Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
827/13.3TBAMT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ALEXANDRA PELAYO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
PROVA DESPORTIVA
SEGURO OBRIGATÓRIO
FGA
Nº do Documento: RP20191126827/13.3TBAMT.P1
Data do Acordão: 11/26/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O veículo automóvel que ao participar numa prova de “Perícia Automóvel”, sai da pista numa curva e vai embater numa pessoa que se encontrava na assistência, “esmagando-o” contra um outro veículo que ali se encontrava, é um acidente ocorrido no âmbito de uma “prova desportiva.”
II - A velocidade do desporto automóvel, associada à natureza dos meios utilizados, faz com que tal prova desportiva constitua uma “atividade perigosa” pela sua própria natureza (493.º, nº2 do Código Civil).
III - Na sequência desse acidente de viação respondem solidariamente pelos danos causados o condutor do automóvel e os organizadores do evento, sendo que estes  não contrataram o seguro obrigatório para provas desportivas e não asseguraram as condições de segurança da corrida.
IV - O seguro “especial” de provas desportivas é o único susceptível de cobrir o risco da circulação automóvel no âmbito de provas desportivas, tendo caráter obrigatório, sem o qual a prova desportiva não pode ser autorizada.
V - O Fundo de Garantia Automóvel, em caso de omissão do seguro obrigatório pelos organizadores da prova desportiva, garante a reparação dos danos sofridos por um espectador duma prova desportiva, envolvido num acidente rodoviário ocorrido no decurso de tal evento.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo 827/13.3TBAMT.P1

SUMÁRIO:
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Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto:

I-RELATÓRIO:
B…, instaurou ação declarativa de condenação, então sob a forma de processo ordinário contra os seguintes Réus:
1 – C…,
2 – D…, residente no …,
3 – E…,
4 – F…,
5 – G…,
6 – H…,
7 – I…,
8 – J…, por si e na qualidade de sócio gerente/legal representante da K…, Lda., e
9 - FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL, com sede na Rua …, …, .º - …. – … Porto,
Alegou, em síntese, que o A. foi atropelado por um veículo conduzido pelo primeiro R. em terreno cedido pelo 8º R., propriedade da empresa que geria a K…, no âmbito de uma prova desportiva organizada pela comissão de festas composta pelos 2º a 7º RR., com a anuência do 8º R.. O acidente em causa deveu-se à excessiva velocidade do veículo conduzido pelo primeiro R. e, não tendo a pista em causa as mínimas condições de segurança, galgou um pequeno talude embateu em algumas pessoas e depois foi atingir o R. contra outro automóvel, causando-lhe danos graves, que demandaram sequelas extensas e gravosas, afetando-o na sua vida pessoal, social, física e psiquicamente. Por esses danos responde também solidariamente o FGA, uma vez que o veículo em causa não tinha seguro.
Peticionou a condenação dos RR. a pagarem, solidariamente, ao Autor a quantia global de € 179.567,00 (cento e setenta e nove mil quinhentos e sessenta e sete euros) a título de indemnização pelos danos referidos na petição inicial, que lhe advieram do descrito acidente, e ainda no pagamento dos juros à taxa legal, sobre o montante peticionado, desde a data da citação do presente pedido até efetivo e integral pagamento.
Contestaram os Réus, FGA, invocando este a sua ilegitimidade, pois além do acidente em causa ter ocorrido em terreno privado, tratava-se de um veículo sem matrícula e que interveio numa prova desportiva, não sujeita ao seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel; o R. E… invocando, em síntese, que existe litispendência em relação ao pedido cível efetuado no processo-crime e que, de qualquer forma, nenhuma responsabilidade tem no ocorrido, nem ele nem a comissão de festas, uma vez que a corrida estava aberta a quem quisesse correr, não foi organizada ou publicitada, não se pagava bilhete de entrada, a pista, em terreno privado, estava vedada e o A. desrespeitou essa vedação, bem sabendo do perigo. Mais alegou que a pista cumpria as regras de segurança, nenhuma responsabilidade podendo ser assacada aos RR. membros da comissão; o Réu J…, invocando a exceção da litispendência em relação ao pedido cível do processo-crime a sua ilegitimidade, pois não teve qualquer intervenção no acidente dos autos, além da demanda em relação a ele próprio e à pessoa coletiva não ter sido corretamente efetuada. Invocou, também, que não anuiu em relação a qualquer evento, nem colaborou no mesmo, nem cedeu qualquer terreno, que aliás não é identificado na petição inicial, sendo certo que à data dos factos, no local indicado o R. não possuía, nem possui qualquer terreno.
Replicou o A. mantendo, em suma, o invocado na petição inicial, alegando a improcedência das exceções invocadas pelos RR., requerendo a intervenção da empresa K…, que foi deferida (a fls. 199 e ss.).
Concluiu pela improcedência das exceções invocadas.
Foi realizada audiência prévia onde foi proferido despacho saneador, que indeferiu o requerido quanto à ilegitimidade processual dos RR. J… e FGA, bem como a exceção de litispendência alegada pelos RR. E… e J…, tendo relegado para sentença o conhecimento da alegada ilegitimidade substantiva dos RR. J… e FGA, além de fixar o objeto do litígio e os temas da prova.
Veio a ser realizada a audiência de julgamento e, no final, o tribunal proferiu sentença que decidiu a causa, nos seguintes termos:
“Pelo exposto, de harmonia com as disposições legais citadas, julgo a presente ação parcialmente procedente, e consequentemente, decide-se:
1. Absolver o R. J… e a chamada K…, Lda. do pedido.
2. Absolver o R. FGA do pedido.
3. Condenar, solidariamente, os RR. C…, D…, E…, F…, G…, H… e I… a pagarem ao Autor B…:
a) a título de dano pela perda da capacidade de ganho, a quantia global de € 101.500,00 (cento e um mil e quinhentos euros), acrescida de juros de mora à taxa de 4% ao ano, desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.
b) a título de danos não patrimoniais, a quantia global de € 40.000,00 (quarenta mil euros), acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% ao ano, desde a data da presente sentença, até efetivo e integral pagamento.
4. No mais, absolvem-se os RR. do peticionado pelo A..
As custas serão a suportar pelo A. e 1º a 7º RR. de acordo com o respetivo decaimento (art. 527º do CPC).
Não se conformando com a sentença proferida, o Réu E… interpôs o presente recurso de Apelação, pugnando pela revogação da sentença e sua substituição por outra que condene solidariamente o 1º e 9º Réus a indemnizar o Autor pelos danos resultantes do acidente ocorrido, absolvendo do pedido o aqui Recorrente, tendo formulado as seguintes CONCLUSÕES:
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Contra-alegaram o FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL e o Autor B…, pugnando pela improcedência do recurso.
O Autor B… apresentou ainda RECURSO SUBORDINADO, pedindo a revogação parcial da sentença, substituindo-se por outra que condene os 1º a 7º Réus a pagarem ao Autor a quantia de 100.000,00 € (cem mil euros) a título de danos não patrimoniais e sem prescindir, na eventualidade do douto Tribunal Superior vir a atribuir ao 9º Réu responsabilidade pelo ressarcimento dos danos sofridos pelo Autor, deverá também este Réu ser condenado, solidariamente com os demais, no pagamento da indemnização a titulo de danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelos Autor, tendo apresentado as seguintes Conclusões:
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Não houve resposta ao recurso subordinado.
Admitidos os recursos, cumpre decidir.

II-OBJETO DOS RECURSOS:
Resulta do disposto no art.º 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, aqui aplicável ex vi do art.º 663.º, n.º 2, e 639.º, n.º 1 a 3, do mesmo Código, que, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o Tribunal só pode conhecer das questões que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objeto do recurso. São as seguintes as questões suscitadas nos recursos em apreço:
Do recurso principal:
-impugnação da matéria de facto;
-saber se o evento organizado pelos RR constitui uma prova desportiva;
-saber se pode ser enquadrada no exercício de atividade perigosa e se se mostra afastada a presunção de culpa dos RR;
-responsabilidade do Fundo de Garantia Automóvel
-redução/fixação do quantum indemnizatório devido ao Autor pelos danos patrimoniais e não patrimoniais;
Do recurso subordinado:
-aumento/fixação do quantum indemnizatório devido ao Autor pelos danos não patrimoniais.

III - DA MODIFICABILIDADE DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO
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IV-FUNDAMENTAÇÃO:
Encontra-se provada a seguinte matéria de facto (com as alterações ora introduzidas):
1. Os segundo a sétimo Réus constituíram uma Comissão Organizadora da L…, no ano de 2008, realizada no dia 1 de Maio do referido ano, na pista de L1…, (junto ao Campo de Futebol), na Freguesia com o mesmo nome, situada na área da Comarca de Amarante.
2. A dita Comissão, em Abril de 2007 procedeu à publicidade do evento no Jornal “O…”, com a divulgação do programa e exibição de fotografias dos eventos ocorridos em anos anteriores, apelando à presença em massa de populares.
3. Os 2º a 7º Réus não haviam requerido nem obtido, às autoridades competentes, designadamente à Câmara Municipal de Amarante e à Federação Portuguesa de Automobilismo e Karting, qualquer tipo de autorização ou licença, facto omitido na referida publicidade, nem efetuaram o seguro de responsabilidade civil, obrigatório por lei para todas as provas desportivas de veículos terrestres a motor e respetivos treinos, tendo, relativamente às condições de segurança para os espectadores que ali se deslocassem, procedido exclusivamente da seguinte forma: colocaram uma fita vermelha e branca ao logo da pista para assinalar a sua localização e evitar o atravessamento da mesma; procederam ao rebaixamento do terreno, na parte da pista, por onde iam circular os carros, e solicitaram ao Comandante dos Bombeiros que realizasse uma inspeção á pista e disponibilização de veículos de prevenção para o local. (facto cuja redação foi ora alterada).
4. No referido dia 01 de Maio de 2008, pelas 16 horas, o Autor B…, dirigiu-se ao local descrito no artigo 1., a Pista de L1…, junto ao Campo de Futebol, na área desta Comarca, acompanhado pelos colegas P… e Q…, a fim de assistirem à referida prova.
5. Ali chegado, o Autor assistiu a parte da prova e depois passou a cerca de 10 metros de uma curva, com um talude com menos de um metro de altura.
6. O 1º Réu participava na mencionada corrida, ao volante de uma viatura de marca BMW, modelo ….
7. A dado momento, quando o 1º Réu efetuava a dita curva, a velocidade não concretamente apurada, perdeu o controlo da viatura, galgou o referido talude e porque inexistiam railes de proteção e proibição de permanência em determinados locais, saiu da pista e a cerca de 10 metros desta embateu com a sua frente no corpo do Autor, projetando-o e esmagando-o contra outra viatura que ali se encontrava estacionada. (facto cuja redação foi ora alterada).
8. Para além do Autor, outras pessoas foram também atingidas, na sequência do despiste da viatura conduzida pelo 1º Réu.
9. O Autor foi transportado para o Hospital …, onde deu entrada devido aos poli-traumatismos sofridos, nomeadamente a fratura da bacia tipo “livro aberto”, fratura do tornozelo direito e rotura traumática da uretra, que lhe causaram perigo para a vida.
10. Todos os 2º a 7º Réus bem sabiam que a referida prova não tinha sido autorizada ou licenciada por entidade pública competente.
11. Aqueles RR não podiam desconhecer que, relativamente ao local destinado aos espectadores, aqueles se encontravam desprotegidos das viaturas participantes, quer pela falta de proteções materiais, quer pela ausência de locais vedados ao público, o que poderia originar lesões e perigo para a vida, como de facto ocorreu (facto cuja redação foi ora alterada).
12. Em consequência direta e necessária do descrito acidente e da violência do atropelamento, o Autor deu entrada no Hospital …, sito em Penafiel, no dia 01/05/2008 com história de politraumatismo apresentando:
- fratura da bacia tipo “Open Book”;
- fratura bimaleolar- equivalente tipo C (rotura do ligamento deltoide) à direita;
- instabilidade hemodinâmica à entrada no S.U..
- rotura traumática da uretra;
13. Foi submetido no S. U. a medidas de suporte hemodinâmico e a osteotaxia da fratura da bacia com fixador externo, bem como osteossíntese da fratura do perónio e sutura do ligamento deltoide.
14. Foi ainda submetido por Cirurgia Geral a laparoscopia onde se observou volumoso hematoma pélvico mas sem evidência de lesões viscerais e dada a impossibilidade de algaliação, foi submetido a punção suprapúbica e pedida a colaboração de Urologia.
15. No pós-operatório observou-se evolução favorável com pequena perda de redução, embora aceitável.
16. Em 12/08/2008 foi submetido a extração do fixador externo da bacia e o estudo por TAC lombar não mostraram alterações relevantes, além das sequelas de fratura.
17. Foi orientado para continuação de tratamento conservador e pedido novo estudo radiológico.
18. Efetuou 25 sessões de tratamento fisiátrico.
19. Em 02-06-2009 regressou ao Hospital …., EPE por Hemorragia digestiva alta na sequência da tomada de anti-inflamatórios não esteroides no contexto da fratura da bacia e teve alta em 18-06-2009.
20. Em consequência do atropelamento, o Autor sofreu uma estenose total da uretra a nível da sua porção membranosa, depois de realizadas várias Uretrografias.
21. Em 14-01-2009 o Autor foi submetido a uma Uretroplastia perineal topo a topo com ressecção total do segmento estenosado.
22. Também, em virtude das lesões sofridas, consequência do acidente supra descrito, o Autor realizou consultas e exames médicos no Centro Hospitalar …, E.P.E, designadamente, de ortopedia a 23/06/2008; 06/08/2008; 03/09/2008; 24/09/2008; 17/06/2009; 21/10/2009; 21/10/2009; 21/04/2010; 02/06/2010; 21/07/2010; de fisiatria geral a 29/09/2008; 19/11/2008 e 12/12/2008; de urologia a 30/01/2009; 10/11/2009; 12/01/2010; 02/03/2010; 06/04/2010; 04/08/2011; 23/09/2011: 14/02/2012; 02/04/2012; 26/06/2012 e 19/07/2012; e de cirurgia geral a 23/07/2008.
23. Continua a submeter-se a tratamentos, na sequência de infeções provocadas pela Uretroplastia, e a cada 10/12 semanas o Autor sofre uma infeção, provocada pelo atrofiamento da prótese aplicada na Uretra.
24. A datada consolidação médico-legal das lesões do autor é fixável em 08-02-2010;
- O Período de Défice Funcional Temporário Total é fixável num período de 62 dias;
- O Período de Défice Funcional Temporário Parcial fixa-se num período de 589 dias;
- O Quantum Doloris é fixável no grau 6/7;
- O défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica é de 43 pontos, sendo de admitir a existência de dano futuro;
- As sequelas descritas, em termos de Repercussão Permanente na Atividade Profissional, são impeditivas do exercício da atividade profissional habitual, sendo no entanto, compatíveis com outras profissões da área da sua preparação técnico profissional;
- o dano estético Permanente é fixável no grau 3/7;
- A Repercussão Permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer fixável no grau 3/7;
- A Repercussão Permanente na Atividade Sexual é fixável no grau 7/7;
- O autor necessitará de ajudas medicamentosas e de tratamentos médicos regulares, podendo haver agravamento do seu estado clínico.
25. Desde a data do acidente que o Autor não consegue exercer qualquer atividade profissional (tendo antes do acidente explorado um bar), pois sente muitas dores, em qualquer posição, quer esteja sentado, quer esteja em pé ou a caminhar.
26. Não consegue fazer esforços nem pegar em objetos pesados e não consegue fazer caminhadas.
27. Com as sequelas do acidente, deixou o Autor de ter autonomia financeira, sobrevivendo com a ajuda dos seus pais.
28. Com o acidente, o Autor deixou de poder manter uma relação sexual e nunca mais teve uma relação amorosa.
29. Sentiu o seu prazer de viver diminuir.
30. O Autor nasceu a 02/06/1969 e à data do acidente tinha 38 anos de idade.
31. Era uma pessoa alegre, sempre bem-disposto, trabalhador, convivia com a família, com os amigos e com os vizinhos, era saudável e tinha vontade de viver.
32. Agora, é uma pessoa triste, deprimido, não tem vontade de conviver com os amigos e não tem vontade de frequentar locais públicos.
33. O A. deixou de poder pagar a prestação mensal do empréstimo habitação e de poder cumprir com o pagamento da pensão de alimentos à sua filha menor, por não conseguir trabalhar e não ter quaisquer rendimentos.
34. A Autor deduziu o pedido de indemnização civil no processo crime que correu termos sob o processo n.º 731/08.7TAAMT, no 2º Juízo do Tribunal Judicial de Amarante, em que o aqui 1º Réu se encontrava acusado da prática em autoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física grave, p. e p. pelo art.º 144, alínea d) do Código Penal, e os 2º a 8º arguidos encontravam-se acusados, em co-autoria material, na forma consumada e por omissão, de um crime de ofensa à integridade física grave, p. e p. pelo art.º 144, alínea d) do Código Penal, em conjugação com o art. 10º do referido Código, tendo sido ordenada a separação do pedido de indemnização civil, para ser instaurado em separado, tendo havido já decisão penal em relação aos factos dos autos, com trânsito em julgado, absolutória em relação ao 8º R. e condenatória quanto ao 1º a 7º RR., estes condenados em pena de multa, pela prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência agravado pelo resultado por omissão.
35. O convívio da amizade, além da perícia automóvel, promovia jogos de cartas, de malha, de futebol e de paintball.
36. O percurso a percorrer pelos veículos na pista estava delimitado por fitas vermelhas e brancas.
37. A pista em causa tinha alguns taludes, tendo sido inspecionada pelo Comandante dos Bombeiros Voluntários … na manhã do dia 01/05/2008.
E julgou não provados os seguintes factos:
A) O referido evento foi organizado com a anuência e a colaboração do 8º Réu, que, além do mais, cedeu à referida Comissão o terreno onde o mesmo se realizou, pertencente à empresa de que era gerente – K…, Lda..
B) A divulgação da corrida foi realizada também no Jornal “S…”, no Jornal “T…”.
C) À data do acidente o A. trabalhava por conta de outrem.
D) O A. permaneceu naquele local desde que se iniciou a perícia até ao momento da ocorrência do acidente, tendo sido chamado à atenção pelos membros da comissão para sair do local e insultou-os.
E) O acesso à pista era feito sem condicionalismos.
F) Não existia qualquer atribuição de prémios para os participantes.

V-APLICAÇÃO DO DIREITO AOS FACTOS
5.1 O conceito de prova desportiva.
Relativamente às discordâncias do Apelante, quanto á matéria de direito, insurge-se aquele desde logo, quanto ao entendimento acolhido pelo tribunal na sentença, que o acidente ocorreu no âmbito de uma prova desportiva.
Defende o Apelante que a corrida de carros verificada no dia 1 de maio de 2008, na qual se deu o acidente que atingiu o Autor inseria-se na organização do evento “Convívio da Amizade” não sendo uma prova desportiva já que o convívio abrangia outras atividades e o acidente que o Autor sofreu não é um acidente desportivo, mas sim um acidente de viação, entendido “no sentido mais geral de fenómeno ou acontecimento anormal decorrente da circulação de um veículo”.
Importa apreciar antes de mais esta questão concerta.
O Decreto Regulamentar n.º 2-A/2005 de 24 de Março dispõe as regras das provas desportivas de automóveis.
No respetivo preâmbulo, justifica-se assim a necessidade de regulamentação da atividade em acusa: “ A utilização das vias públicas para fins diferentes da normal circulação de peões e veículos encontra-se prevista no Código da Estrada, com carácter excecional, tornando-se necessário regulamentar as condições em que tal utilização especial pode ter lugar, bem como os procedimentos conducentes à emissão das necessárias autorizações por parte das câmaras municipais, ao abrigo do disposto no artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro.
Adicionalmente, é necessário regular a publicitação dos condicionamentos ou a suspensão do trânsito decorrentes quer das situações acima descritas quer de outras situações de suspensão ou condicionamento de trânsito previstas no artigo 9.º do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de Maio, na redação que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro.”
O seu artigo 1.º fixa o seu campo de aplicação dizendo que o regulamento “aplica-se à utilização das vias públicas para a realização de atividades de carácter desportivo, festivo ou outras que possam afetar o trânsito normal.”
Por sua vez, o artigo 2.º define o que são consideradas “provas desportivas” para efeitos do regulamento, dizendo que “consideram-se provas desportivas as manifestações desportivas realizadas total ou parcialmente na via pública com carácter de competição ou classificação entre os participantes.”
No caso em apreço, provou-se que o 1º Réu participava numa corrida automóvel, ao volante de uma viatura de marca BMW, modelo … (facto supra 6). Os segundo a sétimo Réus, por sua vez, constituíram uma Comissão Organizadora da “L…”, no ano de 2008, realizada no dia 1 de Maio do referido ano, na pista de L1…, junto ao Campo de Futebol, na Freguesia com o mesmo nome (facto 1). Esse evento foi publicitado pela Comissão Organizadora, com a divulgação do programa e exibição de fotografias dos eventos ocorridos em anos anteriores, apelando à presença em massa de populares (facto 2).
O percurso a percorrer pelos veículos era feito numa pista, devidamente delimitada por fitas vermelhas e brancas e tinha alguns taludes (factos 37 e 38).
Sabe-se também que os concorrentes competiam entre si para lograrem percorrer a pista no menor tempo possível, (isto mesmo foi dito pelas das testemunhas que participaram na qualidade de corredores no evento, U… e V…) assim proporcionando o desejado espetáculo de perícia ao público que acorreu ao local devidamente publicitado pela Comissão Organizadora para assistir á corrida.
Os participantes tinham que se inscrever para participar na corrida, pagando um valor que dava acesso a um jantar no final.
Estamos assim perante um evento que a própria comissão Organizadora, constituída pelos 2º a 7º Réus, designou e publicitou como sendo de “Perícia Automóvel”, implicando competição entre os participantes inscritos que ali pretendem fazer os melhores tempos; é um evento organizado e publicitado e é realizado num local previamente preparado para o efeito, já que inclui uma pista destinada ao percurso da prova, isto é uma pista destinada aos condutores e aos automóveis participantes.
Todas estas circunstâncias apontam para que estejamos perante uma prova desportiva. Não é o facto da mesma se não encontrar devidamente licenciada pelas entidades competentes, ou seja a Câmara Municipal do concelho e a Federação Portuguesa de Automobilismo e Karting ou da entidade que tiver competência legal, no âmbito do desporto automóvel, para aprovar as provas (cide art.3º do Decreto Regulamentar n.º 2-A/2005, de 24 de Março citado), que lhe retira a natureza de prova desportiva, apenas a remetendo para o conceito de “prova desportiva ilegal”, ou seja, de prova desportiva realizada á margem das legais imposições.
Temos pois de concluir que o acidente dos autos, em que o veículo participante na “L…” organizada pelos 2º a 7º Réus que se encontrava a realizar a sua prova automobilística, competindo com os demais para fazer o melhor tempo e sai da pista, numa curva indo embater no Autor que se encontrava no espaço onde o evento tinha lugar, é um acidente ocorrido no âmbito de uma prova desportiva organizada.
Improcede pois a alegação do Apelante.
5.2 Classificação como atividade perigosa e eventual afastamento da presunção de culpa.
Insurge-se ainda o Apelante quanto á classificação feita pelo Tribunal a quo da corrida de carros em causa, como sendo uma atividade perigosa, tendo aplicado, em consequência, o disposto no artigo 493º, n.º 2 do CC, com base no qual fundamentou a responsabilidade dos organizadores do evento, que não contrataram o seguro obrigatório para provas desportivas e não asseguraram as condições de segurança da corrida, quando o único responsável pelo acidente que o Autor sofreu é o 1º Réu, que conduzia o veículo automóvel, e não teve a perícia nem a habilidade necessárias para controlar o carro após o despiste, vindo a embater no Autor, sendo quem detinha a direção efetiva do veículo automóvel em questão e utilizou-o no seu próprio interesse (artigo 503º, n.º 1 do CC), respondendo pelos danos causados ao Autor.
Defendem não estarem preenchidos todos os pressupostos da aplicação da responsabilidade geral por factos ilícitos visto que, não sendo uma prova desportiva, não existia a obrigação de contratar um seguro específico.
Invocam ainda expressamente a aplicação do Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 21.11.1979 (in www.dgsi.pt) segundo o qual “o disposto no artigo 493º, n.º 2 do CC não tem aplicação em matéria de acidentes de circulação terrestre”.
Decidindo.
Em face do que supra ficou exposto relativamente á classificação do evento como prova desportiva, ficam prejudicadas as conclusões do Apelante baseadas na afirmação de que não sendo o evento uma prova desportiva, os organizadores não cometeram qualquer ilícito ao não contratarem seguro obrigatório, afastando-se assim a sua responsabilidade.
Com efeito, o evento em questão estava obrigatoriamente sujeito ao que dispõe o artigo 6º nº 5 DL n.º 291/2007, de 21/08 que estabelece que recai a obrigação de seguro obrigatório sobre:
“(…) 5 - Quaisquer provas desportivas de veículos terrestres a motor e respetivos treinos oficiais só podem ser autorizados mediante a celebração prévia de um seguro, feito caso a caso, que garanta a responsabilidade civil dos organizadores, dos proprietários dos veículos e dos seus detentores e condutores em virtude de acidentes causados por esses veículos.”
Quanto á classificação da organização desta prova desportiva como atividade perigosa, concordamos integralmente com a sentença sob recurso.
O art. 493º nº 2 do Código Civil dispõe o seguinte:
“Quem causar danos a outrem no exercício de uma atividade perigosa por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, exceto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir”.
Esta disposição normativa estabelece uma presunção de culpa, que acarreta a inversão do ónus da prova (art. 344º do CC), o que significa que o lesado não tem que provar a culpa, impendendo sobre o lesante, se se quiser eximir à responsabilidade, a prova de que não teve culpa na produção do facto danoso.
A lei não procede a qualquer enumeração, sequer exemplificativa do que sejam atividades perigosas, pelo que cabe ao tribunal fazer casuisticamente essa qualificação (ver P. Lima e A. Varela – art. 493 nº 2 do Código Civil, que entendem que é matéria a apreciar, em cada caso, segundo as circunstâncias – cfr. CC. Anot., vol. I, 3ª ed., art. 493 CC.).
O que deve entender-se por “atividade perigosa” tem sido assim objeto de algum tratamento jurisprudencial e doutrinário.
Na doutrina, Almeida e Costa, para os efeitos do art. 493º nº 2 do C.C., defende que atividade perigosa é aquela que, por força da sua natureza ou da natureza dos meios utilizados, tem ínsita ou envolve uma probabilidade maior de causar danos do que a verificada nas restantes atividades em geral. Trata-se de matéria a apreciar, em cada caso, segundo as circunstâncias - cfr. Almeida e Costa, Direito das Obrigações, 5ª ed. - 473.
Vaz Serra sustenta que atividades perigosas são aquelas que criam para terceiros um estado de perigo, isto é, a possibilidade de receber um dano, uma probabilidade maior do que a normal noutras atividades – cfr. BMJ nº 53 – 387.
Refere ainda que atividades perigosas são as que “criam para os terceiros um estado de perigo, isto é a possibilidade ou, ainda mais, a probabilidade de receber dano, uma probabilidade maior do que a normal derivada de outras atividades”.
É a tese da maior probabilidade de danos em comparação com as restantes atividades em geral.
Mário Júlio de Almeida Costa, por seu lado, entende que deve tratar-se de atividade que, pela sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, “tenha ínsita ou envolva uma probabilidade maior de causar danos do que a verificada nas restantes atividades em geral” (Direito das Obrigações, 9ª edição, página 538).
A jurisprudência, vem também ela procedendo a uma apreciação casuística das atividades que podem ser enquadrada no conceito legal de “atividade perigosa”, entendendo-se de um modo geral, que “atividade perigosa” é toda aquela atividade que, pela sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, “tenha ínsita ou envolva uma probabilidade maior de causar danos do que a verificada nas restantes atividades em geral”. (cfr. Ac do STJ, de 13 de Outubro de 2009 in www.dgsi.pt).
O que determina assim a qualificação de uma atividade como perigosa é a sua especial aptidão para produzir danos, aptidão que há-de resultar da sua própria natureza ou da natureza dos meios utilizados, sendo ainda de aplicar a tese (defendida por Vaz Serra), da maior probabilidade de danos em comparação com as restantes atividades em geral.
Parece-nos ser intuitivo para qualquer pessoa, que a circulação automóvel do dia-a-dia, para a qual as pessoas e seguradoras contratam entre si seguros de responsabilidade civil, não é comparável à circulação a que se assiste numa prova de rally, a qual comporta um risco acrescido enquanto desporto e desporto de velocidade. Produz uma maior probabilidade de ocorrência de dano do que a decorrente da mera circulação automóvel.
No sentido que um “rally” constitui uma atividade perigosa, veja-se o Acórdão do STJ relatado pelo Conselheiro Pires da Rosa datado de 15.4.2015, disponível in www.dgsi.pt. No qual se afirma: “Tão perigosa que a lei vigente à data do Rally, bem como a vigente à data da celebração do seguro, impõe como condição de autorização de provas desportivas e respetivos treinos a celebração prévia de um seguro.
Quanto á jurisprudência do assento citado (Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 21.11.1979 (in www.dgsi.pt) que o Apelante pretende ver aqui aplicada, segundo o qual “o disposto no artigo 493º, n.º 2 do CC não tem aplicação em matéria de acidentes de circulação terrestre”, não tem a mesma aplicação no caso em apreço, em que o acidente ocorre no âmbito de uma atividade de cariz desportivo, sendo essa a atividade concreta - competição desportiva – a que aporta o carater perigoso á circulação automóvel, mostrando-se a mesma, a nosso ver, salvaguardado o devido respeito, desatualizada em face dos 40 anos decorridos desde a sua prolação.
Neste sentido, afirmando-se que “nestes casos, tem inteira aplicação o nº2 do art.493.º do Código Civil porque a velocidade deste desporto, associada à natureza dos meios utilizados, é claramente uma atividade perigosa por sua própria natureza” e afastando a aplicação do Assento do STJ de 21 de Novembro de 1979, ver o citado Acórdão datado de 15.4.2015.
Posto isto, como se pode ler no Acórdão da Relação de Lisboa de 19-03-2002 (disponível in www.dgsi.pt), “Face à ocorrência de danos decorrentes de atividades perigosas, o ónus da prova reparte-se equitativamente entre o lesado e o agente. Sobre o primeiro recai o encargo de provar os factos donde emerge a produção de culpa, a existência de danos e o nexo de causalidade. Ao segundo, para alijar a sua responsabilidade, é atribuído o encargo de provar o cumprimento dos deveres de diligência ajustados ao exercício de atividades que comportam um maior risco de ocorrência de sinistros.”
Haverá por isso que analisar se os RR lograram demonstrar o cumprimento dos deveres de diligência ajustados á organização do evento desportivo em causa, que comporta necessariamente um maior risco de ocorrência de sinistros do que aquele que resulta da circulação de veículos em observância das regras estradais, nomeadamente sujeitos ao controlo da velocidade.
Vaz Serra na obra citada, pg. 379, escreve a este respeito que “ a perigosidade implica que o agente deve adotar as providências especialmente adequadas a prevenir os danos, determinados pelas particulares normas técnicas ou legislativas inerentes às especiais atividades ou pelas regras da experiencia comum”.
No caso em apreço, as medidas tomadas pela Comissão Organizadora da prova, mostram-se refletidas no teor do facto 3 dos factos provados, com as alterações ora introduzidas.
Provou-se que a Organização da prova colocou uma fita vermelha e branca ao logo da pista para assinalar a sua localização e evitar o atravessamento da mesma; procedeu ao rebaixamento do terreno, na parte da pista, por onde iam circular os carros, criando alguns taludes, e solicitou “informalmente” ao Comandante dos Bombeiros que realizasse uma inspeção á pista e disponibilizasse veículos de prevenção para o local.
Estas medidas mostraram-se e revelaram-se porém, manifestamente insuficientes para a proteção dos espetadores, os quais se encontravam desprotegidos das viaturas participantes, nomeadamente nos locais que ofereciam maior perigo, onde os carros atingiam maior velocidade, quer pela falta de proteções materiais, quer pela ausência de locais vedados ao público, o que poderia originar lesões e perigo para a vida, como de facto ocorreu, tal como os Réus não podiam desconhecer.
Não lograram pois os RR afastar a presunção de culpa que sobre os mesmos recai, improcedendo por isso o recurso também nesta parte.
5.3. Da responsabilidade do FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL.
Pretende ainda o Apelante ver responsabilizado o Réu Fundo de Garantia Automóvel, o qual, na sentença foi absolvido dos pedidos contra si formulados.
É certo que o Apelante fundamenta a responsabilidade daquele, na responsabilidade exclusiva do condutor do veículo atropelante.
Defende o Apelante, como vimos, que não estamos perante uma prova desportiva e que o 1º Réu é responsável pelo acidente que o Autor sofreu, pois detinha a direção efetiva do veículo automóvel em questão e utilizou-o no seu próprio interesse (artigo 503º, n.º 1 do CC), respondendo pelos danos causados ao Autor. Estando o veículo automóvel interveniente no acidente sujeito ao seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, sempre teria o Tribunal a quo de responsabilizar, subsidiariamente, o 9º Réu, Fundo de Garantia Automóvel, pela reparação dos danos sofridos pelo Autor, atendendo a que esta entidade responde, nomeadamente, na falta de seguro obrigatório.
Por sua vez, o FGA na resposta ao recurso do Apelante, defendeu-se dizendo, que o FGA apenas garante as indemnizações devidas por danos causados por veículos sujeitos a seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel e o veículo em causa estava sujeito ao seguro obrigatório de provas desportivas.
E que, mesmo que existisse seguro de prova desportiva, o dano causado ao Autor, estaria excluído nos termos do art. 8º nº 1 do DL 291/2007 de 21 de Agosto. O veículo causador do acidente não estava sujeito ao seguro obrigatório de responsabilidade civil porque o acidente se deu numa pista de autocross e que os riscos inerentes á circulação de um veículo no desempenho funcional de veículo de competição não são comparáveis aos riscos de circulação enquanto veículo automóvel, na via publica aberta ao transito em geral, assim pugnando pela manutenção do decidido.
O Tribunal a quo, no que concerne ao peticionado em relação ao FGA, afastou sumariamente a responsabilidade daquele organismo, com o seguinte argumento: “No caso sub judice temos por assente que o acidente dos autos ocorreu no âmbito de uma prova desportiva, onde não funciona o seguro de responsabilidade civil obrigatório, tendo que existir um seguro próprio como se viu, pelo que o FGA não responde neste tipo de situação (cfr., também, o Ac. da RC de 26/03/96, CJ, A.21, Tomo II (1996), pp. 24/31).”
Ora, ponderando-se a relevância do papel do Fundo de Garantia Automóvel na satisfação das indemnizações aos lesados, que constituem manifestamente a parte mais vulnerável e desprotegida no âmbito dos acidentes de viação, pensamos que a questão merece uma maior reflexão á luz das nomas vigentes.
Temos de concordar com o Fundo de Garantia Automóvel quando diz que o seguro obrigatório de circulação automóvel exclui indemnização por “danos ocorridos durante provas desportivas e respetivos treinos oficiais.”
É isso que resulta expressamente do disposto no art. 14º nº 4 al e) do DL 291/2007 de 21 de Agosto (com teor equivalente ao que dispunha o art. 7º nº 4 al f) do DL 522/85 de 31.12.).
Ou seja, o seguro obrigatório de circulação automóvel do veículo BMW causador do acidente dos autos, exclui a cobertura de danos ocorridos em provas desportivas e treinos.
Isto é compreensível em face daquilo que já foi dito, do aumento considerável do risco que ocorre por causa da velocidade nas provas desportivas. Daí que a lei exija para este tipo de atividade desportiva, um seguro diferente, que não o mero seguro de circulação automóvel.
Apenas o seguro especial de provas desportivas é suscetível de cobrir o risco da circulação automóvel no âmbito de provas desportivas.
Daí que argumentação do Apelante não possa colher com este fundamento.
Porém, porque o seguro de provas desportivas é também ele um seguro obrigatório, torna-se pertinente questionar se o FGA que não tem natureza de seguradora, mas de garante (sendo-lhe pois indiferente o risco que devia ser garantido pela seguradora em caso de seguro obrigatório) sendo a entidade que garante a reparação de danos na falta de seguro obrigatório, é chamado ou não a garantir as indemnizações, no caso de omissão do seguro obrigatório pelos organizadores de uma prova desportiva.
O art, 14º citado ressalva expressamente os seguros celebrados ao abrigo do art. 8º, dizendo “Excluem-se da garantia do seguro quaisquer danos ocorridos durante provas desportivas e respetivos treinos oficiais, salvo tratando-se do seguro celebrado ao abrigo do art. 8º”.
Isto significa que apenas o seguro “especial” de provas desportivas é suscetível de cobrir o risco da circulação automóvel, no âmbito de provas desportivas.
Resta saber se o Fundo de Garantia Automóvel responde subsidiariamente no caso de tal seguro de provas desportivas ter sido omitido pelos responsáveis pela sua celebração, no caso os RR organizadores da prova desportiva.
Vejamos.
O Fundo de Garantia Automóvel responde na falta de seguro obrigatório nos termos do estatuído no DL n.º 291/2007 de 21/08, pelo que é na aplicação deste diploma que tem de ser colhida a resposta a esta questão.
Haverá ainda que ter em consideração que, em matéria de seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis, o acervo da legislação europeia nesta matéria, tendo-se em consideração as diretivas existentes: n.º 72/166/CEE, (também designada de 1ª diretiva) 84/5/CEE, (também designada de 2ª diretiva), 90/232/CEE, do Conselho (também designada de 3ª diretiva), 2000/26/CE (também designada de 4ª diretiva) e 2000/26/CE e finalmente, a Diretiva n.º 2005/14/CE, (5.ª Diretiva) do Parlamento Europeu e do Conselho, que alterou aquelas, a qual foi transposta para o direito interno através do Decreto-Lei n-º 291/2007, bem como a jurisprudência do TJUE (Tribunal de Justiça da União Europeia) nesta matéria.
Assim, muito resumidamente, a Diretiva n.º 72/166/CEE veio validar em cada Estado Membro os seguros automóveis feitos noutro Estado Membro, determinando no seu art. 3º nº 1 que cada Estado membro fixasse um seguro obrigatório para os veículos que nele tivessem o seu estabelecimento habitual; a Diretiva 84/5/CEE fixou os montantes mínimos de seguro obrigatório e determinou que o seguro cobrisse os danos materiais e os corporais, sendo que o Fundo de Garantia Automóvel teve origem nesta 2ª Diretiva, tendo por missão reparar os danos materiais ou corporais causados por veículo não identificado ou relativamente ao qual não tenha sido cumprida a obrigação de segurar (art.º 1º, n.º 4); a Diretiva 90/232, relativa á existência de um prémio único no território da União e a obrigatoriedade das pessoas implicadas num acidente de viação pudessem conhecer o nome das seguradoras em curto espaço de tempo; a Diretiva 2000/26/CE, que entre outras coisas impôs a criação de um organismo de indemnização na falta de um segurador responsável e finalmente a 5ª Diretiva que introduziu diversos aperfeiçoamentos nas diretivas acabadas de referir (para mais pormenor, ver Menezes Cordeiro in Direito dos Seguros, 2ª edição, pg 878 e ss.).
Os seguros constituem, na verdade, um campo privilegiado para a uniformização do direito europeu, com objetivo da livre articulação entre os regimes de cada país da União Europeia; a concorrência entre seguradoras e a própria integridade dos cidadãos da europa, partindo-se da premissa que a “responsabilidade civil não conhece fronteiras.”
Em recente acórdão do STJ de 12.6.2017, relatado pelo Juiz Conselheiro Sebastião Póvoas e disponível in www.dgsi, pt, (no qual foi a seguradora do veiculo automóvel causador dos danos, responsabilizada pelos danos causados a pessoas que assistiam a uma “street racing” ilegal, tendo-se entendido que as “street racings” não são provas desportivas), o Supremo Tribunal de Justiça chama a atenção para a evolução da dogmática do seguro de responsabilidade civil, decorrente nomeadamente da legislação europeia e da jurisprudência do TJUE, fazendo-se consignar em sumário o que a seguir se transcreve dada a sua pertinência para o caso que ora nos ocupa:
“(…) 5) Esta nova regulamentação, com o acolhimento dos citados instrumentos do direito da União Europeia representa uma evolução da dogmática do seguro de responsabilidade civil e, como se refere No Acórdão do TJUE de 4 de Setembro de 2014 (P.C. – 16213 – caso Vnuk) é demonstrativa que o objetivo primeiro é a “proteção das vítimas dos acidentes causados por veículos” o que “foi constantemente prosseguido e reforçado pelo legislador da União”.
6) Assim se dá coerência ao objetivo do seguro de responsabilidade civil que é garantir o ressarcimento dos danos sofridos pelas vítimas, e impedir que sejam confrontadas com situações de insolvabilidade do lesante ficando desprotegidas e sem possibilidade de verem reconstruida a sua situação anterior ao evento.
7) O seguro desempenha uma relevante função social a ser vista na perspetiva do lesado.
8) Atualmente, e com a nova lei do contrato de seguro da responsabilidade civil automóvel (citado Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 da Agosto a transpor a 5.ª Diretiva comunitária – Diretiva 2000/26/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Maio) com tónica na quase irrestrita proteção do lesado é de afirmar que o seguro em apreço se traduz num contrato a favor de terceiro.
9) Fica, em consequência, indiscutível que o legislador quis precipuamente defender/proteger os interesses e os direitos dos lesados em acidentes de viação, sendo estes caracterizados como eventos consequentes da “má” condução automóvel ou dos riscos próprios da circulação de veículos, quer nas vias públicas quer nas abertas à livre circulação independentemente da respetiva afetação ou domínio.
10) O conceito de “acidente de viação” tem de ser bosquejado, perspetivado, a partir da vítima, ou seja da pessoa que sofre danos (patrimoniais ou morais) com nexo causal entre esses e o evento. Todo o percurso até ao evento lesivo – e ressalvando situações de concorrência de nexos de imputação subjetiva, que apenas se irão refletir no percentuar do “quantum” indemnizatório, ou na medida da pena se o facto também constituir crime – irreleva para a vítima “apanhada” de modo inesperado por um veículo em circulação.”
O FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL surgiu, como já antes se referiu, na sequência da diretiva 84/5/CEE, de 30 de Dezembro de 1983 (segunda diretiva), tendo por missão reparar os danos materiais ou corporais causados por veículo não identificado ou relativamente ao qual não tenha sido cumprida a obrigação de segurar (art.º 1º, n.º 4).
Nas normas relativas à obrigatoriedade do seguro automóvel, ressalta a Diretiva 72/166/CEE do Conselho de 24.04.1972.
O artigo 3.º, n.º 1 da Diretiva 72/166/CEE do Conselho, de 24 de Abril de 1972, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis estabelece que cada Estado-Membro, sem prejuízo da aplicação do art. 4.º, adota todas as medidas adequadas para que a responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos com estacionamento habitual no seu território esteja coberta por um seguro.
A ideia inicial que sobressai deste diploma, cuja razão de ser se alicerçou na necessidade de facilitar a circulação de veículos e pessoas no mercado interno, sem descurar a proteção das vítimas, era a cobertura, através do seguro automóvel, dos riscos resultantes da circulação propriamente dita dos veículos.
Pese embora raras exceções, a jurisprudência tem interpretado a referida Diretiva e a legislação que procedeu à respetiva transposição para a ordem jurídica nacional no sentido de que se exige, para qualificar o acidente como de viação, a mobilidade do veículo, na altura em que ocorre o sinistro, e do qual resultaram danos para terceiros. (ver acórdão da RG de 12.4.2018, relatora Des. Anabela Tenreiro).
Por sua vez, relacionado com o FGA, o artigo 1º da Diretiva 84/5/CEE dispõe que:
1. O seguro referido no nº 1 do artigo 3o da Diretiva 72/166/CEE, deve, obrigatoriamente, cobrir os danos materiais e os danos corporais.
(…) 4. Cada Estado-membro deve criar ou autorizar a criação de um organismo que tenha por missão reparar, pelo menos dentro dos limites da obrigação de seguro, os danos materiais ou corporais causados por veículos não identificados ou relativamente aos quais não tenha sido satisfeita a obrigação de seguro referida no nº 1. Esta disposição não prejudica o direito que assiste aos Estados-membros de atribuírem ou não à intervenção desse organismo um carácter subsidiário, nem o direito de regulamentarem os sistemas de recursos entre este organismo e o ou os responsáveis pelo sinistro e outras seguradoras ou organismos de segurança social obrigados a indemnizar a vítima pelo mesmo sinistro.”
Tendo presente esta perspetiva, cumprirá agora debruçarmo-nos sobre o Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, que transpôs para a ordem jurídica nacional a 5ª diretiva e que revogou no seu art. 94º o Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro que instituiu o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.
No preâmbulo do mesmo, relativamente ao Fundo de Garantia Automóvel, ficou ressalvada a importância deste organismo na proteção dos lesados, assim como no aumento da eficácia do controle do cumprimento da obrigação de segurar, ao dizer-se:
“O conjunto dessas alterações, ao fazer recair sobre o Fundo de Garantia Automóvel (FGA) parte fundamental da operacionalização do aumento de proteção dos lesados, bem como do aumento de eficácia do controlo do cumprimento da obrigação de segurar, reforça a conveniência de acentuar o carácter do Fundo como de último recurso para o ressarcimento das vítimas da circulação automóvel, concentrando-o no seu fim identitário, por forma a libertá-lo para o acréscimo de tarefas.
O vetor do aumento da proteção dos lesados de acidentes de viação assegurada pelo sistema de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, adiante designado pelo sistema SORCA, enforma diversas matérias ao nível de ambos os pilares do sistema (o pilar do seguro seguro obrigatório e o pilar FGA).”
O objeto do diploma em apreço é o de aprovar o regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel (artigo 1º).
O art. Artigo 4.º por seu turno estabelece a obrigação de seguro relativamente a: Toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos corporais ou materiais causados a terceiros por um veículo terrestre a motor para cuja condução seja necessário um título específico e seus reboques, com estacionamento habitual em Portugal, deve, para que esses veículos possam circular, encontrar-se coberta por um seguro que garanta tal responsabilidade, nos termos do presente decreto-lei, apenas excluindo desta norma a circulação dos veículos de caminhos de ferro, com exceção, seja dos carros elétricos circulando sobre carris, veículos ao serviço dos sistemas de Metro e veículos são utilizados em funções meramente agrícolas ou industriais (nº 2, 3 e 4 da norma citada).
O Artigo 6.º estabelece de seguida, sobre quem recai a obrigação de seguro obrigatório:
1 - A obrigação de segurar impende sobre o proprietário do veículo, excetuando-se os casos de usufruto, venda com reserva de propriedade e regime de locação financeira, em que a obrigação recai, respetivamente, sobre o usufrutuário, adquirente ou locatário.
2 - Se qualquer outra pessoa celebrar, relativamente ao veículo, contrato de seguro que satisfaça o disposto no presente decreto-lei, fica suprida, enquanto o contrato produzir efeitos, a obrigação das pessoas referidas no número anterior.
3 - Estão ainda obrigados os garagistas, bem como quaisquer pessoas ou entidades que habitualmente exercem a atividade de fabrico, montagem ou transformação, de compra e ou venda, de reparação, de desempanagem ou de controlo do bom funcionamento de veículos, a segurar a responsabilidade civil em que incorrem quando utilizem, por virtude das suas funções, os referidos veículos no âmbito da sua atividade profissional.
4 - Podem ainda, nos termos que vierem ser aprovados por norma do Instituto de Seguros de Portugal, ser celebrados seguros de automobilista com os efeitos previstos no presente decreto-lei.
5 - Quaisquer provas desportivas de veículos terrestres a motor e respetivos treinos oficiais só podem ser autorizados mediante a celebração prévia de um seguro, feito caso a caso, que garanta a responsabilidade civil dos organizadores, dos proprietários dos veículos e dos seus detentores e condutores em virtude de acidentes causados por esses veículos.
Podemos daqui concluir, que se mostra instituído neste diploma legal que tem como objeto a aprovação do “regime do sistema obrigatório de responsabilidade civil automóvel” (cfr. art. 1º do diploma) um seguro obrigatório de responsabilidade civil que podemos apelidar de “especial” diretamente direcionado para a cobertura dos danos ocorridos no âmbito daquilo que classificamos supra como sendo uma “atividade perigosa” , que são as “provas desportivas e treinos oficiais” que garanta a responsabilidade civil dos organizadores, dos proprietários dos veículos e dos seus detentores e condutores em virtude de acidentes causados por esses veículos.
Trata-se de um seguro obrigatório. É este o primeiro ponto a reter e como já vimos o seu campo de aplicação encontra-se excluído do seguro de responsabilidade de circulação automóvel obrigatório, por força do que dispõe o já mencionado art. 14º nº 4 al e) do DL 291/2007.
Posta a obrigatoriedade de celebração de tal seguro, vejamos agora quais as exclusões legais deste seguro.
Dispõe o art. 8.º relativamente ao seguro de provas desportivas, o seguinte:
1 - Sem prejuízo do disposto no artigo 14.º, excluem-se da garantia do seguro previsto no n.º 5 do artigo 6.º os danos causados aos participantes e respetivas equipas de apoio e aos veículos por aqueles utilizados, bem como os causados à entidade organizadora e pessoal ao seu serviço ou a quaisquer seus colaboradores.
Do seguro obrigatório de provas desportivas automóveis encontra-se excluída a responsabilidade dos organizadores relativamente aos participantes na corrida e suas equipas e veículos por aqueles utilizados, bem como os danos causados aos próprios organizadores e pessoas ao seu serviço e colaboradores.
Estes danos estão excluídos da proteção do seguro obrigatório de provas desportivas.
Não estão, porém excluídos da cobertura deste seguro obrigatório, os danos causados aos espetadores da prova desportiva, ou meros peões que se encontrem no local, os quais constituem, reconhecidamente a parte mais vulnerável no acidente que possa ocorrer.
Conclui-se assim que, a ter sido realizado o seguro obrigatório pela Comissão Organizadora da prova desportiva em causa, como deveria ter acontecido, os danos sofridos pelo Autor estariam cobertos pelo mesmo.
Aqueles organizadores porém, omitiram a realização do seguro, respondendo como pessoas civilmente responsáveis pelo mesmo, como supra foi já apreciado, restando agora saber se o FGA responde subsidiariamente relativamente àqueles Organizadores, que é questão fulcral que ora se coloca.
Alega o FGA, nas suas contra-alegações que apenas garante as indemnizações devidas por danos causados por veículos sujeitos a seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel e não de veículos sujeitos ao seguro obrigatório de provas desportivas.
O art. 47º do DL 291/2007 dispõe no seu nº 1:
“A reparação de danos causados por responsável desconhecido ou isento da obrigação de seguro em razão do veículo em si mesmo, ou por responsável incumpridor da obrigação de seguro de responsabilidade civil automóvel, é garantida pelo FGA, nos termos da seção seguinte.” (o sublinhado é nosso).
Na falta de seguro de responsabilidade civil automóvel obrigatório em provas desportivas, o FGA garante a reparação dos danos do responsável incumpridor da obrigação de seguro de responsabilidade civil automóvel, que como vimos abrange os danos causados ao espetador duma prova desportiva.
Nos termos do n.º 1 do artigo 48.º do citado diploma legal, o FGA satisfaz as indemnizações decorrentes de acidentes rodoviários ocorridos em Portugal e originados:
a) por veículo cujo responsável pela circulação está sujeito ao seguro obrigatório e, seja com estacionamento habitual em Portugal, seja matriculados em países que não tenham serviço nacional de seguros, ou cujo serviço não tenha aderido ao Acordo entre os serviços nacionais de seguros;
b) por veículo cujo responsável pela circulação está sujeito ao seguro obrigatório sem chapa de matrícula ou com uma chapa de matrícula que não corresponde ou deixou de corresponder ao veículo, independentemente desta ser a portuguesa;
c) por veículo cujo responsável pela circulação está isento da obrigação de seguro em razão do veículo em si mesmo, ainda que com estacionamento habitual no estrangeiro.
Em causa está um “acidente rodoviário”.
O enfoque está na circulação de veículo. É a circulação que o torna perigoso, é a circulação que cria o risco. Não nos parece assim que o art. 48º do DL 291/2007 permita uma interpretação tão restritiva, como aquela que o FGA pretende fazer.
No caso das provas desportivas o responsável pela circulação dos veículos nas pistas que reservaram para o efeito é a comissão organizadora da prova, entidade sobre quem recai a obrigação e segurar, nos termos do já citado art. 6º nº 5.
Daqui decorre a nosso ver que instituindo a lei obrigatoriedade de seguro para as provas desportivas, o FGA só não será responsável pela ocorrência de um acidente rodoviário ocorrido durante tal evento – veículo que sai da pista descontrolado e embate num espetador - se a lei expressamente excluir da responsabilidade do FGA tal responsabilidade.
E é verdade é que a lei estabelece várias exclusões, elencadas no art. 52º, que desde logo manda aplicar as exclusões previstas para o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.
Como vemos este seguro exclui no seu art. 14º nº 4 al e), “Quaisquer danos ocorridos durante provas desportivas e respetivos treinos oficiais, salvo tratando-se de seguro celebrados ao abrigo do artigo 8º.”
Expressamente a lei ressalva desta exclusão, os seguro celebrados ao abrigo do artigo 8º e este como vimos não exclui da garantia do seguro previsto no n.º 5 do artigo 6.º, os danos ocorridos no decurso de uma prova desportiva causados aos espetadores da mesma.
Também não se mostram tais danos excluídos pelo nº 2 do art. 52º, concluindo-se assim pela responsabilidade subsidiária do Réu FGA no pagamento da indemnização ao aqui Autor, com posterior sub-rogação dos direitos do lesado, nos termos do disposto no art. 54º do DL 291/2007.
Aqui chegados apenas haverá que considerar os limites estabelecidos no art. 49º, ou seja garante apenas a indemnização até ao valor mínimo do seguro de responsabilidade civil automóvel.
Por último, citamos o acórdão do STJ de 19.06.2012 (Juiz Conselheiro Joaquim Piçarra) sobre o papel do FGA: “II - Na génese da instituição do FGA está o claro propósito de reforçar a posição das vítimas “inocentes” da sinistralidade rodoviária, nas situações de ausência de atribuição de qualquer montante indemnizatório, dentro do quadro normal de funcionamento da responsabilidade civil automóvel, ou seja, o Fundo visa proteger aqueles que, por infortúnio e sem qualquer culpa, sofreram danos decorrentes de acidente provocado pela circulação de veículo automóvel desconhecido ou cuja circulação não estivesse abrangida por seguro válido e eficaz.
III - Fora dessa proteção terá de ficar, porém, quem voluntariamente se exime ao cumprimento da obrigação de segurar.
IV - As vítimas beneficiárias da garantia protetora do Fundo serão os considerados terceiros no âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil, cujos danos estariam cobertos pelo contrato de seguro se acaso tivesse sido válida e eficazmente celebrado. São essas (e não outras) as vítimas que o FGA visa e tem por missão proteger, na ausência do seguro, cujos mecanismos de proteção falham, apresentando-se, nessa medida, como um sucedâneo da inexistente seguradora.”
A lei exclui a garantia de danos causados aos próprios organizadores da prova desportiva e seus colaboradores, assim como aos participantes, mas não às vítimas desprotegidas que se encontrem no local onde decorre uma prova desportiva ilegal.
É esta a interpretação que se mostra mais conforme à Diretiva 84/5/CEE, de 30 de Dezembro de 1983 (segunda diretiva), que esteve na origem da criação do FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL, tendo por missão reparar os danos materiais ou corporais causados por veículo não identificado ou relativamente ao qual não tenha sido cumprida a obrigação de segurar (art.º 1º, n.º 4).
Procede pois nesta parte a Apelação, no sentido da responsabilização subsidiária do R FGA no pagamento da indemnização devidas ao Autor, com o limite estabelecido no art. 49º do DL 291/2007.
5.4 Valor das indemnizações.
O Apelante não concordou com os valores fixados a título de indemnização atribuída ao lesado Autor.
O pedido de reavaliação do montante atribuído, porém, pressupunha a alteração da matéria de facto por si impugnada, pois defende que não foi provado que o Autor não consiga exercer qualquer atividade profissional ou não consiga trabalhar, para que fosse reconhecido ter havido “excessividade” na fixação da indemnização pelos danos materiais ao lesado, nomeadamente na vertente dos danos futuros, o que não aconteceu, ficando por isso prejudicado o recurso, uma vez que entendemos que o tribunal bem aplicou o direito aos factos em apreço.
Também não lhe assiste razão quando procede á comparação dos valores fixados com os que resultam da aplicação da Portaria n.º 377/2008 de 26.5, uma vez que a jurisprudência tem sido unanime quanto a tratarem-se de meros valores de referência.
Finalmente entende o Apelante que o valor de € 40.000,00 fixado para compensação dos danos não patrimoniais é elevado.
Esta questão será apreciada de seguida, na apreciação do objeto do seguro subordinado do autor, que ao contrário do Apelante pede também a alteração da indemnização dos danos não patrimoniais (se bem que para valor superior ao fixado na sentença).
5.5 Seguro subordinado do Autor.
Compensação pelos danos não patrimoniais,
Também o Autor não concordou na íntegra com os valores fixados a título de indemnização, apenas porém no que concerne os danos não patrimoniais, tendo apresentado recurso subordinado.
Entende o Apelante/autor que não foram suficientemente ponderados pelo Tribunal a quo os danos de repercussão permanente na atividade sexual fixável no grau 7/7; dano estético; o quantum doloris, repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer e as dores atuais e futuras, de que sempre padecerá.
Defende em suma que, tendo-se em consideração a matéria de facto dada como provada aos artigos vertidos nos pontos 12º a 33º, impõe-se que seja arbitrada ao Autor/Recorrente a quantia por este peticionada, no valor de € 100.000,00 (já com a ampliação do pedido) pelas sequelas que ficou a padecer e pelos sofrimentos a que foi e está sujeito.
Vejamos.
Em termos delimitativos do respetivo objeto, o C Civil dispõe no art.º 496.º, n.º 1, que “Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.”
Como único critério orientador geral deve entender-se que a gravidade do dano se deve aferir essencialmente por critérios objetivos.
Antunes Varela in Das obrigações em geral, Vol. I, 10.ª Edição, 2000 pág. 606, refere “A gravidade do dano há-de medir-se por um padrão objetivo (conquanto a apreciação deva ter em linha de conta as circunstâncias de cada caso), e não à luz de fatores subjetivos (de uma sensibilidade particularmente embotada ou especialmente requintada).”
O Autor tinha 38 anos de idade na data do acidente.
Em consequência direta e necessária do acidente e da violência do atropelamento, (o Autor foi esmagado pelo veículo participante na prova desportiva que inopinadamente saiu da pista, contra um veículo que se encontrava estacionado naquele local), o Autor deu entrada no Hospital …, sito em Penafiel, no dia 01/05/2008 com história de politraumatismo apresentando: fratura da bacia tipo “Open Book”; fratura bimaleolar- equivalente tipo C (rotura do ligamento deltoide) à direita; instabilidade hemodinâmica à entrada no S.U e rotura traumática da uretra, tendo corrido risco de vida.
Foi submetido a inúmeras operações cirúrgicas e sessões de fisioterapia, tendo-lhe sido colocada uma prótese na Uretra, que além do mais lhe causa infeções provocadas pela Uretroplastia, e a cada 10/12 semanas o Autor sofre uma infeção, provocada pelo atrofiamento da prótese aplicada na Uretra.
Sofreu e continua a sofrer muitas dores, em qualquer posição, quer esteja sentado, quer esteja em pé ou a caminhar, tendo o quantum doloris sido fixado no grau 6/7, ou seja quase no grau máximo.
No grau máximo ficou fixada a Repercussão Permanente na Atividade Sexual (no grau 7/7), o que significa que ficou incapaz para a atividade sexual, o que para além do privar definitivamente desde os seus 38 anos de idade, de tão importante dimensão de realização do ser humano, comprometeu a sua vida afetiva, tendo-se provado que com o acidente, o Autor deixou de poder manter uma relação sexual e nunca mais teve uma relação amorosa.
Com as sequelas do acidente, deixou o Autor de ter autonomia financeira, sobrevivendo com a ajuda dos seus pais, tendo A. deixado de poder pagar a prestação mensal do empréstimo habitação (o Autor emocionou-se quando relatou ao tribunal estar a ser objeto de um processo executivo por não ter mais podido pagar a casa), por não conseguir trabalhar e não ter quaisquer rendimentos.
Sentiu o seu prazer de viver diminuir, é agora, é uma pessoa triste, deprimido, não tem vontade de conviver com os amigos e não tem vontade de frequentar locais públicos.
Não há pois qualquer dúvida quanto á gravidade dos danos sofridos.
A lesão do direito de personalidade – integridade física e psíquica – como valor absoluto, deve ser compensada mediante a atribuição de uma quantia em dinheiro face à natureza do bem em causa, compensação que deve refletir o grau de culpa do lesante.
Estabelece para tando o art.º 496.º, n.º 4, do C Civil que “O montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º.”, ou seja, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias que o justifiquem.
Para a formulação do juízo de equidade, que norteará a fixação da compensação pecuniária por este tipo de “dano”, socorremo-nos do ensinamento dos Professores Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. I, pág.501:
“O montante da indemnização correspondente aos danos não patrimoniais deve ser calculado em qualquer caso (haja dolo ou mera culpa do lesante) segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e às do lesado e do titular da indemnização, às flutuações do valor da moeda, etc.
E deve ser proporcionado à gravidade do dano, tomando em conta na sua fixação todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida.”.
Nestas “demais circunstâncias” devemos atender designadamente a circunstâncias como a gravidade e a natureza da lesão ou a importância do bem jurídico violado.
Quanto ao grau de culpabilidade do agente, no caso concreto devemos ter em consideração que a responsabilidade civil dos organizadores da prova desportiva mostra-se alicerçada numa mera presunção de culpa, prevista no art.º 493º nº 2 do C Civil (já não a do primeiro réu, o condutor do veículo que atropelou o Autor).
Por outro lado, no caso em apreço, com particular relevância, há também que ponderar que que não se provou que a prova desportiva tivesse proporcionado aos seus organizadores, os responsáveis pelo pagamento da indemnização, lucro, não tendo a mesma sido organizada com finalidades lucrativas.
Pondera-se, porém, que são sete, as pessoas as responsáveis pelo pagamento da indemnização.
Fazendo-se uma pesquisa às decisões jurisprudenciais mais recentes do Supremo Tribunal de Justiça relativas a indemnizações por danos não patrimoniais em acidente de viação, em que os lesados tenham sofrido danos equiparáveis, encontramos as seguintes, todas disponíveis em www.dgsi.pt na presente data:
-Supremo Tribunal de Justiça de 8 de março de 2018, relator Juiz Conselheiro Fonseca Ramos:
“As sequelas das lesões, permanentes e irreversíveis, o sofrimento que causaram ao Autor, ao tempo do acidente com 37 anos de idade, a sensação de morte iminente em função de uma queda de cerca de dez metros de altura, o tempo de demora no socorro as dores “lancinantes sofridas”, as cirurgias a que se submeteu com a inerente clausura hospitalar, os tratamentos prolongados, o duradouro período de auto-algaliação, a fractura vertebro-medular resultante do acidente que implicou a perda do controlo dos esfíncteres, com a inerente perda de continência urinária e fecal, a neoplasia entretanto diagnosticada, que determinou intervenção cirúrgica para retirada da bexiga – cistectomia radical da bexiga – tendo passado a usar um saco colector, utilização que limita o autor e o impede de ir à praia ou usar calções ou roupas mais justas, pela vergonha e o embaraço que lhe causa, a grave afetação da qualidade de vida física psíquica, o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 68 pontos; a perda da função sexual (impotência), e de auto-estima, a tristeza e o comprometimento da carreira profissional, o facto de pela sua reduzida mobilidade não conseguir passear, nomeadamente a pé com a sua família, como gostava de fazer e era um hábito do mesmo, da sua mulher, da filha, o que importa uma repercussão permanente nas atividades de lazer, qualificável como de grau cinco numa escala de sete graus de gravidade crescente, são prejuízos morais muito relevantes que alteraram, irreversivelmente, a expectativa de vida, em ambiente familiar e social, e causam dano e traumatismo psíquico que persistirá na memória e na atividade do Autor.
Tendo em já em conta o grau de culpa de 15% que se atribui ao Autor, fixa-se a compensação por dano não patrimonial no valor de € 250 000,00”
-Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Julho de 2017, relator Juiz Conselheiro Gabriel Catarino:
“Não merece reparo o valor de € 140.000,00 fixado a título de indemnização por danos não patrimoniais, ponderando os níveis de graus de dor que a demandante teve que suportar - ficar entalada entre os dois veículos enquanto a assistência não aportou -, o sofrimento que teve que padecer pelas intervenções cirúrgicas a que teve de submeter - e aquelas a que terá, porventura, de se submeter -, a angústia de se ver privada de um membro inferior, o desgosto de se ver como uma pessoa fisicamente diferente dos demais e objeto de condescência, bem com outras mazelas e aleijões psíquicos (designadamente: dor fantasma ao nível do membro inferior direito; dificuldade de marcha com claudicação; dores constantes no pé esquerdo, com edema motivados pela sobrecarga do membro inferior; stress pós traumático associado a perturbação de pânico e perturbação mista de ansiedade e depressão; pensamentos suicidas; o quantum doloris fixável no grau 6/7; o dano estético fixável no grau 5/7; a repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer fixável no grau 4/7; a repercussão permanente na atividade sexual é fixável no grau 4/7; sentimento de vergonha da ofendida pelo seu corpo face às lesões sofridas que a fazem sentir-se diminuída e sem vontade de responder aos estímulos sexuais do seu companheiro com quem vive).
Tendo em conta o conjunto de factos assinalado, os parâmetros legais, o sentido das decisões jurisprudenciais mencionadas, tendo porém presente as especiais circunstancias do caso em apreço em que 6 dos responsáveis civis respondem não por culpa efetiva, mas presumida e ainda que não atuaram com intuitos lucrativos, apontando desta forma para um abaixamento dos valores ali fixados, entendemos dever ser a compensação pelos danos morais, por recurso á equidade, fixada em € 90 mil euros, desta forma se elevando o valor fixado na sentença.
Por último acrescerá dizer que esta compensação pelos danos não patrimoniais não se mostra excluído da responsabilidade subsidiária do FGA.

VI-DECISÃO
Pelo exposto e em conclusão, acordam os Juízes que integram esta seção do Tribunal da Relação do Porto em julgar parcialmente procedente o recurso principal, com alteração da matéria de facto nos termos supra expostos, revogando-se a sentença proferida na parte em que absolveu o Fundo de Garantia Automóvel dos pedidos contra si formulados, condenando-se o Réu FGA a garantir o pagamento ao Autor, sem prejuízo do seu direito de sub-rogação, das seguintes indemnizações:
-A título de dano pela perda da capacidade de ganho, a quantia global de € 101.500,00 (cento e um mil e quinhentos euros), acrescida de juros de mora à taxa de 4% ao ano, desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.
-E na procedência parcial do recurso subordinado, a título de danos não patrimoniais, a quantia global de € 90.000,00 (noventa mil euros), que ora se fixa, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% ao ano, desde a data da presente acórdão, até efetivo e integral pagamento, quantia a que os 2º a 7º RR vão igualmente condenados, improcedendo no demais a Apelação do Autor.
Custas pelos recorrentes na parte em que decaíram nos respetivos recursos, encontrando-se o FGA isento do pagamento de custas.

Porto, 26.11.2019
Alexandra Pelayo
Vieira e Cunha
Maria Eiró