Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
22255/17.1T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
PRESTAÇÃO DE CONTAS
CABEÇA DE CASAL
ACÇÃO ESPECIAL
INCIDENTE EM INVENTÁRIO NOTARIAL
REFORMA DA SENTENÇA
DESPACHO
RENÚNCIA AO RECURSO
Nº do Documento: RP2018053022255/17.1T8PRT.P1
Data do Acordão: 05/30/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 675, FLS 182-194)
Área Temática: .
Sumário: I - Os “erros materiais” previstos nos artigos 613.º e 614.º do CPC traduzem-se na divergência entre a vontade real e a vontade declarada do julgador, e só a verificação de tal vício permite o afastamento da regra da intangibilidade da sentença, não se confundindo com os “erros de julgamento”, que ocorrem nas situações em que o julgador disse o que queria dizer mas decidiu mal, decidiu contra lei expressa ou contra os factos provados.
II - Se no processo cabe recurso da decisão os fundamentos elencados nas als. a) e b) do nº 2 do artigo 616.º do CPCivil devem ser objecto da alegação desse recurso como o deve ser a reforma da decisão quanto a custas e multa (nº 3 do mesmo preceito).
III - Todavia, se o Autor pede a reforma da sentença isso não tolhe o seu direito de, posteriormente e perante o indeferimento do pedido de reforma, interpor recurso daquela decisão, já que isso não representa a sua aceitação por não consubstanciar facto que inequivocamente seja incompatível com a vontade de recorrer (cfr. nºs 2 e 3 do artigo 632.º do CPcivil).
IV - Na pendência do processo de inventário notarial, o interessado que pretenda a prestação de contas pelo cabeça de casal, anteriores ou contemporâneas da referida pendência, terá de o requerer como incidente no processo de inventário notarial, não pertencendo, pois, a competência material para a referida prestação de contas ao tribunal.
V - Porém, não estando pendente inventário em Cartório Notarial nem nunca tendo estado, o regime jurídico processual das contas anuais a prestar pelo cabeça de casal de facto da herança só pode ser o da acção especial de prestação de contas previsto nos artigos 941.º e ss. do CPCivil e, por assim ser, a competência material para apreciar tal pedido pertence ao tribunais judiciais e, concretamente, ao tribunal do domicílio do Réu (artigo 80.º, nº 1 do CPCivil).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 22255/17.1T8PRT.P1-Apelação
Origem-Tribunal Judicial da Comarca do Porto-Juízo Local Cível do PortoJ2
Relator: Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Miguel Baldaia
2º Adjunto Des. Jorge Seabra
5ª Secção

Sumário:
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I-RELATÓRIO

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
B..., residente na Rua ..., nº ..., Porto, veio propor acção especial de prestação de contas contra C..., cabeça de casal da herança aberta por óbito de D..., residente na Rua ..., nº ..., .º. Esquerdo Porto.
Alega para o efeito e em resumo que ele e a Ré são herdeiros da herança aberta por óbito do seu pai e marido da aqui Ré, ocorrido a 27 de Dezembro de 2010, sendo que na referida herança é a Ré cabeça de casal e que, portanto, a administra.
Integram a herança indivisa em causa várias contas bancárias, que desconhece o Autor quantas possam ser actualmente.
Sucede porém que, a Ré desde que tomou posse como cabeça de casal somente nos primeiros dois anos (2011 e 2012) prestou contas, nunca mais o tendo feito.
Pede por isso que a Ré presta contas da sua administração ou conteste a acção sob pena de não o fazendo não poder deduzir oposição às contas que ele apresentar sendo em qualquer caso, a final condenada a pagar ao Autor, a sua quota-parte do saldo que vier a ser apurado.
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Devidamente citada contestou a Ré onde, além do mais, veio deduzir a excepção da incompetência em razão da matéria por, no seu entender, para apreciar o presente pedido ser competente o cartório notarial.
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Na resposta o Autor veio pugnar pela improcedência da referida excepção, alegando em resumo que a presente acção é claramente uma acção especial de prestação de contas e não uma partilha como pretende fazer crer a Ré, nem tão pouco uma prestação de contas no âmbito de um processo de inventário, porque este sim corre os seus termos no Cartório Notarial por ser este a entidade competente para o efeito.

Conclusos os autos o Sr. juiz do processo exarou despacho onde declarou o tribunal incompetente em razão da matéria e, em consequência, absolveu a Ré da instância.
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Não se conformando com a sentença assim proferida veio o Autor interpor o presente recurso, concluindo as suas alegações nos seguintes termos:
1. Referem-se as presentes alegações ao recurso interposto pelo Autor, ora apelante, da douta sentença datada de 12/02/2018, que julgou verificada a excepção de incompetência absoluta do tribunal, em razão da matéria e consequentemente absolveu a Ré da instância.
2. O Autor B... instaurou em 25 de Outubro de 2017 no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Cível do Porto, acção especial de prestação de contas contra a Ré C..., cabeça de casal da herança indivisa aberta por óbito do Pai do Autor e Marido da Ré, ocorrido a 27 de Dezembro de 2010, peticionando que a Ré lhe prestasse contas dos rendimentos dessa mesma herança, após o ano de 2013, uma vez que, desde o óbito do seu Pai até finais de 2012 acompanhou “os passos da herança”, porque a Ré, sua mãe, foi colocando-o ao corrente das movimentações que fazia com o dinheiro da herança.
3. A Ré foi nomeada cabeça de casal por escritura de habilitação de herdeiros celebrada a 06 de Janeiro de 2011, onde a mesma declara, “sob compromisso de honra”, que se encontra a exercer o cargo e quem são os herdeiros que possam concorrer na sucessão à herança, mencionando o Autor como filho do falecido.
4. Por douto despacho, a Meritíssima Juiz do tribunal a quo manda citar a Ré para que a mesma conteste a acção, e esta na contestação invoca a incompetência absoluta do tribunal judicial, devendo, por via disso, ser a Ré absolvida da instância, uma vez que entende, erroneamente, que a pretensão do Autor é que seja partilhada a herança, apesar de se contrariar dizendo no art. 29º da contestação-“não tem a presente acção por intento a partilha de qualquer bem”.
5. Alega ainda a Ré, no art. 35º da contestação, para o efeito que a acção em causa nos autos (de prestação de contas) deveria ter sido apresentada junto do Cartório Notarial, justificando, dizendo o seguinte: “até porque, como invocado pelo Autor, “com a presente acção pretende, o Autor exigir da Ré a prestação de contas da sua administração dos bens da herança indivisa aberta por óbito do pai do aqui Autor e marido da aqui Ré, de que a Ré é cabeça de casal”. “Devendo, uma vez apuradas essas contas, ser objecto de aprovação por Autor e Ré, e ser entregue ao Autor a sua quota parte do saldo que venha a resultar desse apuramento de contas”.
6. Continua, fazendo suas as palavras doutamente referidas nos Cadernos do CEJ relativamente ao novo Processo de Inventário que, “actualmente o cabeça de casal deve prestar contas…, o que é feito por apenso ao Processo de Inventário”.
7. Contudo, a Ré jamais faz alusão e prova (documentalmente) que está pendente no Cartório Notarial algum Processo de Inventário.
8. Perante o alegado pela Ré, o Autor, no art. 10º da resposta, pronuncia-se no sentido de ser o Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Instância Local Cível, o materialmente competente para julgar a presente acção, uma vez que o pedido formulado pelo Autor é claramente uma acção especial de prestação de contas, a quem administra bens alheios, das receitas obtidas e das despesas realizadas com os bens da herança, nos termos do artigo 941º do CPC., e não uma partilha como pretende fazer crer a Ré ao Tribunal, nem tão pouco uma prestação de contas no âmbito de um processo de inventário, porque esta sim corre os seus termos no Cartório Notarial por ser este a entidade competente para o efeito (artigos 11º e 12º da resposta).
9. Referiu ainda o Autor, tal como invocado pela Ré na contestação,–art. 29-“não tem a presente acção por intento a partilha de qualquer bem”.
10. Também o Autor jamais alega e prova (documentalmente) que está pendente no Cartório Notarial algum Processo de Inventário.
11. Assim, findos os articulados, o tribunal a quo, por douta sentença, fundamentou o seguinte: “O requerente deduziu a presente acção de prestação de contas contra a Requerida peticionado que a ré seja condenada a prestar contas decorrentes de ter sido nomeada cabeça de casal.
A Requerida deduziu a excepção de incompetência em razão da matéria alegando em resumo que o cartório notarial é competente não só para apreciar o pedido de partilha da comunhão hereditária mas também para apreciar os processos que com ele se relacionam nomeadamente como a prestação de contas.
A parte contrária exerceu o contraditório alegando que corre termos um processo de inventário no notário e que não pretende uma partilha”.
12. Tendo dado como provado, nos autos, o seguinte:
- “O autor e ré são herdeiros da herança aberta por óbito do pai do autor e marido da ré, ocorrido a 27-12-2010, conforme habilitação de herdeiros de 6-1-2011.
- A ré foi nomeada cabeça de casal no âmbito de um processo de inventário pendente num Cartório Notarial.
- Antes da instauração desta acção já havia sido instaurado processo de inventário no cartório notarial tendo a autora sido nomeada cabeça de casal”.
13. Nesta mesma sentença, o tribunal a quo veio proferir decisão no sentido de o litígio ser dirimido em sede própria, nos autos de inventário do Cartório Notarial, julgando verificada a excepção de incompetência absoluta do tribunal a quo, em razão da matéria, e, consequentemente, decidindo pela absolvição da Ré da instância.
14. Perante esta sentença, o Autor de imediato requereu ao tribunal a quo que fosse a mesma dada sem efeito, por lapso manifesto, nos termos do artigo 614º, nº 1 do CPC, uma vez que entendeu o Autor que, somente, por ter existido lapso manifesto do tribunal a quo ao interpretar os articulados, é que o mesmo pode ter presumido que existe um processo de inventário a decorrer.
15. Aliás, notificada a Ré para se pronunciar acerca do requerimento, acima mencionado, feito pelo Autor, a mesma fê-lo, mas continuou a não fazer alusão a qualquer existência de algum processo de inventário pendente (entendendo o Autor porque o faz...), apenas e só afirma no ponto 6 “Com todo o respeito, mesmo que alguma razão assistisse ao R..,” (por lapso disse ao R., querendo dizer, pensamos nós, Autor).
16. Ora, a Ré, mais uma vez, não alega ou prova a existência de algum processo de inventário pendente, porque sabe que não existe (nem nunca existiu) qualquer processo de inventário pendente.
17. Assim, apesar de não constar em nenhum dos articulados, (quer nos juntos pelo Autor, quer nos juntos pela Ré), que fazem parte dos presentes autos, nenhuma menção ou documento comprovativo da existência de processo de inventário, não entende o Autor como é que o tribunal a quo pode ter concluído pela sua existência, como fez!
18. O tribunal a quo, em nenhum momento, solicitou ao Autor ou à Ré a junção de documento que lograsse comprovar, sem qualquer dúvida, a existência do suposto processo de inventário.
19. Perante o supra exposto, a questão essencial consiste em saber se o tribunal judicial a quo é o competente, em razão da matéria, para julgar a presente acção, ou se essa competência recai sobre o Cartório Notarial.
20. É sabido que a regra da competência dos tribunais da ordem judicial é supletiva ou residual já que apenas são da sua competência as causas não atribuídas a outra ordem jurisdicional (crf. Artigos 64º e 65º do Código de Processo Civil).
21. O artigo 211º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa (CRP), no que respeita à jurisdição comum, consagra: “Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.”
22. O artigo 64º do CPC confirma que “São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.
23. Assim, salvo o devido e merecido respeito, que é muito, o Autor, ora apelante, discorda da douta sentença proferida pela Meritíssima Juiz a quo por ter julgado a excepção de incompetência absoluta deste tribunal, em razão da matéria, e, consequentemente, decidido pela absolvição da Ré da instância.
24. Não concordando com o teor da sentença proferida, fundamenta, o recorrente, com o seguinte: JAMAIS foi alegado e provado (documentalmente) quer pelo Autor, quer pela Ré que se encontrava pendente um processo de inventário no Cartório Notarial, até porque esse “suposto” processo de inventário não existe nem nunca existiu.
25. É convicção do Autor que, o que se passa no caso vertente, é que existe um indubitável erro de apreciação/interpretação (lapso) por parte do tribunal a quo, ao entender que está pendente no Cartório Notarial um processo de inventário, quando nenhuma das partes concretizou tal facto (quer através de referência concreta ao mesmo, quer juntando qualquer documento provatório).
26. É ainda convicção do Autor que estamos perante um erro de pressuposto de facto, uma vez que estamos perante uma decisão da Meritíssima Juiz a quo fundamentada num facto que, não só não existe, como não tem qualquer prova nos autos que o sustente.
27. Assim sendo, resulta que o tribunal a quo não poderia ter dado como provado os seguintes factos, pelo que se impugnam:
- “A ré foi nomeada cabeça de casal no âmbito de um processo de inventário pendente num Cartório Notarial.
- Antes da instauração desta acção já havia sido instaurado processo de inventário no cartório notarial tendo a autora sido nomeada cabeça de casal”.
28. Mas sim, estes factos deveriam ter tido a seguinte redacção:
- A ré foi nomeada cabeça de casal por escritura de habilitação de herdeiros celebrada a 06 de Janeiro de 2011.
- O segundo facto deverá ser excluído da matéria de facto provada, conforme resulta do já exposto.
29. Sendo que, o tribunal materialmente competente para conhecer da acção é o tribunal a quo, uma vez que os autos têm como pedido e causa de pedir uma simples prestação de contas intentada autonomamente, sem estar na dependência de qualquer processo de inventário, até porque este não existe, nem nunca existiu.
30. Ora, se não existe qualquer processo de inventário a decorrer no Cartório Notarial, por maioria de razão, não poderá existir uma prestação de contas por apenso.
31. Perante isto, o tribunal a quo não podia ter decidido como decidiu, julgar procedente a excepção da incompetência material, bem pelo contrário, como exposto.
32. Até porque, o Cartório Notarial não é competente para a acção intentada pelo Autor, mas sim a jurisdição civil, nos termos do art. 64º do CPC, pelo que deve ser revogada a decisão recorrida, devendo os autos prosseguir os seus trâmites normais no tribunal de primeira instância cível.
33. Devendo, assim, ser considerada improcedente a invocada excepção dilatória, devendo os autos prosseguir os seus termos.
34. Assim, na senda do exposto, deverá ser considerado o tribunal a quo o tribunal judicial competente em razão da matéria, para julgar a presente acção, atento que o regime jurídico processual das contas anualmente a prestar (sem pendência de processo de inventário) só pode ser o da acção judicial de prestação de contas. 35. Portanto, a sentença recorrida deve ser substituída por outra que julgue improcedente a excepção da incompetência material.
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Devidamente notificado contra-alegou a Ré concluindo pelo não provimento do recurso.
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Foram dispensados os vistos.
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II- FUNDAMENTOS

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação é apenas uma a questão a decidir:

a)- saber se o tribunal recorrido é, ou não, competente para a presente acção.
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A)-FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

É a seguinte a factualidade que vem dada como provada pelo tribunal recorrido:
1º)- O autor e ré são herdeiros da herança aberta por óbito do pai do autor e marido da ré, ocorrido a 27-12-2010, conforme habilitação de herdeiros de 6-1-2011- doc. 1 cujo teor aqui se dá por reproduzido.
2º)- A ré foi nomeada cabeça de casal no âmbito de um processo de inventário pendente num Cartório Notarial.
3º)- Antes da instauração desta acção já havia sido instaurado processo de inventário no cartório notarial tendo a autora sido nomeada cabeça de casal.
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III- O DIREITO

Questão prévia

Nas suas contra-alegações veio a Ré suscitar a questão da inadmissibilidade do recurso por o Autor ter a ele renunciado ao ter solicitado a reforma da decisão, quando da mesma podia ter interposto o competente recurso.
Com este entendimento não concorda o apelante alegando não ter pedido a reforma da decisão, mas apenas a correcção do lapso manifesto de que a mesma enfermava.
Quid iuris?
Perante a decisão que considerou o tribunal incompetente em razão da matéria e absolveu a Ré da instância veio o Autor, a fols. 145/146 dos autos e com data de 14/02/2018, apresentar requerimento do seguinte teor:
“B..., autor devidamente identificado nos autos, tendo tomado conhecimento da sentença proferida, vem muito respeitosamente, nos termos do nº 1 do artº 614º do C.P.C. dizer o seguinte:
1º O autor foi surpreendido com esta decisão tendo o mesmo ficado perplexo.
De facto,
2º Não entende o autor o motivo de tal sentença, onde é referido que o mesmo alegou que corre termos um processo de inventário no notário.
3º Até porque não corresponde à verdade.
Senão vejamos,
4º Nos articulados que fazem parte dos autos, em parte alguma foi referido, quer pelo autor, quer pela ré que está a decorrer um processo de inventário, porque efectivamente NÃO EXISTE QUALQUER PROCESSO DE INVENTÁRIO A DECORRER.
5º NEM NUNCA EXISTIU.
6º Ora, perante isto ficou o autor atónito com a sentença proferida, uma vez que:
1º não existe processo de inventário a decorrer;
2º jamais foi alegado pelo autor ou pela ré que se encontrava a decorrer um processo de inventário e,
3º estamos, no caso vertente, perante uma ação especial de prestação de contas intentada contra a cabeça de casal nomeada na escritura de habilitação de herdeiros e não no âmbito de um processo de inventário pendente num cartório notarial, uma vez que NÃO EXISTE (NEM NUNCA EXISTIU) QUALQUER PROCESSO DE INVENTÁRIO.
7º Acresce que, Como já referido nos seus articulados, o autor, com a presente ação, pretende que lhe sejam prestadas contas dos rendimentos da herança e não a partilha de qualquer bem.
TERMOS EM QUE
Requer-se muito respeitosamente a V. Exa que diligencie de imediato, dando sem efeito a presente decisão, prosseguindo os autos os seus termos até final.
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Perante o assim impetrado não há duvida de que do que se trata[1] é, não de uma simples rectificação de erros materiais a que alude o artigo 614.º do CPCivil, mas de uma verdadeira reforma da decisão a que se refere o artigo 616.º, nº 2 do mesmo diploma legal.
A este propósito, ensina o Professor José Alberto dos Reis[2], que o princípio da intangibilidade da decisão judicial, formulado no artigo 666.º “pressupõe que a sentença ou despacho reproduz fielmente a vontade do juiz; se houve erro material na expressão dessa vontade, se, por qualquer circunstância, a vontade declarada na sentença ou despacho não corresponder à vontade real do juiz, a regra da intangibilidade não funciona. Não faz sentido que subsista vontade diversa da que o juiz teve em mente incorporar na sentença ou despacho”.
Do raciocínio exposto, retira o insigne professor duas conclusões: 1.ª a rectificação não é viável quando houve erro de julgamento e não “erro material na declaração da vontade do juiz”; 2.ª a rectificação é viável “qualquer que seja a causa ou a forma do erro material”.
O autor citado estabelece a seguinte fronteira entre erro material e erro de julgamento: “o erro material dá-se quando o juiz escreveu coisa diversa do que queria escrever, quando o teor da sentença ou do despacho não coincide com o que o juiz tinha em mente exarar, quando em suma a vontade declarada diverge da vontade real (…). O erro de julgamento é espécie completamente diferente. O juiz disse o que queria dizer mas decidiu mal, decidiu contra lei expressa ou contra os factos apurados (…)”.
Na definição de Liebman[3]: “Erro material é o erro “na expressão”, não no pensamento; somente a leitura da sentença deve tonar evidente que o juiz, ao manifestar o seu pensamento, usou nomes, palavras ou algarismos diversos daqueles que devia ter usado para exprimir fiel e correctamente as ideias que tinha em mente. Pertence ao conceito de erro material ainda o erro de cálculo, que pode ser rectificado também simplesmente, refazendo-se as operações aritméticas executadas ao formular o julgamento, Por outras palavras, o erro material é o que fica a dever-se a um desatenção ou a um engano ocorrido na operação de redacção do acto”.
Ora, salvo o devido respeito, no caso em apreço cotejado o requerimento do Autor facilmente se verifica que, o que o mesmo invoca, é um erro de julgamento, já que entende que foi indevidamente dado por provado um determinado facto no qual se baseou a decisão, ou seja, não se divisa qualquer erro material, pois que se não verifica qualquer divergência entre a vontade declarada e a vontade real do julgador, este exarou aquilo que tinha em mente e não coisa diversa dessa.
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A questão que agora se coloca é se o pedido de reforma da decisão, nos termos impetrados pelo Autor, representou a renúncia tácita ao recurso como defende a Ré recorrente.
Preceitua o artigo 632.º do CPCivil sob a epígrafe “Perda do direito de recorrer e renúncia ao recurso” que:
1 - É lícito às partes renunciar aos recursos; mas a renúncia antecipada só produz efeito se provier de ambas as partes.
2 - Não pode recorrer quem tiver aceitado a decisão depois de proferida.
3 - A aceitação da decisão pode ser expressa ou tácita; a aceitação tácita é a que deriva da prática de qualquer facto inequivocamente incompatível com a vontade de recorrer.
4 - O disposto nos números anteriores não é aplicável ao Ministério Público.
5 - O recorrente pode, por simples requerimento, desistir do recurso interposto até à prolação da decisão.
Como decorre do preceito transcrito, três são as situações nele previstas em que não cabe recurso, por vontade das partes, da decisão proferida e cujos efeitos consistem em tornar definitiva essa decisão:
a)- a da renúncia que, sendo antecipada, só é eficaz se for bilateral (nº 1);
b)- a da aceitação da decisão manifestada pela parte vencida (nº 2), que se distingue da renúncia por ser sempre posterior à decisão e produzir efeitos ainda que seja unilateral;
c)- a desistência que, sendo um acto equivalente à aceitação é, no entanto, posterior à interposição do recurso (nº 5).
Como diz Fernando Amâncio Ferreira[4], na aceitação a que se reporta o artigo 681º, nº 3 do CPCivil (actual 632.º, nº 3) “(...). Releva o ser feita depois da prolação da decisão por só então a parte se encontrar em condições de exercitar conscientemente o seu poder dispositivo.
A aceitação pode ser expressa ou tácita. É expressa se a parte, através de um acto unilateral, não receptício, declara não querer impugnar a decisão. É tácita se a parte assume um comportamento incompatível com a vontade de recorrer (art. 681º, nº 3).(…)
O acto de cumprimento voluntário da sentença (v.g., o pagamento pelo demandado da quantia em que foi condenado) vale como aceitação tácita da mesma, a menos que se faça expressa reserva de recorrer. Se tal reserva ocorrer, com o acto de cumprimento voluntário apenas se pretendeu evitar a execução forçada.
Quer a renúncia quer a aceitação podem ser parciais desde que a decisão seja divisível. Assim, se a parte dispositiva da sentença contiver decisões distintas desfavoráveis, (…)”.
Assim também Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes[5], ao referirem que “(…) a aceitação tácita tem de derivar da prática de qualquer facto “inequivocamente incompatível com a vontade recorrer (no CPC de 1939, a expressão equivalente era a de “prática, sem reserva alguma, de um facto incompatível com a vontade de recorrer”).
Postos estes breves considerandos, cremos não se poder considerar, respeitando opinião divergente, que o pedido de reforma da decisão corresponda a acto que de forma inequívoca seja incompatível com a vontade de recorrer.
Não há dúvida que cabendo recurso da decisão, como no caso sucedia, era nessa sede que se impunha alegar o erro de julgamento, como parecia ser o caso segundo a alegação vertida no requerimento apresentado pelo Autor.
Efectivamente, como emerge do artigo 616.º do CPCivil a reforma da sentença só pode ser requerida perante o tribunal que proferiu a decisão se dela não couber recurso quando, por manifesto lapso do juiz: tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos; constem do processo documentos ou outro meio de prova plena que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida. (cfr. nº 2 do citado normativo), ou seja, por interpretação à “contrário sensu”, cabendo recurso da decisão é aí que que a mesma deve ser impugnada com aqueles, ou outros, fundamentos, da mesma forma que também é na alegação de recurso que deve ser pedida a reforma da sentença quanto a custas e multa (cfr. nº 3 do mesmo inciso).
Mas o facto de caber recurso da decisão e mesmo assim a parte tenha solicitado ao julgador a sua reforma, isso não lhe tolhe o direito de vir, em acto posterior, interpor recurso da mesma.
É que perante a concreta actuação da parte (pedido de reforma) ela ainda conserva o direito de recorrer pois que esse acto não é incompatível com a vontade de recorrer, antes pelo contrário, ele revela que a parte não concorda com a decisão, tanto mais que sabe[6] que é quase certo ser indeferido o referido pedido de reforma, pois que ao caso cabia recurso.
Diferente poderia ser, por exemplo, se perante a decisão que julgou o tributal incompetente em razão da matéria, o Autor viesse aos autos solicitar, todos os documentos que acompanhavam a petição e respectiva procuração, dizendo que iria instaurar a acção no tribunal competente, ou mesmo se já a tivesse instaurado e, entretanto, nesse ínterim temporal, viesse a estes autos interpor recurso daquela decisão.
Nessas circunstâncias poder-se-ia afirmar que tais actos eram incompatíveis com a vontade de recorrer, o que não é o caso.
Aliás, na situação concreta para além do Autor ter intitulado o requerimento do pedido de rectificação (diga-se, reforma) de “URGENTE” o que demonstra que pretendia uma decisão rápida, naturalmente, por estar em curso o prazo de recurso e, portanto, ser seu propósito interpô-lo não sendo, claro está, deferido o pedido de reforma, o próprio tribunal no despacho que exarou datado de 16/02/2018 e em que indeferiu por impossibilidade legal o peticionado quanto a dar-se sem efeito a sentença proferida de forma imediata, na parte final do mesmo afirma: “Notifique a requerente pela forma mais expedita (artigo 172º, nº5, e nº6, do CPCivil), nomeadamente telefone/fax- atenta a urgência invocada e dado estarem em curso os prazos legais para eventual impugnação da sentença proferida, nomeadamente recurso ou outros incidentes, não sendo causa de suspensão do mesmo a dedução do requerimento que antecede (sem prejuízo da notificação nos termos habituais)”, ou seja, admitiu, que o solicitado pedido de reforma não era impeditivo da interposição do recurso.
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Como assim, entende-se não ter o Autor renunciado, de forma tácita, ao recurso, sendo pois o mesmo admissível.
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Como supra se referiu é apena uma a questão que importa apreciar e decidir:

a)- saber se o tribunal recorrido é, ou não, competente para a presente acção.

Importa, desde logo, começar por dizer que não se divisa em que meios probatórios o tribunal recorrido se estriba para dar como provados os pontos 2º) e 3º) da fundamentação factual supra descrita.
Efectivamente, em nenhures dos articulados se diz que existe qualquer processo de inventário pendente em algum Cartório Notarial, ou mesmo que antes da propositura desta acção já havia sido instaurado processo de inventário em Cartório Notarial tendo a Ré aí sido nomeada cabeça de casal.
Com efeito, o que o Autor afirma nos artigos 1º e 2º da petição inicial é que a Ré é cabeça de casal da herança aberta por óbito do seu pai e marido da Ré, ocorrido a 27 de Dezembro de 2010, nada mais que isso, não se dizendo que a referida Ré exerce tais funções em qualquer processo pendente a correr termos em Cartório Notarial.
Por seu turno no artigo 29º da contestação o que se faz é uma simples afirmação.
Com efeito o que aí se diz é que a presente acção não tem por objecto a partilha de qualquer bem, já que a mesma apenas pode ser concretizada através do processo de inventário, que corre os seus termos em Cartório Notarial, conforme Lei n.º 23/2013 de 05 de Março, ou seja, o que aí se afirma é que as acções para partilha dos bens correm termos em Cartório Notarial e já não em tribunal, mas não se diz que exista algum processo pendente e em qualquer Cartório para partilha dos bens do acervo hereditário deixado por óbito do pai do Autor e marido da Ré.
Idêntica afirmação é, aliás, feita pelo Autor no artigo 12º da resposta às excepções deduzidas pela Ré.
Como assim, não existe meio probatório constante dos autos que permita fazer a afirmação que o tribunal recorrido fez no despacho que lavrou, com data 16/02/2018, na sequência do pedido de reforma da decisão impetrado pelo Autor.
Se o tribunal recorrido tinha dúvidas devia, antes de decidir, ter solicitado às partes que identificassem o processo e juntassem aos autos a respectiva certidão da sua pendência, já que, só com tal certidão, é que podia dar como provados os pontos 2º) e 3º) da fundamentação factual.
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Diante do exposto elimina-se da fundamentação factual o ponto 3º), por não existir base probatória que o sustente, e altera-se a redacção dado ao nº 2 pela seguinte forma:
Na escritura de habilitação de herdeiros lavrada no dia seis de Janeiro de 2011 no Cartório Notarial do Porto situado na Rua ..., nº ...-.-sala a Ré declarou ser cabeça-de-casal na herança deixada por óbito do seu marido D..., cargo que se encontra, efectivamente, a exercer” (cfr. artigo 662.º, nº 1 do CPCivil).
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Perante a alteração da matéria factual nos termos sobreditos cumpre, então, equacionar e decidir se o tribunal recorrido é, ou não, competente em razão da matéria para a presente acção.
Determina o artigo 941.º do CPCivil sob a epígrafe “Objecto de acção” que: “a acção de prestação de contas pode ser proposta por quem tenha o direito de exigi-las, ou por quem tenha o dever de prestá-las e tem por objecto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se”.
Daí a regra de que quem está encarregado da administração de interesses alheios (ou alheios e simultaneamente próprios) está obrigado a prestar contas perante o titular desses interesses.
Como sublinha Alberto dos Reis[7], “pode formular-se este princípio geral: quem administra bens ou interesses alheios está obrigado a prestar contas da sua administração ao titular desses bens ou interesses”.
E a resposta à questão colocada terá de resultar do direito substantivo, não no direito processual, pois só depois de uma resposta afirmativa se colocará a questão de saber qual a forma processual adequada.[8]
Como se preceitua no artigo 2079.º do CCivil sob epígrafe “Cabeça de casal”:
“A administração da herança, até à sua liquidação e partilha, pertence ao cabeça de casal”.
Ora no âmbito do referido cargo-administração da herança-o cabeça de casal deve prestar contas anualmente (cfr. artigo 2093.º do CCivil).
Com emerge da petição inicial o Autor veio pedir a prestação de contas à Ré pelo exercício do referido cabecelato utilizando, para o efeito, o processo especial que vem regulado nos artigos 941.º e ss. do CPCivil.
E cremos que, salvo o devido respeito, bem.
Analisando.
Como se sabe o novo Regime Jurídico do Processo de Inventário vem regulado na Lei n.º 23/2013, de 5/03 que estatui no seu artigo 2.º nº 1 que: “O processo de inventário destina-se a pôr termo à comunhão hereditária ou, não carecendo de se realizar a partilha, a relacionar os bens que constituem objecto de sucessão e a servir de base à eventual liquidação da herança”.
O artigo 3.º, nº 1 do mesmo diploma preceitua sobe a epígrafe “Competência do cartório notarial e do tribunal que:–“Compete aos cartórios notariais sediados no município do lugar da abertura da sucessão efectuar o processamento dos actos e termos do processo de inventário e da habilitação de uma pessoa como sucessora por morte de outra” e nos termos do nº 7 que: “Compete ao tribunal da comarca do cartório notarial onde o processo foi apresentado praticar os actos que, nos termos da presente lei, sejam da competência do juiz”.
Por sua vez nos termos do artigo 16.º, nº 1 da referida Lei e sob a epígrafe “Remessa do processo para os meios comuns” estipula-se que: “O notário determina a suspensão da tramitação do processo sempre que, na pendência do inventário, se suscitem questões que, atenta a sua natureza ou a complexidade da matéria de facto e de direito, não devam ser decididas no processo de inventário, remetendo as partes para os meios judiciais comuns até que ocorra decisão definitiva, para o que identifica as questões controvertidas, justificando fundamentadamente a sua complexidade” e o nº 2 do mesmo preceito estabelece que: “O notário pode ainda ordenar suspensão do processo de inventário, designadamente quando estiver pendente causa prejudicial em que se debata alguma das questões a que se refere o número anterior, aplicando-se o disposto no n.º 6 do artigo 12.º” e o nº 3 do que: “A remessa para os meios judiciais comuns prevista no n.º 1 pode ter lugar a requerimento de qualquer interessado”.
Por outro lado, o artigo 45.º da mencionada Lei sob a epígrafe “Apresentação da conta consigna que:
“1- O cabeça de casal deve apresentar a conta do cabecelato, até ao 15.º dia que antecede a conferência preparatória, devidamente documentada, podendo qualquer interessado proceder, no prazo de cinco dias, à sua impugnação.
2- Compete ao notário decidir sobre a impugnação prevista no número anterior”.
Importa ainda chamar à colação o disposto no artigo 47.º do mesmo diploma que sob a epígrafe “Saneamento do processo e marcação da conferência preparatória” no seu nº 1 estatui: “Resolvidas as questões suscitadas que sejam susceptíveis de influir na partilha e determinados os bens a partilhar, o notário designa dia para a realização de conferência preparatória da conferência de interessados”.
Diante das citadas normas, dúvidas não existem, que foi propósito do legislador, por razões de eficiência, que tanto se impunham dada a morosidade especial que tradicionalmente afectava os processos de inventário, retirá-lo, na sua essência, da competência dos tribunais.
Não obstante, porventura ciente das questões de constitucionalidade que se adivinhavam, o processo de inventário não foi totalmente desjudicializado sendo, todavia, a divisão de competência entre o notário e o tribunal expressamente assumida (citado artigo 3.º da Lei 23/2013) tendo-se tornado a competência do tribunal quase residual.
Efectivamente, a intervenção do tribunal surge, essencialmente, ligada à decisão das questões mais complexas de facto e de direito, por iniciativa do notário ou a requerimento das partes, nos termos do artigo 16º da Lei 23/2013 acima transcrito.
Como se sabe a lei em causa entrou em vigor no primeiro dia útil de Setembro de 2013, não se aplicando aos processos de inventário pendentes nesta data–artigos 8.º e 7.º cita Lei.
Ora, na mesma data entrou em vigor o novo Código de Processo Civil em cujo artigo 947.º e sob a epígrafe “Prestação de contas por dependência de outra causa” se preceitua que: As contas a prestar por representantes legais de incapazes, pelo cabeça de casal e por administrador ou depositário judicialmente nomeados são prestadas por dependência do processo em que a nomeação haja sido feita”.
Como entender, então, a expressão “judicialmente nomeados” e “dependência do processo em que a nomeação haja sido feita”, no que toca ao cabeça de casal, se o legislador sabia que o processo em que o cabeça de casal era nomeado já não continha uma nomeação judicial?
Em nosso entender e, portanto, sob pena de pura incongruência, a referida menção justifica-se pela subsistência dos processos de inventário judicial pendentes: neles podia não ter surgido ainda, à data de entrada em vigor do novo regime de inventário notarial, a prestação de contas do cabeça de casal, e a disposição continuava pois a interessar.
Mas será que da referida norma mesmo no caso de inventário notarial, a prestação de contas será feita necessariamente por dependência deste processo?
A prestação de contas está directamente regulada pelo artigo 45.º supra transcrito do novo regime, e dele resulta directamente que a mesma ocorre no processo de inventário notarial e que a competência para decidir as impugnações dessas contas é do notário.
Mas será que é sempre assim?
Cremos que, desde que esteja a correr o inventário notarial, a prestação voluntária de contas pelo cabeça em cumprimento do dever que lhe é imposto no citado artigo 45.º da Lei 23/2013, ocorrerá sempre no inventário notarial e a competência para a decisão da impugnação dessas contas é do notário.
E se o cabeça de casal não cumprir, não apresentar voluntariamente a conta do cabecelato, incumprirá as suas funções e pode ser removido–artigo 22.º da Lei 23/2013, sendo que, por força da aplicação subsidiária do processo civil que resulta do artigo 82.º do mesmo diploma, pode o interessado prejudicado, naturalmente, requerer a prestação de contas nos termos dos artigos 941.º e seguintes do CPCivil.
Como assim, deve, então, ler-se com as devidas adaptações o artigo 947.º do mesmo diploma, ou seja, concluir na mesma pela dependência da prestação de contas ao processo pendente de inventário, e pela competência do notário para a apreciar, nos termos do artigo 45.º da Lei 23/2013, pois que o artigo citado artigo 947.º se limita a estabelecer uma regra especial de competência por conexão.
E se as contas a prestar pelo cabeça de casal já eram devidas anualmente e não foram prestadas até à interposição do inventário notarial?
Será que para estas se usa a prestação de contas regulada no artigo 941.º e ss. do CPCivil?
Vejamos.
O cabeça de casal está obrigado a prestar as contas no inventário notarial até ao 15 dia antecedente à conferência preparatória.
Portanto, no que toca a uma prestação voluntária de contas, estando pendente inventário notarial, mesmo que as contas de anos anteriores não tenham sido prestadas, não pode dizer-se que o cabeça de casal deva prestar contas voluntariamente através duma acção especial de prestação de contas a intentar em tribunal, mas sim, apenas, que ele tem de prestar contas do cabecelato no inventário notarial, e essas contas são quaisquer contas que estiverem por prestar.
Não há, por conseguinte, à partida, um tipo de contas que deva ser sujeito a acção especial de prestação de contas e outras que devam ser sujeitas ao procedimento do artigo 45.º da Lei 23/2013.
A solução deverá, por isso, ser esta: estando pendente o inventário na altura em que o cabeça de casal as presta ou o interessado na prestação de contas as pede, a competência é notarial; se porém o inventário ainda não estiver pendente, o regime jurídico processual das contas anualmente a prestar só pode ser o da acção especial de prestação de contas previsto nos artigos 941.º e ss. do CPCivil.
Significa, pois, que o citado preceito (artigo 45.º da Lei 23/2013) não altera o dever de prestação de contas anual do cabeça de casal: o que sucede é que não há um momento pré-definido legalmente para a instauração de inventário e, por isso, pode ocorrer que o cabeça de casal tenha de prestar contas vários anos, anualmente, antes de chegar o momento a que se refere o artigo 45.º da Lei 23/2013, isto é, antes de se iniciar o processo de inventário notarial, caso em que o fará, como dissemos, na acção especial judicial de prestação de contas.
É certo que a finalidade do preceito do artigo 45.º da Lei 23/2013 é a da preparação da conferência, mas daí nada resulta em termos de se autonomizar a prestação da conta do cabecelato das demais contas que deviam ser prestadas até ao início do inventário porque, em todo o caso, a prestação de contas sempre interessa à definição do acervo patrimonial que integra a herança e que será partilhado, objectivo que a conferência preparatória intenta facilitar.
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Isto dito, revertendo ao caso concreto, está adquirido nos autos que no dia seis de Janeiro de 2011 no Cartório Notarial do Porto situado na Rua ..., nº ...-.-e por ocasião da outorga da escritura da habilitação de herdeiros a Ré declarou ser cabeça-de-casal na herança deixada por óbito do seu marido D..., cargo que se encontra, efectivamente, a exercer (cfr. ponto 2. da fundamentação factual).
Importa, desde logo, sopesar que o desempenho das funções de cabeça de casal não depende da nomeação em inventário.
Como o adverte Lopes Cardoso[9] não é verdade que a “entidade” cabeça de casal só tenha existência dentro do processo de inventário depois de aí reconhecida por despacho transitado, antes se devendo considerar que o cabeça de casal deve entrar de facto no exercício das funções de administração que lhe competem logo que se dê a abertura da herança ou, no caso de património conjugal, logo que ocorra o divórcio ou a separação judicial de bens.”[10]
Portanto, a circunstância de não existir qualquer decisão formal de nomeação de cabeça de casal não impede que ele detenha essa qualidade e, sobretudo, que exerça as funções correspondentes.[11]
No caso em apreço e como decorre do facto supra transcrito, desde a abertura da sucessão por morte do seu marido a Ré tem estado a exercer de facto as funções de cabeça de casal.
Por outro lado também está adquirido nos autos que não existe ou sequer que se tenha iniciado o inventário notarial.
Nessa medida, a prestação de contas por parte do cabeça de casal de facto seguirá os trâmites previstos no artigo 941.º e seguintes do CPCivil.
Como assim, e por cada ano em que as contas devam ser prestadas o autor, interessado nelas, pode recorrer, como recorreu, à acção especial prestação de contas a que se refere o normativo supra citado.[12]
A partir do momento em que o inventário notarial esteja pendente e se estiver, as contas que não tiverem sido prestada voluntariamente e as que não tiverem sido pedidas até então, entrarão na conta de cabecelato referida no artigo 45.º da Lei 23/2013.
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Diante do exposto preceitua o artigo 211.º, nº 1 da C.R.Portuguesa que, “Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas as outras ordens judiciais”.
O artigo 64.º do CPCivil determina que “São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.
O carácter residual da competência dos tribunais comuns também encontra expressão no artigo 40.º, nº 1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei nº 62/2013, de 26/08 quando estabelece: “são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.
Como é consabido, a competência dos tribunais, na ordem jurídica interna, reparte-se pelos tribunais judiciais segundo a matéria, o valor, a hierarquia e o território, e fixa-se no momento em que a acção se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei (cfr. artigos 37.º e 38.º, ambos da Lei n.º 62/2013 e artigo 60.º, do CPCivil).
Por outro lado, como é entendimento uniforme da “melhor” doutrina[13] e jurisprudência, é em face do pedido formulado pelo autor e pelos fundamentos (causa petendi) em que o mesmo se apoia e tal como a relação jurídica é pelo autor delineada na petição inicial (quid disputatum ou quid dedidendum), que cabe aferir da competência do tribunal para conhecer determinada acção sendo, para tanto, irrelevante o juízo de prognose que, hipoteticamente, se pretendesse fazer relativamente à viabilidade da acção, por se tratar de questão atinente com o mérito da pretensão.
Nestes termos, face à pretensão do Autor-prestação de contas pela Ré-e não estando, nem tendo estado, pendente qualquer processo de inventário no Cartório Notarial, a competência para apreciar aquele pedido compete aos tribunais judiciais e, no caso concreto, ao tribunal recorrido por ser o tribunal do domicílio da Ré (cfr. artigo 80.º, nº 1 do CPCivil).
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Procedem, desta forma as conclusões formuladas pelo Autor recorrente e, com elas, o respectivo recurso.
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IV-DECISÃO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente por provada e, consequentemente, na revogação da decisão, considera-se ser o tribunal recorrido o competente para apreciar o pedido da prestação de contas formulados pelo Autor, devendo, assim, os autos seguir a sua tramitação normal se outra causa a isso não obstar.
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Custas da apelação pela Ré apelante (artigo 527.º, nº 1 do CPCivil).
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Porto, 30 de Maio de 2018.
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais (dispensei o visto)
Jorge Seabra (dispensei o visto)
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[1] Não obstante no requerimento se faça alusão ao artigo 614.º do CPCivil.
[2] Código de Processo Civil Anotado, Volume V, Reimpressão, Coimbra Editora, 1981, página 130.
[3] Citado pelo Conselheiro Fernando Amâncio Ferreira, in Manual dos Recurso em Processo Civil, Almedina, 8.ª edição, 2008, pág. 48.
[4] In Manual dos Recursos em Processo Civil, 6ª Edição, Almedina, págs. 129/130.
[5] In Código de Processo Civil Anotado, Volume 3º, Coimbra Editora, págs. 24 e 25.
[6] Entenda-se, o respectivo mandatário, sendo como era o patrocínio obrigatório.
[7] In “Processos Especiais”, Vol. I, pág. 303.
[8] Alberto dos Reis, ob. citada, pág. 305.
[9] In Partilhas Judiciais», 3ª Ed. Vol. III, pág. 56.
[10] Neste sentido se conclui na RLJ nº 2992, p 294 e ss. onde se diz: “Há que admitir duas espécies distintas: a) O cabeça de casal de direito; b) O cabeça de casal de facto. A primeira só existe em consequência de inventário. Pressupõe uma investidura judicial: nomeação pelo juiz e prestação de juramento (CPC art. 1369º) A segunda não depende de investidura judicial; existe em consequência de mero facto: a pessoa a quem caberia o papel de cabeça de casal, se houvesse inventário, encontra-se realmente na posse e administração dos bens da herança por assentimento dos herdeiros e exerce em relação a esses bens, os poderes que os arts 2082º a 2086º do CC conferem ao genuíno cabeça de casal-ao cabeça de casal nomeado pelo juiz em inventário”.
[11] Neste sentido também Luís Filipe Pires de Sousa, “Ações Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas” Coimbra Editora, 2011, pág. 134.
[12] Razão pela qual não se entende o vertido pela Ré nas sua alegações recursivas de que o propósito daquele é proceder à partilha dos bens que constituem o acervo patrimonial do falecido Marco António Leite de Faria (cfr. artigo 27º das referidas alegações). Aliás, que assim é, basta ler a petição inicial e o pedido formulado.
[13] Cfr. Manuel A. Domingues de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, pág. 91, e Artur Anselmo de Castro, in Lições de Processo Civil, II, 1970, 379.