Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
483/16.7T8SJM.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CARLOS QUERIDO
Descritores: CONDOMÍNIO
OBRAS NO IMOVEL
RESPONSABILIDADE DO CONDOMÍNIO
BOA FÉ
Nº do Documento: RP20210126483/16.7T8SJM.P1
Data do Acordão: 01/26/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Recaindo sobre cada um dos condóminos a obrigação de pagamento, na proporção do valor da respetiva fração ou frações, das despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns do edifício (art.º 1423.º, n.º 1 do CC), bem como da contribuição para o ‘fundo comum de reserva’ para custear as despesas de conservação do edifício (art.º 4.º do DL n.º 268/94, de 25.10), provando-se que a autora se recusou a pagar as aludidas quantias e que as obras de reparação aprovadas pelas assembleia de condóminos só não foram executadas devido à falta de dinheiro para o efeito, deverá concluir-se que a mesma age com abuso do direito ao intentar ação de indemnização contra o Condomínio com fundamento em alegados danos causados pela não realização das obras.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 483/16.7T8SJM.P1
Sumário do acórdão:
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I. Relatório
Em 26.07.2016, B… intentou na Instância Local de S. João Madeira, do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra o Condomínio do Edifício Constituído em Regime de Propriedade Horizontal, pedindo a condenação do réu: a realizar, em 30 dias, todos os trabalhos necessários à eliminação das infiltrações de que padece a fração da autora, causadoras dos danos descritos na petição; a pagar à autora a quantia que se vier a liquidar em momento oportuno, necessária à reparação de todos os danos provocados na fração em causa, emergentes das infiltrações ocorridas, nomeadamente nos revestimentos das paredes, tetos, pinturas, madeiras e pisos, por forma a restituir à fração as condições existentes antes da ocorrência dos danos que alega; a pagar à autora a quantia que se vier a liquidar em momento oportuno, a título de danos morais, pelo sofrimento da privação da sua fração em condições de bem estar e normal salubridade e conforto; e no pagamento em sanção pecuniária compulsória, no montante de 50,00€, após o trânsito em julgado da sentença que a decretar, por cada dia de atraso na execução e conclusão dos trabalhos necessários à eliminação das infiltrações de que padece a fração em causa.
Como fundamento da sua pretensão, alegou a autora em síntese: ela e o seu ex-cônjuge são proprietários da fração que desde o Inverno de 2013 sofre de permanentes infiltrações de águas e humidades provindas do exterior e com origem nas águas das chuvas; tais infiltrações causaram diversos danos, mantendo-se a situação, desde então até ao presente, tendo-se agravado, em especial no Inverno de 2015/2016; apesar das suas reiteradas instâncias, desde o ano de 2013, o réu nada fez.
Juntou vinte e dois documentos (entre os quais cópia da certidão da Conservatória do Registo Predial), arrolou testemunhas e requereu também prova por inspeção ao local e realização de perícia, indicando já os respetivos quesitos.
Citado, o réu reconheceu alguns dos factos, impugnou outros por desconhecimento ou por não corresponderem à verdade e excecionou a ilegitimidade ativa, considerando que não obstante a fração estar na posse da autora, constitui propriedade da autora e do ex-cônjuge, não tendo o casal não procedido ainda à partilha dos bens comuns do casal.
A autora em articulado superveniente deduziu incidente de intervenção principal provocada de C…, alegou para tanto serem, ela e o chamado, os donos e legítimos proprietários da fração em causa nos autos.
Por despacho de 30.06.2017 foi admitido o chamamento requerido pela autora.
Realizou-se audiência prévia em 13.12.2018, na qual: foi atribuída à ação o valor de €25.000,00; foram declarados verificados todos os pressupostos formais que permitem o conhecimento do mérito da causa; foi definido o objeto do litígio e enunciados os temas de prova.
Em documento junto aos autos na audiência prévia, veio a autora informar que a fração autónoma em causa nos autos foi entretanto adjudicada ao seu ex-marido, interveniente, C…, pedindo, em consequência, que seja declarada extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, relativamente aos seguintes pedidos:
- de condenação do réu: a realizar, em 30 dias, todos os trabalhos necessários à eliminação das infiltrações de que padece a fração da autora, causadoras dos danos descritos na petição;
- de pagamento à autora da quantia que se vier a liquidar em momento oportuno, necessária à reparação de todos os danos provocados na fração em causa, emergentes das infiltrações ocorridas, nomeadamente nos revestimentos das paredes, tetos, pinturas, madeiras e pisos, por forma a restituir à fração as condições existentes antes da ocorrência dos danos que alega;
- de pagamento à autora da sanção pecuniária compulsória, no montante de 50,00€, após o trânsito em julgado da sentença que a decretar, por cada dia de atraso na execução e conclusão dos trabalhos necessários à eliminação das infiltrações de que padece a fração em causa.
Por despacho de 12.04.2019 foi declarada a extinção da instância por inutilidade da lide no que se reporta aos pedidos referidos, fundados na propriedade da fração.
No mesmo despacho foi determinada a notificação do interveniente, nos seguintes termos:
«Notifique o interveniente novamente para se pronunciar, se tem interesse no prosseguimento dos autos quanto a esses pedidos de condenação do Réu a:
a) Realizar, em 30 dias, todos os trabalhos necessários à eliminação das infiltrações de que padece a fracção, causadoras dos danos aqui descritos.
b) A pagar a quantia que se vier a liquidar em momento oportuno, necessária à reparação de todos os danos provocados na fracção em causa, emergentes das infiltrações ocorridas, nomeadamente nos revestimentos das paredes, tectos, pinturas, madeiras e pisos, por forma a restituir à fracção as condições existentes antes da ocorrência dos danos aqui alegados.
Em caso afirmativo, terá o interveniente de manifestar expressamente, através de requerimento subscrito por mandatário forense juntando procuração forense em 20 (vinte) dias, atendendo que face ao valor da acção, sendo de patrocínio obrigatório.
Caso nada diga, adverte-se que os autos serão extintos quanto a si (interveniente) sendo que os pedidos de condenação de indemnização são relativos unicamente à Autora.»
Perante o silêncio do interveniente, foi proferido em 24.05.2019 o seguinte despacho:
«Face à falta de impulso processual do interveniente e ao motivo da já declarada extinção dos autos quanto aos dois pedidos e que o último também se refere à reparação do imóvel que já não pertence à Autora, prosseguem os autos apenas para apreciação do pedido de indemnização formulados pela Autora.
Fixa-se o seguinte objecto do litígio:
Apreciação dos pressupostos de facto e de direito de condenação da Ré a pagar à Autora a quantia que se vier a liquidar em momento oportuno, a título de danos morais, pelo sofrimento da privação da sua fracção em condições de bem-estar e normal salubridade e conforto.».
Procedeu-se à realização da audiência de julgamento, em duas sessões (6.07.2020 e 9.07.2020), após o que, em 30.09.2020 foi proferida sentença na qual se julgou a ação totalmente improcedente.
Não se conformou a autora e interpôs recurso de apelação, apresentando alegações, findas as quais formula as seguintes conclusões:
1º Constitui fundamento do presente recurso a total discordância da Recorrente perante a subsunção jurídica efectuada pelo Tribunal a quo face aos factos tidos por provados, porquanto, tendo em conta o pedaço da vida apurado, e tido por assente, e o figurino jurídico aplicável, a decisão a proferir apenas poderia ter conduzido à condenação do Réu no pedido formulado e ainda em apreciação.
2º Visando o presente recurso somente matéria de direito, tendo em conta a matéria de facto dada como assente pelo Tribunal a quo.
3º Pretendendo a Recorrente que, perante os factos dados como provados, o Tribunal ad quem revogue a decisão sob recurso e a substitua por outra que condene o Réu Condomínio no peticionado, embora circunscrito à matéria e pedido objecto de julgamento e decisão por parte do Tribunal Recorrido.
4º Mais concretamente, no pagamento de quantia a liquidar em momento oportuno, a título de danos morais, pelo sofrimento da privação da sua fracção em condições de bem-estar e normal salubridade e conforto.
5º Não constando da factualidade tida por assente qualquer facto ou circunstância impeditivos da procedência do pedido em apreço - no pagamento de quantia a liquidar em momento oportuno, a título de danos morais, pelo sofrimento da privação da fracção em condições de bem-estar e normal salubridade e conforto.
6º Pelo que não poderia o Tribunal a quo ter absolvido o Réu Condomínio, fundamentando a decisão em factos, não tidos por provados, nomeadamente de que a extensão de tais danos decorreu, também, de sinistros ocorridos em 2016 e 2018 na fracção da Autora.
7º Tanto mais que tais pretensos sinistros, não levados aos factos provados - rotura na tubagem de abastecimento de água na banca da cozinha - apenas terão provocado danos patrimoniais ao nível do piso da habitação e nos móveis que fazem parte do recheio da fracção da Autora, conforme consta da motivação da sentença, cfr. motivação da decisão recorrida..
8º E desde 2013 que a Autora vinha comunicando ao Réu Condomínio a existência de infiltrações na sua fracção, provindas das fachadas do edifício, soleiras e piso do terraço, cfr. arts. 3º e 20º dos factos provados.
9º Sendo que o que está peticionado e foi objecto de julgamento são os danos morais sofridos pela Autora decorrentes da privação da sua fracção em condições de bem estar, normal salubridade e conforto, emergentes da entrada de águas na fracção em apreço, através de partes comuns do edifício, nomeadamente pela fachada, soleiras e piso do terraço, desde 2013.
10º Pelo que se impunha, desde logo, que o Tribunal a quo decidisse de forma diferente.
11º Ora, dispõe o art. 1420º, n.º 1 do CC que “Cada condómino é proprietário exclusivo da fracção que lhe pertence e comproprietário das partes comuns do edifício.”
12º Prevendo o art. 1421º, n.º 1, a) e b) do mesmo diploma legal que são partes comuns o solo, bem como os alicerces, colunas, pilares, paredes mestras e todas as partes restantes que constituem a estrutura do prédio, assim como o telhado ou os terraços de cobertura, ainda que destinados ao uso de qualquer fracção.
13º O art. 1424º, n.º 1 do CC estabelece que “as despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns do edifício e ao pagamento de serviços de interesse comum são pagas pelos condóminos em proporção do valor das suas fracções.”
14º E o art. 1430º, n.º 1 do CC prescreve que “A administração das partes comuns do edifício compete à assembleia de condóminos e a um administrador”.
15º Competindo ao administrador, para além do mais, realizar os actos conservatórios dos direitos relativos aos bens comuns e executar as deliberações da assembleia, nos termos do art. 1436º, als. f) e h) do mesmo diploma legal.
16º A factualidade dada como provada conjugada com as normas legais supra citadas, nomeadamente os reiterados alertas da Autora perante o Réu para a ocorrência das infiltrações devido ao mau estado das fachadas do edifício, soleiras e piso do terraço, que constituem zonas comuns, e que permitiam a entrada de águas pluviais, não poderia conduzir a outra conclusão que não fosse a responsabilidade do condomínio pelos danos causados na fracção da Autora que impediram o seu normal uso e fruição.
17º O que, manifestamente, não foi feito.
18º Padecendo a fracção da A. de danos provocados por infiltrações através de alçados, paredes, tectos, soleiras, parapeitos, chão e fissuras, que afectaram durante, pelo menos, 3 anos, a quase totalidade dos compartimentos da fracção em causa, tornando estes, na maior parte dos dias do ano, parcialmente molhados ou humedecidos, com permanentes humidades generalizadas sobretudo nos dias chuvosos ou de frio, cfr. pontos 16º e 19º dos factos provados.
19º Ignorando a sentença sob censura que o Réu não realizou quaisquer trabalhos ou obras de reparação que obstassem à reiteração dos danos na fracção da Autora, apesar de instado para a necessidade dos mesmos, cfr. ponto 20º dos factos provados.
20º Pese embora as comunicações da A., desde 2013, relativamente às infiltrações então existentes, cfr. ponto 20º dos factos provados.
21º Sem esquecer que a falta de conservação/reparação das partes comuns do edifício, que permitiu a entrada de águas na fracção da A., conduziu ao surgimento de bolores, humidade, escorrências, gotejamentos e acumulação de água no chão afectado e nas respectivas paredes e tectos, afectando a quase totalidade dos compartimentos da fracção, cfr. pontos 17º e 18º dos factos provados.
22º E que tais omissões de conservação/reparação tiveram consequências na fruição do espaço, na qualidade de vida, no conforto do lar, na salubridade e, de sobremaneira, no bem-estar da Autora.
23º Pelo que evidenciada ficou a existência de sofrimento e privação da A. a dispor da sua habitação em condições de normal dignidade, conforto e salubridade.
24º Consequências estas que, pela sua notoriedade e evidente adequação a causar sofrimento psíquico e moral, nem de alegação careciam.
25º Sendo certo que, a douta decisão recorrida não deixou de levar aos pontos da matéria de facto provados as concretas circunstâncias em que a A. teve de suportar e suportou e tudo quanto a impediu de exercer plenamente o seu direito de uso, fruição e gozo da sua fracção habitacional.
26ºAcresce que, e sem prejuízo de tudo quanto alegado foi, o Tribunal a quo ignorou o facto dado por provado de as infiltrações em causa remontarem a 2013, cfr. ponto 3º dos factos provados.
27º Não constando da decisão recorrida outra causa para a existência de águas na fracção da A. (pelo menos de 2013 a 2016) que não as alegadas por esta.
28º Pelo que, tudo conjugado, tendo a Autora logrado provar tudo quanto consta da factualidade tida por assente [incluindo os danos verificados na sua fracção, respectiva distensão temporal e origem e infiltrações provindas das partes comuns do prédio (fachadas do edifício, soleiras e piso do terraço)], a acção teria que ser julgada procedente.
29º O que não sucedeu.
30º E merecendo tais danos morais (pelo sofrimento da privação da fracção em condições de bem-estar e normal salubridade e conforto), pela sua gravidade, a tutela do direito, deveria o Tribunal a quo, nos termos do disposto no art. 496º, n.º 1 do CC, ter condenado o Réu condomínio, a título de danos não patrimoniais, em montante indemnizatório a fixar.
31º Acresce que, importa ter presente que recai sobre o Condomínio o dever de promover a vigilância e conservação das partes comuns do edifício, nos termos do disposto no art. 1424º, n.º 1 do CC.
32º O que este não fez, como se pode observar pela factualidade dado como provada.
33º Pelo que é responsável pela reparação de todos os danos causados pela omissão da sua conduta.
34º Emergindo a responsabilidade pela violação dos assinalados deveres do disposto no art. 493º, n.º 1 do Código Civil, que estabelece uma presunção de culpa. Neste sentido, o Ac. Rel. de C., de 18-03-2014, proc. n.º 1566/11.5TBVIS.C1, disponível em www.dgsi.pt
35º Entendimento sufragado pelo STJ, que em acórdão de 14-03-2019, proc. n.º 2446/15.0T8BRG.G2.S1, que em recurso interposto quanto a questão semelhante refere que “Convocando o regime do nº 1 do art. 493º do CC – e independentemente do entendimento quanto ao âmbito da presunção nele consagrada – constata-se que a tarefa do julgador se encontra simplificada pelo facto de, tendo sido provado que o réu condomínio não levou a cabo obras de conservação ou reparação da fachada em causa, a ilicitude da conduta se encontrar efectivamente provada, sendo a culpa de presumir, salvo se o réu tivesse feito prova de que “nenhuma culpa houve da sua parte” ou de que “os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua”, o que não sucedeu”.
36º Pelo que, atenta a matéria de facto tida por assente, competia ao julgador lançar mão da presunção do art. n.º 493º, n.º 1 do CC.
37º O que o Tribunal a quo também não fez.
38º Devendo ter-se presente que o Réu Condomínio não logrou provar que não houve culpa da sua parte ou de que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua.
39º Pelos motivos supra expostos, a sentença sob censura não fez uma correcta interpretação e aplicação das regras jurídicas pertinentes e aplicáveis ao caso em apreço.
40º Tendo violado, assim, o disposto nos artigos 1305º, 1421º, n.º 1, als. a) e b), 1424º, n.º 1, 1430º, n.º 1 e 1436º, als. f) e h), 483º, n.º 1, 486º, 496º, n.º 1 e 493º, n.º 1, todos do Código Civil.
41º Deveria o Tribunal a quo ter interpretado e aplicado os normativos mencionados no artigo antecedente concluindo pela responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos do Réu Condomínio, nos termos supra pugnados, o que não fez.
Termos em que deve o presente recurso ser julgado totalmente procedente e, em consequência, revogar-se a sentença sob censura, substituindo-a por outra que condene o Réu Condomínio a pagar à Autora quantia a liquidar em momento oportuno, a título de danos morais, pelo sofrimento da privação da sua fracção em condições de bem-estar e normal salubridade e conforto.
Assim se decidindo, se fará a costumada JUSTIÇA!
Não foi apresentada resposta às alegações de recurso.
II. Do mérito do recurso
1. Definição do objeto do recurso
O objeto do recurso delimitado pelo recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 635.º, n.º 3 e 4 e 639.º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil), salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 3.º, n.º 3, do diploma legal citado), consubstancia-se na averiguação sobre a verificação dos pressupostos da obrigação de indemnização por danos não patrimoniais.
2. Fundamentos de facto
Está provada a seguinte factualidade relevante:
1º- A Autora e seu ex-cônjuge, C…, foram donos e legítimos proprietários de uma fração autónoma, designada pela letra “E”, destinada a habitação, correspondente a um ..º andar direito do n.º .., de um Edifício constituído em Regime de Propriedade Horizontal, sito à Rua…, n.º .., .., .., .. e .., inscrita na matriz predial urbana sob o artigo 5227º-E, da freguesia…, concelho de S. João da Madeira, descrita na Conservatória do Registo Predial de S. João da Madeira sob o n.º 3174/19960311-E e aí inscrita a favor da Autora e seu exmarido.
2º- Tal fração é composta por sala, 3 quartos, 2 WC´s, hall, despensa, cozinha, varanda, lavandaria, terraço com cerca de 30 m2, lugar de aparcamento e arrecadação na cave.
3º Desde o Inverno do ano de 2013, que a fração da Autora e de seu ex-cônjuge sofre de permanentes infiltrações de águas e humidades, provindas do exterior e com origem nas águas das chuvas.
4º As quais, penetrando no interior da fração em causa, através dos alçados, paredes, tetos, parapeitos, soleiras, chão e fissuras, vêm causando, no interior da fração em causa, gotejamentos, escorrências, humidades, bolores, descoloração das pinturas de paredes e tetos, levantamento de revestimentos, de caixilharias em madeira e apainelados, com escurecimento destes, sinais de apodrecimento e alteração da cor e textura, com alteração ainda na estética e na aparência da tijoleira de revestimento do terraço ao nível das juntas desta.
5º Situação que se mantém desde então e até ao presente, tendo-se agravado, em especial, no inverno de 2015/2016.
6º Tais infiltrações causaram já os seguintes danos:
7º Ao nível da sala de jantar/estar, voltada para nascente e para o terraço de uso exclusivo da fração:
- Dilatação e levantamento do revestimento do chão, que é em tacos de madeira, numa extensão de 10 m2.
- Infiltrações ao nível da parede voltada para nascente, com deterioração das massas, com perda da consistência e solidez destas e descoloração da pintura, cfr. doc.5.
- Infiltrações ao nível dos apainelados das janelas, com levantamento das madeiras de revestimento e alteração da sua coloração.
8º Ao nível do quarto com 15,41 m2 (hóspedes) voltado para poente:
- Infiltrações nas paredes voltadas a norte, poente e sul, com deterioração das massas de revestimento, alteração da sua textura e aparência, perda de solidez das mesmas e descoloração da pintura.
- Infiltrações ao nível dos apainelados da janela, com alteração da coloração das madeiras.
9º Ao nível do quarto com 16,80 m2 (miúdos), voltado a poente:
- Infiltrações nas paredes voltadas a poente e sul, com deterioração das massas de revestimentos, alteração da sua textura e aparência, perda de solidez das mesmas e descoloração da pintura.
- Infiltrações ao nível dos apainelados da janelas, com levantamento das madeiras de revestimento e alteração da sua coloração.
10º Ao nível da varanda contígua ao quarto de casal e privativa deste:
- Infiltrações ao nível do tecto, com deterioração das massas, com perda da consistência e solidez destas e descoloração da pintura.
11º Ao nível do WC privativo do quarto de casal:
- Infiltrações na parede voltada a poente.
- Infiltrações ao nível dos apainelados da janelas, com levantamento das madeiras de revestimento e alteração da sua coloração.
12º Ao nível da lavandaria voltada a nascente:
- Infiltrações de água no teto, com deterioração das massas de revestimentos, alteração da sua textura e aparência, perda de solidez das mesmas e descoloração da pintura.
13º Ao nível da placa de cobertura parcial do terraço:
- Infiltrações de água, com deterioração das massas de revestimentos, alteração da sua textura e aparência, perda de solidez das mesmas e descoloração da pintura.
14º Ao nível do revestimento em tijoleira do terraço de cobertura, voltado a nascente:
- Infiltrações de águas e humidades nas juntas das tijoleiras, com alteração da aparência estética do piso, por ocorrência de manchas ao longo das respectivas juntas.
15º Ao nível do alçado voltado a norte imediatamente por cima do terraço de cobertura:
- Infiltrações de água, com deterioração das massas de revestimentos, alteração da sua textura e aparência, perda de solidez das mesmas e descoloração da pintura.
16º Tais infiltrações, nomeadamente as existentes ao nível das paredes, tectos, revestimentos em madeira e piso, têm origem na infiltração de águas pluviais através da fachada soleiras do edifício e no piso que reveste o terraço de cobertura e que serve exclusivamente a fração em causa.
17º As infiltrações ao nível das paredes, tetos, revestimentos e piso do interior da fração da Autora e de seu ex-cônjuge, faz com que os compartimentos afetados estejam, nos dias de chuva e nas 3/4 semanas subsequentes à ocorrência destas, permanentemente húmidos, molhados, com formação de bolores, a par de escorrências, gotejamentos e acumulação de águas no chão afetado e nas respetivas paredes e tetos.
18º pela sua intensidade, extensão e distensão temporal, fazem com que a fração atentam contra o seu bem estar e grau de conforte que o lar lhes deveria proporcionar.
19º as consequências das infiltrações em causa afetam, desde há pelo menos 3 anos a esta data, a quase totalidade dos compartimentos da fração em causa, tornando estes, na maior parte dos dias do ano, parcialmente molhados ou humedecidos, com permanente, humidades generalizadas sobretudo nos dias chuvosos ou de frio.
20º A Autora fez reiteradas instâncias desde o ano de 2013, no sentido de alertar o Réu para a ocorrência das infiltrações e necessidade de reparação dos danos daí emergentes e supra descritos,
21º devido ao mau estado das fachadas do edifício, soleiras e piso do terraço, zonas comuns, que permitem a entrada de águas pluviais, a
22º Desde há vários anos que a autora ou o seu ex-cônjuge, enquanto titulares da fração designada pela letra “E” que não participam nas assembleias de condóminos,
23º Nem se fazem representar, impedindo dessa forma a interação necessária com os restantes condóminos, por forma a permitir resolver os problemas do prédio, quer afetem a sua fração ou não.
24º O Condomínio R. teve necessidade de recorrer à via judicial, e intentar a competente ação executiva contra a autora e seu ex-cônjuge, para obter a cobrança coerciva dos valores em débito.
25º Tal, ação foi intentada em 20/09/2014, para cobrança dos valores em débito a título de quotas e obras aprovadas em assembleia de condóminos, e correu termos pela Comarca de Aveiro – Instância Central de Oliveira de Azeméis, 3ª Secção de Execução – J1, com o nº 206/14.5 T8OAZ.
26º. O referido processo só foi declarado extinto em 03/05/2016, após cobrança dos valores em débito.
27º Há obras já aprovadas em assembleia, que não foram executadas por falta de dinheiro, porque os condóminos não pagam atempadamente a sua quota parte.
Factos não provados
Não se provou:
1º- que a fração tivesse cheiro a mofo, que deterioram os bens e haveres ali existentes, dificultando a permanência das pessoas no interior dos mesmos, tal é o cheiro que ali se instala
2º- que a Ré nada fez até ao presente no sentido da conservação das partes comuns e eliminação dos danos sofridos na respetiva fração.
3º- que a Administração do Condomínio, desde pelo menos Outubro de 2012 ali vem exercendo tais funções, não executou ou mandou executar quaisquer trabalhos ou obras adequados a colocar termo às ditas infiltrações, gotejamentos e escorrências e à eliminação dos danos decorrentes das mesmas.
4º- que o prazo de 30 dias é suficiente à realização de todos os trabalhos necessários adequados à eliminação das infiltrações aqui alegadas.
3. Fundamentos de direito
Consta da fundamentação jurídica da sentença:
«[…] Aliás, um tal princípio decorre do preceituado no art. 1411º, relativo directamente à compropriedade mas aqui aplicável no que concerne às partes comuns, o qual estabelece que os comproprietários devem contribuir, na proporção das respectivas quotas, [no caso da propriedade horizontal, em função do valor relativo das suas fracções no valor do conjunto do edifício], para as despesas necessárias à conservação ou fruição da coisa comum.
Embora a lei refira que, tratando-se de partes comuns do prédio que sirvam exclusivamente algum dos condóminos, essas despesas de conservação ficam a cargo dos que delas se servem, esse preceito tem de ser devidamente interpretado, no sentido de que apenas é aplicável na medida em que essas despesas se relacionem com essa afetação exclusiva.
O art.º 4.º do Decreto-Lei n.º 268/94, de 25 de Outubro, impõe a constituição de um Fundo Comum de Reserva destinado a solver as despesas de conservação do prédio, vem facilitar a realização dessas obras, sobretudo quando de carácter urgente, e permitir o seu rápido pagamento, sem necessidade de promover ad hoc as correspondentes prestações de cada condómino.
Ora, não obstante as delongas desde a primeira comunicação, o que é certo é que a administração esteve actuante, e os condóminos expressaram vontade colectiva em proceder a obras de conservação e a não resolução do problema na fachada explica-se por não haver deliberação para intervenção nessa área.
Peticiona a Autora o pagamento de uma quantia de indemnização pelos danos não patrimoniais.
[…]
Segundo percebemos a causa da insatisfação da Autora:
- a actuação dos condóminos de falta de aprovação das obras,
- não poder fruir da causa, porque não fazem obras no interior enquanto não estiverem realizadas as obras.
Cabendo a todos os condóminos a responsabilidade pela conservação dos terraços, ou, mais especificamente, pela sua impermeabilização, recai igualmente sobre os mesmos a obrigação de indemnizar algum condómino que sofra danos resultantes da falta impermeabilização, também na proporção do valor das respectivas fracções, verificados que estejam os pressupostos gerais da responsabilidade civil extracontratual.
A Administração das partes comuns do edifício compete, nos termos do n.º 1 do art.1430º do C. Civil, à assembleia de condóminos e ao administrador, o qual tem legitimidade passiva para ser demandado em juízo nas acções respeitantes às partes comuns do prédio.
O administrador tem as funções previstas no artigo 1436º, além de outras que lhe possam ser atribuídas pela assembleia.
Entre estas funções não se encontra a da determinação de obras nas partes comuns, muito menos, nas fracções.
Alegou que os danos verificados na sua fracção ocorreram como consequência directa e necessária da infiltração de água proveniente de defeito existente no telhado, e fachadas os quais são, indubitavelmente, partes comuns do edifício (cfr. art. 1421º do CC) e que a Ré, como administradora do condomínio, tinha obrigação de vigiar e zelar pela conservação do telhado e nada fez.
Não se provou também que quando interpelado pela Autora, a empresa administradora do Condomínio tivesse optado por não tomar nenhuma atitude – e tanto assim não é, que nesta data já tinha sido acordada a realização de obra para o mesmo efeito em partes comuns, que o mesmo está obrigado por lei, enquanto diligência ou cato prévio que sempre seria indispensável para uma (eventual) aprovação e adjudicação de tais obras.
Provou-se que havia falta de pagamento de quotas, o que como se sabe se destinam a assegurar o pagamento de despesas correntes e normais do Condomínio – como manutenção de elevadores, limpeza, substituição de perecíveis, como lâmpadas, etc. (v. artigo 1424º do Código Civil).
Para serem realizadas obras e não existindo um fundo para este fim, é necessário que os condóminos paguem um valor extraordinário, que acresce ao das quotas.
Para obras de reabilitação, necessário se torna recolher orçamentos extraordinários para a sua realização, e a sua submissão aos condóminos para discussão e aprovação e tal como as despesas ordinárias, cada condómino é responsável pela sua quota parte.
Só assim, com a colaboração dos condóminos, cumprindo com as suas obrigações, nomeadamente o pagamento atempado das quotas e encargos aprovados em assembleia de condóminos, é possível efetuar uma boa gestão das áreas comuns e realizar as obras necessárias.
Importa referir que a única menção a que o estado da fração pelo sofrimento da privação da sua fração em condições de bem-estar e normal salubridade e conforto, foi no pedido sendo que na alegação fáctica, não consta qualquer facto atinente o impacto psicológico do estado da fração.
Por outro lado, não foram as patologias nas partes comuns por si só que que deram origem ao mal estar no uso de fração autónoma tendo em conta todas as circunstâncias relevantes ao caso utilizassem, veiculadas pela própria Autora …
Assim, não logrando provar os factos em que estribava a acção, pressuposto da responsabilidade, conforme lhe incumbia nos termos do artigo 342º., tem o pedido que improceder.».
Apreciando.
Preceitua o n.º 1 do artigo 1423.º do Código Civil, que recai sobre cada um dos condóminos a obrigação de pagamento, na proporção do valor da respetiva fração ou frações, das despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns do edifício e aos serviços de interesse comum.
Nos termos do artigo 4.º do DL n.º 268/94, de 25 de Outubro (Regime da Propriedade Horizontal), é obrigatória a constituição, em cada condomínio, de um fundo comum de reserva para custear as despesas de conservação do edifício ou conjunto de edifícios, contribuindo cada condómino com uma quantia correspondente a, pelo menos, 10% da sua quota-parte nas restantes despesas do condomínio, competindo a respetiva administração à assembleia de condóminos.
A obrigação de pagamento das despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns do edifício e aos serviços de interesse comum, é uma típica obrigação propter rem, decorrente do estatuto do condómino.
A autora, na condição de condómina, estava vinculada ao pagamento das despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns do edifício.
Face à factualidade provada, não podemos deixar de manifestar alguma perplexidade perante a exigência indemnizatória da autora, ora recorrente.
Vejamos porquê.
Alega a autora na petição inicial (artigo 18.º), que «… a ora Administração do Condomínio, que desde pelo menos Outubro de 2012 ali vem exercendo tais funções, não executou ou mandou executar quaisquer trabalhos ou obras adequados a colocar termo às ditas infiltrações, gotejamentos e escorrências e à eliminação dos danos decorrentes das mesmas e supra alegados».
Provou-se, no entanto, a seguinte factualidade relevante:
- Desde há vários anos que a autora ou o seu ex-cônjuge, enquanto titulares da fração designada pela letra “E” não participam nas assembleias de condóminos (facto 22);
- Nem se fazem representar, impedindo dessa forma a interação necessária com os restantes condóminos, por forma a permitir resolver os problemas do prédio, quer afetem a sua fração ou não (facto 23);
- O Condomínio teve necessidade de recorrer à via judicial, e intentar a competente ação executiva contra a autora e seu ex-cônjuge, para obter a cobrança coerciva dos valores em débito (facto 24);
- Tal ação foi intentada em 20/09/2014, para cobrança dos valores em débito a título de quotas e obras aprovadas em assembleia de condóminos, e correu termos pela Comarca de Aveiro – Instância Central de Oliveira de Azeméis, 3ª Secção de Execução – J1, com o nº 206/14.5 T8OAZ (facto 25);
- O referido processo só foi declarado extinto em 03/05/2016, após cobrança dos valores em débito (facto 26);
- Há obras já aprovadas em assembleia, que não foram executadas por falta de dinheiro, porque os condóminos não pagam atempadamente a sua quota parte (facto 27).
Em suma, a autora, ora recorrente, durante vários anos não participou nem se fez representar nas assembleias de condóminos, não procedendo ao pagamento das despesas de condomínio nem dos valores necessários às obras de conservação e reparação, o que forçou a administração a utilizar a via judicial para cobrança dos valores em dívida, o que só conseguiu em maio de 2016, tendo a autora, dois meses depois, em julho de 2016, intentado a presente ação contra o condomínio, com vista a ser ressarcida por alegados danos decorrentes da omissão de execução de obras de conservação do prédio.
A conduta da recorrente enferma duma insustentável contradição: em primeiro lugar, contribui para a ausência de fundos da administração do condomínio [as não foram executadas por falta de dinheiro]; em segundo lugar, exige o pagamento por indemnização invocando danos decorrentes da não realização de obras.
Tal conduta não poderá deixar de se considerar como abusiva, face ao que proclama atualmente o artigo 334.º do Código Civil: «É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito».
Com alguma ambiguidade, justificada pelo ambiente doutrinário da época, o legislador optou por uma qualificação equívoca [ilegítimo], considerando hoje a doutrina e a jurisprudência, que pretendeu dizer «ilícito» ou «não permitido»[1].
Certo é que o legislador deixou deliberadamente o instituto do abuso do direito aberto à interpretação e preenchimento casuísticos, o que tem justificado um vasto labor doutrinário e jurisprudencial.
O recorte legal do instituto em apreço tem natureza objetiva, pelo que, independentemente do animus daquele que abusa do direito, ocorre o vício em causa sempre que o titular abusa do seu exercício, excedendo os limites impostos pela lei, não se limitando aos atos emulativos (aqueles que não comportam vantagem para quem os exerce, tendo por exclusivo objetivo prejudicar outrem)[2].
Para o Professor Castanheira Neves, a qualificação de um comportamento como abusivo emerge do “reconhecimento de princípios e exigências axiológico-jurídicas que vigoram acima e independentemente da lei - do seu conteúdo formal”[3], considerando o instituto em apreço independente das normas que o visam, e defendendo que “as cláusulas gerais” que normativamente o suportam (da boa-fé, dos bons costumes, etc.), “outra coisa não são […] do que aflorações dos princípios do direito justo - princípios que valem para além e com independência de toda e qualquer prescrição positiva, como expressões que são da própria Ideia de Direito”[4].
E recorta o conceito de abuso do direito como todo o comportamento que, não contrariando a estrutura formal-definidora de um direito, “viole ou não cumpra, no seu sentido concreto-materialmente realizado, a intenção normativa que materialmente fundamenta e constitui o direito invocado”[5].
A esta tese adere Cunha de Sá, com a seguinte formulação: “abusa-se de determinado direito, abusa-se da estrutura formal desse direito, quando numa certa e determinada situação concreta se coloca essa estrutura ao serviço de um valor diverso ou oposto do fundamento axiológico que lhe está imanente ou que lhe é interno”[6].
A construção dogmática referida propõe como metodologia para a decisão do caso concreto submetido à ponderação do julgador, que avalie da existência ou não de ato abusivo, no confronto desse comportamento com os valores da Justiça, que enformam a estrutura axiológica que suporta e legitima a norma, ditando a solução justa baseada em critérios de Justiça e não na mera estrutura formal da norma escrita.
Entre outras modalidades do abuso do direito, a doutrina considera em geral distingue as seguintes: venire contra factum proprium e tu quoque[7].
Constituem pressupostos da proibição do venire contra factum proprium: a) uma situação objectiva de confiança; b) “investimento” na confiança e irreversibilidade desse investimento; c) boa-fé da contraparte que confiou[8].
Trata-se de uma modalidade muito relacionada com os contratos.
Sendo a situação sub judice suscetível de integração nos pressupostos do venire contra factum proprium, também o será na modalidade de tu quoque, a qual abrange os casos em que a violação de uma norma é depois aproveitada pelo contraente que a violou para: prevalecer-se da situação jurídica daí decorrente; ou exercer a posição jurídica violada pelo próprio; ou exigir a outrem o acatamento da situação já violada[9].
O que temos como certo é que a recorrente não pode aproveitar-se do facto de não ter pago as contribuições devidas ao Condomínio, que permitiriam a reparação dos danos na sua fração (obras aprovadas e executadas por falta de dinheiro), para depois vir pedir a condenação do Condomínio em indemnização por danos resultantes da não realização das ditas obras.
Deparamo-nos assim com um comportamento antijurídico insustentável, face à lei e aos princípios éticos que a conformam.
Acresce que se provou a não verificação de um requisito fundamental da obrigação de indemnizar – a culpa – considerando que ficou demonstrado que o Condomínio, apesar da aprovação em assembleia, não pôde realizar as obras devido à falta de dinheiro decorrente da recusa de pagamento da recorrente (e, eventualmente, de outros condóminos).
Em conclusão, revela-se manifestamente improcedente a pretensão recursória.
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III. Dispositivo
Com fundamento no exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar totalmente improcedente o recurso, ao qual negam provimento e, em consequência, em manter a decisão recorrida.
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Custas pela recorrente.
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Porto, 26.01.2021
Carlos Querido
José Igreja Matos
Rui Moreira
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[1] Ana Prata, Código Civil Anotado, Almedina, 2017, pág. 408/409.
[2] Vide Ana Prata, in Código Civil Anotado, Almedina, 2017, Volume I, pág. 407. Como se refere no acórdão da Relação de Lisboa, 24.04.2008 [processo n.º 2889/2008-6]: «O abuso do direito, nas suas múltiplas manifestações, é um instituto puramente objectivo, por não estar dependente de culpa do agente, nem sequer de qualquer específico elemento subjectivo, ainda que a presença ou a ausência de tais elementos possam contribuir para a definição das consequências do abuso».
[3] Questão-de-facto — questão-de-direito ou o problema metodológico da juridicidade (Ensaio de uma reposição crítica) I — A crise (1967), página 528. Para o autor citado, “o problema do abuso do direito [é] um problema metodológico-normativo de realização (ou de aplicação) concreta do direito, e não um problema dogmático de determinação do conteúdo jurídico positium (na lei)».
[4] Obra citada, página 529. Defende o autor citado, que “as normas gerais ou as cláusulas gerais, com que actualmente as leis positivas se propõem resolver o problema, como estritamente vinculantes: não são sequer verdadeiramente necessárias, nem fica de todo excluído que possam mesmo ser nulas…».
[5] Obra citada, página 524.
[6] Citação de Menezes Cordeiro, na publicação citada.
[7] Vide António Menezes Cordeiro - Do abuso do direito: estado das questões e perspectivas, in ROA, 2005, Ano 65 - Vol. II - Set. 2005.
Ana Prata (ob. cit., pág. 410) refere a dificuldade em estabelecer nos casos concretos, a diferença de qualificação do abuso nos termos preconizados por Menezes Cordeiro, referindo: as hipóteses de Venire contra factum proprium” estão muitas vezes na base da recusa de alegabilidade de vício formal, pois se trata tipicamente de casos em que o sujeito pretende prevalecer-se da nulidade formal, quando foi ele a recusar a observância da forma legal; noutras hipóteses, nem sempre destrinçáveis destas, identifica-se o abuso para evitar que o infrator da norma beneficie dessa inobservância [Tu quoque]; finalmente a chamada supressio tutela a confiança do sujeito contra o qual o direito não foi exercido.
[8] Acórdão do STJ (AUJ), de 5.07.2016 (Processo n.º 752-F/1992.E1-A.S1-A, DR, I SÉRIE, 208, 28.10.2016, P. 3850 – 3865), com citação do Professor Meneses Cordeiro - Tratado de Direito Civil Português, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, Coimbra, Almedina, páginas 249 a 269. Como se refere no citado aresto, a jurisprudência do Supremo aceita serem basicamente estes os pressupostos da figura de «venire contra factum proprium», como se ilustra, a título exemplificativo, com os seguintes acórdãos: de 25.11.2014, Procº 3220/07.3TBGDM.B.P1.S1; de 21.9.93, C.J., STJ, Ano I-III.21; de 1.03.2007, Procº 06A4571; de 8.6.2010, Procº 3161/04.6TMSNT.L1.S1; de 28.2.2012, Procº 349/06.8TBOAZ.P1.S1; de 7.9.2015, Procº 769/08.1TVPRT.P1.L1; e de 9.9.2015, Procº 499/12.2TTVCT.G1.S1.
[9] Menezes Cordeiro, Obra citada. Embora reduzindo os contornos da figura a uma aplicação confinada ao contrato e às partes envolvidas, o autor citado refere três exemplos da consagração do princípio tu quoque no Código Civil: o artigo 126.°: o menor que use de dolo para se fazer passar por maior não pode invocar a anulabilidade do ato; o artigo 342.°/2: há inversão do ónus da prova quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova do onerado; o artigo 570.°/1: a culpa do lesado pode reduzir ou excluir a indemnização.