Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
18281/16.6T8PRT-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: EMBARGOS DE TERCEIRO
CONTRATO PROMESSA
TRADIÇÃO DA COISA
POSSE
DETENÇÃO
INDEFERIMENTO LIMINAR
Nº do Documento: RP2019012418281/16.6T8PRT-B.P1
Data do Acordão: 01/24/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: EMBARGOS DE TERCEIRO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 161, FLS.72-81)
Área Temática: .
Sumário: Os embargos de terceiro deduzidos pelo promitente-comprador que obteve a tradição da coisa objecto do contrato, fundados na alegação da posse da coisa e do direito de retenção para garantia da indemnização pelo incumprimento do promitente-vendedor, não podem ser indeferidos liminarmente com o fundamento de serem manifestamente improcedentes por o promitente-comprador ser sempre, independentemente dos factos alegados, um mero detentor da coisa.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação
ECLI:PT:TRP:2019
Proc. n.º 18.281/16.6T8PRT-B.P1
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Sumário:
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Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:
I. Relatório:
Por apenso à execução para pagamento de quantia certa em que é exequente Banco B…, S.A., e executados C… Lda., D…, E…, F… e G…, e na qual foram penhoradas as fracções autónomas para habitação designadas pelas letras “J” e “K”, do prédio descrito no Registo Predial sob o n.º 5719 e inscrito na matriz predial urbana com o artigo 9625 da freguesia de Póvoa de Varzim, veio H…, contribuinte fiscal nº ……….., residente na Póvoa de Varzim, deduzir embargos de terceiro, pedindo que lhe seja reconhecido o direito de retenção sobre essas fracções para garantia do crédito de €700.000,00 e os requeridos condenados a restituírem-lhe a posse das fracções ou a manterem-no na posse das mesmas.
Alegou para o efeito que no dia 22.09.2015 celebrou com a executada um contrato-promessa de compra e venda das fracções autónomas referidas, tendo a executada entregue ao embargante as fracções e as respectivas chaves para que este começasse a usar e fruir as fracções e a administrá-las como coisa sua; a partir dessa data o embargante tomou posse efectiva e material das fracções, nas quais realizou pequenas obras de acabamento e instalou contadores de luz, passou a residir, pernoitar, fazer as suas refeições, conviver com a família e amigos na fracção “K”, e consentiu que o seu filho passasse a habitar a fracção “J”, onde pernoita, onde faz as suas refeições e convive com os amigos e familiares, sendo que tudo isso foi realizado à vista de toda a gente, com conhecimento público em geral e em particular da executada. A executada comprometeu-se a obter toda a documentação necessária, incluindo licenças, e a celebrar a escritura de transmissão da propriedade das fracções até ao dia 30 de Junho de 2016, mas, apesar de diversas vezes instada para marcar a escritura, até à presente data nunca o fez. Na data da assinatura do contrato-promessa o embargante pagou à executada, a título de sinal, €50.000,00, posteriormente entre Outubro de 2015 e Fevereiro de 2016 pagou por conta do remanescente do preço mais €300.000,00.
Em resultado desta factualidade sustenta o embargante que está na posse, uso e fruição das fracções, adquirida sem violência por tradição de quem as detinha, de modo pacífico, à vista de toda a gente, sem oposição, na convicção de não lesar direitos de outrem e com ânimo de quem exerce direitos próprios. Mais afirma que a executada incumpriu culposamente o contrato-promessa e constituiu-se na obrigação de pagar a indemnização de €700.000,00, o que confere ao embargante direito de retenção sobre as fracções até ao pagamento desse valor.
Após a apresentação da petição inicial foi proferido o seguinte despacho:
« […] Dispõe o art. 342º, n.º 1 do CPC que “Se qualquer ato, judicialmente ordenado, de apreensão ou entrega de bens ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro”.
Apresentam-se, portanto, como requisitos essenciais dos embargos de terceiros: a) a existência de um acto, judicialmente ordenado, de apreensão ou entrega de bens; b) que o mesmo ofenda a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou âmbito da diligência, de que seja titular um terceiro.
No caso vertente o embargante começa por invocar a posse das fracções penhoradas, por força do contrato promessa celebrado com a executada, sustentando ainda a titularidade do direito de retenção sobre os referidos imóveis, dos quais obteve a traditio.
Simplesmente, além de não estar dotado de eficácia real, nos termos previstos no art. 413º do CC, nem obedecer às exigências de forma prescritas pelo nº 3 do artº 410º do mesmo diploma legal, do contrato-promessa não deriva a transferência de propriedade para o promitente-comprador que, por isso, não adquire a posse causal nem a formal, sendo mero detentor ou possuidor precário, detendo apenas um mero direito pessoal de gozo.
Ora, este direito transforma-se em direito de retenção a partir do momento em que se verifique por parte do promitente-vendedor o incumprimento definitivo, sendo precisamente tal direito que do conjunto do alegado pela embargante o mesmo pretende exercer.
Ora, admitindo-se que tal direito exista na esfera jurídica do embargante, sempre se dirá que o direito de retenção do promitente-comprador destinado a garantir o seu crédito à indemnização não obsta à penhora requerida pelo credor do executado (o Prof. Antunes Varela, em anotação ao Ac. do STJ, de 25-02-86, RLJ, ano 124, pág. 351, esclarece que “um direito real de garantia não torna a coisa impenhorável numa execução instaurada por quem quer que seja”).
Como tal, não pode, o promitente-comprador com “traditio”, usar de embargos de terceiro contra a penhora do bem prometido vender, visto que os embargos de terceiro são um meio de defesa da posse real e efectiva que é ofendida pela diligência judicial, o que não acontece no caso vertente, entendimento pacífico na jurisprudência - cf., a título de exemplo, Acs. do Tribunal da Relação do Porto, de 13/01/2000, Proc. 9950777; de 3/10/2000, Proc. 0130362; de 25/11/97, Proc. 9820505 e de 27/03/2001, Proc. 0120628 e mais recentemente Ac. da Relação de Lisboa de 16/3/2016, todos in www.dgsi.pt – sendo que também a doutrina se pronuncia nesse mesmo sentido - cf. Miguel Mesquita “Apreensão de Bens em Processo Executivo e Oposição de terceiros”, Almedina, 2.ª edição, 2001, pág. 172 e Salvador da Costa, “O Concurso de Credores”, Almedina, 1998, pág. 223).
De facto, apesar de se entender que o titular do direito de retenção está forçado a abrir mão da coisa, considera-se que aquele não perde o direito de se pagar à custa dela, devendo para tal efeito reclamar o seu crédito na execução.
Conclui-se, pois, pela manifesta falta de fundamento dos presentes embargos de terceiro pelo que os mesmos são liminarmente indeferidos, nos termos do art. 345º do CPC.».
Do assim decidido, o embargante interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
1. O aqui recorrente, deduziu embargos de terceiros, por apenso aos autos de execução comum supra identificados, movida pelo Banco B…, S.A. contra D…, F…, E…, G… e C…, Lda., à penhora das fracções autónomas designadas pelas “J” e “K” do prédio descrito sob o n.º 5719 da Póvoa de Varzim, tendo os mesmo sido liminarmente indeferidos pelo Tribunal a quo por manifesta falta de fundamento.
2. A dedução de embargos de terceiros fundamentou-se no circunstancialismo dos imóveis supra identificados terem sido objecto de contrato promessa sinalizado com traditio entre o aqui recorrente e a executada C…, Lda.
3. Conclui a sentença proferida pelo Tribunal a quo, não estarem verificados os pressupostos para a defesa mediante embargos, referindo que inexiste tradição da coisa e portanto posse das duas fracções pelo recorrente; e consequentemente, inexiste acto ou diligência que ofenda a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou âmbito da diligência, de que seja titular um terceiro.
4. Esta é uma decisão com a qual o recorrente não pode de todo conformar-se, sendo seu entendimento que face aos fatos e documentos carreados ao conhecimento do Tribunal a quo deveria o mesmo ter admitido os embargos de terceiro, seguindo-se os demais trâmites legais.
5.O que caracteriza os embargos de terceiro é “a circunstância de a pretensão do embargante se enxertar num processo pendente entre outras partes e visar a efectivação de um direito incompatível com a subsistência dos efeitos de um acto de agressão patrimonial, judicialmente ordenado no interesse de alguma das partes da causa, e que terá atingido ilegitimamente o direito invocado pelo terceiro embargante.”
6. Resulta do teor do artigo 342.º do Código de Processo Civil, que o fundamento para a interposição de defesa por embargos de terceiro, a existência de um acto ofenda a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou âmbito da diligência, de que seja titular um terceiro. É a própria lei que de forma expressa menciona a ofensa da posse ou de um direito.
7. O recorrente motivado pelo facto de ter iniciado, com carácter permanente, a sua actividade de exploração de uma geladaria, sita na Avenida … com a gíria comercial de “I…”, nº …, pretendeu fixar a sua residência na cidade da Povoa de Varzim, bem como a dos seus familiares.
8. Por este propósito o recorrente celebrou, com a executada, a sociedade C…, Lda., no dia 22 de Setembro de 2015 um contrato promessa de compra e venda sinalizado das seguintes fracções autónomas: A) fracção autónoma destinada a habitação, com entrada pela Rua …, nº .., designada pela letra “J”, do prédio descrito na Conservatória de Registo Predial sob o número 5719 e inscrito na matriz predial urbana com o artigo 9625 – J da freguesia de …, do concelho de Povoa de Varzim; e B) fracção autónoma destinada a habitação, com entrada pela Rua …, nº .., designada pela letra “K”, do prédio descrito na Conservatória de Registo Predial sob o número 5719 e inscrito na matriz predial urbana com o artigo 9625 – K da freguesia de …, do concelho de Povoa de Varzim.
9. Com a assinatura do sobredito contrato promessa o recorrente pagou, a título de sinal e princípio de pagamento, a quantia de €50.000,00 (cinquenta mil euros), €25.000,00 por cada uma das fracções supra identificadas, em numerário, à executada, C…, Lda., tendo esta, inclusive, emitido quitação desse recebimento.
10. Nesse mesmo dia, 22 de Setembro de 2015, a promitente-vendedora entregou as chaves dos imóveis em cima identificados para que o recorrente tomasse posse efectiva dos mesmos e ali residisse.
11. Assim, a partir daquela data o recorrente e seus familiares ali viveram e vivem, o recorrente acompanhado da sua esposa na fracção K, e o seu filho, J…, passou a habitar a fracção “J”. Esta é a primeira e única habitação do recorrente e seus familiares, é a sua casa morada de família.
12. Com a posse das fracções K e J o recorrente fez obras de acabamentos nos imóveis, para que estes se tornassem habitáveis, designadamente nas casas de banho e cozinhas, mobilou e cuidou dos imóveis como seu proprietário.
13. É nestas fracções que o recorrente e a sua família pernoitam, onde fazem as suas refeições e convivem com familiares e amigos.
14. Tal tradição foi efectuada à vista de todos, pacificamente e de boa-fé e sem oposição de quem quer que seja, sendo do total conhecimento de familiares, amigos e vizinhos.
15. Foi o recorrente, que a expensas próprias, procedeu à requisição dos contadores e ligação de água e luz para as suas habitações e ali habita desde essa data sem qualquer interrupção ou oposição seja de quem for.
16. É de suma concluir que o recorrente tomou posse efectiva material e formal dos imóveis e passou lá residir com a sua família, e ali praticou actos materiais de um verdadeiro proprietário, agindo no seu interesse com verdadeiro animus possidendi, agindo e actuando como tal.
17. Ao que acresce que o recorrente efectuou diversos pagamentos à executada, C…, Lda., por conta do preço final dos imóveis, encontrando-se, desde Fevereiro de 2016, o preço dos imóveis pago na sua totalidade, conforme se comprovou por documentos de quitação juntos aos autos.
18. O recorrente, é inequívoco, atua como proprietários dos imóveis que foram objecto de penhora nos autos de execução supra identificados
19. É dirimindo a questão da existência da posse, isto é da traditio do “corpus”, isto é do objecto mediato do contrato promessa de compra e venda e a intenção ou “animus possidendi” do promitente-comprador, que se chegará à procedência da admissão ou não dos embargos.
20. E certo, é que o recorrente com a dedução de embargos de terceiros, invoca factos e requer a produção de prova para o reconhecimento da posse efectiva dos imóveis, sendo entendimento do recorrente que o Tribunal a quo não poderia, liminarmente, sem produção de qualquer prova, concluir pela inexistência de fundamento na dedução dos embargos de terceiro.
21. Até porque é através da tutela dos embargos de terceiro, que os direitos atingidos ilegalmente pela penhora podem ser invocados com as mesmas garantias de que beneficiariam numa acção autónoma – e conduzindo logicamente, por esta razão, o processo de embargos à formação de caso julgado material, relativamente à existência e titularidade dos direitos que dele foram objecto (neste sentido, e por todos, Ac. da Relação do Porto, relator Guerra Banha, Processo JTRP00043358, de 16.12.2009, in www.dgsi.pt).
22. No caso de embargos de terceiro sustentados na posse pelo promitente-comprador do imóvel penhorado, terá o requerente, ora recorrente, de alegar e provar que está na posse do imóvel penhorado. Como se refere no Ac. do STJ de 19.11.1996, in CJASTJ, Tomo III, pág. 109 e ss., o problema que se coloca “…. É o de saber se esta posse, com corpus e animus, e não mera detenção, existe no promitente-comprador a quem foi antecipadamente entregue a coisa que é objecto do contrato prometido”.
23. Com o indeferimento liminar o recorrente foi coarctado no seu direito de defesa, sendo que alegou e demonstrou sumariamente factos suficientes que integram o corpus e o animus bem com a ofensa a essa posse e, consequentemente, o fundamento para a dedução de embargos de terceiros.
24. Não obstante a não produção de prova o Tribunal a quo conheceu, a propósito do reconhecimento do direito de retenção que assiste ao aqui recorrente, que o promitente-comprador não obteve a tradição da coisa, e que por isso não está investido da posse susceptível de tutela jurídica.
25. A tradição da coisa formalizou-se, parece evidente ao aqui recorrente, no empossamento das referidas fracções por este.
26. Verificou-se no caso em apreço uma verdadeira transmissão da posse dos imóveis, como forma de antecipar a formalização do contrato prometido;
27. Ao que acresce, a circunstância de o preço para a aquisição das fracções se encontrar pago na totalidade pelo recorrente à executada, C…, Lda.;
28. Os factos ora descritos foram sumariamente invocadas e demostrados, mormente por prova documental.
29. Como é consabido, existe, posição adoptada pelo Tribunal a quo ao indeferir liminarmente a dedução de embargos de terceiro por falta de fundamento, quem defenda que o contrato promessa não é susceptível, só por si, de transmitir a posse, pelo que, havendo tradição da coisa, o promitente-comprador adquire o “corpus” possessório mas não o “animus possidendi”, sendo apenas um mero detentor ou possuidor precário, e sendo o direito de retenção de que goza um mero direito real de garantia insusceptível de posse, apenas podendo ver esse direito reconhecido no caso de incumprimento contratual.
30. Pese embora esta posição supra, não é esse o entendimento dominante, em linha com abundante doutrina e jurisprudência nomeadamente a que resulta do citado acórdão do STJ (de 19.11.1996, in CJASTJ, Tomo III, pág. 109 e ss) que o promitente-comprador, tendo havido tradição de facto da coisa, é um verdadeiro possuidor e não um mero detentor, gozando de tutela possessória, se o “corpus” da posse exercido pelo promitente-comprador for acompanhado do “animus possidendi”, ou seja, se ele actuar com “animus rem sibi habendi” (neste sentido, cf. o Ac. da RP de 13.11.2007, P. 0724885, Relator: Anabela Dias da Silva, in www.dgsi.pt) – cfr. Acórdão da Relação do Porto de 01/04/2014, proferido no processo n.º 2688/13.3TJVNF-A.P1, disponível em www.dgsi.pt.
31. Aliás, apesar de sustentarem uma posição relativamente próxima da referida na sentença (com citação de A. Varela na RLJ, 128, 146), Pires de Lima e Antunes Varela, in CC Anotado, Vol. III, 2ª ed. rev. e actualiz., págs. 6 e 7 entendem que “O contrato-promessa, com efeito, não é susceptível de, só por si, transmitir a posse ao promitente-comprador. Se este obtém a entrega da coisa antes da celebração do negócio translativo, adquire o corpus possessório, mas não adquire o animus possidendi, ficando, pois, na situação de mero detentor ou possuidor precário (). São concebíveis, todavia, situações em que a posição jurídica do promitente-comprador preenche excepcionalmente todos os requisitos de uma verdadeira posse. Suponha-se, por exemplo, que havendo sido paga já a totalidade do preço ou que, não tendo as partes o propósito de realizar o contrato definitivo (a fim de, v.g., evitar o pagamento da sisa ou precludir o exercício de um direito de preferência), a coisa é entregue ao promitente-comprador como se sua fosse já e que, nesse estado de espírito, ele pratica sobre ela diversos actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade. Tais actos não são praticados em nome do promitente-vendedor, mas sim em nome próprio, com a intenção de exercer sobre a coisa um verdadeiro direito real. O promitente-comprador actua, aqui, uti dominus, não havendo, por conseguinte, qualquer razão para lhe negar o acesso aos meios de tutela da posse”.
32. Também neste seguimento atente-se no plasmado por Vaz Serra, in R.L.J., Ano 109, págs. 347 e 348 que ensina: “O promitente-comprador, que toma conta do prédio e nele pratica actos correspondentes ao exercício do direito de propriedade, sem que o faça por mera tolerância do promitente-vendedor, não procede com intenção de agir em nome do promitente-vendedor, mas com a de agir em seu próprio nome, [..] passando a conduzir-se como se a coisa fosse sua, [..] julga-se já proprietário da coisa, embora não a tenha comprado, pois considera segura a futura conclusão do contrato de compra e venda prometido, donde resulta que, ao praticar na coisa, actos possessórios, o faz com animus de exercer em seu nome o direito de propriedade”.
33. Também Calvão e Silva, in “Sinal e Contrato-Promessa”, 11ª edição, pág. 231, nota 55, é de semelhante opinião: “Não nos parece possível a priori qualificar-se de posse ou de mera detenção o poder de facto exercido pelo promitente-comprador sobre o objecto do contrato prometido entregue antecipadamente. Tudo dependerá do animus que acompanhe o corpus”.»
34. Também no Ac. do STJ de 23.05.2006, P. 06A1128, Relator: Azevedo Ramos, in www.dgsi.pt, se entendeu que “a qualificação da natureza da posse do beneficiário da traditio, no contrato promessa de compra e venda, depende essencialmente de uma apreciação casuística dos termos e do conteúdo do respectivo negócio” sendo “concebíveis situações em que a posição jurídica do promitente-comprador preenche, excepcionalmente, todos os requisitos de uma verdadeira posse”.
35. Igual posição vem assumida pelo Conselheiro Fonseca Ramos no Acórdão do STJ de 12/03/2009, processo n.º 265/09, disponível em www.dgsi.pt ou na CJ-STJ, ano XVII, tomo I, pág. 136: “Importa, casuisticamente, saber se a posse do promitente-comprador, que obteve a traditio, deve ser qualificada como posse precária – o que acontece em regra – ou, se deve ser qualificada como posse em nome próprio... a posse exercida pelo recorrente além do elemento material – corpus – contacto e ligação à coisa detida – se revestiu de intenção de exercer um direito próprio – não em nome do promitente-vendedor – portanto, com animus rei sibi habendi, correspondente à actuação de um proprietário”.
36. É precisamente essa apreciação casuística que acabou por não ser feita pelo Tribunal a quo ao indeferir liminarmente os embargos de terceiros, o que se teria revestido de especial essencialidade por vista a esclarecer a questão da posse do promitente-comprador e da sua possibilidade de a defender através de embargos de terceiro.
37. O recorrente invocou o contrato promessa, a “traditio” e os factos que permitam concluir que essa posse foi exercida não apenas com o “corpus”, mas também com o “animus” de quem entende a coisa transmitida como sua - pagamento da totalidade do preço.
38. Assim questão posta com a dedução de embargos de terceiros, teria que ser dirimida à luz da natureza da posse do promitente-comprador, apreciada, casuisticamente, como defende Antunes Varela com o aplauso de grande parte da doutrina e da jurisprudência.
39. Nos presentes autos o recorrente invocou, descreveu as circunstâncias em que a posse dos imóveis foi efectivada, alegou factos e requereu a junção de prova da traditio dos imóveis objecto nos autos e bem assim a sua posse pacífica e de boa fé, como um verdadeiro animus possidendi, agindo como quem exerce um direito próprio, correspondendo à actuação do recorrente como proprietário.
40. Nos termos do disposto no artigo 1263º do Código Civil, a posse adquire-se pela “prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito” e ainda pela “tradição material da Coisa”; pressupostos que se encontram plenamente verificados na petição de embargos apresentada pelo aqui recorrente.
41. Assim, tendo tomado conhecimento, por edital, da penhora sobre as referidas fracções, o aqui recorrente lançou mão do meio processual idóneo a proteger a sua posse e a manutenção da mesma contra o perigo que a subsistência da penhora sobre as referidas fracções poderá implicar na sua esfera jurídica e património.
42. Veja-se nesse sentido o que dispõe o artº 342º, nº 1, do Código de Processo Civil que «se a penhora, ou qualquer acto judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro».
43. Por sua vez, estabelece o artº 345º do mesmo Código que «sendo apresentada em tempo e não havendo outras razões para o imediato indeferimento da petição de embargos, realizam-se as diligências probatórias necessárias, sendo os embargos recebidos ou rejeitados conforme haja ou não probabilidade séria da existência do direito invocado pelo embargante».
44. Da conjugação destas duas disposições resulta que o terceiro embargante tem de demonstrar a existência do seu direito ofendido pelo acto judicial de apreensão ou entrega de bens e a ocorrência dessa ofensa, o que foi cabalmente realizado pelo recorrente na sua petição, uma vez que invocou factos necessários e suficientes para o reconhecimento da posse sobre os imóveis que foram objecto de penhora.
45. Nos termos do disposto no artigo 1263º do Código Civil, a posse adquire-se pela “prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito” e ainda pela “tradição material da Coisa”;
46. E, “Em caso de dúvida, a posse presume-se em quem exerce o poder de facto – artº 1252º, nº 2, C. Civ. -, isto é, presume-se o exercício do animus naquele que detém o corpus, presunção a que subjaz a dificuldade de provar o dito animus” , in 106/06.2TBFCR.C1, Ac. do TR de Coimbra.
47. Ademais sempre se sublinhará que a sentença proferida pelo do Tribunal a quo, não poderia, salvo melhor opinião, sustentar a inadmissibilidade dos embargos de terceiros com fundamento na inexistência de traditio, e portanto da posse, sem a produção de prova, no que ao animus respeita.
48. Sem prescindir, a “tradição da coisa” a que se reporta o instituto do contrato promessa não pode confundir-se com a transmissão da posse efectiva. São coisas diferentes, ainda que possam conviver. Com efeito, reforçando o que já atrás foi dito, a “tradição da coisa” pretende traduzir a realidade fáctica da entrega da coisa, mesmo que esta entrega seja precária, ou seja, havendo apenas “corpus”; não é indispensável que este esteja acompanhada do “animus” (ubi lex non distinguit neque nos distinguire debemus).
49. Ora não é a existência de contrato promessa e qualidade da sua eficácia que determina a verificação da transmissão da posse exercida sobre a coisa.
50. Tanto mais que a mesma não carece de ser titulada ou formal, é sim um poder de facto que pressupõe o corpus e o animus, cuja existência deve ser aferida e discutida em sede de audiência e julgamento.
51. Pelo que não poderia o Tribunal a quo indeferir a pretensão do recorrente motivado pelo facto de não estar dotado o contrato promessa de eficácia real nos termos do artigo 410º do Código Civil,
52. Isso mesmo se escreve in Ac. TRL 98/12.9TVLSB.L1-7 de 16.09.2014 “Nesse sentido, ainda que coexista com o contrato-promessa, a tradição da coisa não é efeito deste, mas resultado de uma convenção negocial complementar ao contrato-promessa através da qual os promitentes antecipam os efeitos do contrato prometido, naturalmente na expectativa e com a confiança de que este irá ser celebrado. Os efeitos jurídicos da tradição da coisa encontram-se assim indexados ao regime e às vicissitudes do contrato prometido, de cujos efeitos são uma convenção negocial antecipatória, e não do contrato-promessa, ainda que a sua existência não deixe de interferir e condicionar o regime do contrato-promessa”
53. “Num contrato promessa de compra e venda de imóvel, a tradição do imóvel que constitui o objecto do contrato-promessa, embora surja frequentemente associada à celebração da promessa, não é um efeito necessário desta, mas um efeito da eficácia translativa do direito próprio do contrato prometido... Sendo uma convenção complementar ao contrato promessa, geralmente é verbal, não lhe sendo aplicáveis as cláusulas insertas no contrato promessa”
54. Presume-se, portanto, no contrato-promessa, que a posse continua, por força do nº 2 do art. 1257 do CC, em nome de quem a começou, ou seja, do promitente-vendedor (cfr. Ac. STJ de 9.6.2016, Tomé Gomes, em www.dgsi.pt).
55. A não ser que se prove que a vontade das partes foi a de transferir, desde logo, para o promitente-comprador, por razões específicas, alicerçadas nem situações excepcionais, a título definitivo, a posse da coisa correspondente ao direito de propriedade (v., ainda, Ac. STJ de 9.6.2016).
56. Reportando-nos de novo ao caso em concreto, o recorrente tomou a posse dos imóveis desde a data da celebração do contrato promessa, tendo as chaves dos imóveis lhe sido entregues pelo Promitente-vendedor.
57. Encontrando-se desde Fevereiro de 2016 o preço integralmente pago.
58. Tendo aliás cedido a sua utilização a familiares, sem oposição de quem quer que seja,
59. Designadamente da Promitente-vendedora.
60. Considera o recorrente estarem, assim, verificados os pressupostos, ainda que indiciariamente para admissão dos embargos de terceiro para defesa da posse à discussão de facto e de direito das Partes.
61. Aliás, em bom rigor, nem razões de facto ou de direito haviam para uma cominação tão gravosa de indeferimento liminar para a pretensão legitima do recorrente, de ver a sua esfera jurídica acautelada através da defesa da posse, Certo é que,
62. Tendo tomado conhecimento, por edital, da penhora sobre as referidas fracções, lançou mão do meio processual idóneo a proteger a sua posse e a manutenção da mesma contra o perigo que a subsistência da penhora sobre as referidas fracções poderá implicar na sua esfera jurídica e património.
63. Dispõe o artº 342º, nº 1, do CPC que «se a penhora, ou qualquer acto judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro».
64. Por sua vez, estabelece o artº 345º do mesmo Código que «sendo apresentada em tempo e não havendo outras razões para o imediato indeferimento da petição de embargos, realizam-se as diligências probatórias necessárias, sendo os embargos recebidos ou rejeitados conforme haja ou não probabilidade séria da existência do direito invocado pelo embargante».
65. Destas duas disposições resulta que o terceiro embargante tem de demonstrar a existência do seu direito ofendido pelo acto judicial de apreensão ou entrega de bens e a ocorrência dessa ofensa.
66. Já Alberto Dos Reis dizia que o terceiro embargante tem de alegar e provar a posse e a lesão ou ameaça de lesão da posse (Processos Especiais, vol. I, reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, 1982, p. 404).
67. E, conforme se lê no Ac. STJ de 13/3/97 (BMJ, nº 465, p. 486 ss.), «ao deduzir embargos de terceiro, devem os embargantes alegar os factos reveladores da sua posse (…) e da ofensa desta pela diligência judicial, sem o que não se mostra satisfeito o respectivo ónus de alegação, a que corresponde o ónus da prova».
68. Por força do princípio dispositivo, «às partes cabe alegar os factos que integram a causa de pedir» (artº 264º, nº 1, 1ª parte, do CPC);
69. Considera o recorrente ter invocado os factos necessários e suficientes para o reconhecimento da posse sobre os imóveis objecto dos autos, a traditio ou corpus;
70. Permitindo ao Tribunal a quo admitir à discussão das partes do fundamento de facto e de direito para a sua procedência, para que este pudesse aferir do animus ou intenção subjacente à transmissão das fracções em causa.
71. A questão do crédito, e da natureza do mesmo, do embargante sobre a executada, com o direito de retenção inerente, poderá, como aliás sugere o douto Tribunal a quo que ser dirimida noutra sede, designadamente, na reclamação de créditos.
72. Não sendo esse o único dos pedidos formulados pelo recorrente na sua Petição de embargos,
73. Peticionou o reconhecimento da posse e a sua manutenção que pretende que mereçam a douta procedência do tribunal a quo.
74. Por outro lado, como o juiz não está vinculado ao direito alegado pelas partes – artigo 5.º, n.º 3 do CPC – não se torna relevante o facto de, também o embargante, ter dado muita importância ao reconhecimento do seu direito de retenção, uma vez que os factos necessários à eventual procedência dos embargos de terceiro para defesa da posse foram alegados e devem ser sujeitos a prova, prosseguindo os autos para a citação dos Embargados.
75. O recorrente encontra-se na posse pública e pacifica dos imóveis desde a data de 22 de Setembro de 2015.
76. Em 11 de Abril de 2018 surpreendido com um edital afixado à porta da sua habitação, donde constava a penhora das duas fracções que havia comprado, lançou mão de meio legitimo para proteger a posse dos imóveis.
Nestes termos, considera o recorrente padecer a sentença proferida de erro na apreciação e subsunção jurídica dos factos alegados e pedidos formulados pelo mesmo; considera o recorrente estarem verificados os pressupostos, ainda que indiciariamente para admissão dos embargos de terceiro para defesa da posse. Nestes termos e nos demais que doutamente serão supridos pelos Venerandos Desembargadores, deverá a Sentença proferida ser revogada e assim ser substituída por uma que admitida os embargos de terceiro, prosseguindo os autos os trâmites legais.
O embargado/exequente, citado para os termos da causa e do recurso, respondeu a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado.
Após os vistos legais, cumpre decidir.
II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida se os embargos de terceiro deduzidos são manifestamente improcedentes, devendo por isso a respectiva petição inicial ser objecto de indeferimento liminar.
III. Os factos:
Relevam para a decisão a proferir os factos processuais constantes do relatório que antecede.
IV. O mérito do recurso:
A] questão prévia:
Conforme inúmeras vezes vamos sendo obrigados a repetir – sem resultado, como se vê –, nos termos do nº 1 do artigo 639º do novo Código de Processo Civil, as alegações de recurso dividem-se em corpo das alegações, nas quais o recorrente expõe os fundamentos ou argumentos através dos quais procura convencer o tribunal de recurso da sua razão, e conclusões das alegações, nas quais o recorrente sintetiza as concretas questões que pretende que o tribunal de recurso aprecie e o sentido com que as deverá decidir. O recorrente deve, por isso, terminar as alegações com as respectivas conclusões, que são a indicação de forma sintética das questões em cuja análise o recorrente ancora o pedido de alteração ou anulação da decisão.
A formulação das conclusões do recurso tem como objectivo sintetizar os argumentos do recurso e de precisar as questões a decidir e os motivos pelos quais as decisões devem ser no sentido pretendido. Com isso pretende-se alertar a parte contrária – com vista ao pleno exercício do contraditório – e o tribunal para as questões que devem ser decididas e os argumentos em que o recurso se baseia, evitando que alguma escape na leitura da voragem da alegação, necessariamente mais extensa, mais pormenorizada, mais dialéctica, mais rica em aspectos instrumentais, secundários, puramente acessórios ou complementares.
No caso as alegações de recurso apresentadas pelo recorrente têm corpo das alegações, mas não têm conclusões das alegações. O que se verifica, numa situação, aliás, que se tornou moda na prática forense mas que traduz uma manifesta e deliberada violação das normas processuais, é que o recorrente redigiu as suas alegações, dividindo-as em parágrafos, depois escreveu a expressão “conclusões” e a seguir repetiu na íntegra, sem qualquer síntese ou redução, o corpo das alegações, com a única diferença de estas terem … numeração.
Do ponto de vista substancial, o recorrente não formulou conclusões do recurso como devia, limitou-se a repetir a alegação duas vezes seguidas, intitulando a “segunda alegação” como “conclusões”, o que manifestamente não constitui uma forma válida de cumprimento da exigência legal (conforme a criatividade - ou a falta dela! - esta prática surge nos processos dissimulada de várias formas, designadamente usando diferentes numerações para as ditas “alegações” e as supostas “conclusões”, uma ordinal e a outra cardinal, uma numérica e a outra alfabética, uma romana e outra árabe, por vezes o engenho é menor e as “alegações” não são sequer numeradas só aparecendo a numeração nas supostas “conclusões”, para disfarçar, quando não, até a numeração é repetida).
Nos termos da alínea b) do nº 2 do artigo 641º do Código de Processo Civil a falta de conclusões tem como consequência a rejeição do requerimento de interposição de recurso, funcionando essa sanção de forma automática, sem qualquer convite prévio ao aperfeiçoamento.
Se essa sanção se aplica mesmo nas situações em que a falta se deve a mera desatenção ou até lapso informático desculpável, deve aplicar-se por maioria de razão às situações em que consciente e deliberadamente o mandatário se limita a repetir o texto das alegações, não podendo deixar de saber que não está a formular, como devia, quaisquer conclusões. Por conseguinte, do ponto de vista substancial, o presente recurso devia ser rejeitado por falta de conclusões.
Não se descura a existência de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça que condescende com esta violação das regras processuais permitindo que a prática referida se tornasse frequente e comum (invulgar é já o cumprimento do requisito), olvidando, a nosso ver e com todo o devido respeito, que as infracções deliberadas de regras processuais não devem ser entendidas como dispensáveis ou menores, sob pena até de violação dos princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade ao recusar a falhas desculpáveis (v.g. o simples esquecimento ou mera falha de processamento informático) a mesma solução permissiva que se aceita afinal para falhas deliberadas e conscientes.
De acordo com essa jurisprudência, haverá que atender apenas ao aspecto formal e convidar o recorrente a aperfeiçoar (melhor dizendo, a formular) as “conclusões” que não formulou. Considerando, no entanto, que isso representaria apenas mais uma perda de tempo e de forma a não permitir que esta falha seja vista como um obstáculo inesperado ao conhecimento efectivo do recurso (prejudicando a própria parte que é quem tem o direito a que as suas razões de discordância da decisão sejam apreciadas, para o que espera, ao menos, que essas razões sejam expostas pelo seu mandatário como determina a lei processual, sob pena de absoluta irrelevância da intervenção deste) decidimos, no entanto, prosseguir sem mais com a análise dos fundamentos do recurso, deixando, no entanto, ressalvada a possibilidade de passar a decidir diferentemente em casos futuros ou mais vincados (o que já sucedeu em decisões em que o ora Relator interveio como Adjunto).
Em suma, entende-se não rejeitar o recurso.
B] da matéria de direito:
Os embargos de terceiro são uma modalidade especial dos incidentes de intervenção da instância, compreendida no seio dos incidentes de oposição, através dos quais um terceiro é chamado a uma lide para nele exercer uma posição em oposição com a de alguma das partes primitivas.
Nos termos do artigo 342.º do Código de Processo Civil «se a penhora, ou qualquer ato judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro».
Os embargos de terceiro têm assim a finalidade de permitir a um terceiro que se diz titular de uma situação jurídica subjectiva incompatível com qualquer acto judicial que ordene a apreensão ou a entrega de bens, defender a sua posse ou qualquer direito que aquele acto possa afectar. Como refere Amâncio Ferreira, in Curso de Processo de Execução, 4.ª edição, pág. 233, «os embargos de terceiro não se apresentam, no sistema da lei processual, como um meio possessório, mas antes como um incidente da instância, como uma verdadeira subespécie da oposição espontânea, sob a denominação de oposição mediante embargos de terceiro (arts. 351.º e segs.). E assim, como é do conceito de oposição (art. 342.º, n.º1), encontramo-nos perante um incidente que permite a um terceiro intervir numa causa para fazer valer, no confronto de ambas as partes, um direito próprio, total ou parcialmente incompatível com as pretensões por aquelas deduzidas.»
A petição inicial dos embargos é objecto de um despacho liminar destinado a receber ou rejeitar os embargos. O despacho é de indeferimento se os embargos não tiverem sido deduzidos em tempo ou se verifique qualquer causa geral de indeferimento da petição inicial (cf. artigos 345.º e 590.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
Uma dessas causas de indeferimento liminar da petição inicial ocorre quando o pedido for manifestamente improcedente.
A Mma. Juíza a quo julgou ser essa a situação dos autos, entendendo que a celebração de um contrato-promessa de compra e venda não investe o promitente-comprador a quem o bem tenha sido entregue em possuidor do bem, sendo antes um mero detentor que pode eventualmente adquirir o direito de retenção sobre o bem no caso de o promitente-vendedor incorrer em incumprimento da promessa, mas sem que esse direito real de garantia seja impeditivo da penhora e da venda do bem.
Não podemos deixar de assinalar de imediato que ao contrário do manifestado na decisão impugnada, a posição seguida sobre a qualificação da posição do promitente-comprador como de mera detenção e não de autêntica posse, susceptível de permitir o acesso aos meios de defesa da posse, não só não é «pacífica» na jurisprudência ou na doutrina, como é inclusivamente minoritária. E tanto bastava para considerar que sendo defensável o entendimento oposto, designadamente por efeito do apuramento de factos que se encontram alegados na petição inicial, de modo algum era possível julgar de imediato manifestamente improcedentes os embargos de terceiro (nesse sentido, por exemplo, os Acórdãos da Relação do Porto de 30.01.2006 e 11.05.2006, ambos in www.dgsi.pt).
Com efeito, a posição que prevalece na doutrina e na jurisprudência é a de que, pese embora em regra, se nada houver a mais ou em contrário, num contrato-promessa de compra e venda sem eficácia real, o promitente-comprador que na sequência do contrato recebeu do promitente-vendedor o bem objecto do contrato, seja um detentor precário e não um verdadeiro possuidor, não configurando a detenção do bem uma situação de autêntica posse, situações haverá em que as circunstâncias concretas do modo como o promitente-comprador foi investido da utilização material do bem e se relaciona com o mesmo permitirão qualificar aquela detenção como autêntica posse.
Essa possibilidade tem de ser reconhecida porquanto face aos modos de constituição da posse não é possível excluir, por exemplo, que o promitente-comprador proceda à inversão do título de posse ou que, independentemente de estarmos perante uma investidura na detenção em consequência da celebração de um contrato-promessa, o promitente-vendedor proceda, não obstante isso, a uma autêntica tradição material da coisa com intenção de domínio (cf. artigo 1263.º do Código Civil).
A posse é, com efeito, uma situação de facto que corresponde a um exercício de poder em correspondência com o conteúdo de um direito real, pelo que pode afirmar-se à margem do direito e mesmo em oposição com este. O que significa que o acto jurídico que lhe está na origem pode naturalmente influenciar a posse (v.g. na posse causal) mas não é de modo algum a única situação que a pode moldar ou definir, havendo sempre que levar em consideração, de modo prevalecente, a situação de facto (a detenção material) que se cria à volta do acto jurídico na origem da sua constituição.
O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.04.2018, proc. n.º 584/12.0TCFUN-B.L1.S1, in www.dgsi.pt, afirma a este propósito o seguinte: «Por regra, tal como ensina Antunes Varela [..], o contrato promessa, sendo um negócio meramente obrigacional, não transmite, por si só, a posse ao promitente-comprador. Mesmo nos casos em que ocorre a tradição da coisa, antes da celebração da escritura definitiva de compra e venda, o promitente-comprador, adquirindo, embora, o corpus possessório, não adquire o animus possidendi, ficando, por isso, investido na qualidade de mero detentor ou possuidor precário. Todavia, esta regra não é absoluta. Com efeito, e como nos dá conta o Acórdão do STJ de 23.05.2006 [..], vem sendo entendimento deste Supremo Tribunal, que «a qualificação da natureza da posse do beneficiário da traditio, no contrato promessa de compra e venda, depende essencialmente de uma apreciação casuística dos termos e do conteúdo do respectivo negócio»[..]. Quer isto dizer que, casos existem, em que a posse resultante da tradição da coisa pode assumir todas as características que definem a posse verdadeira e própria, a que alude o art. 1251º do C. Civil, juntando ao corpus também o animus correspondente ao direito real em causa [..]. Nas palavras do Acórdão do STJ, de 19.04.2012 (revista nº 299/05.6TBMGD.P1.S1) «excepcionalmente, a tradição material da coisa a favor do promitente-comprador pode conferir a posse, para efeitos de usucapião, como sucede nas hipóteses em que a tradição ocorre, após o pagamento da totalidade do preço, acompanhada da intenção de transmitir, em definitivo, o direito prometido, e passando o promitente-comprador, consequentemente, a actuar uti dominus da coisa entregue».
Não é necessário aqui e agora tomar posição sobre esta questão da qualificação jurídica dos actos materiais que o embargante alega exercer sobre os bens penhorados.
Por um lado, os factos alegados carecem de ser demonstrados e a demonstração de alguns deles poderá permitir qualificar esses actos como traduzindo uma situação de verdadeira posse.
Por outro lado, o fundamento jurídico do indeferimento liminar dos embargos de terceiro foi a sua manifesta improcedência e esta, como vimos, não pode ser sustentada a partir do momento em que, como ilustrámos, a jurisprudência e a doutrina vêm admitindo a existência de situações em que a posição do promitente-comprador corresponde a autêntica posse.
Mesmo que se defenda uma qualificação jurídica que redunde a final na improcedência dos embargos, naquele contexto não é possível afirmar que os embargos são manifestamente improcedentes. Como tal, não podiam ter sido indeferidos liminarmente.
Procede assim o recurso.
V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso procedente e, em consequência, revogam o despacho recorrido, ordenando a sua substituição por outro que, não havendo outras razões que o impeçam, proceda em conformidade com o disposto no artigo 345.º do Código de Processo Civil.
Custas do recurso pelo recorrido que respondeu ao recurso.
*
Porto, 24 de Janeiro de 2019.
*
Os Juízes Desembargadores
Aristides Rodrigues de Almeida
Inês Moura
Francisca Mota Vieira
[a presente peça processual foi produzida com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas]