Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3075/10.0TBSTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA PAULA AMORIM
Descritores: SERVIDÃO PREDIAL
DESTINAÇÃO DE PAI DE FAMÍLIA
EXTINÇÃO
DESNECESSIDADE
IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
Nº do Documento: RP201407093075/10.0TBSTS.P1
Data do Acordão: 07/09/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Face à previsão do art. 640º CPC, não estão preenchidos os pressupostos de ordem formal para proceder à reapreciação da decisão da matéria de facto, quando nas conclusões de recurso o recorrente não indica os concretos pontos de factos e prova a reapreciar.
II - As servidões prediais constituídas por destinação de pai de família constituem servidões voluntárias, atendendo ao relevo que merecem os sinais que servem de suporte à sua constituição e ainda, o facto de ficar na disponibilidade das partes no acto de alienação da parcela ou prédio que faz parte da unidade onerado com a servidão, manter ou fazer cessar o encargo.
III - As servidões constituídas por destinação de pai de família, por constituírem servidões voluntárias, ficam sujeitas apenas ao regime geral de extinção das servidões, previsto no art. 1569º/1 CC e por isso, não podem extinguir-se por desnecessidade.
IV – A existência de direitos reais menores, a par com o direito de propriedade e o facto do encargo resultar de um acto voluntário, como se caracteriza a servidão por destinação de pai de família, justifica que a desnecessidade não funcione como causa de extinção e não representa uma limitação não consentida ao direito de propriedade, com a dimensão e conteúdo que lhe é atribuído pela Constituição (art. 62°/1 CRP).
V - A interpretação do art. 1569°/2/3 CC no sentido da desnecessidade não constituir causa de extinção das servidões voluntárias, está conforme com a tutela constitucional do direito de propriedade privada, consagrada no art. 62°/1 CRP.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Servidão-3075-10.0TBSTS-581-14TRP
Trib Jud Santo Tirso
Proc. 3075/10.0TBSTS
Proc. 581/14 -TRP
Recorrente: B…
Recorrido: C… e Outros
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Juiz Desembargador Relator: Ana Paula Amorim
Juízes Desembargadores Adjuntos: Rita Romeira
Manuel Fernandes
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Acordam neste Tribunal da Relação do Porto (5ª secção judicial – 3ª Secção Cível)

I. Relatório
Na presente acção que segue a forma de processo sumário em que figuram como:
- AUTORES: C… e mulher D…, residentes na Rua …, nº .., .º, esq., Póvoa de Varzim;
E… e esposa F…, residentes na …, nº …, …, Vila Nova de Famalicão;
“G…, Lda”, com sede na Rua …, …, …, Trofa, e
- RÉ: “B…, Lda”, com sede na Rua …, lote .., Trofa, pedem os Autores a condenação da Ré:
a) A reconhecer que os prédios identificados nos artigos 1.º, 2.º e 3.º são titulares de um direito de servidão de passagem a pé e carro, em que é serviente o prédio da R. identificado no artigo 12.º nas condições descritas nos artigos 14.º, 15.º, 16.º, 17.º, 19.º, 25.º, 26.º, 27.º, 28.º, 29.º e 31.º;
b) A não se opor a que os AA. acedam aos seus prédios em direito de propriedade quanto aos 1.ºs e 2.ºs AA. e em locação financeira quando à 3.ª A, conforme alegado nos artigos 14.º a 17.º, 19.º e 25.º”
Alegaram para o efeito e em síntese, que os primeiros autores são donos e legítimos possuidores de um prédio, inscrito na matriz rústica sob o art. 2954.
Os segundos autores são donos e legítimos possuidores de um prédio rústico, inscrito na matriz sob o art. 2932.
A terceira autora é locatária e legitima possuidora de um prédio urbano, inscrito na matriz sob o art. 2806.
Os autores, encontram-se na posse dos aludidos prédios por si e ante possuidores há mais de 10, 20, 30, 40, 50 e mais anos. Invocam os demais requisitos da usucapião.
Por sua vez, alegam que a ré é dona e legítima possuidora de diversos prédios rústicos e urbanos, nomeadamente, o prédio urbano, inscrito na matriz sob o art. 2133, que confronta a poente com o prédio da terceira Autora.
O prédio da terceira autora, confronta do poente com um caminho asfaltado e com cerca de 8 metros de largura, que o faceia em toda a sua extensão com início na Rua …. O acesso a veículos ligeiros e pesados ao prédio da terceira autora, faz-se através de um portão voltado a sul, e cujo acesso se processa através do caminho asfaltado. O caminho asfaltado continua após terminar a sua confrontação poente com o prédio da terceira Autora, com bifurcações, parte em asfalto e depois em terra batida, calçada, sem vegetação e com uma largura de 3 metros ao longo de um monte a mato, pinheiros e eucaliptos, o qual se encontra dividido em leiras, nomeadamente dos primeiros e segundos Autores.
Referem, ainda, que os primeiros e segundos Autores, por si e ante-possuidores, a pé, com tractores e carros de bois, utilizam o referido caminho para aceder ás referidas leiras. Tal caminho é o mais curto e mais cómodo.
A terceira Autora, quando adquiriu o direito sobre o prédio de que é locatária, já existia o portão na confrontação sul. O aludido prédio e os prédios da ré, pertenceram a um só dono “H…, Lda” e após “I…, SA” e foi a “H…” quem asfaltou o referido caminho, e construiu o portão a sul.
A ré colocou no inicio do aludido caminho, enormes quantidades de pedra, impedindo o acesso e trânsito de veículos, carros de bois, tractores, nomeadamente aos Autores.
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Citada a Ré contestou, defendendo-se por impugnação, com reconvenção.
Alega, em síntese, que a terceira Autora se encontra na posse de uma área de terreno de cerca de 1100 m2, pertença da ré. O caminho foi construído pela “H…” apenas para seu uso, nunca tendo servido para a passagem de quaisquer outras pessoas ou veículos.
O portão da terceira autora não é utilizado há vários anos. Os donos das leiras, utilizam outro caminho para a elas acederem, que tem início pela estrada nacional.
Termina por pedir a condenação dos Autores como litigantes de má-fé.
Em reconvenção pede:
- a declaração da extinção de toda e qualquer servidão de passagem, por se ter extinguido quer pelo não uso, quer por desnecessidade;
- subsidiariamente, seja declarada a extinção de toda e qualquer servidão de passagem por o seu reconhecimento implicar a recompensa de quem abusa de um direito;
- em qualquer dos casos, a reconhecer-se à reconvinte o direito a adquirir o prédio dos reconvindos nos termos peticionados.
Alega, para tanto, que não existe o caminho de servidão, mas a ter existido aquando da aquisição dos prédios, apenas serviam a “H…”. Quer o caminho, quer o portão, não são usados desde a insolvência da “H…”. Existe abuso de direito por parte da terceira Autora.
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Na resposta à reconvenção os Autores mantêm a posição inicial e contestam a matéria da reconvenção.
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Elaborou-se o despacho saneador, com selecção da matéria de facto, que foi objecto de reclamação, a qual não foi atendida.
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A Ré veio em articulado superveniente alegar novos factos.
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Admitido liminarmente e exercido o contraditório, aditaram-se à base instrutória os pontos 40 a 43.
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Realizou-se o julgamento com gravação da prova.
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Proferiu-se sentença com a decisão que se transcreve:
“Nestes termos, decide-se, julgar a presente acção, procedente, por provada e, em consequência, condena-se a ré "B…, Lda":
1. A reconhecer que os prédios identificados nos artigos 1.º, 2.º e 3.º dos factos provados, dos autores, são titulares de um direito de servidão de passagem a pé e carro, em que é serviente o prédio da R. identificado no artigo 4.º dos factos provados, através do caminho aludido em 14.º a 21.º dos factos provados.
2. A não se opor a que os autores acedam aos prédios aludidos em 1).
Julga-se a reconvenção improcedente, por não provada, e absolvem-se os autores-reconvindos do peticionado.
Absolvem-se os autores-reconvindos do pedido como litigantes de má fé.
Custas a cargo da ré”.
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A Ré veio interpor recurso da sentença.
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Nas alegações que apresentou a apelante formulou as seguintes conclusões:
I - O presente recurso é interposto com vista à revogação de parte da Sentença que julgou procedente o pedido de condenação da ré a reconhecer, em relação à 3.ª autora, que o prédio pertencente à sociedade "G…" é titular de um direito de servidão de passagem.
II - Face à prova carreada para os autos, entende a recorrente que devia ter ficado assente que, pelo menos, no período compreendido entre a data da realização do acordo no procedimento cautelar e a data da audiência de julgamento no processo principal, não houve nenhum impedimento ao acesso ao portão sul e que, ainda assim, ele não teve qualquer uso.
III - Outrossim, em face da prova produzida, deveria ter ficado a constar da sentença que o portão não é usado há alguns anos, não sendo possível contudo afirmar, com base na prova produzida, que decorreu o prazo de 20 anos imposto pelo art. 1569.º do Código Civil.
IV - Fazendo constar da Sentença tais factos deixar-se-ia em aberto a possibilidade de a recorrente, decorrido o prazo de lei [art. 1569.º, n.º 1, alínea b) do Código Civil] intentar acção com vista a ver declarada a extinção da servidão relativamente ao prédio pertença da "G…", o que dificilmente alcançará por outro meio, tendo em conta o modo como esta se constituiu.
V - Ao ter decidido em sentido diverso, o Tribunal recorrido fez incorrecta apreciação da prova e, consequentemente, errada subsunção do direito aos factos submetidos à sua apreciação, violando assim o disposto no art. 607.º, n.º 4, CPC.
VI - Por outro lado, a recorrente entende que ficou abundantemente demonstrada a desnecessidade da servidão.
VII - Constituindo a servidão um encargo que onera o prédio serviente, diminuindo-lhe consideravelmente o valor e que implica uma diminuição da sua capacidade de produzir riqueza sem que, do outro lado, haja qualquer vantagem ou utilidade atendível para o prédio dominante, deve-se interpretar o disposto no art. 1569.º n.º 3, no sentido de também ali se permitir, por interpretação correctiva, a extinção da servidão constituída por destinação de pai de família.
VIII - Não faz nenhum sentido impor um encargo a um prédio, prejudicando a optimização da sua exploração, para facultar a outro um proveito de que ele não carece.
IX - Não é ilegal nem afronta o princípio da separação dos poderes em que se estrutura o estado de direito, o recurso pelos tribunais à interpretação correctiva da lei.
X - Ao interpretar o art. 1569.º, n.º 3, CC, no sentido que é proibido ao julgador efectuar uma interpretação correctiva que permita a extinção das servidões constituídas por destinação de pai de família por desnecessidade, o Tribunal recorrido violou o disposto no art. 62.º n.º 1 CRP.
Termina por pedir o provimento do presente recurso, revogando-se a decisão recorrida nos precisos termos peticionados.
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Os Autores vieram apresentar resposta ao recurso onde, em síntese, renovam os argumentos expostos na sentença.
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O recurso foi admitido como recurso de apelação.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II. Fundamentação
1. Delimitação do objecto do recurso
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso – art. 639º do CPC.
As questões a decidir:
- reapreciação da decisão da matéria de facto;
- extinção por desnecessidade, do direito de servidão reconhecido à terceira Autora.
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2. Os factos
Com relevância para a apreciação das conclusões de recurso cumpre ter presente os seguintes factos provados no tribunal da primeira instância:
1. Encontra-se registada a favor dos AA. C… e D… a titularidade do direito de propriedade sobre um prédio rústico denominado … sito no … da Freguesia … – Trofa, inscrito na matriz rústica sob o artigo 2954.º e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 36.693.
2. Encontra-se registada a favor dos AA. E… e F… a titularidade do direito de propriedade sobre um prédio rústico denominado … e sito no … da Freguesia … – Trofa, inscrito na matriz rústica sob o artigo 2932.º e descrito na Conservatória de Registo Predial sob o n.º 18.641.
3. A “G…, Lda” é locatária e legitima possuidora de um prédio urbano composto por edifício de R/C e andar sito na Rua … em … – Trofa, inscrito na matriz urbana sob o artigo 2806.º e descrito na Conservatória de Registo Predial sob o n.º 787 e que confronta do Norte com a Rua …, do Sul e Nascente com a requerida e do Poente com caminho asfaltado.
4. A R. “B…, Lda”é dona e legitima possuidora de diversos prédios rústicos e urbanos nomeadamente de um prédio urbano composto por terreno destinado à construção urbana sito no … da Freguesia …, inscrito na matriz urbana sob o artigo 2133.º e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 727.
5. O acesso a veículos ligeiros e pesados para o prédio de que a A. “G…, Lda é locatária faz-se através de um portão voltado directamente para a Rua … e portanto na confrontação norte.
6. Quando a A. “G…, Lda" adquiriu o direito sobre o prédio de que é locatária já existia o portão na confrontação sul.
7. Os prédios ditos em 3) e 4) pertenceram a um só dono, a “H…, Lda” e posteriormente “I…, SA”.
8. Os AA. utilizam os prédios ditos em 1) e 2), por si e ante possuidores, há mais de 50 anos.
9. E fazem-no à vista e com conhecimento de toda a gente.
10. …de modo ininterrupto.
11. ...e sem recurso a violência.
12. ...ou intenção de prejudicar quem quer que seja.
13. O prédio dito em 4) confronta do Norte e nascente com a Rua …, do Sul com o próprio, do Nascente com J… e do Poente com a A. “G…, Lda”.
14. E o prédio dito em 3) confronta do Sul com um caminho asfaltado, com cerca de 8 metros de largura e início na Rua ….
15. …que o faceia em toda a extensão.
16. O acesso dito em 5) é também feito por outro portão, voltado directamente para a confrontação Sul.
17. …ao qual se acede através do caminho asfaltado referido em 14).
18. E ao atingir o termo da confrontação poente o contorna à esquerda, indo ao longo da confrontação sul, com piso, também asfaltado, até ao aludido portão.
19. O dito caminho continua, após terminar a sua confrontação poente com o prédio da “G…, Lda”.
20. E prolonga-se, com bifurcações, parte em asfalto e depois em terra batida, calcada e sem vegetação.
21. … com uma largura de cerca de 3 metros (após bifurca em três caminhos) ao longo de um monte a mato, pinheiros e eucaliptos.
22. …o qual se encontra dividido em dezenas de leiras de múltiplos donos, entre os quais C… , D…, E… e F….
23. Que assim acedem aos prédios ditos em 1) e 2) a pé, com tractores e carros de bois, para roçar mato e cortar madeira e seu transporte.
24. O que fazem há mais de 50 anos.
25. … saindo da Rua …, através do caminho aludido no artigo 14).
26. …sem recurso à violência.
27. …de modo ininterrupto.
28. ...à vista e com conhecimento de toda a gente.
29. …sem intenção de prejudicar quem quer que seja.
30. …sendo esse o caminho mais curto e cómodo para os AA. C…, D…, E… e F….
31. No momento dito em 6), já existia o caminho referido no artigo 14).
32. E foi a “H…, Lda” quem o asfaltou.
33. Tendo ainda asfaltado o que confronta pelo sul o prédio da A. “G…, Lda”.
34. …e construído o portão referido no artigo 16).
35. A R. colocou pedra no início do caminho aludido a 14) a 21).
36. E isso impede o acesso e trânsito nos mesmos de veículos, carros de bois e tractores.
37. Tendo sido alertada pela R. de que estava a ocupar porção de terreno que não lhe pertencia.
Factos não provados:
1. Os donos assinalados no art. 22) acedem às leiras por um caminho que tem início na Estrada Nacional.
2. E a A. G… utiliza uma porção com cerca de 1100m2 desse prédio.
3.O prédio dito em 4) tem a área de 2100m2.
4. O portão referido no art. 16) não é utilizado há anos.
5. E mantém-se fechado com um cadeado.
6. O caminho referido pelos AA. não é utilizado há anos.
7. E situa-se dentro dos limites dos prédios correspondentes aos artigos matriciais 2916-R e 2917-R.
8. Sendo utilizado apenas pela H… enquanto laborou, para limpeza dos seus pinhais e eucaliptais.
9. …se deixar de usar a porção de terreno referida no art. 2), a 3ª A. terá espaço para construir um acesso pela confrontação poente, dentro das suas instalações.
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3. O direito
- Reapreciação da decisão da matéria de facto -
Nas conclusões de recurso, sob os pontos 1 a 5, veio a apelante requerer a reapreciação da decisão da matéria de facto, por considerar que foi feita uma incorrecta apreciação da prova.
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Nos termos do art. 662º/1 CPC a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto:
“[…]se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
O art. 640º CPC estabelece os ónus a cargo do recorrente que impugna a decisão da matéria de facto, nos seguintes termos:
“1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3. […]”
O legislador na linha dos anteriores diplomas, que regiam sobre esta matéria, continua a não prever o prévio aperfeiçoamento das conclusões de recurso, quando o apelante não respeita o ónus que a lei impõe. Desta forma, o efeito de rejeição não é precedido de despacho de aperfeiçoamento, o que se explica pelo facto da possibilidade de impugnação da decisão de facto resultar de uma alteração reclamada no domínio do processo civil e estar em causa a impugnação de decisão de matéria de facto que resultou de um julgamento em relação ao qual o tribunal “ad quem” não teve intervenção e por isso, só a parte interessada estará em condições de poder impugnar essa decisão[1].
Cumpre, antes do mais, verificar se estão reunidos os pressupostos de ordem formal para proceder à reapreciação da decisão da matéria de facto.
A consagração do duplo grau de jurisdição em matéria de facto, inicialmente prevista no DL 39/95 de 25/02, constituiu uma nova garantia das partes no regime de processo civil e de acordo com o regime proposto pelo legislador, implicou a criação de um especifico ónus de alegação do recorrente, no que respeita à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação.
Como se escreveu no preâmbulo do DL 39/95 de 25/02 o duplo grau de jurisdição: “ […] nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência - visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso”.
A lei não consente, por isso, como se afirma no preâmbulo do citado diploma, que “o recorrente se limit[e] a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo, pura e simplesmente, a reapreciação de toda a prova produzida em 1ª instância, manifestando genérica discordância com o decidido”.
O especial ónus de alegação, a cargo do recorrente, relativo à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação, “[…] decorre, aliás, dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa fé processuais, assegurando, em última análise, a seriedade do próprio recurso intentado e obviando a que o alargamento dos poderes cognitivos das relações (resultante da nova redacção do artigo 712º CPC ) — e a consequente ampliação das possibilidades de impugnação das decisões proferidas em 1” instância — possa ser utilizado para fins puramente dilatórios, visando apenas o protelamento do trânsito em julgado de uma decisão inquestionavelmente correcta. Daí que se estabeleça”, continua o mesmo preâmbulo, “no artigo 690°-A, que o recorrente deve, sob pena de rejeição do recurso, além de delimitar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, motivar o seu recurso através da transcrição das passagens da gravação que reproduzam os meios de prova que, no seu entendimento, impunham diversa decisão sobre a matéria de facto. Tal ónus acrescido do recorrente justifica, por outro lado, o possível alargamento do prazo para elaboração e apresentação das alegações, consentido pelo n° 6 do artigo 705“.
A respeito do regime previsto escreveu LOPES DO REGO que: “[a] consagração desta nova garantia das partes no processo civil implica naturalmente a criação de um específico ónus de alegação do recorrente, no que respeita à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação”[2].
O ónus imposto ao recorrente que impugna a decisão proferida sobre a matéria de facto traduz-se, no ensinamento do mesmo Autor:
“- na necessidade de circunscrever ou delimitar o âmbito do recurso, indicando claramente qual a parcela ou segmento – o ponto ou pontos da matéria de facto – da decisão proferida que considera viciada por erro de julgamento;
- no ónus de fundamentar, em termos concludentes, as razões porque discorda do decidido, indicando ou concretizando quais os meios probatórios ( constantes de auto ou documento incorporado no processo ou de registo ou gravação nele realizada ) que implicavam decisão diversa da tomada pelo tribunal, quanto aos pontos da matéria de facto impugnados pelo recorrente;
- finalmente – e por força do estatuído no nº2 – quando os meios probatórios incorrectamente valorados, na óptica do recorrente, pelo tribunal apenas constem de registo ou gravação (não estando, portanto, ainda materialmente “incorporados” nos autos), incumbe ainda ao recorrente o ónus de proceder à transcrição, mediante escrito dactilografado, das passagens da gravação em que se funda o invocado erro na apreciação das provas”[3].
ABRANTES GERALDES ponderando as alterações introduzidas pelo DL 183/2000 de 10/08 e na Lei de Autorização Legislativa nº 6/07 de 02/02, sintetiza o sistema que passou a vigorar sempre que o recurso envolva impugnação da decisão sobre a matéria de facto, da seguinte forma:
“- o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, aos quais deve aludir na motivação do recurso e sintetizar nas conclusões;
- quando o recorrente funde a impugnação em meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados, deve especificar aqueles que, em seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos;
- relativamente aos pontos da matéria de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova, há que distinguir duas situações:
- se a gravação foi efectuada por meio (equipamento) que não permite a identificação precisa e separada dos depoimentos recai sobre a parte o ónus de transcrição dos depoimentos, ao menos na parte relativa aos segmentos que, em seu entender, influam na decisão;
- se a gravação foi efectuada por meio (equipamento) que permite a identificação precisa e separada dos depoimentos, o funcionário que monitoriza a gravação e que está presente na audiência deve assinalar “ na acta o início e o termo da gravação de cada depoimento, informação ou esclarecimento, de forma a ser possível uma identificação precisa e separada dos mesmos ”, como o determina o art. 522º-C/2”[4].
Na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça sobre o âmbito do ónus de alegação em sede de impugnação da decisão da matéria de facto, dando nota do sentido interpretativo exposto pronunciaram-se, entre outros, nos seguintes arestos:
> Ac STJ 06/11/2006 (Proc. 06S2074 – www.dgsi.pt)
“Como se vê, o art. 690º - A pretende que o recorrente identifique claramente os erros de julgamento que aponta à decisão factual da 1ª instância, indicando os pontos que reputa incorrectamente julgados e os meios probatórios que sustentam a sua censura.
Esse ónus alegatório tem por objectivo evitar a impugnação genérica da decisão de facto, com a intolerável sobrecarga que daí adviria para o Tribunal de recurso e o indesejável favorecimento de situações em que o meio impugnatório só é utilizado com intuito de mera dilação processual.”

> Ac. STJ 24.01.2007 (Proc. 06S2969 – www.dgsi.pt)
“Ora, analisando a alegação da apelação (fls. 455-471), constata-se que a recorrente se limita a efectuar uma apreciação crítica da prova relativamente a quatro aspectos de relevância jurídica para a apreciação da causa (autorizações provisórias; cálculo da pensão de aposentação; declaração do tempo de serviço; tipo de funções exercidas), juntando em anexo à alegação a transcrição dos depoimentos das testemunhas da recorrida e o respectivo suporte digital.
Em nenhum momento da sua alegação, a recorrente aludiu aos pontos de facto que considera incorrectamente decididos – e que necessariamente pressupunha uma referência à matéria que constava da decisão de facto -, do mesmo modo que também não identificou as passagens da gravação da prova em que se funda a sua pretensão de ver alterada a matéria de facto, tendo-se limitado, neste ponto, a juntar um documento onde se encontram transcritos todos os depoimentos das testemunhas por si apresentadas em audiência.
Ou seja, a recorrente, não só não indicou os concretos pontos de facto que pretendia ver alterados, remetendo antes genericamente para meros aspectos jurídicos, como também não indicou os concretos meios probatórios que justificariam a alteração, limitando-se, neste caso, a juntar o registo dactilografado e fonográfico da prova apresentada em julgamento.
A recorrente não cumpriu, portanto, minimamente o ónus que lhe impunha o 690º-A, n.º 1, do Código de Processo Civil, e, na linha da orientação jurisprudencial há pouco exposta, não poderá haver lugar ao convite para completamento ou aperfeiçoamento da alegação, justificando-se antes a rejeição do recurso à semelhança do que sucede, na correspondente disposição do artigo 690º do CPC, com a falta de alegações.”

> Ac. STJ 06.02.2008 (Proc. 07S3903 - www.dgsi.pt)
“No caso previsto na alínea B) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravadas, incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, indicar os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 522º C”.
Como se vê, o art. 690º - A pretende que o recorrente identifique claramente os erros de julgamento que aponta à decisão factual da 1ª instância, indicando os pontos que reputa incorrectamente julgados e os meios probatórios que sustentam a sua censura.
Esse ónus alegatório tem por objectivo evitar a impugnação genérica da decisão de facto, com a intolerável sobrecarga que daí adviria para o Tribunal de recurso e o indesejável favorecimento de situações em que o meio impugnatório só é utilizado com intuito de mera dilação processual.

> Ac STJ de 19.03.2009 (Proc. 08B3745 - – www.dgsi.pt):
“… quando exista gravação dos depoimentos prestados em audiência, a Relação vai, na sua veste de tribunal de apelação, reponderar a prova produzida em que assentou a decisão impugnada, para tal atendendo aos elementos acima enunciados.
E a alusão aos «pontos da matéria de facto», contida no n.º 2 do art. 712º, visa «acentuar o carácter atomístico, sectorial e delimitado que o recurso ou impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto em regra deve revestir, estando em harmonia com a terminologia usada pela alínea a) do n.º 1 do art. 690º-A: na verdade, o alegado “erro de julgamento” normalmente não inquinará toda a decisão proferida sobre a existência, inexistência ou configuração essencial de certo “facto”, mas apenas sobre determinado e específico aspecto ou circunstância do mesmo, que cumpre à parte concretizar e delimitar claramente.”

> Ac. STJ de 23.11.2011 (CJ STJ XIX, III, 126):
“I. Deve ser rejeitada – sem qualquer prévio convite ao aperfeiçoamento – a impugnação da matéria de facto em que apenas se invoque, genericamente, que da audição e ponderação do teor das testemunhas, conjugadas com os documentos juntos, impõe uma resposta diversa aos pontos da matéria de facto que se indicam.
II. Efectivamente, a lei exige que se alegue o porquê da discordância, que se apontem as passagens precisas dos depoimentos que fundamentam a concreta divergência, que se explique em que é que os depoimentos contrariam a conclusão factual do tribunal recorrido.
III. Exigência esta também imposta pelo princípio do contraditório, pela necessidade que a parte contrária tem de conhecer os argumentos concretos e devidamente delimitados do impugnante, para os poder contrariar”.
As alterações introduzidas no Código de Processo Civil, com a Lei 41/2013 de 26/06, mantêm no essencial o regime de reapreciação da decisão da matéria de facto, sendo por isso, válidas as referências expostas em sede de doutrina e jurisprudência.
O presente regime veio concretizar a forma como se processa a impugnação da decisão, reforçando o ónus de alegação imposto ao recorrente, prevendo que deixe expresso a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação em sede de reapreciação dos meios de prova[5].
Recai, assim, sobre o recorrente, face ao regime concebido, um ónus, sob pena de rejeição do recurso, de determinar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar – delimitar o objecto do recurso -, motivar o seu recurso – fundamentação - através da transcrição das passagens da gravação que reproduzem os meios de prova, ou a indicação das passagens da gravação que, no seu entendimento, impunham decisão diversa sobre a matéria de facto e ainda, indicar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação.
Tal ónus impede que se requeira a impugnação genérica da matéria de facto controvertida e bem assim, a reapreciação de toda a prova.
No caso concreto, nas conclusões de recurso, a apelante não indicou os pontos de facto impugnados, por referência aos factos enunciados na sentença ou na base instrutória, nem ainda, os concretos meios de prova a reapreciar – depoimentos das testemunhas, documentos ou perícia – que em seu entender justificavam uma decisão diferente, fazendo tão só uma referência genérica à “prova produzida”.
Conclui-se, assim, que a apelante não respeitou o ónus de alegação e desta forma não estão preenchidos os pressupostos de ordem formal para proceder à reapreciação da decisão da matéria de facto.
Improcedem, nesta parte, as conclusões de recurso sob os pontos I a V.
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- Extinção por desnecessidade, do direito de servidão reconhecido à terceira Autora -
Nas conclusões de recurso sob os pontos VI a X insurge-se a apelante contra o segmento da sentença que em sede de reconvenção, em relação à terceira Autora, não reconheceu a extinção do direito de servidão de passagem, por desnecessidade.
Na sentença, reconheceu-se que o prédio da apelante estava onerado com o direito de servidão de passagem, a favor do prédio ocupado pela terceira Autora e bem assim, que o direito se constituiu por destinação de pai de família. Tal segmento da decisão não foi impugnado pela apelante.
Em reconvenção a apelante peticionou a extinção do direito, com fundamento em desnecessidade. O pedido foi julgado improcedente, com os fundamentos que se transcrevem:
“[…]Já no que respeita à 3ª autora-reconvinda, também não procede tal pedido, quer porque não foi demonstrado o não uso ou desnecessidade, quer por que tal como se afirma no Ac. STJ nº 09A0661, 14.05.2009, in www.dgsi.pt "A servidão por destinação do pai de família, por ser voluntária, não é extinguível por desnecessidade."
Neste jaez, improcede tal pedido”.
A questão que se coloca consiste, assim, em apurar se a extinção da servidão por desnecessidade, prevista no art. 1569º/2/3 CC, pode ocorrer em relação ás servidões constituídas por destinação de pai de família.
Em tese geral servidão predial é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente (artigo 1543.º do CC). Um dos modos de constituição das servidões prediais é a destinação de pai de família (artigo 1547.º do CC). Dá-se tal constituição se em dois prédios ou em duas fracções de um só prédio houver sinais visíveis e permanentes, postos em um ou em ambos, que revelem serventia de um para com outro, quando em relação ao domínio os dois prédios ou as duas fracções vierem a separar-se, salvo se ao tempo da separação outra coisa se houver declarado no respectivo documento (artigo 1549.º do CC).
Se um dos prédios for alienado ou o único prédio se dividir, a manutenção dos sinais visíveis e permanentes dessa serventia é havida como prova da servidão.
Está porém na disponibilidade das partes declarar outra coisa no respectivo documento. É esta possibilidade de impedir a transformação de uma situação material ou fáctica numa consequência jurídica que qualifica a servidão como “servidão voluntária”[6].
Uma outra corrente doutrinal interpreta esta conduta como um “acordo tácito”[7].
As servidões extinguem-se por várias causas (artigo 1569.º do CC).
Contudo, a lei distingue entre causas genéricas e especificas[8], em razão da natureza do acto constitutivo da servidão.
As causas genéricas, previstas no art. 1569º/1 CC, aplicam-se seja qual for a modalidade de constituição da servidão.
A extinção por desnecessidade, constitui um fundamento de extinção que opera apenas em relação ás servidões constituídas por usucapião e servidões legais (por decisão judicial ou por acordo das partes), conforme decorre do art. 1569.º/2/3 do CC, onde se prevê:
“Artigo 1569.º
Casos de extinção
1 — […]
2 — As servidões constituídas por usucapião serão judicialmente declaradas extintas, a requerimento do proprietário do prédio serviente, desde que se mostrem desnecessárias ao prédio dominante.
3 — O disposto no número anterior é aplicável às servidões legais, qualquer que tenha sido o título da sua constituição: tendo havido indemnização, será esta restituída, no todo ou em parte, conforme as circunstâncias.
[...].”
Com efeito, as servidões constituídas por usucapião e servidões legais distinguem-se das servidões voluntárias, como sejam as servidões constituídas por destinação de pai de família.
Naquelas o encargo é imposto pelos factos e uma vez desaparecidos justifica-se a extinção da servidão. Quando se trata de servidões voluntárias cumpre respeitar o acordo das partes ou do testador, sendo certo que a necessidade não constitui um factor determinante para a respectiva constituição[9].
Observava a este respeito ANTUNES VARELA que admitir a desnecessidade, como causa de extinção, em sede de servidões voluntárias equivale: “[…] a abrir a porta a difíceis problemas de interpretação dos negócios jurídicos, com o risco de decisões contrárias à vontade das partes”[10].
As servidões constituídas por destinação de pai de família constituem servidões voluntárias, atendendo ao relevo que merecem os sinais que servem de suporte à sua constituição e ainda, o facto de ficar na disponibilidade das partes no acto de alienação da parcela ou prédio que faz parte da unidade onerado com a servidão, manter ou fazer cessar o encargo.
MOTA PINTO observava que:”[r]eleva, assim, a existência, no momento da transmissão, desses sinais, nada tendo sido dito em contrário no documento de transmissão. Tanto basta para a lei presumir que tanto a pessoa que comprou como a que alienou quiseram constituir uma servidão”[11].
Desta forma, as servidões constituídas por destinação de pai de família, por constituírem servidões voluntárias, ficam sujeitas apenas ao regime geral de extinção das servidões, previsto no art. 1569º/1 CC e por isso, não podem extinguir-se por desnecessidade.
Este tem sido o sentido interpretativo acolhido e defendido na jurisprudência dos tribunais superiores, como disso dão nota, entre outros, os Ac. Rel. Porto 09 de Outubro de 2008, Proc. 0834784, Ac. Rel. Porto19 de Maio de 2010, Proc. 1585/07.6TBPNF.P1 Ac. STJ 11.11.2003, Proc. 03A3510, Ac. STJ 20 de Maio de 2003, Proc. 03A1332, Ac. STJ 14 de Maio de 2009, Proc. 09A0661, Ac. STJ 31 de Janeiro de 2012, Proc. 277/05.5TBBCL.G1.S1, todos acessíveis em www.dgsi.pt.
Retomando o caso dos autos.
Na sentença reconheceu-se a constituição da servidão de passagem, por destinação de pai de família a favor do prédio ocupado pela terceira Autora e por isso, não assiste ao proprietário do prédio serviente o direito de requerer a respectiva extinção por desnecessidade, na medida em que não se provou que no acto de transmissão da propriedade as partes tenham abdicado de tal encargo e por isso, atenta a sua natureza, servidão voluntária, não pode extinguir-se por desnecessidade.
Por outro lado, não se provaram factos que revelem a superveniente desnecessidade da utilização do caminho, sendo certo que o facto do prédio dominante beneficiar de outro acesso à via pública não revela, só por si, que satisfaz as suas necessidades, aspecto que apenas poderia merecer relevo se equacionado em sede de abuso de direito. Acresce que tal questão foi apreciada na sentença e a apelante não veio impugnar os termos da decisão.
Desta forma, não merece censura a sentença quando concluiu pela improcedência do pedido de extinção da servidão por desnecessidade.
O apelante argumenta, contudo, que ao interpretar-se o art. 1569.º, n.º 3, CC, no sentido que é proibido ao julgador efectuar uma interpretação correctiva que permita a extinção das servidões constituídas por destinação de pai de família por desnecessidade, o tribunal recorrido violou o disposto no art. 62.º n.º 1 CRP.
A questão da inconstitucionalidade do art. 1569º/2/3 CC, por não se mostrar conforme com os princípios que decorrem dos art. 18º e 62º/1 CRP, foi já analisa pelo Tribunal Constitucional, no douto Acórdão nº 484/2010 de 09 de Dezembro de 2010, Proc. 535/10 ( DR II série, Nº 13 de 19 de Janeiro de 2011 ), no sentido de não julgar inconstitucional a interpretação do preceito, quando não integra no seu âmbito as servidões constituídas por destinação de pai de família.
A apelante suscita a inconstitucionalidade da interpretação da norma, porque não conforme com o princípio ínsito no art. 62º/1 da CRP, que garante o direito à propriedade privada.
Como se refere no citado aresto do Tribunal Constitucional “[d]os componentes que habitualmente se identificam como integrando o âmbito constitucional do direito de propriedade […] só a liberdade de usar e fruir os bens de que se é proprietário poderia ser posta em causa por virtude da norma submetida a apreciação”.
A existência de direitos reais menores, a par com o direito de propriedade e o facto do encargo resultar de um acto voluntário, como se caracteriza a servidão por destinação de pai de família, justifica que a desnecessidade não funcione como causa de extinção e não representa uma limitação não consentida ao direito de propriedade, com a dimensão e conteúdo que lhe é atribuído pela Constituição.
Defende-se no Ac. do Tribunal Constitucional 484/2010 ( já referenciado ), com argumentos que aqui fazemos nossos que: “[…]sendo embora certo que a servidão opera automaticamente, como consequência ope lege da existência de sinais visíveis e permanentes da serventia no momento da separação do domínio sobre os prédios dominante e serviente, sempre os interessados podem obstar a que isso suceda, mediante declaração exarada na escritura (ou acto equivalente) de que essa separação resulta. Assim, a perda do poder de excluir todos os outros do gozo da coisa na medida da extensão e conteúdo da servidão, apresenta-se como uma conformação actual do direito decorrente do modo como o proprietário do prédio serviente (o titular actual ou o seu antecessor) entendeu exercer os poderes inerentes à situação de proprietário, estabelecendo a serventia, mantendo os sinais no momento da transmissão e nada declarando a tal propósito. A obrigação de suportar o exercício da servidão não resulta de uma imposição ab extra da lei ou de um terceiro por esta habilitado com um direito potestativo, mas da destinação que o proprietário deu aos seus bens.
Deste modo, para que a alegação da recorrente pudesse colher alguma aceitação seria necessário que da Constituição se retirasse que o direito real de propriedade — a plena in re potestas civilística — recebe do artigo 62.º da Constituição uma conformação incompatível com a manutenção de outros direitos reais de gozo sobre a coisa de que o respectivo titular não tenha estrita necessidade ou que, de qualquer outro lugar da Constituição, é possível retirar um programa vinculativo para o legislador no sentido da preferência pela extinção dos direitos reais menores que possam limitar ou comprimir os poderes do proprietário. Só numa perspectiva de maximização da posição do proprietário — porventura integrante de uma vinculação programática no sentido da optimização do aproveitamento dos bens ou de certo tipo de bens, p. ex. da propriedade do solo agrícola — poderia concluir-se pela extinção das servidões prediais de natureza não coerciva.
Ora,[…] nem se vislumbra que do n.º 1 do artigo 62.º, por si ou conjugado com outros preceitos constitucionais, possa extrair-se um tal conteúdo do direito de propriedade cuja preservação imponha a tutela legislativa contra a limitação dos poderes de gozo da coisa inerentes à própria acção do titular do direito.
É certo que a sobreposição ou co-existência de vários direitos reais sobre a mesma coisa é susceptível de tornar menos eficiente o domínio e pode conceber-se como socialmente indesejável a justificar instrumentos jurídicos que, em dadas circunstâncias, lhe permitam pôr termo (v.gr. direito de preferência, extinção por desnecessidade, remição).
Mas não se contém na garantia da propriedade privada “nos termos da Constituição” uma vinculação social que se caracterize pelo intencionalidade ou propensão restritiva quanto à posição do titular de “direitos reais menores” sobre a mesma coisa no sentido da restauração da plenitude dos direitos de gozo do titular do direito real máximo, que imponha a resolução do conflito a favor deste, segundo um critério objectivo de (des)necessidade da servidão, mesmo perante servidões cuja origem se não revista de natureza coerciva”.
Conclui-se, perante o exposto, que a interpretação defendida pelo juiz do tribunal “a quo” do art. 1569º/2/3 CC e aqui por nós acolhida, está conforme com a tutela constitucional do direito de propriedade privada, consagrado no art. 62º/1 CRP.
Improcedem, também nesta parte, as conclusões de recurso sob os pontos VI a X.
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Nos termos do art. 527º CPC as custas são suportadas pela apelante.
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III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.
Custas a cargo da apelante.
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Porto, 9 de julho de 2014
(processei e revi – art. 131º/5 CPC)
Ana Paula Amorim
Rita Romeira
Manuel Domingos Fernandes
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[1] ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES Recursos no Novo Código de Processo Civil, ob . cit., pag. 128.
[2] CARLOS FRANCISCO DE OLIVEIRA LOPES DO REGO Comentários ao Código de Processo Civil Coimbra, Almedina, 1999, pag. 465.
[3] CARLOS FRANCISCO DE OLIVEIRA LOPES DO REGO Comentários ao Código de Processo Civil, ob. cit., pag. 465-466.
[4] ANTÓNIO DOS SANTOS ABRANTES GERALDES, Recursos em Processo Civil – Novo Regime, 2ª Edição Revista e Actualizada, Coimbra, Almedina, 2008, pag. 141-142.
[5] ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES Recursos no Novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, Julho 2013, pag. 126.
[6] M. HENRIQUE MESQUITA “ Servidão por destinação do pai de família: pressupostos da sua constituição em processo de falência”, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 135º, N º 3936, Janeiro-Fevereiro 2006, pag. 151-153, 156
[7] Cfr. PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª edição Revista e Actualizada – Reimpressão (com a colaboração de M. Henrique Mesquita), Coimbra, Coimbra Editora – grupo Wolters Kluwer, 2011, pag. 676-677.
[8] LUÍS MANUEL TELES DE MENEZES LEITÃO, Direitos Reais, Coimbra, Almedina, 2009, pag. 421.
[9] Cfr. PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, ob. cit., pag. 676.
[10] PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, ob. cit., pag. 676.
[11] ÁLVARO MOREIRA, CARLOS FRAGA segundo as prelecções do Professor Doutor C.A. da MOTA PINTO ao 4º ano jurídico de 1970-71, Direitos Reais, Coimbra, Almedina, 1972, pag. 323.