aquelas que “impõem”e não as que “permitiriam” decisão diversa (cfr. artigo 412º, nº 3, al. b) do Código de Processo Penal).
In casu, é indubitável que a argumentação e prova indicadas pelo recorrente não impõem decisão diversa da proferida, nos termos da al. b) do nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal, apenas sendo exemplificativas de outra interpretação da prova.
A decisão do tribunal a quo é assim inatacável neste ponto, porque proferida de acordo com a sua livre convicção, nos termos do art. 127º do Código de Processo Penal e em absoluto respeito dos dispositivos legais aplicáveis.
Improcedendo este ponto do recurso.
*
A.2. Subsunção jurídica dos factos ao crime de violência doméstica.
Entende contudo o recorrente, que mesmo considerando-se unicamente os factos dados como provados na sentença, eles são já subsumíveis ao crime de violência doméstica e não, apenas, aos crimes integradores das várias condutas individualmente consideradas (injúrias, ofensas e coação tentada).
Vejamos.
Nos termos do artigo 152º, nº 1, al. a), do Código Penal, incorre na prática do crime de violência doméstica:
“Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
Com este preceito, visa-se prevenir e punir as formas de violência no âmbito da família. A "ratio" do preceito é a proteção da pessoa individual e da sua dignidade humana nas relações conjugais e outras que, como estas, têm particular proximidade, quando em contradição com o clima de confiança, solidariedade e respeito que carateriza esse tipo de relações, ocorrem condutas violentas.
Sendo o bem jurídico protegido pelo crime de violência doméstica, nas palavras de Taipa de Carvalho, “a saúde – bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental –“ (cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, T. I, Coimbra Editora, pág. 132).
Este tipo de crime exige, como elemento objetivo, a prática de maus tratos físicos ou psíquicos tais como ofensas à integridade física, humilhações, provocações, injúrias, cometidos dentro de determinadas relações familiares ou análogas. No entanto, a verificação do tipo de ilícito não exige a repetição de condutas ofensivas da integridade física ou moral (“... de forma reiterada ou não...”), podendo assim verificar-se com uma única conduta, mas desde que a sua gravidade intrínseca permita o enquadramento na figura dos maus tratos. Já que não são, obviamente, todas as ofensas ou agressões, quer físicas quer psíquicas, que cabem na previsão legal, mas somente aquelas que fundamentalmente traduzam crueldade, insensibilidade ou até vingança desnecessária da parte do agente, segundo os padrões sociais vigentes.
De onde resulta que a incriminação como violência doméstica de condutas agressivas, praticadas por uma só vez, apenas ocorrerá quando a gravidade intrínseca permitir o seu enquadramento na figura dos maus tratos físicos ou psíquicos referida no nº 1, do artigo 152º, do Código Penal, enquanto violação da pessoa individual e da sua dignidade humana, com afetação da saúde.
Nas palavras de Conde Fernandes, “O bem jurídico, enquanto materialização direta da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efetivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à sua degradação pelos maus tratos” (cfr. “Violência Doméstica”, Novo Quadro Penal e Processual Penal, Jornadas sobre a Revisão do Código Penal, Revista do CEJ, n.º 8, pág. 305).
Entende-se assim que é essencial para o preenchimento do tipo de crime de violência doméstica, que os comportamentos do agente, reiterados ou não, assumam uma gravidade tal que justifique a sua autonomização relativamente aos ilícitos que as condutas individualmente consideradas possam integrar.
Revertendo agora ao caso sub judice, apurou-se que o arguido e a assistente, sua companheira, viveram em condições análogas às dos cônjuges durante cerca de 26 anos, sendo que, a partir de 2012, altura em que a relação se deteriorou, o arguido, no âmbito de discussões entre o casal, chamou à assistente, pelo menos uma vez, “filha da puta” e disse-lhe, mais de vez, “vai-te tratar”.
Ao que acresce, no dia 13 de janeiro de 2014, no interior da residência do casal, na sequência de um desentendimento entre os dois, o arguido agarrou a assistente pelos pulsos, apertando-os e, tendo esta gritado, o arguido pegou numa almofada que se encontrava em cima do sofá e com ela lhe desferiu uma pancada na face, atingindo-lhe o olho esquerdo, causando-lhe duas equimoses arroxeadas, uma com 2 cm x 1,5 cm na metade externa da pálpebra superior esquerda e, outra, com 1 cm de diâmetro, na face antero lateral do terço distal do antebraço. Após o que, tendo a assistente fugido para o corredor do prédio, o arguido chamou-lhe “filha da puta” e ameaçou-a que caso apresentasse queixa a mataria, atirando-a da varanda.
Resultou ainda apurado que o arguido agiu com dolo direto, com liberdade na ação, querendo ofender a honra, integridade física e liberdade de decisão e ação da assistente, com conhecimento de que as suas condutas eram proibidas.
Contudo, embora toda a atuação do arguido tenha ocorrido no quadro da relação conjugal existente entre ele e a vítima, somos de entendimento que as descritas condutas não ultrapassam a sua caraterização como injúria, ofensa à integridade física e coação, não justificando tratamento diferente do correspondente a cada um dos ilícitos individualmente considerados, nos artigos 181º, nº 1; 143, nº 1; e 22, nºs 1 e 2, 23º, 154º, nº 1 e 155º, nº 1, todos do Código Penal.
Efetivamente, ao nível das injúrias, temos a expressão “filha da puta”, mas usada apenas por duas vezes e no âmbito de discussões do casal, ocorridas ao longo de cerca de dois anos.
Para além dela, provou-se que o arguido disse à assistente, por mais de uma vez, “vai-te tratar”, expressão que, embora suscetível de ofender a sensibilidade da pessoa a quem é dirigida, não encerra em si uma carga injuriosa implícita e intensa, quando proferida, como foi o caso, no âmbito de uma discussão conjugal.
Quanto à agressão física, para além de se circunscrever a um único episódio e ter consequências muito leves, revela, inclusive, na forma como foi praticada, uma manifesta vontade de conter os seus efeitos num patamar de muito baixa intensidade, só assim se compreendendo que, depois de apertar os pulsos à assistente, o arguido, para lhe desferir uma pancada na face, tenha escolhido uma almofada, que é objeto suscetível de amortecer a própria força que lhe é imprimida, limitando muito a hipótese de lesão/ferimento e impossibilitando, até, que a dor sentida seja intensa.
Quanto à coação, não se pode olvidar que foi praticada na forma tentada, uma única vez, em contexto de rotura final da relação conjugal e quando os ânimos estavam naturalmente já muito exaltados, com a assistente no corredor do prédio, pedindo a intervenção dos vizinhos.
Conclui-se, assim, que as condutas do arguido, quer ao nível do desvalor da ação e do resultado, quer pelo número de vezes que foram praticadas, não revelam intensidade nem aptidão suficiente para lesarem, também, a própria saúde psíquica, emocional ou moral da assistente, de modo incompatível com a sua dignidade e liberdade da pessoa humana, em ambiente conjugal.
Não se podendo por isso equacionar a unificação das condutas do arguido num único crime, de violência doméstica.
Naufragando, por isso, este ponto do recurso.
*
Ficando consequentemente prejudicada a questão da pena a aplicar pelo crime de violência doméstica.
***
B. RECURSO DA ASSISTENTE C…

B. 1. Vícios da sentença: contradição insanável entre a matéria de facto provada e não provada e erro notório na apreciação da prova.
Defende a assistente/recorrente que a sentença padece dos vícios da contradição insanável entre a matéria de facto provada e não provada, bem como do erro notório na apreciação da prova, previstos nas alíneas b) e c), do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal.
Vejamos.
Os vícios que a recorrente aponta à sentença, tal como os demais que integram no nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal, têm de resultar “do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum”, isto é, sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos.
São “vícios ao nível da lógica jurídica da matéria de facto, da confeção técnica do decidido, apreensíveis a partir do seu texto, a denunciar incoerência interna com os termos da decisão” (in acórdão do STJ de 07.12.2005, CJ-STJ, tomo III/2005, p. 224).
A contradição insanável da fundamentação ou entre os fundamentos e a decisão (artigo 410, nº 2, al. b) do Código de Processo Penal) traduz-se numa “incompatibilidade não ultrapassável através da própria decisão, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão” (Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, Editora Rei dos Livros, 8ª ed. Lisboa, 2012, p. 77).
Por sua vez, o erro notório na apreciação da prova, é o que se traduz numa “falha grosseira e ostensiva na análise da prova” que leva a que “um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta que o tribunal violou as regras da experiência ou que se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das legis artis" (Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, ob. citada, p. 80).
Retomando agora o caso sub judice, e começando pelo primeiro dos vícios invocados, desde já adiantamos não padecer a sentença recorrida da alegada contradição entre os factos provados sob os nºs 2 e 3 e os considerados como não provados nas alíneas a), b) e c).
Efetivamente, da leitura atenta da factualidade apurada resulta que, a partir do ano de 2012, altura em que a relação do arguido e da assistente se deteriorou, aquele chamou a assistente, pelo menos uma vez, de “filha da puta” e disse-lhe, mais do que uma vez, “vai-te tratar”.
Para além disso, provou-se apenas o concreto episódio do dia 13 de janeiro de 2014, em que o arguido agrediu fisicamente a assistente, chamou-lhe “filha da puta” e ameaçou-a de que caso apresentasse queixa a mataria, atirando-a da varanda.
Ora, tendo a relação da assistente e do arguido durado cerca de 26 anos, começando a deteriorar-se ao fim de 24 anos, a prova de uma única agressão física, duas injúrias e uma tentativa de coação durante os últimos dois anos, não significa, de modo algum, que a assistente fosse vítima de agressões físicas e verbais, por diversas vezes e de forma regular. Pelo que tal matéria, vertida na al. a) dos factos não provados, nada tem de contraditório com a factualidade apurada.
Por outro lado, também não consta dos factos provados que o arguido chamasse maluca à assistente ou que, a partir de 2012, fosse frequente dirigir à assistente as expressões “filha da puta” e vai-te tratar”. Efetivamente, e como supra se referiu, apenas se provou que o arguido utilizou por duas vezes a expressão “filha da puta” e, “mais do que uma vez”, a expressão “vai-te tratar”, sendo que, “mais do que uma vez”, contem em si a hipótese de serem apenas duas as vezes que tal aconteceu. Pelo que nenhuma contradição há, também, entre o circunstancialismo fático apurado e a factualidade descrita na al. b) dos factos não provados, onde se consigna não se ter feito prova de que “a partir do ano de 2012 passou a ser frequente o arguido dirigir à assistente as seguintes expressões “filha da puta”, “maluca”, “vai-te tratar””.
Note-se, ainda, que contrariamente ao que pretende a recorrente, no ponto 2 dos factos provados não há referência a quaisquer injúrias, já que dele consta, unicamente, que o arguido, em frente a terceiras pessoas, proferiu expressões e teceu comentários relativos à assistente, que a fizeram sentir-se inferiorizada e desconfortável. Ora, como é bom de ver, há muitos tipos de expressões e comentários suscetíveis de inferiorizar e fazer sentir desconfortável alguém, sem integrarem qualquer injúria ou, sequer, agressão verbal.
Não se vendo, também, qualquer contradição entre a matéria fática provada e aquela que foi considerada não provada, na al. c), posto é que esta última se refere à circunstância de a assistente ter deixado de conviver com os amigos e o próprio filho, por vergonha das constantes humilhações que lhe eram infligidas pelo arguido, nada havendo em contrário nos factos provados.
Quanto ao erro notório, a recorrente alega que se verifica este vício, por se ter considerado não provado, na al. e), que a assistente gritou em virtude das dores sofridas, quando das próprias declarações do arguido resulta isso mesmo.
Ora, neste ponto, logo ressalta que a recorrente alude impropriamente ao erro notório, já que o confunde manifestamente com erro na apreciação da prova relativamente ao que o tribunal deveria ou não (na sua perspetiva) ter considerado provado, criticando a convicção do tribunal.
Efetivamente, a recorrente não afirma que para uma pessoa medianamente instruída, o próprio texto da sentença recorrida, por si e ainda que conjugado com as regras da experiência comum, contenha qualquer contradição contrária à lógica ou regras da experiência da vida. Mas antes e só, que a decisão da matéria de facto não está em conformidade com a prova efetivamente produzida em audiência, designadamente com as declarações do próprio arguido, indicando até as concretas passagens da gravação do respetivo depoimento em que se funda. Questão que tem o seu lugar apenas na impugnação da matéria de facto, por erro de julgamento.
De todo o modo, das declarações do arguido, designadamente da passagem delas transcrita pela recorrente, contrariamente ao alegado, não resulta que a assistente tenha berrado em consequência da dor resultante da agressão física, mas, na versão do arguido, apenas para que os vizinhos ouvissem.
Assim, e uma vez que o tipo de agressão que se apurou ter sido infligida à assistente, bem como as suas consequências, não são suscetíveis de provocar gritos de dor a pessoa de normal sensibilidade, também não se vislumbra, neste ponto, a ocorrência de erro na apreciação da prova.
*
B. 2. Saber se a conduta do arguido integra o crime de violência doméstica ou, pelo menos, o crime de ofensa à integridade física qualificada.
Sustenta ainda a recorrente que o tribunal a quo fez uma errada subsunção jurídica dos factos, que em seu entender são subsumíveis ao crime de violência doméstica ou, pelo menos, ao crime de ofensa à integridade física qualificada. Não constando sequer da sentença a explicação para o entendimento de que os factos não têm gravidade suficiente para serem integrados no crime de violência doméstica, o que integra a ilegalidade prevista no artigo 97º, nºs 1, a) e 5 do Código de Processo Penal.
Comecemos, pois, pela alegada falta de fundamentação.
Nos termos do artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal, um dos requisitos da sentença, cuja falta é, até, cominada com nulidade, é a fundamentação, “que consta da enumeração dos factos provados e não provados, e uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que sucinta, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para fundar a convicção do tribunal”.
Na fundamentação se incluindo, assim, também as razões de facto e de direito que se reportam à subsunção jurídica dos factos.
Sendo que, da sentença recorrida, a propósito da absolvição do arguido do crime de violência doméstica e subsunção da factualidade apurada apenas aos crimes de injúria, ofensa à integridade física simples e coação na forma tentada, consta o seguinte:
“Dispõe o artigo 152º do Código Penal, no seu nº 1, que “quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais: b) a pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação; é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”. E no seu nº 2 que “no caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos”.
Limitar-nos-emos, na análise deste tipo de ilícito, ao caso destes autos, ou seja, ao caso de violência doméstica entre pessoas que viviam em condições análogas às dos cônjuges, ficando por analisar todas as outras vertentes de violência doméstica protegidas também pelo artigo 152º do Código Penal.
A função da norma citada é prevenir as frequentes e, por vezes, tão subtis e camufladas formas de violência no âmbito da família. Neste sentido, a necessidade prática da criminalização das espécies de comportamentos descritos no artigo 152º, alínea b) resultou da consciencialização ético-social dos tempos recentes sobre a gravidade individual e social destes comportamentos. A neocriminalização, no sentido de que a disposição deste artigo é algo de relativamente recente, não significa novidade ou maior frequência deles, nos tempos actuais, mas sim uma saudável consciencialização da inadequação e da gravidade e perniciosidade desses comportamentos, de uma consciencialização recente da violência conjugal como problema social.
O artigo 152º está, sistematicamente, integrado no Título I, dedicado aos “crimes contra as pessoas” e, dentro deste, no Capítulo III, epigrafado de “crimes contra a integridade física”.
Desta análise sistemática pode concluir-se que a ratio do tipo não está na protecção da comunidade familiar ou conjugal, mas sim na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana. O âmbito punitivo deste tipo de crime abarca os comportamentos que, de forma reiterada ou não, lesam a referida dignidade. Se é certo que no passado se considerou que o bem jurídico protegido era tão só a integridade física, constituindo a violência doméstica uma forma agravada do crime de ofensas corporais simples, no presente uma interpretação como a acabada de expor é inaceitável, por manifestamente limitativa e redutora. A ratio deste artigo que estamos a analisar vai muito mais longe que os maus tratos físicos, abrangendo também os maus tratos psíquicos, como as ameaças, as humilhações, as provocações, as curtas privações da liberdade de movimentos e as ofensas sexuais. Assim sendo, podemos dizer que o bem jurídico protegido por este tipo legal de crime é a saúde, entendida esta enquanto saúde física, psíquica e mental e, por conseguinte, podendo ser afectada por uma diversidade de comportamentos que impeçam ou dificultem o normal desenvolvimento de uma pessoa, afectem a dignidade pessoal e individual do cônjuge.
O crime de violência doméstica pressupõe um agente, um sujeito activo que se encontra numa determinada relação para com o sujeito passivo, a vítima, daqueles comportamentos. Assim sendo, estamos perante aquilo a que se chama um crime específico” quem infligir ao cônjuge ou ao ex-cônjuge”). Este denominado crime específico será impróprio ou próprio, consoante as condutas por si mesmas consideradas já constituam crime (estamos a lembrar-nos dos maus tratos físicos, sinónimo de ofensa à integridade física simples, de algumas formas de maus tratos psíquicos, como por exemplo, ameaças, injúrias ou difamações) ou não configurem em si mesmas qualquer tipo de crime.
Sujeito passivo ou vítima só pode ser a pessoa que se encontre ou se tenha encontrado para com o agente ou sujeito activo, numa relação de coabitação conjugal, ou seja, cônjuge ou ex-cônjuge.
As condutas previstas e punidas por este artigo podem ser de duas espécies: maus tratos físicos (ofensas à integridade física simples) e maus tratos psíquicos (ameaças, humilhações, provocações, molestações).
E estes maus tratos podem ser infligidos de modo reiterado ou não, tendo-se, com efeito, com a redacção do artigo 152º introduzida pela Lei nº 59/2007, 04.09, afastado expressamente a exigência de reiteração como elemento do tipo.
Porém, um único acto ofensivo, sem reiteração, só preencherá o tipo objectivo se existir uma intensidade do desvalor, da acção e do resultado que seja apta e bastante para molestar o bem jurídico protegido – a saúde física, psíquica ou emocional - de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana. Ou seja, sendo embora possível o cometimento do crime de violência doméstica através de um só acto, o mesmo terá que atingir de modo intenso a dignidade pessoal da vítima; terá que assumir uma intensa crueldade, insensibilidade, desprezo pela consideração do outro como pessoa, estando esta ideia de intensidade expressa na exposição de motivos da Proposta de Lei nº 98/X de alteração do Código penal, da Lei nº 59/2007 – vide, a este respeito o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15.01.2013, proferido no processo nº 1354/10.6TDLSB.L1-5 e, ainda muito recentemente, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10.12.2014, proferido no processo nº 12/13.4GDSTS-A.P1, ambos disponíveis na internet via www.dgsi.pt.
Quanto ao tipo subjectivo de ilícito exige-se o dolo.
O nº 2 do preceito em análise prevê uma agravação da moldura penal quando os factos forem praticados contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima.
Diga-se, apenas, que se relativamente às primeiras situações qualificadoras do crime de violência doméstica não podem levantar-se quaisquer críticas, pois se num caso o menor é a vítima directa da violência, no outro é a vítima indirecta ou reflexa dessa mesma violência, necessitando sempre de protecção acrescida, o mesmo não pode dizer-se das segundas, pois se é compreensível a qualificação quando o crime é praticado no «domicílio da vítima», tendo em conta a inviolabilidade do domicílio e da vida privada, já não será tão defensável o agravamento quando é praticado no «domicílio comum», considerando que esse será o local onde por regra o crime será cometido, pelo que em termos práticos todos os crimes de violência doméstica são qualificados. Supomos que o legislador, consciente de que é no domicílio e a coberto de olhares de estranhos que se verificam as agressões, terá querido com o agravamento da pena diminuir a prática de crimes, assente muitas vezes na sensação de impunidade que o agente experimenta ao saber que não existem testemunhas, para além da própria vítima.
Pois bem. Face às considerações que antecedem e à factualidade apurada entendemos que o arguido não praticou o crime de violência doméstica que lhe vem imputado.
Se não vejamos.
Provou-se que o arguido e a assistente viveram em condições análogas às dos cônjuges durante cerca de 26 anos e até ao dia 14.01.2014, residindo juntos na Rua …, .º andar .., …, Vila Nova de Gaia. Provou-se também que por mais do que uma vez durante o tempo em que viveram juntos, em datas não concretamente apuradas, o arguido, em frente de terceiras pessoas, proferiu expressões e teceu comentários relativos à assistente que a fizeram sentir-se inferiorizada e desconfortável. Provou-se que desde o ano de 2012 a relação entre o arguido e a assistente se deteriorou, tendo aquele, no âmbito de discussões entre o casal, chamado à assistente, pelo menos uma vez, “filha da puta” e dito a esta, por mais do que uma vez e em datas não concretamente apuradas, “vai-te tratar”.
E provou-se, por fim, que no dia 13 de Janeiro de 2014, pelas 21h, no interior da mencionada residência, depois de a assistente ter solicitado ao arguido que não perturbasse o seu descanso e de um subsequente desentendimento entre os dois, este agarrou-a pelos pulsos, apertando-os; que a assistente gritou e, nessa altura, o arguido pegou numa almofada que se encontrava em cima do sofá e desferiu-lhe com ela uma pancada na face, atingindo-a no olho esquerdo; que a assistente fugiu para o corredor do prédio, pedindo ajuda aos vizinhos; que o arguido, que entretanto foi também para o corredor do prédio, dirigiu à assistente a seguinte expressão: “filha da puta” e ameaçou-a de que “caso apresentasse queixa a mataria atirando-a da varanda”; e que a assistente veio depois a refugiar-se em casa de um vizinho; sendo certo que em virtude do comportamento do arguido a assistente sentiu dores nos locais atingidos, não tendo, contudo, recebido tratamento hospitalar e como consequência directa e imediata dessa sofreu, na face, equimose arroxeada, de forma irregular, com 2 por 1,5 cm na metade externa da pálpebra superior esquerda, no membro superior direito, equimose arroxeada, arredondada, com 1 cm de diâmetro, na face antero-lateral do terço distal do antebraço, que lhe demandaram três dias para a cura, sem afectação da capacidade de trabalho profissional e geral.
Temos, assim, em rigor, no dia 13.01.2014, um episódio, no qual se incluem condutas do arguido que, como infra se explanará, integram vários tipos legais de crime – ofensa à integridade física, injúria, coacção. Essas condutas, todavia, ainda que vistas e ponderadas em conjunto com as situações descritas nos pontos 2 e 3 dos factos provados (sendo a descrita no ponto 2 criminalmente inócua e pouco acrescentando a descrita no ponto 3 à gravidade da conduta do arguido, não podendo também, a nosso ver, apenas com base nela, falar-se em reiteração ou regularidade), não têm a gravidade bastante para se poder afirmar que, com elas, o bem-estar físico e emocional e a dignidade pessoal da assistente foram intoleravelmente lesados, não revelando tais condutas aquela intensidade de ataque à dignidade pessoal, insensibilidade ou crueldade exigida pelo tipo legal nos termos supra expostos.
Tudo, pois, para concluir que não está preenchido, desde logo, e como dissemos, o tipo objectivo do crime de violência doméstica.”
Do excerto acabado de transcrever, logo se alcança que a não subsunção dos factos ao tipo de crime de violência doméstica se encontra devidamente fundamentada, com referência ao preceito legal respetivo e ao circunstancialismo fático apurado/não apurado.
Não havendo de forma alguma insuficiente fundamentação neste ponto.
Pode é entender-se que as razões invocadas pelo tribunal a quo não justificam a conclusão a que chegou, só que essa é uma questão que nada tem a ver com a falta de fundamentação, mas antes com a errada subsunção jurídica dos factos. Problemática também abordada pela recorrente e que se tratará já de seguida.
Neste ponto, quanto à questão de saber se a factualidade apurada permite a sua subsunção ao tipo de crime de violência doméstica, remete-se para as considerações a tal propósito expedidas supra, no ponto A.2. do recurso do Ministério Público, que aqui se dão por reproduzidas, onde já se abordou essa questão tendo-se concluído pela negativa.
Assim e quanto à subsunção jurídica dos factos, resta a objeção da recorrente de que, considerando-se não haver crime de violência doméstica, então sempre se deveria qualificar a ofensa corporal praticada pelo arguido, nos termos do artigo 145º do Código Penal.
Vejamos, pois.
O tipo base do crime de ofensa à integridade física encontra-se previsto no artigo 143º, nº 1, do Código Penal que dispõe:
“Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.”
Por sua vez, o artigo 145º, também do Código Penal, fundamenta a qualificação das ofensas corporais num tipo especial de culpa, respeitante à especial censurabilidade ou perversidade do agente, para cuja caraterização recorre à técnica dos exemplos-padrão.
O funcionamento desta norma pressupõe, como resulta da sua previsão, a verificação de uma ofensa à integridade física simples ou de uma ofensa à integridade física grave, em que a conduta do agente revele uma especial censurabilidade ou perversidade, sendo suscetíveis de tal revelar, entre outras, as circunstâncias previstas no nº 2 do artigo 132º.
A qualificação da ofensa corporal é assim feita com recurso à cláusula genérica de agravação da especial censurabilidade ou perversidade, prevista no nº 1 do artigo 145º, com a técnica dos exemplos-padrão, enunciados no nº 2 do artigo 132º.
A enunciação destas circunstâncias é meramente exemplificativa, como resulta diretamente da própria letra da lei, concretamente da expressão “entre outras”. De onde se conclui que nem a verificação de tais circunstâncias implica, sem mais, a qualificação automática da ofensa à integridade física, nem a sua não verificação impede a qualificação.
Surgindo assim o crime de ofensa à integridade física qualificado não como um tipo legal autónomo, com elementos constitutivos específicos, mas antes como mera forma agravada de ofensa à integridade física. Sendo as circunstâncias enumeradas no nº 2 do artigo 132º elementos da culpa e não do tipo legal.
Revertendo ao caso sub judice, não há dúvida de que, tendo em conta os factos provados que constam da sentença, está preenchido o tipo do crime de ofensa à integridade física simples, do artigo 143º, nº 1, do Código Penal. Verificando-se, também, um exemplo padrão, o da alínea b) do nº 2 do artigo 132º, na medida em que o arguido praticou a agressão na pessoa da sua companheira, com quem mantinha uma relação análoga à dos cônjuges.
Contudo, como já vimos, as circunstâncias qualificativas da ofensa à integridade física, não são de funcionamento automático, sendo que, do elenco dos factos provados na sentença recorrida, não deriva a verificação daquele tipo de culpa agravado necessário à qualificação, ou seja, nas expressivas palavras de Figueiredo Dias, “uma imagem global do facto agravada correspondente ao especial conteúdo de culpa tido em conta” (in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2ª ed., p. 49).
Efetivamente, temos um episódio de agressão que consistiu em agarrar a assistente pelos pulsos, apertando-os e, tendo esta gritado, o arguido pegou numa almofada que se encontrava em cima do sofá e com ela lhe desferiu uma pancada na face, atingindo-lhe o olho esquerdo. Sendo as respetivas consequências, duas equimoses arroxeadas, uma com 2 x 1,5 cm na metade externa da pálpebra superior esquerda e, outra, com 1 cm de diâmetro, na face antero-lateral do terço distal do antebraço.
Não podendo deixar de se notar que a forma como foi praticada a agressão, denota uma manifesta vontade de conter os seus efeitos num patamar de muito baixa intensidade, só assim se compreendendo que, depois de apertar os pulsos à assistente, o arguido, para lhe desferir uma pancada na face, tenha escolhido uma almofada, que é objeto suscetível de amortecer a própria força que lhe é imprimida, limitando muito a hipótese de lesão/ferimento e impossibilitando, até, que a dor sentida seja intensa.
Ora, neste contexto, seria uma incoerência considerar que estamos perante um tipo de culpa agravado que define, ele próprio, uma imagem global do facto igualmente agravada e, por isso, reveladora de especial censurabilidade.
Não havendo dúvidas de que o tipo de culpa do arguido corresponde ao padrão do tipo base de ofensa à integridade física simples do artigo 143º, nº 1 do Código Penal.
Nenhuma censura merecendo assim a sentença recorrida, quando qualificou como simples a agressão física perpetrada pelo arguido, na pessoa da assistente.
*
Por último, resta referir que tendo-se considerado que a factualidade apurada não permite a sua subsunção ao tipo de crime de violência doméstica, fica necessariamente prejudicada a questão de saber se deverá ser aplicada ao arguido a pena acessória de proibição de contactos com a vítima, prevista nos nºs 4 e 5 do artigo 152º do Código Penal.
Prejudicado ficando também o pretendido reconhecimento do direito da assistente obter uma indemnização por parte do arguido, nos termos do artigo 21º da Lei nº 112/2009, de 16 de setembro.
*
III. DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízas desta secção do Tribunal da Relação do Porto em:
A. Negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público.
Sem custas, por delas estar isento o recorrente.
B. Negar provimento ao recurso interposto pela assistente C….
Custas pela recorrente, fixando-se em 6 (seis) Ucs a taxa de justiça.
*
Porto, 23 de junho de 2015
(Elaborado e revisto pela relatora (artigo 94º, nº2, do Código de Processo Penal)
Fátima Furtado
Elsa Paixão