Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
160094/14.2YIPRT.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: SOCIEDADE COMERCIAL
DISSOLUÇÃO
LIQUIDAÇÃO
Nº do Documento: RP20181011160094/14.2YIPRT.P2
Data do Acordão: 10/11/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º148, FLS.60-69)
Área Temática: .
Sumário: I - Ao deliberarem a dissolução da sociedade e procederem à sua imediata liquidação afirmando falsamente que inexiste passivo social, os sócios podem tornar-se responsáveis pela satisfação desse passivo.
II - Em regra, essa responsabilidade terá como fundamento legal o disposto no artigo 163.º do Código das Sociedades Comerciais e como limite, nos termos da própria norma, o montante que os sócios receberam na partilha.
III -O contrato de factoring, vincula apenas as partes que o celebram e, quanto ao devedor , apenas na medida em que, mantendo relações comerciais com o "aderente", foi notificado da celebração do mesmo, nos termos contratualmente estabelecidos e aceitou aquela cedência de créditos da aderente sobre si, embora com "reservas".
IV - A alegação e prova de que a sociedade tinha bens e que, independentemente da forma, os sócios beneficiaram pessoalmente dessa partilha do património social, incumbe aos devedores da sociedade.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 160.094/14.2YIPRT.P2
Juízo Local Cível de Santa Maria da Feira
Comarca de Aveiro
Recurso de Apelação

Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:
I. Relatório:
B…, Lda., pessoa colectiva n.º ……….., com sede em Santa Maria da Feira, apresentou requerimento de injunção contra C…, contribuinte fiscal n.º ………, residente em Santa Maria da Feira, D…, contribuinte fiscal n.º ……….., residente em …, e E…, residente em …, pedindo o pagamento do capital de €6.776 e juros de mora vencidos e vincendos até integral pagamento, sendo aqueles no montante de €1.400.
Alegou para o efeito que no exercício da sua actividade de mediação imobiliária celebrou com a sociedade comercial F…, Lda. um contrato de mediação para diligenciar no sentido de encontrar comprador para um prédio urbano composto por pavilhão de 2 andares para a indústria, a troco da remuneração de 3,5% do preço de venda. A requerente obteve um interessado na aquisição do imóvel e participou mesmo na celebração do respectivo contrato-promessa de compra e venda, tendo a compra sido concretizada depois pelo preço de €160.000. Apesar de interpelada para pagar à autora a comissão acordada, que perfaz €5.600 mais IVA, a sociedade vendedora não o fez e, em 22.10.2009, os seus sócios procederam à dissolução e liquidação da sociedade, sabendo que esta devia à requerente a referida comissão.
Os requeridos D… e C… deduziram oposição, excepcionando a nulidade do contrato por vício de forma e a sua própria ilegitimidade passiva com fundamento em não ter havido distribuição de património social pelos sócios por não existir qualquer património. Por impugnação, alegaram que o interessado no negócio que a autora refere não logrou obter o empréstimo necessário para concretizar a venda pelo que a proprietária do imóvel perdeu o interesse no contrato-promessa; só dois anos mais tarde aquele renovou o interesse no negócio pelo que foram reabertas as negociações sem a intervenção da autora, as quais vieram a desembocar na realização da venda do imóvel.
A injunção foi distribuída como acção e, após realização do julgamento, foi proferida sentença, julgando improcedente a acção e absolvendo os réus do pedido.
Do assim decidido, a autora interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
1. A douta sentença recorrida não merece, da parte do recorrente, uma censura total.
2. A douta sentença recorrida não merece qualquer censura na parte em que concede à recorrente o direito à remuneração acordada, no montante de €5.600,00, acrescida do IVA e os juros contados desde a escritura de compra e venda até efectivo e integral pagamento, por a mesma ter cumprido o que acordou com a sociedade F…, Lda.
3. Os factos provados, não deixam qualquer margem de dúvida acerca da existência desse direito à remuneração concedido à recorrente.
4. Relativamente à responsabilização dos recorridos, antigos sócios da sociedade F…, Lda., decorrente da sua dissolução e liquidação, andou mal o tribunal a quo ao julgar improcedente a presente acção apenas por “não estar demonstrado que os sócios da extinta sociedade receberam quaisquer bens/valores”.
5. Atenta a matéria de facto dada como provada, deveria a conclusão retirada pelo tribunal a quo ser necessariamente outra, ou seja, a de que os sócios receberam valores, a saber, o preço pela venda do referido imóvel.
6. Com efeito, o Tribunal a quo deu como provado, na douta sentença recorrida, que: [nota: segue-se a reprodução dos factos provados nºs 7, 15, 18 e 19].
7. Perante este quadro fáctico dado como assente, é absolutamente inquestionável que - A sociedade F…, Ld.ª, à data da sua dissolução e liquidação, tinha activo (um único bem – imóvel/prédio urbano); - Vendeu esse prédio no mesmo dia da dissolução e liquidação da sociedade pelo preço de €160.000,00; - Esse preço foi pago através de cheque bancário emitido à ordem da sociedade F…, Ld.ª; - Esse cheque foi entregue ao sócio gerente C…, que outorgou essa escritura por si e em representação de todos os demais sócios, e por ele endossado ao procurador desta sociedade, G….
8. Perante este quadro fáctico, deveria o Tribunal a quo ter concluído que essa quantia de €160.000,00 foi recebida pelo sócio gerente, C…, e que, ao outorgar essa escritura por si e na qualidade de procurador dos demais sócios dessa sociedade, ora recorridos, foi também por todos eles, ora recorridos, recebida.
9. Essa quantia titulada pelo cheque emitido à ordem dessa sociedade, esteve na esfera jurídico-patrimonial dessa sociedade até ao momento da sua dissolução.
10. Dissolvida esta sociedade, essa quantia/valores passou a estar na esfera jurídico-patrimonial dos recorridos, passando a ser património pessoal dos recorridos.
11. Pelo que, em face de tal conclusão, a decisão a proferir pelo Tribunal a quo deveria ser a de julgar procedente a presente acção por estar demonstrado que, precisamente no dia da dissolução e liquidação da sociedade, os sócios da extinta sociedade receberam bens/valores, a saber, a quantia de €160.000,00.
12. Há, portanto, uma manifesta contradição entre a fundamentação e a decisão.
13. E mesmo que se entenda que cabe à recorrente a prova de que tais valores foram distribuídos/partilhados pelos sócios, e somos de entendimento contrário, sempre se dirá que essa quantia foi distribuída/partilhada pelos sócios dessa sociedade, ora recorridos.
14. É que, como já se alegou, recebida tal quantia pelo sócio gerente C…, e tendo este outorgado a mencionada escritura de dissolução e liquidação da dita sociedade, por si e como procurador dos demais recorridos, temos que concluir que essa quantia foi recebida por todos os recorridos.
15. E nem o endosso dessa quantia/cheque bancário pelo Recorrido, C…, ao procurador da sociedade, infirma esta conclusão.
16. É que, o procurador dessa sociedade, G…, não era sequer credor da sociedade, pelo que, de acordo com as mais elementares regras da experiência comum, este só poderá ter procedido ao depósito do referido cheque na sua conta a título de mero favor prestado aos recorridos, constituindo-se, assim, na obrigação de, posteriormente, lhes entregar a referida quantia.
17. Mas, mesmo que se admita que esse procurador era credor dessa sociedade F…, Ld.ª, o que não se aceita, e apenas se equaciona por mero exercício de raciocínio, sempre se dirá que, pelos documentos que, quer os recorridos, quer o referido procurador, juntaram aos autos, o eventual crédito desse procurador nunca seria superior a €40.000,00.
18. Pelo que, neste caso, teria sempre esse procurador que restituir aos recorridos a diferença que, in casu, seria mais do que suficiente para liquidação da importância devida à recorrente.
19. Assim, quer numa, quer noutra situação, nenhuma justificação existe para que esse procurador não tivesse entregue essa quantia, €160.00,00, aos recorridos.
20. Aliás, atenta a qualidade em que intervém o Sr. G…, mandatário/procurador dessa sociedade, era obrigação dele, nos termos do disposto no artigo 1161º, al. e) do CCivil, entregar à referida sociedade, mandante, ou melhor, aos seus sócios após e por causa da dissolução e liquidação dela, “o que recebeu em execução do mandato ou no exercício deste, se o não despendeu normalmente no cumprimento do contrato“.
21. Ora, os recorridos não fizeram qualquer prova de que o referido procurador da sociedade F…, Ld.ª tivesse despendido tal montante no cumprimento do contrato.
22. E assim, sendo inquestionável que essa quantia foi recebida por todos os recorridos, afigura-se-nos também inquestionável que essa quantia foi também entre eles partilhada.
23. Mesmo que se entenda que a prova de tal factualidade cabe à autora, o que não se aceita no caso presente, por se tratar de partilha de dinheiro, facilmente ocultável dos credores e impossível de demonstrar, devendo nestas circunstâncias operar-se uma inversão do ónus da prova, sempre se dirá que, deveria ter sido dado como assente que, tendo sido recebida por todos os sócios, foi tal quantia entre eles também partilhada.
24. No momento da sua dissolução e liquidação, a sociedade F…, Ld.ª, tinha passivo (a dívida à recorrente) e activo (€160.000,00 resultantes da venda do único bem de que era proprietária essa sociedade).
25. Esse activo, €160.000,00, cheque bancário emitido à ordem dessa sociedade, entrou no património dessa sociedade.
26. De património dessa sociedade, esse dinheiro logo passou para património pessoal dos recorridos, seus sócios, em virtude da sua dissolução e liquidação.
27. Com a dissolução e liquidação dessa sociedade, esta deixou, portanto, de ter património, passando este para a esfera jurídico-patrimonial dos sócios.
28. Ao passar para a esfera jurídico-patrimonial dos sócios, esse património/dinheiro foi, logicamente, partilhado entre eles, até porque a sociedade deixou de existir.
29. Prova cabal de que esses bens/cheque bancário/dinheiro, que foi património dessa sociedade até à hora da sua dissolução e liquidação, foram partilhados entre os sócios/recorridos, são as declarações prestadas por eles na escritura de dissolução e liquidação da sociedade, ao admitirem que essa sociedade não tinha ativo.
30. Mesmo admitindo que os recorridos endossaram esse cheque ao referido procurador dessa sociedade para pagamento de um alegado crédito, sempre teria que ser devolvida aos recorridos a quantia de 120.000,00€, uma vez que esse eventual crédito não ultrapassaria a quantia de €40.000,00.
31. É por demais evidente que os recorridos entregaram esse cheque no valor de 160.000,00€ ao referido procurador dessa sociedade apenas com o claro propósito de impedir que a recorrente pudesse demonstrar que os recorridos distribuíram essa quantia entre eles.
32. Pelo que, deveria o Tribunal a quo ter concluído pela partilha desse dinheiro pelos recorridos.
33. Não sendo este o entendimento do Venerando Tribunal ad quem, sempre se dirá que, de acordo com o disposto no artigo 342º n.º 1 do Código Civil, o credor, ora recorrente, apenas está obrigado a provar o seu direito sobre a sociedade, uma vez que a prova dessa partilha do dinheiro entre os recorridos se afigura praticamente impossível de demonstrar, devendo nestas circunstâncias operar-se uma inversão do ónus da prova;
34. Cabendo aos sócios, ora recorridos, provar, nos termos do artigo 342º nº 2 do CCivil, que da liquidação da sociedade não resultou qualquer saldo ou não resultou saldo suficiente para satisfazer o crédito peticionado.
35. Em conformidade, era imperativo da recorrente provar o seu direito sobre essa sociedade.
36. A recorrente fez prova inequívoca desse direito, como resulta da douta sentença recorrida.
37. E era imperativo dos recorridos provar que da liquidação da sociedade não resultou qualquer saldo ou não resultou saldo suficiente para satisfazer o crédito peticionado.
38. Os recorridos não fizeram qualquer prova disso.
39. Deverá, assim, o Venerando Tribunal ad quem subsumir a factualidade supra descrita ao direito aplicável, alterando-a.
40. Ora, sendo a responsabilidade dos sócios/recorridos pessoal (Ac. TRP de 16.5.2011, CJ, ano XXXVI, III, que declara que embora a responsabilidade dos sócios seja, nesta altura, pessoal, não se trata de argumento da respectiva responsabilidade pessoal, mas de assumir a responsabilidade da sociedade, em sua substituição e à custa de bens que a esta pertenciam e que foram, entretanto, partilhados) e de natureza solidária, ou seja, o sócio que tiver satisfeito o direito dos credores tem direito de regresso contra os outros (artigo 542º CCivil), tem a recorrente direito a receber de qualquer um dos recorridos a totalidade do seu crédito.
41. Em suma, são os recorridos, por força do disposto nos artigos 163º do CSC, 342º, nºs 1 e 2 e 542º todos do CCivil responsáveis pelo pagamento à recorrente do montante peticionado, acrescido de IVA, e juros vencidos e vincendos até integral pagamento.
42. A douta sentença recorrida violou, assim, as seguintes normas Jurídicas: - Artigos 163º CSC, 342º, nºs 1 e 2 e 542º ambos do CCivil.
Não foi apresentada resposta a estas alegações.
Após os vistos legais, cumpre decidir.
II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões:
i) Se foi arguida a nulidade da sentença e esse vício existe.
ii) Se está provado que no momento da liquidação da sociedade devedora havia património social e os réus, na qualidade de sócios, partilharam entre si esse activo.
iii) Se era sobre os réus que recaía o ónus de provarem que não receberam património social.
III. Os factos:
Na decisão recorrida foram julgados provados os seguintes factos:
1. A autora tem como objecto social a prestação de serviços de mediação imobiliária.
2. No exercício da sua actividade, por escrito datado de 28 de Maio de 2007, a autora celebrou com a sociedade F…, Lda., por intermédio do Sr. G…, actuando na qualidade de procurador desta sociedade, um denominado «Contrato de Mediação Imobiliária» com a ref.ª ….., em regime de não exclusividade (cf. doc. de fls. 62, cujo o seu teor se dá por integralmente reproduzido).
3. … constando nesse escrito o seguinte: “o imóvel objecto deste contrato tem as seguintes características: venda arrendamento trespasse outros, preço: €150.000,00”.
4. … tratando-se de um armazém industrial, sito na Zona Industrial de …, com 2 andares, com a área interior de 860 m2 e exterior de 300 m2.
5. Consta ainda na cláusula 4ª desse escrito o seguinte:
“1. A remuneração só será devida se a mediadora conseguir interessado que concretize o negócio visado pelo presente contrato, nos termos e com as excepções previstas no artº 18º do DL 211/04, de 20.08.
2. O segundo outorgante obriga-se a pagar à mediadora a seguinte remuneração: um mês de renda, nos casos de arrendamento; 3,5% calculados sobre o preço final de venda ou a quantia de € . A esta remuneração acresce IVA à taxa legal em vigor”.
6. Na decorrência da execução do escrito referido em 2), com a intervenção na angariação da autora e nas instalações desta, por escrito datado de 10 de Julho de 2007, denominado Contrato Promessa de Compra e Venda, outorgado entre a sociedade F… Lda., representada pelo seu procurador Sr. G…, e a sociedade H…, Lda., representada pelo seu sócio I…, a primeira prometeu vender e a segunda comprar o prédio identificado em 2), pelo preço de €145.000,00, devendo a escritura pública de compra e venda ser celebrada até ao dia 30 de Setembro de 2007 (cf. doc. de fls. 67 e 68, cujo o seu teor se dá por integralmente reproduzido).
7. Por escritura pública epigrafada Compra e Venda outorgada no dia 21 de Outubro de 2009 no Primeiro Cartório Notarial sito à Avenida ..., nº …, …, o réu C…, por si e ainda na qualidade de procurador dos réus E… e D…, sócios da sociedade F…, Lda., declarou que por essa escritura e pelo preço de €160.000,00, vendiam ao Banco J…, SA, a fracção autónoma designada pela letra A, correspondente a armazém norte com andar, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito em …, freguesia de …, concelho de Santa maria da Feira, inscrito na matriz sob o art.º 815 e descrito na Conservatória do Registro Predial de Santa Maria da Feira sob o nº 193.
8. Consta nessa escritura que pelos outorgantes foi dito o seguinte: “Que não houve intervenção de mediador imobiliário (…)”.
9. Por escrito epigrafado Contrato de Locação Financeira Imobiliária datado de 21 de Outubro de 2009, o Banco J…, SA declarou ceder em locação financeira à sociedade H…, Lda., representada por I…, que declarou aceitar, o prédio descrito em 7), mediante o pagamento por esta de renda mensal, concretamente ao pagamento de 180 (cento e oitenta) rendas, sendo a 1ª renda no montante de €12.825,83 e a 2ª a 180 no montante de € 1.145,83 (cf. fls. 48 a 59, cujo o seu teor se dá por integralmente reproduzido).
10. Consta no art.º 3º, nº 1 das cláusulas gerais desse escrito que “No final do prazo do contrato, o locatário poderá adquirir o imóvel locado pelo preço fixado na cláusula cinco das Cláusulas Particulares”, ou seja o valor residual de €3.200,00.
11. Em data não concretamente apurada, a Autora teve conhecimento da realização do referido em 7) e 9), por intermédio do Sr. G…, procurador da Sociedade F…, Lda., que em deslocação ao seu escritório solicitou um desconto ao valor pré-acordado e devido por conta do serviço de mediação prestado pela autora, oferecendo o montante de €3.000,00.
12. Desde o referido em 6) até ao referido em 7) e 9), o Sr. G…, procurador da sociedade F…, Lda., e o Sr. I…, pediram à autora para tratar da certificação energética relativo ao prédio (cf. doc. de fls. 63 a 66, cujo o seu teor se dá por integralmente reproduzido).
13. A autora, através do seu representante legal, acompanhou a avaliação do prédio em causa efectuada pelo Banco J…, SA.
14. … a autora acompanhou junto da competente Câmara Municipal o processo para rectificação das áreas do prédio em causa.
15. O pagamento do preço do prédio em 7) foi efectuado por cheque bancário nº ……….., emitido a favor da sociedade F…, Lda., e depositado na conta do procurador desta sociedade, Sr. G….
16. O negócio não se realizou até à data prevista (30 de Setembro de 2007) devido à não aprovação do crédito junto do Banco J…, SA pelo Sr. I…, o que foi comunicado à autora.
17. A sociedade F…, Lda., com sede na Zona Industrial de …, Santa Maria da Feira, com capital de 7.000.000 escudos, tem como objecto social serralharia civil (cf. certidão registral de fls. 60 e 61, cujo o seu teor se dá por integralmente reproduzido).
18. Constam como sócios dessa sociedade D…, C… e E…, aqui réus, com quotas de 4.900.000 escudos, 1.050.000 escudos e 1.050.000 escudos, respectivamente, e gerente o réu D….
19. Por escritura pública epigrafada Dissolução e Liquidação de Sociedade outorgada no dia 21 de Outubro de 2009 no Primeiro Cartório Notarial sito à Avenida …, nº …, …, o réu C…, por si e ainda na qualidade de procurador dos réus E… e D…, declarou que são sócios da sociedade F…, Lda., e que por essa escritura dissolvem a referida sociedade e que para efeitos da presente dissolução, as contas da administração da sociedade foram encerradas e aprovadas nesse dia, verificando-se não existir activo nem passivo, pelo que, igualmente consideram liquidada a referida sociedade (cf. doc. de fls. 12 a 13v, cujo o seu teor se dá por integralmente reproduzido).
20. A dissolução e o encerramento da liquidação foram registados com a inscrição 4, Ap. 22/ 20091022.
21. Sobre o prédio descrito em 7) estava inscrito o seguinte: correspondente à apresentação 10/010305, uma hipoteca legal, a favor do Instituto da Segurança Social I.P., para garantia do pagamento de contribuições declaradas nas declarações de remunerações dos meses de Julho de 2001 a Dezembro de 2004, no montante de €43.041,65, acrescido de juros de mora vencidos até Fevereiro de 2005, no montante de €10.286,96, com montante máximo de €53.328,61; correspondente à apresentação 40/221105, um arresto, a favor de K…, Lda., para assegurar a quantia de €4.251,68; - correspondente à apresentação 46/030306, uma penhora, a favor da Fazenda Nacional para garantia do pagamento da quantia exequenda de €5.560,54; correspondente à apresentação 22/300307, uma penhora, a favor da Fazenda Nacional para garantia do pagamento da quantia exequenda de €1.469,26; correspondente à apresentação 34/20070504, uma penhora, a favor da L…, SA, para garantia do pagamento da quantia exequenda de €1.451,75.
IV. O mérito do recurso:
A] da nulidade da sentença:
De forma telegráfica, sem a necessária consubstanciação e explicação e repetindo na íntegra e sem mais conteúdo o que fizera constar do corpo das alegações de recurso, a recorrente afirma numa das suas conclusões que há «uma manifesta contradição entre a fundamentação e a decisão».
A contradição entre os fundamentos de uma decisão e o respectivo dispositivo é causa de nulidade da decisão - artigo 615.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Civil -. A recorrente, contudo, não invoca a nulidade, nem pede a anulação da sentença, parecendo usar aquele argumento apenas para reforçar as razões pelas quais os factos provados devem ser interpretados como sustenta.
Se assim se entender, este Acórdão não tem de conhecer da nulidade da sentença por tal vício não ter sido arguido nos termos necessários: acusando-se o vício (independentemente da menção ao respectivo nomem jurídico) e requerendo-se a respectiva sanação ou o decretamento da respectiva consequência.
Se assim não se entender, diga-se que é manifesto que tal contradição não existe.
Com efeito, os dois actos jurídicos celebrados por escritura pública - a compra e venda do imóvel e a dissolução e liquidação imediata da sociedade vendedora - não foram praticados em simultâneo, instantaneamente, no mesmo acto, ao mesmo tempo. Nem isso era, aliás, possível, porque para celebrar a venda do imóvel a sociedade necessitava de ter ainda personalidade jurídica e só depois da venda podia declarar que já não tinha património social.
Primeiro realizou-se a escritura de compra e venda e só depois se realizou a escritura de dissolução e liquidação da sociedade. Ambas no mesmo dia, mas em momentos diferentes e com a referida sequência.
Logo não pode haver contradição entre julgar-se provado que no momento da celebração da escritura de compra e venda se recebeu o preço do imóvel transaccionado e, não obstante, entender-se e decidir-se que está por demonstrar que no momento do encerramento da liquidação da sociedade esta possuía património social e este foi partilhado pelos respectivos sócios.
Basta, aliás, ver os ónus e encargos que oneravam o imóvel para aceitar que o produto da venda possa ter sido utilizado, total ou parcialmente, para a satisfação de credores sociais, uma vez que o banco comprador não iria adquirir o imóvel sem o levantamento dos ónus e encargos – nem podia, porque alguns desses encargos são penhoras – e esse levantamento tinha de ser feito até ao momento da celebração da escritura, directamente pela sociedade se tivesse recursos para isso ou por terceiro que adiantasse à sociedade esses recursos e depois recebesse o preço.
Acresce que sendo o preço constituído por uma quantia monetária cujo pagamento foi feito através de um cheque é manifesto que a utilização desse dinheiro podia[1] ser feita de forma muito rápida – bastava o endosso do cheque, que, aliás, ocorreu –, certamente no próprio dia e hora e, portanto, perfeitamente antes da celebração da escritura pública de dissolução e liquidação da sociedade.
Por conseguinte, a estar arguido e a dever conhecer-se do vício da nulidade da sentença, impor-se-ia concluir pela não existência de tal vício.
B] da matéria de direito.
Antes de entrar na apreciação do mérito do recurso convém precisar os contornos da lide para não se fugir ao que está verdadeiramente em causa.
A autora apresenta-se como titular de um direito de crédito sobre uma pessoa colectiva - sociedade comercial - com a qual celebrou um contrato de mediação imobiliária que cumpriu, o que proporcionou à sociedade a almejada venda um imóvel, cabendo à autora, nos termos do contrato, o direito a uma comissão no montante de €5.600. A autora termina o seu articulado pedindo a condenação dos demandados na satisfação desse crédito.
A causa de pedir que deduz é, portanto, a relação contratual de mediação imobiliária que constitui a fonte jurídica exclusiva da prestação cuja obtenção pretende[2].
A autora não demandou, no entanto, a sociedade que é a contraparte nesse contrato e que nessa relação assume a posição de devedor da remuneração. A autora demandou as pessoas individuais que tiveram a qualidade de sócios da devedora. Porquê? Porque entretanto os sócios da sociedade devedora outorgaram uma escritura pública na qual declararam a dissolução da sociedade e, com fundamento na inexistência de activo ou passivo sociais, encerrada a liquidação, tendo inscrito no registo esses actos.
A autora foi, pois, confrontada com a extinção da sociedade e com a cessação das respectivas personalidades jurídica e judiciária necessárias para a poder demandar em juízo. Por isso, cinco anos depois da extinção da sociedade, demandou os respectivos sócios. E o que alegou para os demandar? Apenas que estes realizaram e inscreveram no registo a dissolução e o encerramento da liquidação da sociedade, conhecendo que a sociedade devia à autora a comissão referida.
Dois dos três sócios demandados ainda contestaram, arguindo a sua ilegitimidade passiva com o fundamento de que «não houve distribuição de património da sociedade, por inexistência do mesmo, pelos sócios». Essa excepção foi julgada improcedente, não tendo sido interposto recurso da decisão.
Na acção a autora defende, portanto, que, perante os credores sociais, os sócios substituíram a sociedade na posição de devedores por virtude de terem encerrado a liquidação da sociedade sem pagarem aos credores sociais, sabendo que existia passivo social. No fundo, a autora defende que como a sociedade não pagou aos credores antes da sua extinção esse pagamento pode agora ser reclamado directamente aos respectivos sócios só porque eles sabiam que o passivo social existia.
A presente acção não é, tal como foi configurada pela autora, uma acção de responsabilidade civil contra os sócios pelos actos praticados contra os interesses dos credores sociais. Não foi invocada nenhum fundamento legal de responsabilidade civil dos sócios perante os credores sociais, nem foram alegados quaisquer factos destinados ao preenchimento dos respectivos pressupostos legais.
Logo, para julgar o mérito da acção importa determinar se e em que circunstâncias os sócios que extinguem a sociedade se tornam pessoalmente responsáveis pelo passivo social insatisfeito, se isso decorre automaticamente da condição de sócios ou depende de algum pressuposto específico.
Na sentença recorrida entendeu-se que essa responsabilidade depende de um pressuposto: que os sócios tenham recebido em partilha património da sociedade. A recorrente aceita que a responsabilidade dos réus depende desse pressuposto. Não há pois dissídio quanto a esse aspecto jurídico, o qual aliás é correcto. A diferença reside na verificação do pressuposto: para a sentença recorrida ele não está demonstrado, para a recorrente está demonstrado.
Segundo a recorrente, resulta da matéria de facto que no momento do encerramento da liquidação a sociedade tinha património (o preço da venda do imóvel) e que os sócios partilharam entre si esse património social, mas, de todo o modo, sempre eram os sócios demandados que tinham de fazer a prova de que não receberam nenhum património social.
Se a matéria de facto evidenciar o preenchimento do pressuposto, a questão está resolvida pois as regras do ónus da prova apenas resolvem contra quem deve ser resolvida a questão se não se fizer a prova de determinado facto, não impedem que essa prova seja feita por qualquer das partes, mesmo por aquela que não tinha esse ónus (artigos 413.º e 414.º do Código de Processo Civil e 346.º do Código Civil). Se a matéria de facto não exibir o pressuposto, coloca-se então a questão do ónus da prova, a qual, todavia, não subverte a questão do ónus de alegação.
Quid iuris?
Lida e interpretada a matéria de facto provada, parece-nos absolutamente seguro que a mesma não evidencia que os sócios receberam em partilha património social. Para defender o contrário, conforme já mencionado a propósito da nulidade da sentença, a recorrente mistura e confunde as duas escrituras públicas, como se as mesmas tivessem sido celebradas precisamente ao mesmo tempo.
Por pouco que seja tempo o tempo que as separou, primeiro foi celebrada a compra e venda do imóvel (necessariamente porque para praticar o acto a sociedade necessitava de possuir ainda personalidade jurídica) e só depois a dissolução e encerramento da sociedade. Por isso, tanto em termos jurídicos como na prática, o preço da venda do imóvel pode ter sido usado pela sociedade (representada pelos então ainda sócios) a qualquer fim que se tenha esgotado de imediato (v.g. um pagamento, hipótese, note-se, que não é meramente especulativa porque sabemos que o cheque com o valor do preço foi endossado a um terceiro, embora se desconheça porquê ou para que efeito), não existindo mais como património social quando, a seguir, os sócios deliberaram dissolver a sociedade e declarar encerrada a liquidação por falta de património social.
Por outras palavras, não resulta da matéria de facto que ao dissolverem a sociedade e encerrarem a sua liquidação os sócios fizeram sua a totalidade ou sequer alguma parte do preço que a sociedade antes tinha recebido pela venda do imóvel. Ao invés, resulta mesmo que através do endosso do cheque recebido como meio de pagamento do preço este foi entregue a um terceiro, desconhecendo-se embora se o foi para satisfação de algum direito do terceiro ou para qualquer outra finalidade que não tivesse privado os sócios da disponibilidade do dinheiro.
Esse facto – que os sócios se apoderaram da totalidade ou de parte do preço do activo social vendido que respondia pelas dívidas sociais – não só não está provado como, aliás, não foi sequer alegado pela autora[3], a qual também não sustenta no seu recurso que se tenha verificado uma situação em que seria possível ao tribunal adquirir e levar em consideração esse facto apesar de ele não ter sido alegado nos respectivos articulados.
O fundamento jurídico que pode dar acolhimento à pretensão da autora, tal como ela a configurou, é constituído pelo artigo 163.º do Código das Sociedades Comerciais.
Conforme já escrevemos no Acórdão de 8 de Janeiro de 2015 que relatámos no processo n.º 449/14.1TBMAI.P1, publicado in www.dgsi.pt, este artigo rege sobre aquilo que designa por “passivo superveniente”. Para efeitos da norma, até porque a mesma não restringe e a teleologia da sua previsão assim o aponta, passivo superveniente é o passivo social que posteriormente à liquidação se vem a apurar que existia (ou porque era desconhecido anteriormente ou porque era litigioso e se tornou certo apenas após o encerramento da liquidação) e não foi satisfeito ou assegurado na liquidação, não havendo mais bens sociais (bens ainda da titularidade da sociedade) que possam responder por ele.
De acordo com o n.º 1 do preceito, encerrada a liquidação e extinta a sociedade, os antigos sócios respondem pelo passivo social não satisfeito ou acautelado, até ao montante que receberam na partilha, sem prejuízo do disposto quanto a sócios de responsabilidade ilimitada.
Comenta Carolinha Cunha, in Responsabilidade dos sócios pelo passivo superveniente após a extinção da sociedade nos casos de ausência de liquidação, III Congresso do Direito das Sociedades em Revista, Almedina, Outubro de 2014, pág. 173 e 174, e in Código das Sociedades Comerciais em Comentário, n.º 2, pág. 668, acompanhando Raul Ventura, in Dissolução e liquidação de sociedades - Comentário ao Código das Sociedades Comerciais, 2ª reimpressão da 1.ª edição de 1987, Almedina, 1999, pág. 480, que “por circunstâncias várias, envolvendo ou não culpa (ou dolo) dos liquidatários, pode a sociedade vir a ser extinta sem que estejam satisfeitos todos os credores sociais. Os interesses dos credores e do tráfico jurídico em geral opõem-se fortemente a que a extinção da sociedade acarrete a extinção das dívidas sociais. Ora, permanecendo as dívidas, há que determinar quem responde por elas. A regra geral é a consagrada pelo art. 163.º: a responsabilidade dos antigos sócios, embora limitada pelo montante que receberam em partilha. O fundamento da solução legalmente consagrada radica na ideia de sucessão na titularidade daquela relação jurídica, embora de âmbito limitado pela extensão do direito de cada sócio relativamente ao antigo património social. Os sócios têm direito ao saldo da liquidação distribuído pela partilha; mas, se houverem recebido mais do que era seu direito porque havia débitos sociais insatisfeitos, terão de ser eles a satisfazê-los, agora à custa dos bens que receberam.
Como se vê, excepto no tocante aos sócios de responsabilidade ilimitada, a responsabilidade dos sócios tem limites e não abrange, independentemente do mais, a totalidade dos débitos sociais insatisfeitos. Tão pouco tem a medida da sua participação no capital social da sociedade extinta. A responsabilidade dos sócios pelo passivo social não satisfeito ou acautelado depende de terem recebido na liquidação mais bens do que aqueles que podiam ter sido distribuídos aos sócios na liquidação e, como tal, tem como medida o montante que receberam na partilha.
Sendo assim, é requisito insuprível de responsabilização dos sócios a demonstração de que estes beneficiaram pessoalmente de património social que deveria ter respondido pelo passivo social e foi antes, indevidamente, transferido para a titularidade dos sócios[4].
Não será necessário demonstrar que a distribuição do património social constituiu uma efectiva partilha (a distribuição pode ser escamoteada através de actos jurídicos diversos) nem que a mesma foi contemporânea da deliberação, porquanto pode perfeitamente suceder que os sócios hajam anteriormente procedido à dissipação do património da sociedade em seu proveito pessoal (repartindo entre si não os bens que constituíam o património social quae tal mas a receita da sua alienação a terceiros) já com a intenção de logo a seguir a declararem extinta com fundamento na inexistência de activos.
Fundamental ao preenchimento do mencionado pressuposto da responsabilidade (a partilha, leia-se, a apropriação pelos sócios dos bens sociais) será a demonstração de que os sócios se aproveitaram de património social, que de outra forma responderia pelo passivo social, em benefício pessoal e prejuízo dos credores e que foi essa situação que motivou e permitiu a deliberação de extinção imediata da sociedade.
Para isso, é indispensável que os credores aleguem, ao menos, que, ao contrário do que os sócios declararam, a sociedade tinha bens que redundaram em proveito dos sócios ou que os bens que a sociedade possuíra anteriormente foram dissipados pelos sócios em seu proveito pessoal para possibilitar a liquidação imediata da sociedade sem satisfazer ou acautelar previamente os credores sociais.
A questão que se coloca, e que os recorrentes colocam nos autos, é a de saber a quem compete o ónus (de alegação e) da prova desse requisito, concretamente se são os credores que têm de fazer a prova de que os sócios receberam em partilha património da sociedade que poderia responder total ou parcialmente pelo seu crédito ou, pelo contrário, são os sócios que têm de fazer a prova de que não receberam em partilha bens sociais. A resposta absolutamente maioritária na jurisprudência vai no sentido da primeira das alternativas colocadas.
Sustentaram que esses factos são constitutivos do direito dos credores e como tal são os credores que têm de fazer a prova de que os sócios receberam em partilha património da sociedade designadamente os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 15-11-2007 (Salvador da Costa), de 26-06-2008 (Santos Bernardino), de 06-03-2012 (Fonseca Ramos), de 07-02-2013 (Bettencourt de Faria) e de 12-03-2013 (Garcia Calejo), da Relação do Porto de 23-01-2012 (Caimoto Jácome), de 05-07-2012 (Teles de Menezes e Melo), de 04-06-2013 (Fernando Samões) de 14-01-2014 (Márcia Portela), de 18-05-2017 (Filipe Caroço) e de 05-02-2018 (Correia Pinto), da Relação de Lisboa de 11-07-2013 (Vaz Gomes), de 12-07-2012 (Luís Lameiras) e de 24-06-2014 (Manuel Marques), e da Relação de Coimbra de 22-03-2011 (Carlos Querido), todos in www.dgsi.pt.
Entendendo, pelo contrário, que os factos são impeditivos do direito dos credores a obterem dos sócios a satisfação dos seus créditos e, como tal, que cabe aos sócios demonstrar que não receberam bens sociais, conhecemos os Acórdãos da Relação de Lisboa de 09-03-2010 (Afonso Henrique), de 15-03-2011 (Graça Araújo), e de 12-06-2014 (Maria Teresa Albuquerque), e o voto de vencido (Pinto Hespanhol) no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23-04-2008 (Sousa Peixoto), in www.dgsi.pt. Pertence ao Acórdão de Graça Araújo o mérito do melhor esforço argumentativo no sentido da defesa desta posição, tendo recebido a adesão de Carolina Cunha, in Responsabilidade dos sócios pelo passivo superveniente …, loc. cit, pág. 193.
Essa argumentação tem como vértice essencial a defesa que de a relação jurídica que o credor social traz à lide é aquela que o liga à sociedade, posto que nenhuma outra, diversa e autónoma, se constitui com os respectivos sócios, pelo que o credor apenas tem de demonstrar os factos constitutivos do seu direito sobre a sociedade. Com todo o devido respeito, cremos poder demonstrar onde soçobra este argumento.
O artigo 163.º do Código das Sociedades Comerciais consagra uma situação de responsabilidade dos sócios pelas dívidas sociais, ou seja, constitui uma fonte específica de responsabilidade de alguém por dívidas que não eram suas. Quando, com recurso a este normativo, os credores sociais demandam os sócios já não é a responsabilidade da sociedade que querem ver reconhecida mas a responsabilidade dos próprios sócios. É por essa razão que o artigo 163.º refere que os liquidatários demandados são considerados representantes legais dos sócios e não da sociedade, que a sentença proferida constitui caso julgado em relação aos sócios, e que os sócios que pagarem têm direito de regresso contra os outros, de maneira a ser respeitada a proporção de cada um nos lucros e nas perdas.
Obtida a sentença condenatória dos sócios, é o património destes que os credores vão poder executar coercivamente. E isso sem restrição aos bens concretamente recebidos na partilha dos bens sociais, já que o normativo não cria no património dos sócios uma espécie de património autónomo restringindo a acção dos credores a esse património, apenas estabelece que os sócios respondem, com a totalidade do seu património, até ao limite do valor que receberam na partilha.
Sendo assim, aos credores não basta obviamente demonstrar os factos constitutivos do seu direito sobre a sociedade, é ainda necessário que demonstrem que esse direito foi transferido para os sócios, isto é, que no caso estão preenchidos os pressupostos e requisitos legais dessa transferência, no fundo os factos constitutivos do seu direito sobre os sócios, pois são estes que vão ser responsabilizados pela dívida e chamados com todo o seu património a satisfazer essa dívida.
Em defesa da mencionada posição, argumenta-se ainda com a dificuldade do credor em apurar a situação da sociedade para poder alegar e fazer a prova da existência de bens e da sua partilha pelos sócios e com o acréscimo de custos e dificuldades, em comparação com a demanda da sociedade, com que se confrontam os credores perante a situação gerada pela dissolução e imediata liquidação da sociedade da responsabilidade dos sócios.
Não há dúvida de que estamos perante um contexto de dificuldades acrescidas para os credores, mas não cremos, à luz do que sucede, por exemplo, com a prova dos factos negativos, que tal possa servir de fundamento para inverter as regras legais do ónus da prova. No caso, aliás, estava verificada uma situação que constituía forte indício da existência de património social e da sua apropriação, total ou parcial, pelos sócios, atenta a proximidade temporal entre a venda do imóvel da sociedade e a liquidação da mesma pelos sócios com a declaração da inexistência de activo e a circunstância de o cheque do preço ter sido endossado a pessoa que tinha tido a qualidade o procurador da sociedade. Tivesse a autora alegado esse facto[5] e talvez a demonstração do mesmo não fosse assim tão difícil.
O facto de poderem demandar a sociedade não assegurava aos credores a efectiva satisfação do seu crédito. Se for verdade o que os sócios declararam quanto à inexistência de activo social, mesmo que demandassem a sociedade e esta fosse condenada, os credores continuariam com os seus créditos insatisfeitos ainda que instaurassem uma execução já que nesta apenas poderiam penhorar património da sociedade e este não existia. Logo, não prevendo o artigo 163.º do Código das Sociedades Comerciais a responsabilidade total, plena, incondicional dos sócios pelo passivo não satisfeito, não se vê porque haverão os credores de ficar, ao demandarem os sócios, à margem do risco e da dificuldade de não haver mesmo património provindo da sociedade que possa satisfazer os seus créditos.
Não vemos, pois, bons argumentos que permitam afastarmo-nos da tese preponderante que impõe aos credores o ónus da prova da existência de bens da sociedade de que os sócios se apropriaram em prejuízo dos credores. Note-se que não sustentamos que para obter a procedência da acção os credores tenham de fazer a prova da suficiência desses bens para pagar totalmente o seu crédito. O requisito da responsabilidade dos sócios é eles terem recebido na liquidação do património social bens da sociedade que respondiam pelo crédito. Basta por isso que os credores demonstrem que os sócios fizeram seus bens da sociedade. Aos sócios já caberá, contudo, caso pretendam ser condenados a pagar menos do que o valor do crédito, o ónus da prova da insuficiência desses bens para a satisfação total dos créditos.
Aplicando agora este entendimento ao caso, uma vez que a autora não alegou que os sócios se tivessem assenhorado de bens da sociedade em prejuízo dos credores sociais, facto que por isso não está provado, e que era sobre a autora que recaía o ónus dessa prova, a decisão de julgar a acção improcedente está em conformidade com as normas legais e tem de ser confirmada.
Improcede, por isso, o recurso.
V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso improcedente e, em consequência, negando provimento à apelação confirmam a sentença recorrida.
Custas do recurso pela recorrente.
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Porto, 11 de Outubro de 2018.
Aristides Rodrigues de Almeida (Relator; Rto445)
Inês Moura
Francisca Mota Vieira
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[1] Falamos, naturalmente, apenas da possibilidade de isso ocorrer, não da sua verosimilhança ou probabilidade.
[2] Face ao objecto do recurso não é passível de sindicância por esta Relação a existência e validade do contrato de mediação, o cumprimento do mesmo, a constituição e vencimento do direito à comissão, razão pela qual tais questões jurídicas estão ultrapassadas.
[3] Na oposição, aquando da arguição da excepção da ilegitimidade, os réus contestantes alegaram que «não houve distribuição de património da sociedade, por inexistência do mesmo, pelos sócios». Trata-se do facto negativo (não houve) e não do facto positivo (houve) da partilha do património social pelos sócios. Este facto (negativo) não foi objecto de julgamento (provado ou não provado) pelo tribunal de 1.ª instância com o argumento de que o «demais alegado pelas partes nos seus articulados encerra matéria puramente conclusiva, repetida, irrelevante para o objecto em litígio e/ou matéria de direito».
[4] Afirma-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07.11.2017, proc. n.º 3892/07.9TBMTS.P1.S1, in www.dgsi.pt, que «a existência de passivo da sociedade liquidada é um dos requisitos de que depende a responsabilidade dos sócios, prevista no referido nº 1 do art. 163º. Outro requisito é o de na dissolução daquela sociedade ter-se procedido a partilha de bens, necessariamente, aos respectivos sócios, a quem caberiam, nos termos do art. 156º do Cód. das Sociedades Comerciais. O quantitativo dos bens partilhados aos sócios apenas releva para efeito de funcionamento do limite previsto no referido preceito, ou seja, para quantificar a responsabilidade até ao montante recebido na partilha».
[5] Deve assinalar-se que recorrente não invoca no seu recurso que estava verificada uma situação que permitia ao tribunal conhecer de um facto não alegado, não suscita a questão da necessidade da ampliação da matéria de facto e não argui qualquer vício inerente ao não convite ao aperfeiçoamento do seu articulado ou associado ao julgamento da acção sem esse convite, circunscrevendo enormemente a possibilidade de intervenção desta Relação.